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imaginação humana, uma deficiência que o exclui do reino das belas


O Público Moderno e a Fotografia artes.
Charles Baudelaire (1821-1867)

Meu Caro M****,


Após completar uma educação rígida preparando-o para o êxito na
burocracia do governo francês, Charles Baudelaire se rebelou contra a Se tivesse tempo para entretê-lo, eu poderia facilmente fazê-lo folheando
expectativa de uma vida convencional e começou a definir uma carreira as páginas do catálogo e extraindo uma lista de todos os títulos ridículos e
como poeta e crítico de arte parisiense. Vivendo prodigamente de uma tópicos risíveis que tentam atrair o olho. Isso é tão típico das atitudes
herança herdada do pai, Baudelaire escreveu seus maiores poemas, francesas. A tentativa de provocar perplexidade através de meios que são
incluindo "As Flores do Mal," no início dos anos 1840. Esses trabalhos estranhos à arte em questão é o grande recurso de pessoas que não são
iriam tornar-se a base para a tradição literária simbolista francesa. Ao pintores natos. Algumas vezes, mas sempre na França, essa forma de vício
mesmo tempo, ele se tornou íntimo de muitos pintores revolucionários domina até mesmo homens que não são, de forma alguma, desprovidos de
franceses, incluindo Delacroix e Courbet, que formaram sua compreensão talento e que desonram-no, dessa forma, com uma mistura adúltera. Eu
da arte moderna. Em 1844, quando a mãe de Baudelaire suspendeu seu poderia desfilar diante de seus olhos o título cômico, à maneira do
livre acesso à herança para forçar o filho a reformar seu estilo de vida vaudevillist, o título sentimental, faltando apenas um ponto de
excessivo, Baudelaire tentou ganhar a vida como um escritor profissional. exclamação, o título-trocadilho, o título profundo e filosófico, o título
Ele inicialmente publicou uma crítica de arte do Salão de 1845, uma enganoso ou de armadilha como Brutus, lâche César. ‘Oh você depravada
exposição anual patrocinada pela Academia Nacional. Desde então, por e inacreditável raça,’ diz Nosso Senhor, ‘por quanto tempo devo
muitos anos, continuou a criticar os Salões e em sua crítica do Salão de permanecer com você, por quanto tempo devo continuar sofrendo?’ Essas
1859 incluiu uma crítica sobre a natureza da fotografia enquanto arte que pessoas, artistas e público, têm tão pouca fé na pintura que estão
é reimpressa aqui. eternamente tentando disfarçá-la, embrulhando-a em pílulas cobertas de
Baudelaire estava apreensivo porque a definição popular de belas artes, açúcar, como um intragável purgante - e que açúcar! Sim Deuses!
como a precisa descrição de alguma realidade externa, levara os homens Permitam-me selecionar os títulos de duas imagens que, por falar nisso,
a desejar réplicas mecanicamente produzidas do mundo visual. Ele definiu não vi: Amor e ensopado de coelho! Como sua curiosidade é
o realismo artístico não no sentido popular, como um espelho do mundo imediatamente salivada, não é? Eu estou procurando às cegas em um
físico, visível, mas como um reflexo do mundo mental da imaginação, esforço para relacionar intimamente essas duas idéias, a idéia de amor e a
sonhos, e fantasia. Ele temia que a atração do público pelas imagens idéia de um coelho esfolado, cozido como um ensopado. Você
fotográficas pudesse apenas empurrá-lo ainda mais na direção da dificilmente poderia esperar que eu suponha que a imaginação do pintor
concepção popular do realismo e para longe de sua noção de verdade fosse tão longe ao ponto de fixar um porta-flechas, asas e uma venda de
artística. Baudelaire considerava tolos os homens por acreditar nas olhos ao cadáver de um animal doméstico; a alegoria seria realmente
fotografias como espelhos de fatos físicos; ele pensava que a fotografia se muito obscura. Eu estou mais inclinado a pensar que o título deve ter sido
adequava melhor como ajuda à memória humana dos eventos. Ele nunca composto, seguindo a fórmula de Misantropia e Arrependimento. O
definiu o meio além de argumentar que era de uma natureza título real deveria ser portanto ‘Amantes comendo ensopado de coelho’.
completamente industrial e, por essa razão, desprovido de influência da Segue-se então a questão: são eles jovens ou idosos, um operário e sua
namorada, ou um soldado e sua rapariga assentados debaixo de um
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poeirento caramanchão? Apenas a imagem pode dizer-me. Então temos termos correlativos, que agem um sobre o outro com força igual.
Monarquista, Católico e Soldado! Esse título pertence ao tipo pomposo, Conseqüentemente, deixe-nos observar com espanto a taxa pela qual
paladino, o tipo Itinerário de Paris à Jerusalém (Oh Chateaubriand, estamos declinando ao longo do caminho do progresso (e por progresso
minhas apologias a você! As coisas mais nobres podem se tornar meios quero dizer o domínio progressivo da matéria), a maravilhosa difusão,
