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A FOTOGRAFIA E O SÉCULO XIX vista dependente de seu registro preciso pelo olho. No próprio trabalho de
Talbot há uma tensão semelhante: imagens de objetos específicos, chapéus
Cinco anos após o anúncio da ‘invenção’ da fotografia, Henry Fox Talbot de fita, livros, garrafas, uma mesa de café, todos rivalizam por atenção
publicou (em partes) uma das mais momentosas publicações fotográficas com peças compositivas formais tais como The Open Door, The
de todos os tempos. The Pencil of Nature (1844) foi considerado um Haystack, e The Ladder.
‘clássico’. Sua significância reside não tanto no fato de ser o primeiro The Open Door (1843), por exemplo, é uma das imagens produzidas do
livro a ter imagens fotográficas (vinte e quatro calótipos colados), nem livro e (como foi argumentado) aproxima o status de uma pintura 2. Sobre
mesmo no de ter sido produzido em massa (a ‘fábrica’ de Talbot em ela Talbot escreveu, ‘nós temos suficiente autoridade na escola holandesa
Reading produziu cerca de 2.475 imagens), mas que ao mesmo tempo de arte para tomar como sujeitos de representação cenas de ocorrência
antecipou e ditou os termos de referência para a forma como a fotografia diária e familiar. O olho de um pintor será freqüentemente detido quando
seria vista por quase todo o século XIX 1. pessoas comuns nada vêm de notável.’ Ele justifica a escolha do sujeito
E não obstante embora no texto Talbot está preocupado em relatar como em relação à tradição pinturesca. Até mesmo aqui o olho do pintor é
desenvolveu sua técnica fotográfica, ele o faz bem em termos da pintura. procurado para aprovação, uma sinédoque para o senso do fotógrafo de,
Decerto, um dos pontos básicos de referência durante todo o século XIX é ambas, escolha e composição. Certamente, o senso de composição é
a extensão na qual a fotografia continua a ser entendida em relação à crucial: The Open Door não é uma fotografia cândida ou de passagem.
pintura. Assim lemos que a ‘nova arte do desenho fotogênico’ é alcançada Ela é tão calculada e composta quanto qualquer pintura, com uma clara
‘sem qualquer ajuda que seja do lápis do artista.’ A fotografia é, por referência retrospectiva à arte holandesa do século XVII, tanto quanto a
implicação, uma ‘arte’ e é julgada de acordo. A câmera irá, então, um vocabulário conotativo superior que unifica sua composição. Uma
‘produzir uma imagem do que quer que veja.’ O próprio título do livro, estrutura altamente formal unifica uma série de elementos simbólicos
The Pencil of Nature, ressalta a analogia com o desenho. A palavra ‘arte’ cuidadosamente escolhidos: a porta aberta, a vassoura, a lâmpada. À
aparece continuamente por todo o texto, assinalando o ponto até o qual medida que a ‘lemos’, a geometria formal da luz e padrões unificam as
Talbot entende a fotografia em termos da pintura. referências simbólicas dos objetos no primeiro plano, de forma que uma
Apesar da insistência no literal e na minúcia a ênfase está na estética da série de planos simbólicos e narrativos emergem e que a desloca além do
beleza. (O termo ‘Calótipo’ de Talbot foi derivado do grego kalos, simples delineamento de objetos literais ou encontrados 3.
