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REVISTA

Tudo o que você sabe sobre


gênero está errado
Entenda o que é, afinal, identidade de gênero e
descubra como o debate sobre o tema é importante
para acabar com o preconceito

16 min de
leitura

Gabriela Loureiro e Helena Vieira


17 Mai 2016 - 16h55 | Atualizado em 20 Mai 2016 - 11h47

(Foto: Julia Rodrigues)

Valentim* nasceu em Colorado, no interior do Paraná,


há 16 anos. Desde pequeno, seu comportamento
fugia do padrão esperado para um menino: gostava
de brincar de bonecas, preferia andar com garotas e
às vezes vestia as roupas de suas tias. Não pegou
muito bem na família. Era comum Valentim ouvir
coisas como “vira homem” e “viadinho” durante a
infância. O assédio machucava, mas, ao mesmo
tempo, deixava-o confuso. Como ele poderia ser gay
se também se sentia atraído por meninas? Como só
tinha referências de homo e heterossexualidade,
Valentim acabou se definindo como gay. Até que a
modelo transgênera Andreja Pejic veio ao Brasil para
um desfile e foi entrevistada por uma rede de TV
aberta. Na época, ela se apresentava como um
menino andrógino. A identificação foi imediata, e
Andreja tornou-se sua grande referência.

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Valentim começou a pesquisar sobre a modelo na


internet e conheceu a página Travesti Reflexiva,
no Facebook. Foi quando entendeu o que é
gênero e a diferença entre este e a orientação
sexual. Entrou em contato com outras pessoas trans
nas redes sociais e descobriu sua identidade: não
binário e bissexual. Assim como a cantora Miley
Cyrus e a atriz Kristen Stewart (que têm falado
bastante sobre o tema na imprensa), Valentim não
quer saber de classificações homem x mulher ou
gay x hétero. E ele não está sozinho: segundo
pesquisa do instituto norte-americano YouGov, 46%
dos jovens entre 18 e 24 anos se definem
heterossexuais, e outros 6% se dizem homossexuais.
Isso significa que 48% das pessoas estão fora desse
espectro. É que a identidade de gênero é um pouco
mais complexa do que nos ensinaram: diz respeito
sobre quem somos, mas é regulada por instituições
sociais e por nossa necessidade de categorizar
indivíduos e suas atividades.

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O conceito de transgênero ainda é muito


complexo para a maioria das pessoas, que não
entendem o que isso tem a ver com identidade.
Muitos acreditam que transexuais são apenas
pessoas que nasceram no corpo errado, um homem
preso no corpo de uma mulher ou vice-versa. Outros
acham que para ser considerado transgênero é
preciso ter feito cirurgia de mudança de sexo.
Quando se fala em transexualidade há uma
imensa confusão entre identidade de gênero e
orientação sexual. É comum pensar que mulheres
trans e travestis são “tão gays que viraram mulher” —
o que, obviamente, não é verdade.

"Sexo biológico é
diferente de gênero e
orientação sexual. O
gênero é a identidade do
que é considerado
feminino ou masculino.
Já a orientação sexual
diz respeito ao tipo de
atração que a pessoa
sente""

Sexo biológico é diferente de gênero e orientação


sexual. O primeiro é referente ao órgão sexual do
corpo humano. O gênero é a identidade do que é
considerado feminino ou masculino, que não é
universal e pode variar ao longo do tempo. Já a
orientação sexual diz respeito ao tipo de atração, que
pode ser por pessoas do mesmo sexo, do sexo
oposto, os dois ou nenhum. Ou seja, uma pessoa
transexual não é necessariamente homossexual.
Na verdade, transgênero é um termo que abriga
todos que não se identificam com o gênero atribuído
a eles no nascimento e também quem não se
identifica com gênero de forma alguma, que é neutro,
fluido. Como Valentim. “Não nasci no corpo errado,
a sociedade é que tem uma leitura errada dele”,
diz.