para a caricatura e as palavras de um líder do Império em sátira de ocorrendo diariamente, da habilidade comum, da habilidade que pode ser
borrocadores). A imagem proclamando esse título certamente representa alcançada simplesmente pela paciência.
uma personagem fazendo três coisas ao mesmo tempo: lutando, fazendo Nesse país, o pintor natural, como o poeta natural, é quase um monstro.
comunhão, e estando presente à ‘pequena alavanca’ de Luiz XIV. Ou seria Nosso gosto exclusivo pela verdade (um gosto tão nobre quando limitado
um guerreiro, tatuado com uma flor-de-lis e imagens de devoção? Mas aos seus propósitos adequados) oprime e sufoca o gosto pelo belo. Onde
qual é o sentido de se perder em especulações? A verdade crua é que apenas o belo deve ser procurado - digamos em uma linda pintura e
títulos como esses são um meio pérfido e estéril de criar impacto pela qualquer um pode facilmente adivinhar que tipo tenho em mente - nosso
surpresa. E o que é particularmente deplorável é que a imagem pode ser povo procura apenas pela verdade. Eles não são artísticos, naturalmente
boa, por mais estranho que possa parecer. Isso se aplica também a Amor e artísticos; filósofos, talvez, ou moralistas, engenheiros, amantes de
Ensopado de Coelho e notei uma escultura excelente de um pequeno anedotas instrutivas, qualquer coisa que se queira, mas nunca
grupo, mas infelizmente não anotei o seu número; e quando desejei saber espontaneamente artísticos. Eles sentem, ou melhor, julgam,
qual era o sujeito da peça eu li, em vão, o catálogo, quatro vezes. Por fim, sucessivamente, analiticamente. Outras pessoas mais favorecidas sentem
você contou-me, com sua gentileza, que a peça era intitulada Hoje e as coisas rapidamente, imediatamente, sinteticamente.
jamais. Realmente me perturba ver que um homem com talento genuíno Eu estava me referindo exatamente agora aos artistas que procuram
lance mão de título tipo charada. impressionar o público. O desejo de impressionar ou de ser impressionado
Você deve perdoar-me por me permitir uns poucos momentos de é perfeitamente legítimo. ‘É uma felicidade maravilhar-se’: mas também
entretenimento à moda de jornais vulgares. Mas, não importa quão frívolo ‘é uma felicidade sonhar’. Se você insiste para que lhe conceda o título de
o assunto possa lhe parecer, nele você descobrirá, não obstante, se artista ou de amante da arte, a questão é por que meios você intenciona
examiná-lo cuidadosamente, um sintoma deplorável. Para concluir meu criar ou sentir esse impacto de maravilhamento? Uma vez que o belo
pensamento de forma paradoxal, deixe-me perguntar-lhe e àqueles meus sempre contem um elemento de maravilha, seria absurdo supor que o que
amigos que são mais entendidos do que eu na história da arte, se o gosto é maravilhoso é sempre belo. Ora, o público francês, que à maneira de
pelo estúpido, o gosto pelo inteligente (que remonta à mesma coisa) pequenas almas mesquinhas é singularmente incapaz de sentir a alegria de
sempre existiu, se Apartamento para alugar e outras tais noções sonhar ou da admiração, deseja ter a emoção da surpresa por meios que
alambicadas surgiram em todas as eras, para provocar o mesmo grau de são estranhos à arte e seus obedientes artistas dobram-se ao gosto do
entusiasmo como hoje, se a Veneza de Veronese e Bassano era afetada por público; eles objetivam atrair sua atenção, sua surpresa, impressioná-lo,
esses tipos de logogrifos, se os olhos de Giulio Romano, Miguelângelo e com estratagemas sem mérito porque sabem que o público é incapaz de
Bandinelli foram surpreendidos por monstruosidades semelhantes; em extrair êxtase dos meios naturais da verdadeira arte.
resumo eu gostaria de saber se o Sr. Biard é eterno e onipresente, tal como Nesses tempos deploráveis desenvolveu uma nova indústria que ajudou,
Deus. Eu não acredito nisso e considero esses horrores uma forma de graça de forma não pouco significativa, a confirmar os tolos em sua fé e a
especial concedida aos franceses. É verdade que seus artistas os inoculam arruinar qualquer vestígio do divino que ainda pudesse restar na mente
com esse gosto; e é não menos verdade que eles, por sua vez, solicitam aos francesa. Naturalmente, essa multidão idólatra demandava um ideal
artistas que satisfaçam essa necessidade; porque se o artista trata o público merecedor dela própria e em concordância com sua própria natureza. No
como estúpido, esse paga-o de volta na mesma moeda. Eles formam dois domínio da pintura e da estatuária, o credo atual do secularmente
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inteligente, especialmente na França (e não acredito que ninguém por mas quem irá acreditar-me? ‘Você pode ver que são grandes damas,’ diz
quem quer que seja ouse afirmar o contrário), é esse: ‘Eu acredito na Alexandre Dumas. ‘Há outras ainda maiores!’ responde Cazotte.