‘beleza’.) A descrição de suas qualidades literal e estética assinala seu No trabalho de Talbot há, coerentemente, uma tensão entre o denotativo e
status. De verdade, a combinação implicada de objetivos é ainda mais o conotativo, como se as coisas fossem justificadas como fotografias
refletida na hierarquia dos sujeitos que Talbot declarou como apropriados apenas até ao ponto em que se relacionam com a pintura. Isso, ao mesmo
para o fotógrafo. Assim, ‘tipos’ culturais tais como escultura, arquitetura, tempo, sugere uma dialética entre denotação e conotação, entre realismo e
paisagens, e fac-símiles (retratos) foram colocados ao lado de ‘objetos’ idealismo, por assim dizer, e, de maior significância, entre aqueles que
tanto naturais quanto produzidos pelo homem: insetos, plantas, renda, podem ler a fotografia, e os que não podem. E certamente dentro da
algodão, e ‘microscopia’. Novamente, há uma mistura das belas artes tradição britânica do século XIX a abordagem de Talbot sustenta uma das
tradicionais com o científico; uma metade associando a fotografia com a tensões centrais na compreensão da ‘nova arte.’ Ela nos relembra quanto,
academia e o beau ideal tal como propostos por Sir Joshua Reynolds em a partir de sua introdução, o significado da fotografia tem sido codificado
The Discourses, e a outra metade relacionando-a à preocupação mais 2
Veja a discussão de Talbot de Mike Weaver em The Photographic Art:
recente com a observação detalhada: uma representação literal da coisa
Pictorial Traditions in Britain and America (London and New York, 1985).
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Veja, por exemplo, Carolyn Bloore e Grace Seiberling, A Vision Exchanged
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Veja Henry Fox Talbot, The Pencil of Nature (London, 1844-6). (London, 1985).
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dentro da linguagem e valores da arte acadêmica. Até mesmo os mais que ela foi aceitável para o público apenas como uma fabricação, não
básicos de seus gêneros, o retrato, a paisagem, a natureza-morta, e assim como uma imagem literal. O sujeito era aceito como parte das convenções
por diante, se desenvolveram de uma base pinturesca e estabeleceram vitorianas, mas uma intrusão fotográfica no espaço familiar privado não
muitos de seus termos de referência através de equivalentes pinturescos. era. The Two Ways of Life está baseada em uma série de contrastes
Em 1861 C. Jabez Hughes (escrevendo sobre fotografia de ‘arte’) óbvios entre o moral e o imoral. À direita estão imagens de economia e
distinguiu entre três planos principais da fotografia. A fotografia diligência; à esquerda imagens de esbanjadores e degenerados. Seu
Mecânica consistia naquelas fotografias ‘que buscam uma simples tamanho, e o escopo de sua fábula moral, a igualam com o grande estilo
representação dos objetos para os quais a câmera é apontada …’ Nessas, da pintura, e sua qualidade do período toma emprestado diretamente da
tudo deve ser descrito exatamente como é. Isso é chamado de ‘fotografia tradição e iconografia pinturesca mais antiga. Ambas as imagens são
literal.’ Distinto de tal registro básico é a Fotografia de arte na qual o encenadas com o propósito de contar uma estória visual. Como as imagens
fotógrafo (como artista) ‘determina difundir sua mente [nos objetos] de Talbot, elas dependem de uma linguagem e convenção visual
arranjando, modificando, ou dispondo-os de outro modo, de forma que conhecida, como encontrada no trabalho de pintores contemporâneos
possam parecer em uma maneira mais apropriada ou bela.’ E em terceiro como Millais e Holman Hunt. Elas são, tanto quanto o trabalho de Talbot,
lugar, a fotografia belas artes, consiste de ‘certas imagens que buscam exemplos da fotografia como pintura.
