Você está na página 1de 14

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/237484422

INSUSPEITÁVEL MODERNIDADE: CRIAÇÃO E APRECIAÇÃO ARTÍSTICA


SEGUNDO AS MENINAS, DE DIEGO VELÁZQUEZ E FRANKENSTEIN, DE MARY
SHELLEY

Article · June 2007

CITATIONS READS

0 229

1 author:

Jaqueline Donada
Federal University of Technology - Paraná/Brazil (UTFPR)
20 PUBLICATIONS 2 CITATIONS

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Tradição e Modernidade: O Modernismo Anglófono em tradução de ensaios, cartas e diários. View project

All content following this page was uploaded by Jaqueline Donada on 03 February 2016.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Gláuks v. 7 n. 1 (2007) 186-198

INSUSPEITÁVEL MODERNIDADE: CRIAÇÃO


E APRECIAÇÃO ARTÍSTICA SEGUNDO AS
MENINAS, DE DIEGO VELÁZQUEZ E
FRANKENSTEIN, DE MARY SHELLEY

Jaqueline Bohn Donada*

RESUMO: O presente artigo discute diferentes reflexões


lançadas sobre as questões da criação e da apreciação artística
em As Meninas, de Diego Velázquez e em Frankenstein, de
Mary Shelley. Ao final, evidencia-se que ambas as obras
apresentam perspectivas, essencialmente, modernas, ainda que
aparentemente tradicionais.

PALAVRAS-CHAVE: As Meninas, Frankenstein, Criação


Artística, Apreciação da Arte, Modernidade.

E ntramos no quadro de Velázquez, seguindo Michel


Foucault, pelo olhar do pintor nele representado.
Num aparente momento de pausa em seu trabalho para reflexão,
ele contempla, ainda com seus instrumentos à mão, o modelo de
sua criação.
Surpreendido em semelhante atitude, vemos Victor
Frankenstein, em seu laboratório, contemplando com
angustiante expectativa, com seus “instrumentos de vida”
(MARY SHELLEY, 2004:59) ao redor de si, sua criatura ainda
sem vida. Seu próximo passo é “infundir-lhe uma faísca de
vida” (Ibidem, p.59) com a qual sua obra estará cabalmente

*
Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e Doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa pela mesma universidade.
Insuspeitável Modernidade: Criação e Apreciação Artística Segundo ... 187

completa. Quanto a Velázquez, não se sabe se seu próximo


passo é a primeira ou a derradeira pincelada, já que a obra em
que o vemos trabalhar está oculta de nossos olhos.
Em primeira análise, esse flagrante de duas personagens
tão distintas em atitude tão semelhante pode parecer mera
coincidência. No entanto, as semelhanças entre As Meninas,
pintado por Diego Velázquez em 1656 e Frankenstein, escrito
por Mary Shelley em 1818 vão muito além dessa imagem. Pode-
se dizer que o fato de não vermos a tela em que trabalha o pintor
de Velázquez enquanto conhecemos aquilo que faz Frankenstein
é uma das poucas diferenças realmente significativas entre o
projeto estético dessas duas obras. Ambas contêm conceitos e
reflexões muito parecidos a cerca dos processos de criação e
apreciação artística. Neste trabalho, examinamos algumas dessas
reflexões com vistas a ressaltar certa antecipação de questões
essencialmente modernas que estão nelas problematizadas.
Ao observarmos as linhas de composição do quadro de
Velázquez, vemos uma obra tradicional1, de perspectiva realista
e digna do grande retratista da corte espanhola. A tela é
organizada por linhas verticais, dadas pelos personagens e pelo
quadro no qual trabalha o pintor, e por linhas horizontais, dadas
pelo desenho do chão e pela disposição das telas que se
encontram na parede de fundo. Trata-se de um tema nobre: em
primeiro plano, a infanta Margarita com suas damas de
companhia e, ao fundo, o casal real, o rei Felipe IV e a rainha
Marianna, refletido no espelho. Apesar de não retratar uma cena
essencialmente dramática, como era comum à arte barroca, o
quadro de Velázquez revela, ainda que discretamente, a relação
do pintor com esse movimento estético. A luz que entra pela