natureza, e acredito apenas na natureza.’ (Há boa razões para isso.) ‘Eu À medida que a indústria fotográfica se tornou o refúgio de todos os
acredito que a arte é, e pode apenas ser, a exata reprodução da natureza.’ pintores falidos, com muito pouco talento ou muito preguiçosos para
(Um secto tímido e dissidente naturalmente deseja que objetos completar seus estudos, essa mania universal não apenas assumiu o ar de
desagradáveis, um urinol, por exemplo, ou um esqueleto, sejam um elogio cego e imbecil, mas assumiu também o aspecto de vingança. Eu
excluídos.) ‘Conseqüentemente, se um processo industrial pode dar-nos não acredito, ou ao menos não posso convencer-me a acreditar, que
um resultado idêntico ao da natureza, isso seria totalmente arte.’ Um Deus qualquer conspiração estúpida como essa na qual, como em qualquer
vingador ouviu as preces dessa multidão; Daguerre foi seu messias. E outra, homens depravados e otários podem ser encontrados, possa jamais
então eles disseram a si mesmos: ‘Uma vez que a fotografia nos provê alcançar uma vitória completa; mas estou convencido de que os
toda garantia desejável de exatidão’ (eles acreditam nisso, pobres loucos!) pessimamente aplicados avanços da fotografia, bem como nesse sentido
‘a arte é a fotografia.’ A partir desse momento nossa desprezível sociedade todo progresso puramente material, contribuiu enormemente para o
correu, como Narciso, para contemplar sua imagem trivial na placa empobrecimento do gênio artístico francês, suficientemente raro em
metálica. Uma forma de insanidade, um extraordinário fanatismo, qualquer mente. A insensatez moderna pode urrar ao conteúdo de seu
dominou esses novos adoradores do sol. Estranhas abominações coração, arrotar todos os borborigmos de suas pessoas barrigudas, vomitar
manifestaram-se. Por agrupar e posar uma horda de homens e mulheres todas as indigeríveis falácias enfiadas em suas gargantas ávidas pela
inescrupulosos, vestidos como açougueiros e lavadeiras de carnaval e ao filosofia recente; é apenas bom-senso que, quando a indústria irrompe na
persuadir esses ‘heróis’ a ‘manter’ suas caretas improvisadas pelo tempo esfera da arte, ela se torna seu inimigo mortal e na resultante confusão de
requerido pelo processo fotográfico, as pessoas realmente acreditavam que funções nenhuma é bem desenvolvida. Poesia e progresso são dois homens
podiam representar as cenas trágicas e charmosas da história antiga. ambiciosos que se odeiam mutuamente com um ódio instintivo e quando
Algum escritor democrático deve ter visto nisso meios baratos de difundir, se cruzam um deve ceder passagem. Se for permitido que a fotografia
entre as massas, o desapreço pela história e pela pintura cometendo, dessa passe por arte em algumas de suas atividades, não demorará muito para
forma, um duplo sacrilégio e insultando, ao mesmo tempo, a divina arte da que tenha superado ou corrompido toda a arte graças à estupidez das
pintura e a sublime arte do ator. Não demorou muito para que milhares de massas, seu aliado natural. A fotografia deve, portanto, retornar à sua
pares de olhos ávidos fossem colados aos buracos de espia do verdadeira tarefa que é a de secretária das artes e das ciências mas sua
estereoscópio, como se fossem as janelas do infinito. O amor pela secretária muito humilde, como a pintura e a estenografia, que nunca
obscenidade que é um crescimento tão vigoroso no coração do homem criaram nem superaram a literatura. Deixe a fotografia enriquecer
natural quanto o amor-próprio, não poderia deixar escapulir uma tal rapidamente o álbum do viajante e restaurar a seus olhos a precisão que
gloriosa oportunidade para seu próprio deleite. E imploremos para que não sua memória não pode possuir; deixe-a adornar a biblioteca do naturalista,
seja dito que apenas as crianças, retornando para casa depois das aulas, magnificar insetos microscópicos até mesmo reforçar, com uns poucos
eram as únicas pessoas a se deleitar com tais tolices; elas eram a fúria da fatos, a hipótese do astrônomo; deixe-a, em resumo, ser a secretária e o
sociedade. Eu uma vez ouvi uma mulher inteligente, uma mulher da arquivo de quem quer que seja que necessite de precisão material absoluta
sociedade, não da minha sociedade, dizer a seus amigos que estavam por razões profissionais. Até aí tudo bem. Deixe-a salvar, do esquecimento
discretamente tentando esconder dela tais imagens, conseqüentemente ruínas em esfacelamento, livros, gravuras, e manuscritos, a vítima do
incumbindo-se de ter alguma modéstia em seu lugar: ‘Deixe-me ver; nada tempo, todas aquelas coisas preciosas destinadas ao desaparecimento que
me choca.’ Isso é o que ela disse, eu juro, eu o ouvi com meus ouvidos; cravam um lugar nos arquivos de nossas memórias; em todas essas coisas
a fotografia merecerá nossos agradecimentos e aplausos. Mas se for
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permitido, por uma só vez, que penetre na esfera do intangível e do