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Bruce Jenner era um jogador de futebol universitário


quando seu treinador o convenceu a tentar o
atletismo. Depois de muito treinamento, competiu
pelos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de 1976,
quando ganhou a medalha de ouro na prova de
decatlo. O último atleta a levar o título, quatro anos
antes, era um soviético. Em meio à Guerra Fria,
Jenner foi aclamado como o grande herói norte-
americano. Foi convidado a dar palestras
motivacionais para inspirar seus compatriotas durante
o conflito. Mas o maior símbolo vivo do sonho norte-
americano era só uma encenação.

Jenner, na verdade, sempre foi uma mulher presa no


corpo de um homem — no caso, o de um atleta
famoso no mundo inteiro. Apenas recentemente ele
anunciou que é transexual e, na capa da edição de
julho da revista Vanity Fair, declarou: “Me chame de
Caitlyn”. Em várias partes do mundo, transexuais
ganham espaço na mídia, como a modelo brasileira
Lea T e a ex-BBB Ariadna. Se por um lado isso
ajuda a aumentar a visibilidade para o tema, por
outro cresce a polêmica: a palavra “gênero” virou
sinônimo de maldição para grupos religiosos
conservadores. No Brasil, nunca se falou tanto no
assunto como nos últimos meses, depois que o Plano
Nacional de Educação entrou em votação e o termo
“gênero” foi banido do texto após discussões
acaloradas no Congresso.

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(Foto: Julia Rodrigues)

CORPOS BINÁRIOS

Durante milhares de anos, as hijras — o terceiro


gênero, composto por transgêneros, eunucos e
intersexos — foram líderes espirituais e políticos
que celebravam casamentos, abençoavam crianças e
ocupavam posições de prestígio na justiça indiana.
Elas estão presentes em textos sagrados do
hinduísmo, como o Mahabharata e o Kama Sutra. Foi
assim até que a Grã-Bretanha colonizou a Índia e
adotou uma lei, em 1897, que estabelecia que ser
hijra era um crime. Desde então elas foram
marginalizadas e obrigadas a mendigar ou se
prostituir para sobreviver — só voltaram a conquistar
seus direitos no ano passado, quando o governo
indiano instituiu a categoria terceiro gênero nos
documentos oficiais e as cotas de emprego e de
educação para o grupo.

As hijras são uma prova de que gênero tem muito


mais a ver com a sociedade na qual vivemos do
que com nossa identidade em si. E trazem à tona o
debate: só há uma forma de ser homem ou mulher?
Ou há uma multiplicidade de masculinidades e
feminilidades possíveis?

“É menino ou menina?” costuma ser a primeira


pergunta depois do anúncio de uma gravidez. Se a
criança não se adaptar ao que é esperado do
comportamento de uma menina ou menino, é
provável que passe o resto da sua vida ouvindo a
mesma pergunta — só que em forma de xingamentos
e ataques. Não é por acaso que essa é a primeira
pergunta feita a respeito de um ser humano, e
também uma das mais importantes. Mesmo quando
ASSINE
não se fala abertamente sobre isso, é como se só
existissem dois grupos de pessoas: o dos
homens e o das mulheres.

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Ao nascer, você é automaticamente colocado


num dos dois, baseado nos seus órgãos genitais.
Se tiver um pênis é menino, se tiver uma vagina,
menina. Dali em diante, sentirá a pressão para se
conformar com as características designadas a você.
Meninos gostam de azul, jogam videogame e são
agressivos, enquanto meninas gostam de rosa,
brincam de boneca e são naturalmente passivas e
emotivas. Duas categorias para toda a raça humana.
Será o bastante? De acordo com os estudos de
gênero, um campo de pesquisa acadêmica que
surgiu dos estudos feministas e pós-estruturalistas
dos anos 1960, a resposta é não.

(Foto: Julia Rodrigues)

Ainda ligamos gênero ao sexo biológico e nos


acostumamos a pensar que isso é natural. No
âmbito da patologia , os indivíduos que fugiam dessa
naturalidade foram chamados de “transexuais” — ou
seja, desviantes. Recentemente, com os estudos de
gênero, começaram a pensar que essa designação
inicial e tida como “natural” é também arbitrária. Não
há uma naturalidade exclusiva na relação gênero-
genital. O que existe é uma identidade, uma forma
de se reconhecer.