um propósito mais alto que a maioria das fotografias de arte, e cujo O outro extremo do período é aquela fotografia ‘mecânica’ observada de
propósito não é meramente entreter mas instruir, purificar, e enobrecer.’ cima para baixo por Jabez. Nessa área nós encontramos diferenças
Aqui, então, estão três categorias distintas, uma hierarquia tão fechada significativas nas abordagens dos fotógrafos trabalhando nas três
quanto a de Reynolds, com um status dependente de um significado e um principais tradições fotográficas do século XIX: britânica, francesa e
efeito assumido característico da cultura britânica do século XIX 4. Para o americana. O trabalho de Roger Fenton (1819-69), por exemplo, é central
vitoriano, tal fotografia belas artes devia ser encontrada no trabalho de para qualquer entendimento do século XIX5. Ele produziu imagens em
Henry Peach Robinson (1830-1901) e Oscar Gustave Rejlander (1813-75). todas as formas (então) aceitas: paisagens, cenas urbanas, naturezas-
Ambos desenvolveram o que era conhecido como fotografias compostas, mortas e retratos, e tanto quanto Talbot, ele vê o mundo de acordo com
um processo baseado em impressão combinada que usava uma série de uma estrita hierarquia de valores muito associada à aristocracia fundiária
negativos para construir a própria imagem fotográfica. As fotografias são que fotografou. Suas imagens não questionam suposições culturais, mas ao
distinguidas por suas aparências falsas, porque elas eram feitas de cenas contrário as reforçam na forma como a pintura do século XVIII o fez para
separadas e necessitam, para muito de seu efeito, um alto grau do teatral e seus patrões endinheirados. Elas são pinturescas em um alto grau. Até
do paródico. Suas significâncias são duplas, primeiro, ao alinhar a mesmo as famosas imagens da guerra da Criméia ignoram a brutalidade da
fotografia com a pintura narrativa vitoriana, e em segundo lugar, guerra, criando ao contrário peças encenadas de um exército em descanso
salientando o contexto moral da imagem. Duas das mais famosas, Two e coeso pelos estritos códigos de conduta e hierarquia da Inglaterra do
Ways of Life (1857) de Rejlander e Fading Away (1858) de Robinson, século XIX. Em Fenton não há nenhum quadro de referência democrático
permanecem como peças distintas do período. Ao olho moderno elas ou questionador. Sua quintessencial imagem do ‘vale da morte’ com o
parecem peculiarmente datadas e moralistas. Fading Away provocou um
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furor quando foi publicada pela primeira vez porque se entendeu que era O trabalho de Roger Fenton permanece como um exemplo significativo da
uma fotografia real (sic) de uma cena real (sic). É uma ironia reveladora abordagem do século XIX na forma como mostra como Fenton excedeu em
muitas áreas da fotografia, especialmente aquelas associadas à pintura. Ele
fotografou naturezas-mortas, paisagens, retratos, e vistas urbanas de acordo com
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Veja Beaumont Newhall, Photography: Essays and Images (New York, 1980), os princípios vigentes de seu tempo e público. Veja, por exemplo, Roger Fenton,
pg. 115. Photographer of the 1850s (South Bank Board, London, 1988).
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campo recoberto com balas da canhão é uma cena vazia como se a aspecto básico da tradição francesa. (Veja, por exemplo, The Overturned
realidade do que acontecera não pudesse ser fotografada. Nós vemos o Pot ou The Hat.) Fenomenologicamente, há uma preocupação primária
mesmo olho seletivo trabalhando em suas paisagens, e até mesmo quando com a coisitude das coisas, enquanto que até mesmo quando Talbot
fotografa Londres é a Londres central de Westminster e do Hyde Park que fotografou prateleiras de livros, era uma biblioteca, com tudo o que ela
escolhe: uma imaginária altamente seletiva que celebra prédios e implica sobre sua própria posição, seu conhecimento acadêmico, e as
monumentos públicos como símbolos do poder e da ordem. A Londres tradições culturais dentro das quais trabalhou, e desejou que suas imagens
esparramada e caótica de Charles Dickens e de fotógrafos como John fossem lidas.