imaginário, em qualquer coisa de valor somente porque o homem lhe
adiciona alguma coisa de sua alma, então a calamidade irá acontecer-nos!
Eu sei perfeitamente que serei alertado: ‘A doença que acaba de
descrever é uma doença de estúpidos. Que homem merecedor do nome de
artista e qual verdadeiro amante das artes tenha jamais confundido arte e
indústria?’ Eu sei disso mas deixe-me, por minha vez, perguntar-lhes se
acreditam no contágio entre bem e mal, na pressão da sociedade sobre o
indivíduo e na involuntária, inevitável obediência do indivíduo à
sociedade. É uma lei irrefutável e irresistível a de que o artista influencia o
público, de que o público reage ao artista; além disso, os fatos, aquelas
malditas testemunhas, são fáceis de serem estudados; nós podemos avaliar
a extensão total do desastre. Mais e mais, à medida que passa cada dia, a
arte está perdendo seu respeito próprio, está se prostrando à realidade
externa e o pintor está se tornado cada vez mais inclinado a pintar não
aquilo que sonha, mas aquilo que vê. E não obstante é uma felicidade
sonhar e costumava ser uma honra expressar aquilo que se sonhava; mas
pode-se acreditar que o pintor ainda conheça essa felicidade?
O observador honesto diria que a invasão da fotografia e a grande
loucura industrial de hoje são totalmente inocentes desse resultado
deplorável. Pode-se legitimamente supor que uma pessoa cujos olhos se
acostumem a aceitar os resultados de uma ciência material como produtos
do belo não irá, dentro de um certo tempo, diminuir singularmente sua
capacidade para julgar e sentir aquelas coisas que são mais etéreas e
imateriais?

Extraído de: TRACHTENBERG, Alan (editor), CLASSIC ESSAYS ON


PHOTOGRAPHY; Leete’s Island Books, New Haven, Conn., 1980

Traduzido por RUI CEZAR DOS SANTOS.

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