1
“Tradicional” aqui significa em conformidade com as tendências da época e não
necessariamente inovadora ou original. Nesse sentido, uma pintura tradicional seria
aquela de representação objetiva, marcada pela clareza e calma organização das
imagens na tela.
188 Gláuks

janela localizada no lado direito da tela, antes de ser natural, é


calculada para servir os interesses do pintor e iluminar a cena
central da pintura. Esse forte contraste entre a luz clara que
incide sobre a infanta Margarita e a difusa escuridão que
envolve as pinturas na parede de fundo, essa “inseparabilidade
do claro e do escuro” (DELEUZE, 1991:55) são marcas
claramente barrocas, assim como o círculo que se desenha no
centro do quadro a partir da disposição da infanta, suas damas
de companhia, o espelho e a porta ao fundo, dando uma
impressão de movimento, ou de volume, conforme Foucault, à
cena que se vê. O quadro é inovador por ser um dos primeiros
em que o pintor aparece, um dos primeiros a pensar o ato da
própria criação artística e, já no distante século XVII,
representar a própria representação.
Satisfeitos da análise acima, conseguimos dar conta dos
processos de composição de Velázquez, certo? E deixamos de
observar tudo o que transcende o aspecto formal da obra, todo o
seu dinamismo. O texto de Foucault sobre As Meninas revela
que o quadro, muito além de representar a representação direta e
simplesmente, convoca o espectador a participar ativamente de
sua interpretação e a completar com o seu próprio olhar os
possíveis significados do quadro. Conforme observa Foucault,
ao investigarmos as linhas de composição da tela, existe

Um triângulo virtual que define em sua essência este quadro de


um quadro: no vértice – único ponto visível – os olhos do
artista; na base, de um lado, o lugar invisível do modelo; do
outro, a imagem provavelmente esboçada sobre a tela virada.
(FOUCAULT, 2001:196)

Esse lugar invisível do modelo aparece como um local


de mistério. Quem o ocupa? O casal real, que aparece no
espelho? Algum outro modelo? Ou será que o triângulo aponta
Insuspeitável Modernidade: Criação e Apreciação Artística Segundo ... 189

para o lugar do espectador? Tanto o triângulo quanto o espelho


apontam para esse lugar invisível, que se encontra perto do
centro da tela, lugar necessariamente ocupado por nós –
espectadores. Mas o que fazer com o casal real? Afinal eles
estão dentro ou fora do quadro? São personagens ou
espectadores da obra de Velázquez?
É nesse jogo que se esconde a complexidade de As
Meninas. Ao contemplá-lo, somos impelidos a refletir sobre a
nossa posição diante da obra e, da mesma forma que o olhar do
pintor se projeta para fora dela, nós nos projetamos para dentro,
já que ocupamos também o lugar na frente do espelho. Nossa
posição se confunde, inevitavelmente, com a posição dos
monarcas. É como se, estando no Museu do Prado, diante de As
Meninas, eles estivessem na nossa frente, olhando o quadro
como nós o olhamos e se projetando nele como nós nos
projetamos. Seria insuficiente observar que a originalidade de
Velázquez vem do fato de ele ter sido um dos primeiros a
representar a representação, pois sua reflexão acerca de
processos estéticos vai muito além disso. Nessa pintura, não
vemos apenas a representação da criação artística, mas também
a representação da experiência estética, dada pela imagem
refletida no espelho. Foucault mostra como temos em As
Meninas o quadro de um quadro, mas na verdade é importante
observar que há também a pintura de um pintor e o olhar de um
espectador.
Se lembrarmos que Antonio Candido vê a necessidade de
um sistema composto de obras, autores e público leitor, para a
existência de uma literatura, veremos que o quadro de Velázquez
problematiza esse sistema inteiro. Na posição de obras, tem-se a
tela em que trabalha o pintor, que por sua vez, ocupa o lugar dos
autores. Na posição de público leitor, tem-se o casal real. A obra
está, portanto, completa, sem o nosso olhar, o que, em se tratando
de uma obra de arte, deveria ser uma impossibilidade. E de fato o
190 Gláuks