Thompson está ausente. Como Talbot, e em contraste com a tradição francesa, as naturezas-mortas
Essa seletividade não é mais óbvia do que nas fotografias de objetos de de Fenton são pinturescas em suas qualidades formais, compositivas. Nem
natureza-morta de Fenton. Fotografar objetos é essencial para as escolhe representar objetos cotidianos ou comuns: arrolados em dois
fotografias pioneiras, esse registrar mecânico supostamente reproduzindo grupos, seus sujeitos são caça (morta) ou frutos. Enquanto as fotografias
o real sem intervenção do fotógrafo. O que olhávamos era ‘real.’ Havia, de Fenton são maravilhosamente despertas para textura e luz, com um
entretanto, uma distinção clara entre natureza-morta e objetos. Uma jogo notável de detalhe de superfície, são os próprios sujeitos que são
natureza-morta, como o retrato, era para ser entendida através dos termos distintos, porque refletem em alto grau a riqueza e o privilégio: a
de referência extraídos da pintura. A representação dos objetos por si abundância da propriedade rural, o jardim murado, e a estufa vitoriana. A
mesmos, entretanto, é parte de uma sondagem não estruturada do mundo luxúria e a natureza exótica das imagens são tanto uma celebração da casa
exterior. A câmera é um olho que procura coisas, ao invés de um quadro de campo quanto as paisagens e as imagens de Londres de Fenton.
de referência que lê as coisas de acordo com uma hierarquia de Compare isso com Garden Implements, de Calvert Jones (1847?): aqui
significância predeterminada. os implementos não estão apenas arranjados em termos de suas funções -
Essa atitude é parte de uma revolução cultural e científica mais ampla, e eles parecem falar ao próprio mundo do trabalho que produziu o fruto para
se desenvolve diferentemente dentro das três tradições que observei. É as imagens de Fenton em primeiro lugar.
claramente significativo, por exemplo, que o ‘fundador’ da sociologia, Debates sobre o relacionamento entre a imagem fotográfica e os
Auguste Comte, desenvolveu suas idéias no mesmo período que Daguerre. equivalentes pinturescos continuaram por todo o século. O naturalismo,
O impulso para colecionar e classificar o mundo dos objetos e estruturas, era sentido, devia ser evitado. Um artigo de Lady Elizabeth Eastlake no
desenvolvido através do trabalho de figuras tais como Buffon, Lamarck e Quarterly Review de 1857 anunciava que ‘quinze anos atrás …
Cuvier, é refletido em imagens tais como a famosa Shells and Fossils de especimens de uma nova e misteriosa arte foram primeiramente exibidos
Daguerre, de 1839, sugestiva de um tradição inteira e colocando a para nosso olhar admirado,’ desde então, ‘a fotografia se tornou uma
fotografia no contexto desse processo mais amplo de classificação. Ele palavra e um desejo doméstico.’ Ela prosseguiu para afirmar, entretanto,
reflete ao mesmo tempo a cultura do museu, em desenvolvimento, e a que quanto mais precisa era a imagem fotográfica, tanto menor seria sua
forma pela qual a fotografia era vista como um análogo do real. Os objetos ‘significância estética.’ O que era desejado era uma imagem geral para
em tais fotografias mostram um insistência ferrenha em suas próprias sugerir o efeito, e não a própria coisa. Em 1853 Sir William Newton,
autenticidades, tanto quanto as coisas o fazem em uma vitrine de museu. falando para a Photographic Society, argüiu contra o ‘detalhe minucioso’ e
Nós as olhamos não devido a qualquer significado secundário que possam favoreceu um ‘efeito amplo e geral.’ Dessa forma, ‘o objeto é melhor
ter, mas como objects trouvés. Uma condição semelhante é alcançada no obtido estando o sujeito todo um pouco fora de foco …’ O efeito seria
trabalho de outro pioneiro da fotografia francesa, Hyppolyte Bayard ‘mais sugestivo do verdadeiro caráter da natureza,’ e seria percebido ser
(1801-87) que, entre outros sujeitos, fotografou implementos de jardim ‘artisticamente mais belo.’ É um argumento que gravita entre a linguagem
como coisas por si mesmas, enfatizando um empirismo contínuo como um de Talbot e aquela dos pictorialistas tardios, sugerindo novamente
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elementos do beau ideal reynoldiano, e argumentando por uma natureza Frith, é típico do período, focando uma construção significativa da posição
geral contra a linguagem do detalhe muito específica que a imagem podia de um estrangeiro, colocando a cena e suas figuras em um quadro de
produzir 6. referência pitoresco. Essas terras existiam, por assim dizer, para o
Muito da prática fotográfica do século XIX, então, era conduzida dentro benefício da câmera ocidental. Em um período de viagem e comunicação
da linguagem da pintura e das noções acadêmicas de beleza. Decerto, em limitadas, as fotografias ofereciam imagens maravilhosas de culturas de
relação ao trabalho de Julia Margareth Cameron (veja o capítulo 6), o outra forma apenas imaginadas. Elas apontam para os termos de referência
relacionamento é estendido à literatura porque, em sua associação com internacionais que uma cultura visual começando a se estabelecer
Alfred Lord Tennyson, a tentativa de sugerir um efeito geral e uma beleza ofereceria; e a base daquela nova cultura seria a fotografia.
