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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Sociologia
Disciplina: FLS0101 - Introdução às Ciências Sociais (Sociologia)
Docente Responsável: Sylvia Gemignani Garcia
Nome do Aluno: Pedro Vieira Cunha Camargo -Vespertino - Nº USP: 11260119

O objeto de escolha do presente trabalho é o quadro “Las Meninas”, do pintor


espanhol Diego Velázquez. Diante do enunciado, a escolha de uma obra de arte pode
parecer um tanto deslocada do escopo sugerido, contudo, a ambiguidade das palavras
“familiar” e “cotidiano” permitem a escolha de tal objeto de análise, uma vez que estes
termos não pressupõem proximidade física e nem constância exata de contato. Ademais,
a riqueza do quadro em si e do contexto histórico permitem uma análise especialmente
proveitosa no âmbito sociológico.

Se faz necessário, primeiramente, situar o contexto em que a obra fora pintada,


no caso no ano de 1656, quatro anos antes da morte de Velázquez, que trabalhava como
pintor na corte do Rei Filipe IV da Espanha na época. O período era marcado
intensamente pelo movimento Barroco, movimento artístico intimamente ligado à
Contrarreforma e, por conseguinte, influenciado pelas características nacionais, sendo,
por exemplo, o Barroco italiano mais representativo da religiosidade, dada a influência
da Igreja Católica, enquanto o holandês mais representativo do mundano, dada a relativa
liberdade religiosa local1. Ainda, o estilo Barroco pode ser definido como ordenado pelo
antitético, valendo ressaltar essa característica não como dogma, mas como resultado da
organização social, o pensamento da época e conjunto de técnicas disponíveis
(CARPEAUX, 2012).

Diante do contexto apresentado, a composição da própria obra começa a tomar


novos contornos e significados. De início, o caráter social externo à obra, uma vez que
o pintor, como era comum naquela época, trabalhava na corte, resulta na escolha do
momento a ser eternizado na pintura. No caso de “Las Meninas”, uma cena
metalinguística do cotidiano do castelo e o labor do pintor é retratada, definindo o
espaço da imagem. Esse simples elemento já é extremamente representativo da época,
1
Destes países, destacam-se os pintores barrocos Caravaggio e Rembrandt, respectivamente, italiano e
holandês.
retomando a proximidade da classe dos pintores com a realeza e a posição destes quanto
à Igreja Católica e o movimento da Contrarreforma, sendo também um dos elementos
do Barroco.

Já um olhar para a pintura em si, revela uma multiplicidade de interpretações e


simbolismos proporcionados pelas diferentes perspectivas adotadas, a disposição das
personagens em cena e os elementos estáticos. O primeiro aspecto que chama atenção é
o olhar da infanta Margarida Teresa, um dos centros de foco da obra, e dos demais
indivíduos, que parecem todos estarem fitando o observador. Outro aspecto de grande
destaque é o espelho, posicionado no meio da parede, que reflete a imagem do Rei
Filipe IV e de sua esposa, sendo também outro centro de foco. A análise cuidadosa da
reflexão permite concluir que há um duplo reflexo no espelho, que reflete o que está a
ser pintado na tela e o reflexo do Rei e da Rainha em pessoa, espacialmente atrás da
linha de visão da pintura, revelando mais um centro, nesse caso o psicológico
(STEINBERG, 1981). Caberia ainda a análise de mais detalhes de composição, como o
centro do ponto de fuga na figura misteriosa ao fundo ou outras inúmeras nuances que
tornam essa pintura tão singular, entretanto, para o propósito deste trabalho bastam as
apresentadas.

Retomando então a questão dos olhares e da reflexão, evidencia-se que além de


olharem para o observador, as figuras olham o Rei e a Rainha. Destaca-se então, o
caráter eternamente cíclico da pintura que, na medida que troca de observador, muda a
composição das personagens, mudando sempre o indivíduo que está ao lado do casal
real. Tamanha sutileza leva a uma tomada de consciência mútua da visão, tanto de quem
olha quanto das personagens que sabem que são olhadas. Assim, caracteriza-se também
a antítese barroca, tal como o chiaroscuro de Caravaggio, Velàzquez revela a dualidade
de observar e ser observado, do simbólico e do real, da eterna tomada de consciência,
sucessora do inconsciente. Mais, o jogo de olhares, reflexões e representações evidencia
um olhar aguçado do pintor quanto a importância da visão na auto percepção humana,
no sentido de se entender como indivíduo dentro de um espaço e contexto social
específico, algo só seria mais difundido na Europa séculos depois com a popularização
do espelho (CORBAIN, 1987), representando também questões da disposição social da
época.

Outro sutil elemento que vale destaque na obra é o jarro vermelho oferecido à
infanta, conhecido como búcaro. Peça que pode passar despercebida em uma primeira
olhada, esse jarro vermelho apresenta significado profundo, sendo proveniente de
Guadalajara, no atual México, ele apresenta em sua composição especiarias que
perfumavam o líquido ali inserido, sendo também alucinógeno quando ingerido. Além
de seu caráter narcótico, que também contribui para entendimentos da sociedade na
época, ele é representativo da colonização e apropriação de elementos da cultura da
América Latina por parte dos povos europeus e do início do declínio do império de
Filipe IV, materializando de certa forma os impactos da colonização no velho
continente. Analogamente a um disco, que é uma representação material e imaterial de
um determinado ponto no tempo, o pequeno búcaro de “Las Meninas” permite um
vislumbre sobre o século XVII.

Cabe ainda analisar os impactos modernos dessa complexa obra, que ao longo
do tempo é reinventa e reinterpretada, mantendo-se em constante mudança e relevância,
sendo seus impactos no século XX notáveis. É possível destacar sua influência sob
pintores de grande envergadura como Salvador Dalí e Picasso, que possuem
reinterpretações da obra de Velázquez. Pode-se nomear, por exemplo, a estrutura
temporal da pintura original, que é capaz de representar de maneira estática mais de
uma perspectiva e mais de um ponto no tempo, servindo de inspiração direta para o
cubismo. Em outras áreas essa tela também se faz presente, tendo um capítulo inteiro
dedicado à sua interpretação em “As Palavras e as Coisas”, do filósofo francês Michel
Foucault, atestando mais uma vez a repercussão social de “Las Meninas”, capaz de
séculos após sua finalização ainda levantar debates na sociedade atual.

Referências

CARPEAUX, Otto M. O Problema da Literatura Barroca. In: ______. O Barroco e o


Classicismo por Carpeaux. São Paulo: LeYa, 2012. p. 18 – 59.
CORBAIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida
Privada 4. São Paulo: Editora Schwarcz, 2009. p. 387 – 568.
GROVIER, Kelly. A misteriosa peça de cerâmica que revela um sentido oculto em 'As
Meninas', obra-prima de Velázquez. BBC News Brasil. Londres, 26, dez. 2020.
MUSEO DEL PRADO, Museo del Prado, 2015. Disponível em:
https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/las-meninas/9fdc7800-9ade-
48b0-ab8b-edee94ea877f?searchid=207a44b8-d89b-f63f-1bad-c4215d173168. Acesso
em 24 de jun. de 2021.
STEINBERG, Leo. Velázquez´s “Las Meninas”. The MIT Press, Massachusetts, Vol.
19, p. 45 – 54, out. 1981.

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