é, já que é exatamente o olhar do espectador o responsável por


revelar todo esse jogo de presenças e ausências, de estar fora e
estar dentro do quadro. Nós, espectadores, somos surpreendidos
ao assumir o papel de um suplemento derridiano2 em relação ao
quadro, pois ele está completo sem nós e, no entanto,
acrescentamos características essenciais a ele. É como se,
novamente no Museu do Prado, estivéssemos num “empurra-
empurra” metafórico com o rei Felipe IV e a rainha Marianna, na
disputa pela posição de espectadores da tela.
Diante dessa reflexão, não podemos deixar de observar o
quão moderno é o pensamento de Velázquez ao lidar com as
questões da criação e da apreciação da obra de arte, que só serão
pensadas de forma crítica e sistemática um século mais tarde,
com os primeiros sinais do Movimento Romântico na Europa. A
meta-pintura e a meta-apreciação, criadas por Velázquez,
revelam a sofisticação de sua consciência crítica e artística
através de uma obra apenas aparentemente tradicional.

Voluntariamente, Velázquez realizou com As Meninas um


conceito, obrigando o espectador a imaginar o tema do quadro
que o artista pinta e obrigando-o a buscar a posição exata dos
soberanos refletida no espelho. Estabelece assim uma
cumplicidade estranha entre quem olha e os personagens, tanto
mais por ter construído a perspectiva do chão de forma a
prolongar a sala onde se encontra o espectador, suprimindo
virtualmente, desta forma, a barreira entre ficção e realidade.
(BATICLE, 1999:119, tradução minha)

Da mesma forma que As Meninas aparece como um


sistema completo sem o espectador, também Frankenstein,

2
O Glossário de Derrida explica que “o suplemento é uma adição, um significante
disponível que se acrescenta para substituir e suprir uma falta do lado do significado
e fornecer o excesso de que é preciso” (p. 88). Essa explicação enfatiza o papel do
espectador como um excesso (pelo fato de a tela estar completa sem ele) necessário
(pela impossibilidade de uma tela sem espectador). Conforme discuto a seguir, o
mesmo acontece em Frankenstein.
Insuspeitável Modernidade: Criação e Apreciação Artística Segundo ... 191

escrito cento e sessenta e dois anos depois do aparecimento da


tela de Velázquez, apresenta-se como um livro que, sem o leitor,
tem o seu sistema literário completo. Muitos leitores podem não
estar atentos a isso, já que a intensidade de Frankenstein lhes
desvia a atenção para outros pontos, mas o romance consiste em
cartas escritas por Robert Walton, o ‘narrador-moldura’ da
história, para sua irmã, Margaret Saville. Ela é a leitora do
romance, assim como o casal real é o observador de As Meninas.
Walton é o escritor que está dentro da obra que escreve, assim
como o pintor na tela. A obra que ele produz é o próprio livro
que temos em mão. Novamente, nós, dessa vez leitores,
assumimos o papel de um suplemento: o escritor escreve para
quem está fora do livro e o pintor olha para quem está fora da
tela. Ao criarem seu próprio sistema, as duas obras fecham-se
em torno de si próprias, levando ao máximo o pensamento da
arte pela arte, que, ainda incipiente na época de Velázquez, está
sendo calorosamente pensado e discutido no início do século
XIX de Mary Shelley.
Os dois trabalhos deslocam para dentro de si o ponto do
triângulo de Antonio Candido referente ao público leitor, que se
localiza fora da obra e é isso que estabelece uma cumplicidade
estranha entre os personagens e os apreciadores de ambas. Em
Frankenstein, os leitores também disputam com Margaret Saville,
da mesma forma que os espectadores com o casal real. E a
principal responsável por essa disputa é a técnica do romance
epistolar, cujos principais efeitos são a sensação de curiosidade e
verossimilhança. Essa técnica, usada desde a origem do romance
inglês com Samuel Richardon, também produz o efeito de diluição
das fronteiras entre realidade e ficção por apresentar ao leitor um
livro no formato de um objeto de uso cotidiano, a carta.
Se, em As Meninas, a representação da representação é
ainda pouco explorada, em Frankenstein a inovação aparece no
tratamento de um outro conceito igualmente caro à modernidade: a
192 Gláuks