ideal são qualidades dadas associadas com a poesia. Como Tennyson Em outros contextos a câmera começou a se concentrar em locais
escreveu em seu poema ‘Sobre um Retrato,’ o pintor tem de procurar específicos, até mesmo limitados, para produzir imagens de análises
‘harmonias raras’ para alcançar o ‘mistério da beleza.’ Nesse sentido, agudas da vida neles vivida. Tal é o trabalho de Lady Clementina
muitos vitorianos eram tanto pintores quanto fotógrafos. Hawarden (1822-65). Fotógrafa amadora, ela tomou como seu sujeito
Outros desenvolvimentos, entretanto, levantaram questões diferentes. O central a representação de mulheres em ambientes privilegiados fechados
século XIX viu também o estabelecimento de uma grande tradição de e constritos. Embora em alguma medida influenciada pelos pré-rafaelitas,
fotografia de viagem. Essa era a grande era do império europeu, e no há em seu trabalho uma abordagem analítica de seus sujeitos altamente
trabalho de fotógrafos como Francis Frith (1822-98), John Thompson carregada que evita o documental e se aproxima do retrato. É o eu
(1837-9121), Samuel Bourne (1834-1912), Maxime Du Camp (1822-94), individual que é muito significativo. Os longos vestidos quase aprisionam
John Murry, e Félice Beato (ativo nas décadas 1860-1890) podemos ver seus usuários, e o espaço interior é mais como celas do que como cômodos
culturas estrangeiras (não européias) vistas através dos olhos e suposições domésticos. As figuras estão isoladas, sós, ou estão olhando e sendo
ocidentais. Poderia ser incluído o nome de Herbert G. Ponting (1871- olhadas - como se houvesse uma presença ou espionagem contínua. O
1935), que publicou fotografias tomadas nas visitas ao Japão, Índia, e efeito não é diferente da tempestade interior de Lucy Snowe em Villette
Antártida. Livros como Visits to the Middle East, de Frith, enfatizaram o de Charlotte Brontë (1853), que luta contra as restrições sociais e as
interesse e a procura por cenas ‘estrangeiras.’ Nessas imagens o fotógrafo limitações impostas à vida das mulheres. Clementina Maude (1863-4) é
é ‘intérprete cultural e testemunha do mundo,’ mas apenas porque suas típico de Hawarden. O espelho estabelece os termos do reflexo interior
suposições o colocam no centro das geografias através das quais se move. bem como a imagem da mulher como um reflexo de superfície e um
Muitas dessas imagens possuem uma significância etnográfica e construto social. A figura na cama é fotografada como ela própria, com
antropológica valiosa, mostrando em detalhe os artefatos e valores de uma sugestão de ansiedade interior intensificada pela maneira como a
outras culturas e civilizações, e no processo fazendo o mundo que janela, a porta, e o espelho exibem uma presença restritiva e dominadora.