Ela pode ser um sentimento de pertencimento, no


caso da pessoa cisgênero (aquela que se reconhece
com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer), ou
uma identificação diferente, no caso da trans, que
pode se reconhecer com o gênero oposto, com
nenhum gênero ou com uma experiência de si que
escapa ao sistema binário homem/mulher. Mas nem
toda pessoa que não se reconhece como
cisgênero é trans, já que existem nuances e
variações de pertencimento. É o caso da “queer”,
classe de pessoas que não se reconhecem em
nenhum extremo (veja o dicionário no fim do texto).

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GÊNERO E DISCIPLINA

Alex era um menino de 8 anos da periferia do Rio de


Janeiro que gostava de dança do ventre e de lavar
louça. Seu pai, Alex André Moraes Soeiro, de 34
anos, não aprovava o jeito afeminado da criança e
tentava corrigi-lo. As surras eram recorrentes e
tinham como objetivo ensinar o filho a andar
como homem. Como o pequeno não chorava
enquanto apanhava, o pai batia ainda mais. Um dia, a
criança se recusou a cortar o cabelo para ir à escola
e o pai resolveu acabar com aquela desobediência.
De tanto apanhar, o fígado de Alex foi perfurado e
ele sofreu uma hemorragia interna. Chegou ao
hospital morto, com hematomas pelo corpo todo e
sinais de desnutrição.

Alex pagou com a vida o preço de não se adequar às


normas de gênero impostas pela sociedade e
aplicadas de forma implacável pelo próprio pai. Ele
não foi o único. Em 2014, 326 pessoas foram
assassinadas no Brasil por não se encaixarem
nessas regras, segundo relatório do Grupo Gay
da Bahia (GGB). É um número 4% maior do que o
registrado no ano anterior. Entre as vítimas, 134
gays, 134 travestis, 14 lésbicas, 3 bissexuais, 7
amantes de travestis e 7 heterossexuais confundidos
com homossexuais. A mensagem que essas
estatísticas sobre violência contra a população LGBT
passa é clara: se você desobedecer às regras de
gênero vai sofrer uma punição física e pode até
morrer. É o poder coercitivo de gênero como forma
de policiar as pessoas, de acordo com Judith Butler,
uma das mais respeitadas filósofas de gênero da
atualidade.

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Judith parte das premissas do filósofo francês


Michel Foucault para explicar como as regras de
gênero são performáticas e não passam de
fenômenos repetidos para simular uma ideia de
naturalidade. Foucault disse que a disciplina é um
instrumento de dominação e controle para domesticar
comportamentos divergentes. Com o Iluminismo,
várias instituições de assistência e proteção aos
cidadãos — família, hospitais, prisões e escolas —
foram consolidadas como mecanismos de controle.
Mas o filósofo não acreditava que o poder de coerção
tinha uma só origem, como o Estado, e sim que
surgia de diversas fontes: são os micropoderes que
transformam as condutas das pessoas.

Uma das formas de exercer poder é por meio de


discursos. Assim, as piadas, o modo como nos
referimos a alguém e até os xingamentos
contribuem para normalizar alguns
comportamentos e estigmatizar outros —
exemplo: usar a expressão “que gay!” quando alguém
demonstra seus sentimentos ou a palavra “viado” ou
“travesti” como xingamento. Judith utiliza essa
premissa do discurso para tentar dissolver a
dicotomia sexo versus gênero. Para ela, vivemos
numa ordem compulsória que exige coerência total
entre sexo, gênero e desejo sexual, que são
obrigatoriamente heterossexuais. A autora sugere,
então, a contestação das expressões de gênero, já
que a identidade é formada com base na repetição de
atos performativos, ou seja, atitudes e gestos que
constroem o que é feminino e masculino.

(Foto: Julia Rodrigues)

FORA DOS LIVROS

Por mais que a diferenciação de gêneros pareça


natural, ela não é. Boa parte dessa explicação está
no papel da medicina na Europa no final do século
18. Com a Revolução Industrial, a população
europeia começou a se concentrar em áreas
urbanas, migrando do campo para as cidades. A
concentração de pessoas de diferentes regiões num
mesmo lugar provocou surtos e doenças, que
alavancaram a importância e o desenvolvimento da
medicina. Áreas como psiquiatria, sexologia e
psicanálise viram nisso a oportunidade de categorizar
doenças para atrair mais pacientes aos consultórios.
Assim, os especialistas substituíram os padres no
papel de guardiões das práticas sexuais e
determinaram os comportamentos aceitáveis e os
patológicos. Tudo que não tinha fins reprodutivos foi
considerado degeneração: homossexualidade,
transexualidade, masturbação, prostituição.