fragmentação. A percepção do mundo e do homem moderno como


instituições, essencialmente fragmentadas, marca o fim de um
sistema epistemológico antigo ou tradicional e o início, não apenas
do período histórico a que chamamos modernidade, mas de um
novo sistema de pensamento que rege esse período. As duas
grandes guerras são geralmente reconhecidas como as primeiras
experiências realmente marcantes de fragmentação que sofreu o
mundo moderno. A partir daí, começaram a cair por terra conceitos
como origem, identidade e nação. Desses três, os dois primeiros
são claramente problematizados e repensados no romance de Mary
Shelley, que também não se furta a pensar questões relacionadas ao
conceito de nação, ainda que de forma incipiente.
A leitura de Frankenstein é uma experiência tal de
fragmentação que a vemos surgindo nos temas e estruturas do
livro a cada capítulo. A imagem que abre o capítulo cinco, a do
hesitante Victor Frankenstein, contemplando sua criatura e, logo
em seguida, vendo-a dar os primeiros sinais de vida, tem o poder
de um cataclismo simbólico que destrói alguns dos pilares da
sociedade ocidental pré-moderna. Não só a questão da origem
da vida é relativizada, mas também as possibilidades em relação
à morte, à existência de Deus e aos poderes da ciência. O
homem é transferido de um paradigma transcendental ou
sagrado para um essencialmente laico. A certeza da origem é
substituída pelas dúvidas e especulações propostas pela ciência.
Diante disso, a criatura, cuja origem deixou de ser fixa,
experimenta, necessariamente, novos processos na formação de
sua identidade e na suas tentativas de apreender o mundo que a
envolve. Ela tem de se descobrir e de se aprender num mundo
que lhe é estranho, que lhe lança num turbilhão de sensações e
no qual ela tem de construir a sua identidade usando os tantos
modelos que lhe são oferecidos. Como uma personagem
essencialmente moderna, a criatura não consegue achar o lugar,
a origem fixa e única de sua identidade. Numa imagem de
Insuspeitável Modernidade: Criação e Apreciação Artística Segundo ... 193

narcisismo inverso, a criatura expressa sua perplexidade diante


de uma identidade que ele não consegue reconhecer como sua:

E que terror senti quando me vi refletido numa poça d’água! A


princípio, recuei assombrado, incapaz de crer que aquela era
minha imagem e, quando me convenci de que era na realidade
o monstro que sou, fui assaltado pelo desespero e senti-me
extremamente mortificado. (SHELLEY, 2004:109)

Os vários modelos e valores disponíveis na sociedade


com os quais a criatura conta para construir a sua também se
mostram ineficientes e resultam na constatação da estranheza de
sua identidade em relação aos modelos:

(...) o estranho sistema da sociedade humana me ia sendo


desvendado. Ouvi falar nos feudos e na divisão de propriedade,
na riqueza desmedida e na pobreza extrema, nas diferenças de
posição, na descendência e nobreza de sangue. As palavras que
escutava induziam-me a concentrar-me em mim mesmo.
Aprendi, Frankenstein, que os bens mais almejados pelos seus
semelhantes eram a alta posição, a reputação e as riquezas.
Uma só dessas vantagens bastaria para outorgar respeito a um
homem, mas a falta de pelo menos uma delas era o suficiente
para que fosse relegado à condição de paria ou escravo (...). E
que era eu? Nada sabia sobre minha criação e meu criador, mas
sabia que não possuía a menor parcela disso a que chamavam
dinheiro, nem amigos, nem a mais insignificante propriedade.
Além disso, era dotado de um físico hediondo e repelente. Eu
nem sequer era da mesma natureza que o homem. (...) Olhando
e perscrutando pelas redondezas, não vi nem ouvi alguém que
se assemelhasse a mim. Então eu era um monstro, uma nódoa
na terra, da qual todos os homens fugiam e a quem ninguém
queria reconhecer como seu igual. (SHELLEY, 2004:114-115)

A criatura não pode definir em si a sua identidade, pois ela


está diluída em outras duas personagens: seu criador, Victor
Frankenstein e o autor de ambos, Robert Walton. Cada uma dessas
personagens, se olhadas individualmente, é um fragmento. Suas
194 Gláuks