fotografam parte de uma cultura de museu. Em uma época quando muitos Uma tal imagem pode ser contrastada com os retratos de corpo inteiro de
arqueólogos ocidentais estavam fisicamente retirando os artefatos das Camille Silvy (1835-?) dos grandes e dos bons do mesmo período. Um
culturas que viam, os fotógrafos estavam capacitados para ‘capturar’ aristocrata francês, e um produtor do então popular carte-de-visite, Silvy
monumentos inteiros como um modo de possuir aquele mundo para os era um retratista renomado. Mas ele efetivamente representa uma figura
olhos europeus. Entrance to the Great Temple, Luxor, (1857) de Francis superficial vestida com os símbolos do poder e do privilégio. Não há
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nenhuma distância crítica entre ele e o sujeito, tal como Hawarden
Os escritos de Lady Eastlake são reproduzidos em Photography: Essays and alcança. Como os carte-de-visite, há imagens que propagandeiam um eu
Images, de Beaumont Newhall, e em Classic Essays on Photography, pgs. 39- público, não uma condição privada. Juntamente com Ana Atkins (1799-
61. Veja também a discussão em The History of Photography (New York,
1871), a ‘primeira’ mulher fotógrafa, Julia Cameron, e Anne Brigman,
1964), de Beaumont Newhall.
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Hawarden constitui parte de uma tradição feminina poderosa e central Emerson era individualista de muitas formas, mas sua preocupação
dentro do período. essencial era fotografar uma área particular. Da mesma forma como
Hawarden respondeu a uma condição cultural, mas outra figura central no Thomas Hardy elegeu Essex como sua geografia imaginária, através da
período respondeu a ambas à condição da fotografia e seu sujeito atenção aguda ao registro detalhado de uma área específica, igualmente os
escolhido. Peter Henry Emerson (1856-1936) foi uma figura central no que registros de Emerson de East Anglia e dos Norfolk Broads constituem um
é entendido como ‘pictorialismo.’ Ele denunciou Robinson como ‘a dos estudos fotográficos mais consistentes de uma única área e
quintessência das falácias literárias e anacronismos da arte.’ A declaração comunidade na história da fotografia. O registro da vida diária do ponto de
é típica de sua abordagem. Emerson buscou um novo entendimento da vista de um estranho é ao mesmo tempo agudo e detalhado. Seu Life and
fotografia baseado nos seus próprios termos de referência e suas próprias Landscape on the Norfolk Broads (1886) e Naturalistic Photography
possibilidades como um meio. Ele então desconsiderou a comparação (1889) refletem sua filosofia subjacente que, embora fosse rejeitá-la muito
contínua e a dependência da pintura como ponto primário de referência. em breve, não obstante permanece central para o desenvolvimento do
Ele era, é claro, influenciado pela pintura, mas sua tradição é aquela de meio. Em imagem após imagem Emerson alcança um grau notável de
Constable, Corot e a escola de Barbizon: aqueles pintores dedicados a um presença. Tudo dentro do quadro da imagem é, aparentemente, dado
registro literal, realista da coisa vista ao invés de comunicar convenção atenção igual - uma abordagem ‘democrática,’ bem distinta da que
recebida. Ele (erroneamente) argumentou por uma fotografia baseada na encontramos em Fenton, por exemplo. De verdade, uma das mais
ciência da visão e renunciou comparações com a pintura, insistindo ao extraordinárias coisas sobre as imagens de Emerson é sua modernidade.