"Ainda hoje, a
transexualidade é
considerada um
transtorno mental pela
medicina, como era a
homossexualidade até
os anos 1970.""

Ainda hoje, a transexualidade é considerada um


transtorno mental pela medicina, como era a
homossexualidade até os anos 1970. “Os critérios
ditos biológicos (anatomia, hormônios, cromossomos,
glândulas) são contraditórios, às vezes incoerentes. É
só ver como os endocrinologistas forçam um
antagonismo hormonal entre testosterona e
estrogênio que não existe. Essas explicações de
transexualidade estão impregnadas de hormônios
como os fetos estão grudados ao ventre de suas
mães. E não estamos preocupados com a origem
biológica da heterossexualidade”, disse a GALILEU
Marie-Hélène Bourcier, professora da Universidade
de Lille II e uma das principais teóricas queer da
França.

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Mais ou menos no mesmo período, cientistas


começaram a definir as principais diferenças entre
homens e mulheres com base no conhecimento da
época, que era fortemente marcado pelas políticas de
gênero — ou seja, a dominação do feminino pelo
masculino. Não é por acaso que a primeira figura
de um esqueleto feminino só apareceu em um
livro em 1759, com o objetivo de deixar evidente a
diferença entre homens (fortes e com o crânio
maior que o feminino) e mulheres (muito mais
frágeis).

Pouco mais de um século mais tarde, o biólogo


escocês Patrick Geddes usou a fisiologia celular para
explicar que mulheres são mais passivas e
conservadoras do que os homens, que seriam mais
ativos e passionais. Segundo Thomas Laqueur,
conhecido sexólogo norte-americano, não há
dúvidas de que a criação de teorias sem
embasamento sobre diferenças entre os sexos
influenciou o progresso científico, bem como as
interpretações dos experimentos.

Ainda hoje transbordam estudos supostamente


científicos que garantem explicar por que homens e
mulheres se comportam de determinada maneira.
Nem todos são descartáveis, claro, mas é
interessante questionar qual é o interesse por trás
dessas pesquisas e suas influências históricas. A
produção de categorias binárias e estáveis consolida
relações de poder entre elas: homem sobre mulher,
heterossexual sobre homossexual etc.

O binário é uma projeção arbitrária do


“dimorfismo” corporal, ou seja, a ideia de que
existem dois organismos distintos na espécie
humana, um com pênis, outro com vagina. Mas
essa taxonomia biológica é falha, pois ela é incapaz
de dar conta dos corpos intersexos, aqueles que
nascem com pênis e vagina, ou com genitália
ambígua/indefinida. Enquadrar as pessoas em
gêneros, desejos e categorias estáveis é também
uma forma de castração. Quando nos limitamos a
isso, reduzimos e aniquilamos as possibilidades
múltiplas de vivência do prazer e do desejo. E, claro,
marginalizamos os desviantes.

(Foto: Revista Galileu)

VIDA DE DESVIANTE

Liége Martins é uma jovem transexual de 19 anos


que mora em uma favela no Rio de Janeiro e iniciou
em segredo um tratamento hormonal. Cresceu com a
mãe e a irmã, com quem dividia as brincadeiras sem
estereótipos de gênero. Tem dificuldades para
sobreviver em um ambiente tão hostil e escasso de
possibilidades como a periferia carioca. Por isso,
criou um grupo no Facebook chamado Cismitério,
que reúne milhares de pessoas trans, principalmente
jovens, que ainda estão em período de descoberta e
querem trocar experiências sobre corpo e identidade.

“Ninguém contrata travesti, e às vezes nem


sequer estudo elas têm, mas precisam de um
emprego cada vez mais cedo para ajudar ou
sustentar a família, custear o mínimo que puder

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