identidades só se completam quando estão em simbiose e, cada


uma delas, por sua vez, representa uma série de papéis. Robert
Walton é o transgressor que ousa ir aonde ninguém foi, mas é
também o correlato mais imediato do pintor dentro da pintura de
Velázquez, já que é ele quem escreve o romance. Porém, a imagem
do artista, a exemplo das identidades, está diluída e, portanto, se
estende, por metáfora, até Victor Frankenstein, que, aliás, é o
personagem de Mary Shelley mais comumente identificado com o
ideal do artista romântico, talvez também por estar no papel de
transgressor, completando Walton. Se, em As Meninas, o lugar do
espectador é misterioso assim como a tela virada, em
Frankenstein, é o lugar do artista que assim aparece por estar
espalhado pelas personagens.
Segundo Deleuze (1991:49), “o que pode definir a
arquitetura barroca é essa cisão entre a fachada e o dentro, entre
o interior e o exterior, a autonomia do interior e a independência
do exterior em tais condições que cada um dos dois termos
relança o outro”. Tomando “arquitetura”, metaforicamente,
como estrutura, pode-se aplicar essa definição com sucesso às
duas obras que examino aqui. Em ambas há elementos que
estabelecem a cisão entre interior e exterior observada por
Deleuze. Aliás, pode-se até mesmo dizer que, tanto em As
Meninas quanto em Frankenstein, esses elementos são de tal
forma trabalhados que a cisão acaba por se tornar fragmentação
e estabelece um jogo constante entre o dentro e o fora que
confere dinamicidade às obras.
Em As Meninas, o elemento responsável por esse efeito é
claramente o espelho. É a sua presença na tela que relativiza a
nossa percepção do que está dentro ou fora do quadro. O
espelho, estando dentro, projeta-se para fora, ao mesmo tempo,
que projeta o casal, que está fora, para dentro. O triângulo que
Foucault observa no quadro só pode existir por causa do
espelho, que faz acontecer o jogo de olhares que cria o triângulo.
Insuspeitável Modernidade: Criação e Apreciação Artística Segundo ... 195

Além disso, a cena de interior é invadida por uma luz que impõe
a presença do exterior, da mesma forma que a personagem
diante da porta, prestes a sair ou a entrar, força-nos a perceber a
existência de um exterior e seu constante diálogo com o interior.
Um efeito similar é produzido em Frankenstein através
da estrutura narrativa, organizada em círculos concêntricos. Há
três narradores: Robert Walton, que narra a primeira e a última
camada, Victor Frankenstein, narrador da segunda e da
penúltima e a criatura, que narra a camada do centro. Essa
estrutura pode ser visualizada da seguinte forma: ( ( O ) ).
Dois movimentos fazem acontecer o jogo entre interior e
exterior: primeiro, ao iniciar a leitura, o leitor é conduzido por
um movimento centrípeto. Entra-se no romance pela história de
Walton, mas logo se percebe que ele não é o protagonista do
livro e, portanto, é necessário dar um passo adiante, em direção
ao centro. Isso leva o leitor para a narrativa de Frankenstein, que
se apresenta como o verdadeiro protagonista. O
desenvolvimento de sua história, no entanto, faz com que mais
um passo em direção ao centro seja necessário, já que é lá que se
encontra o coração das trevas. Na narrativa da criatura temos o
ponto alto do romance e, como ela aparece no ponto aonde nos
conduziu o movimento centrípeto, ela inicia, necessariamente,
um movimento inverso, centrífugo. Depois de sermos
conduzidos ao ponto mais interior do romance, somos
conduzidos de volta para fora. A narrativa da criatura nos
reconduz à de Frankenstein, que, por sua vez, leva-nos
novamente para a de Walton. E assim atravessamos a obra, do
exterior para o interior e outra vez para o exterior.
Se, em Frankenstein, o ponto de entrada do leitor na
obra é a periferia, de onde ele vai ao centro para a ela retornar,
em As Meninas, acontece o contrário. Acredito que o ponto que
inicialmente capta a atenção do espectador seja a imagem da
infanta Margarida, que está no centro e sobre a qual incide
196 Gláuks