contrário nas possibilidades da própria fotografia como uma arte por seus Emerson destituiu a imagem de suas associações com a pintura. Em suas
próprios méritos, com suas próprias características distintas. Na fotografias nós recebemos uma imagem de uma comunidade específica
abordagem de Emerson o detalhe, a luz e a composição da cena são como ela era. Onde Fenton poderia tê-la referido a outro contexto,
centrais, mas era o visto ao invés da cena que permaneceu crucial. O Emerson assim as reclama para sua própria câmera. Não obstante essas
potencial para uma fotografia reside no que estava diante da câmera. Isso imagens não são literais, muito menos documentais. Elas possuem, por si
era o pictorialismo na sua forma mais pura, e podemos entender porque foi mesmas, uma ressonância poética, tal é a atenção aguda aos termos de
que Emerson premiou Stieglitz com o primeiro lugar em uma competição referência individuais. Em resumo, elas olham o que vêem, e o fazem em
fotográfica na década de 1880. Ele argumentava contra o retoque 7, foco termos do que lá está ao invés do que é suposto estar lá. Elas trazem uma
suave, e impressão combinada, da mesma forma que rejeitava fotografias necessária humildade para ambos a cena e o visto.
com uma estrutura alegórica ou narrativa. Seus objetivos estão refletidos O vigor de todo esse período é, entretanto, surpreendente. Os retratos de
em seu uso da platina (e da fotogravura), porque esses eram considerados Hill e Adamson (veja o capítulo 6), o relato detalhado da área de Whitby
mais permanentes e delicados em suas capacidades de reproduzir variação (em Yorkshire) por Frank Meadow Sutcliffe (1853-1943), e os estudos
tonal, e palpável em termos da atmosfera que sugeriam. arquitetônicos extraordinários de Sir Frederick Evans (1852-1943) ou o
trabalho de George Davison cujo The Onion Field, Mersea Island, Essex
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Os livros de fotografia de Peter Henry Emerson incluem Life and Landscape on (1890), feita com uma câmera pinhole, enfatiza seu envolvimento com a
the Norfolk Broads (1866), Pictures of East Anglian Life (1888), e Naturalistic Linked Ring, tudo aponta para a variedade da época. Lewis Carroll
Photography (1890). Suas teorias sobre a fotografia e suas imagens (Charles Dodgson, 1832-98) é outro fotógrafo significativo (bem como o
surpreendentes o estabeleceram como um precursor da fotografia como uma arte autor de Alice no País das Maravilhas), embora suas imagens de crianças
em si mesma. Veja, por exemplo, o excelente ensaio de Ian Jeffrey sobre Emerson levantaram questões relativas à sua descrição do corpo; as imagens de
em Nineteenth-Century Photography (Cambridge, 1989), de Mike Weaver. O Sutcliffe são excursões detalhadas em um ambiente particular, quase um
trabalho de Emerson pode também ser comparado com a literatura de Thomas
Atget em pequena escala. Elas oferecem um registro agudo do lugar na
Hardy e, é claro, com a pintura plein-air da arte francesa do século XIX.
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menos enfatizada das formas. Igualmente Evans, cujo melhor era a


arquitetura, especialmente catedrais e chateaux (franceses). Um membro
da Linked Ring, Evans desejava uma fotografia ‘pura’ que, como
Emerson, procurou uma imagem baseada nas possibilidades do próprio
meio. Suas imagens de interiores enfatizam superfície e textura tanto
quanto luz e espaço - um ambiente de mudança constante e delineamentos
sutis. Elas pertencem à fotografia como uma tradição de belas artes.
O século deu uma resposta bem mista à questão do que significa a
fotografia. Decerto, o ensaio de Lady Eastlake permanece apropriado
como uma estimativa de todo o período. Ele anuncia a fotografia como
pertencendo a ‘um tipo de república’ na forma como unifica ‘o
negociante’ e ‘o nobre’ em um único empreendimento; ela também
enfatiza a imediatez do meio. Assim, fotografar ‘é dar evidência dos
fatos,’ Esse é seu papel único, mas por sua vez, isso é também a
verdadeira ambigüidade que deve ser levada à frente em seu status como
um meio para o século XX. A fotografia moderna como tal, arrasta seu
passado do século XIX em cada imagem.

Extraído de CLARKE, Graham, The Photograph, (Oxford e New York:


Oxford University Press, 1997).

Traduzido por RUI CEZAR DOS SANTOS

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