grande parte da luz que se percebe na tela. Porém, ela aparece


como um centro meramente estrutural. Saindo dela, o olhar do
expectador se dirige ao centro temático e imaginativo do quadro:
o pintor. Em seguida, passo para o espelho, que o joga para fora.
Retornando, o olhar se detém no homem parado na porta, nas
personagens à direita e retorna para a infanta. Completa-se
assim o jogo do interior com o exterior.
A estrutura narrativa espelhada, a diluição das identidades
das personagens e a forma como elas se chocam e se completam
evidenciam a estética da fragmentação em Frankenstein. Além
disso, não se pode deixar de observar como a construção da
criatura, de pedaços de corpos mortos, personifica esse
pensamento. Porém, não é de se esperar que, em pleno século
XVII, Velázquez vá tratar do mesmo assunto e, no entanto, se
observarmos o quadro, veremos que ele também é composto por
fragmentos que são costurados, como as partes do corpo disforme
da criatura, para formar um todo. À direita da tela, há dois anões e
um cachorro, em primeiro plano, e uma freira acompanhada de
outra mulher em segundo plano. No centro, vê-se Margarida com
suas damas de companhia, e, à esquerda, vê-se o pintor e sua tela
virada para ele. Ainda atrás dessas personagens, há outros dois
fragmentos: o espelho que reflete o casal real e o homem que está
na porta. As quarenta e oito variações da tela em questão pintadas
por Pablo Picasso são evidências definitivas do potencial de
fragmentação de As Meninas3.
Em Frankenstein, o elemento organizador dos
fragmentos que compõem a obra é a organicidade e a unidade do
enredo. Já em As Meninas, quem cumpre essa função é a sala
onde se encontram todas as personagens, o meio em que

3
Pablo Picasso trabalhou exaustivamente de agosto a dezembro de 1957, quando
tinha já 76 anos, no estudo do quadro As Meninas. Nesse período produziu cinqüenta
e oito variações da tela de Velázquez. Essas obras encontram-se atualmente no
Museu Picasso em Barcelona.
Insuspeitável Modernidade: Criação e Apreciação Artística Segundo ... 197

aparecem todos os fragmentos. Ao circunscrevê-los num mesmo


interior, Velázquez os organiza de forma que sejam coerentes
uns com os outros e se unam para formar um todo.
É muito curioso e intrigante observar que, tanto
Velázquez quanto Mary Shelley, cada um com suas
particularidades e visões de mundo, criaram obras através das
quais eles revelam que seus pensamentos acerca de questões
artísticas e estéticas estavam, muito, à frente de seus tempos.
Esses dois artistas dramatizam em seu trabalho questões que
somente anos mais tarde estarão no centro das preocupações da
sociedade ocidental. Questões essencialmente modernas, como o
pensarem-se a si mesmo enquanto personagem e artista, a
percepção da fragmentação, a diluição das identidades, e a
consciência do eterno jogo de ausências e presenças em que
vivemos estão vivas em As Meninas e em Frankenstein.
Quem há que nunca tenha se perguntado de tal ou qual
obra como é possível que, depois de séculos de sua aparição, ela
continue a falar diretamente à sociedade contemporânea? É o
caso das duas obras que examinamos nesse trabalho. São obras
que, por trás de uma aparente simplicidade, escondem um
pensamento muito complexo e revelam, conforme as vamos
escrutinando, uma insuspeitável modernidade.

Referências Bibliográficas

BARBUDO. Maria Isabel. “Arte Pela Arte. (Ars Gratia Artis)”. IN: E-
Dicionário de termos literários. Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas, 2005. Disponível em
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/arte_pela_arte.htm Acesso em
21.07.2007.
BATICLE, Jeannine. Velázquez, el Pintor Hidalgo. Trad. Irene Echevarría;
Julia G. Gil. Barcelona: Ediciones Grupo Zeta, 1999.
198 Gláuks

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos


decisivos. São Paulo: Martins, 1959.
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. Trad. Luiz B. L. Orlandi.
Campinas, São Paulo: Papirus, 1991.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III. Estética: Literatura e pintura,
música e cinema. Trad. Manoel Barros da Motta; Inês Autran Dourado
Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
SANTIAGO, Silviano. (Ed.) Glossário de Derrida. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1976.
SHELLEY, MARY. Frankenstein ou o moderno Prometeu. Trad. Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004.

ABSTRACT: The present article discusses different points of


view concerning the matters of artistic creation and appreciation
presented in Las Meninas, by Diego Velázquez and
Frankenstein, by Mary Shelley. At the end, it is shown that
both works envision essentially modern perspectives, even if
seemingly traditional.

KEY-WORDS: Las Meninas, Frankenbstein, Artistic


Creation, Art Appreciation, Modernity.

View publication stats

Você também pode gostar