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UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO

Aluno: Antonio Marcos Araújo da Silva

Disciplina: Processos Psicossociais II

Prof.: Dr. Daniel Espíndula

A população LGBTQIA+ sempre existiu. A despeito da narrativa constante de uma população


mais vivida de que no seu tempo não existia isso, as pessoas deste grupo sempre estiveram
presentes, e não apenas no mundo real, mas também no mitológico. Na mitologia grega, por
exemplo, inúmeros são os casos de relações homoafetivas, sendo interessante trazer como
modelo a relação pederástica entre Zeus e Ganímedes, e também a poetisa Safo e sua ilha
Lesbos, demonstrando que a homossexualidade era um ato comum como a heterossexualidade.
Sobre o Antigo Egito há o exemplo da contenda de Horus e Seth. Na Índia, temos Burachara
Mata que era agradada com a emasculação de seus seguidores masculinos. Como, então, este
grupo passou a ser tão odiado, quando temos evidências de um passado tão rico de referências?

Embora este não seja o foco desse trabalho, é possível ver um crescimento da intolerância
crescer junto com o nascimento de algumas religiões, como a judaico-cristã, que engloba o ato
de homossexualidade como pecaminoso e passível de punição. Não obstante, após o
estabelecimento e difusão desse pensamento, movimentos como a Inquisição perseguiram e
mataram pessoas “desviantes”, e isso parece não ter acabado – embora tenha se extinguido, a
Inquisição parece apenas ter mudado algumas poucas características. Até os dias atuais, a
população LGBTQIA+ é exposta aos mais diversos tipos de humilhação e violência nos mais
variados âmbitos da vida cotidiana. Podemos observar isso no fato de que, há apenas 48 anos a
homossexualidade deixou de ser considerada uma patologia, e apenas em 2016 a OMS aceitou
que a identidade de gênero pode ou não corresponder ao sexo biológico. Enquanto isso, o CID-
10 ainda usa o termo “transexualismo” e, como se não bastasse, o enquadra na categoria CID F
(dos Transtornos Mentais).

Quão comum são as notícias de gays, lésbicas e transexuais (sobretudo) sendo mortxs de
formas tão desumanas? Tem-se relatos desde facadas a rituais onde o coração é retirado do
corpo! De fato, parecemos estar vivendo um filme de terror gore onde as vítimas tem um
marcador social específico. Apesar disso, a população LGBT+ tem cada vez mais se mostrado,
se permitido existir e ocupar espaços, um ato de rebeldia contra um sistema que os violenta.
Em Bichas, documentário de Marlon Parente de 2016, vemos um pouco disso; pessoas que
tiveram vivências de muito sofrimento, mas que ainda assim não desistem de ser quem são,
adotando inclusive o termo pejorativo cunhado pela sociedade e o ressignificando para se
autoafirmar. Mas a luta continua, porque a violência também. Neste trabalho, discutiremos sob
a ótica da transexualidade, primeiramente trazendo alguns apanhados conceituais para então
dialogar com a vida de uma pessoa que se torna um exemplo significativo de (quase) tudo que
será trazido aqui: Joyce Melo da Silva, revelada ao mundo pela reportagem de Fabiana Moraes
em 2011.

Em 2020, o nosso país ocupava pela 12o segundo ano consecutivo o vergonhoso topo de
países que mais matam transexuais no mundo, com causas mais comuns sendo a rejeição
familiar, fatores socioeconômicos e impunidade (https://exame.com/brasil/pelo-12o-ano-
consecutivo-brasil-e-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo/, acessado em 04 de junho de
2021). O que explicaria isso? Como falado anteriormente, não é o objetivo apontar culpados,
mas sim evidenciar fatos que vemos cotidianamente nas nossas relações com o mundo, de tal
forma que é possível sim ver causas (ou causadores) específicos, e a religião é uma delas.

O Brasil é um país considerado cristão, uma vez que essa é a religião de mais da metade
da nossa população, de acordo com dados de 2020; para ser mais exato, 81%
(https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-
31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml, acessado em 04 de
junho de 2021). Apesar de em teoria sermos um estado laico, é sob esse conjunto de regras e
condutas que vivemos ou somos fortemente influenciados, queiramos ou não. Seja em nosso
ambiente familiar ou nas outras instituições, os referenciais religiosos estão presentes, nos
controlando e influenciando não apenas no que diz respeito ao modo de agir, mas também no
de pensar. Moscovici trouxe o conceito de representações sociais para definir saberes que são
socialmente construídos e compartilhados, que servem para explicar a realidade. Com uma
instituição tão fortemente presente no nosso país, pode-se apreender que sua influência
ultrapassa as paredes dos templos.

Temos uma população que sempre fora influenciada pelo pensamento religioso,
repassando de forma transgeracional seus conhecimentos, normas e regras. Até hoje, esse
conjunto de práticas e saberes nos são passados, moldando nossa forma de agir e ser. Temos
um exemplo grandioso das representações sociais, pois o pensamento cristão muito se utiliza
desse mecanismo para espalhar seu dogma entre os grupos. De uma pessoa para outra e de uma
geração para outra, esse pensamento passa por variações, dependendo de quem o usa e em qual
contexto sócio-histórico ele se difunde, de modo que podem ser manipulados, distorcidos e
usados em prol de interesses particulares. Quando o processo de refletir acerca de uma ação e
não/ação e suas consequências não acontece, o pensar sobre a ação se torna uma resposta pronta,
tendo o que se chama de alienação, uma ferramenta de naturalização dos fatos sociais (Lane,
1989), que torna situações lamentáveis como as citadas anteriormente (de violência contra um
determinado grupo) justificáveis e banalizadas.

Joyce Melo da Silva tinha 51 anos quando nasceu, como evidenciou Fabiana Moraes na
sua série de reportagens. Vivia antes disso em um corpo masculino que não era seu, lutando
durante 7 anos para conseguir resolver esse equívoco da natureza que tanto lhe impôs
sofrimento. Quando foi encontrada no Hospital das Clínicas pela jornalista entre outras
mulheres sem útero, se destacava por se apresentar de forma “masculina”, sem se enquadrar
nos pré-requisitos externos que parecem existir para ser considerada uma mulher, sofrendo um
preconceito que vinha tanto da sociedade que não a compreendia e a odiava, quanto do próprio
grupo no qual se inseria. A Teoria da Identidade Social afirma que construímos nossa identidade
diante da alteridade presente nas relações sociais, deste modo, no eu, no não-eu, no eu-grupo
(Jacques, 2014), e de acordo com a teoria do grupo mínimo, pessoas aleatórias se unem por
possuir características em comum e tendem a favoritar seu grupo em detrimento do outro (de
Souza, 2020). Joyce fazia parte do grupo de transexuais, mas ao mesmo tempo era excluída
dele, sendo colocada em um ainda menor, das que não eram “suficientemente mulheres” para
ser mulher. No entanto, isso não a abalava, tinha sua identidade muito bem firmada e era feliz
em ser quem era, pois não precisava de coisas tão supérfluas para ser mulher.

Essa recusa em aceitar Joyce mostra um processo de estigmatização acerca das próprias
definições de homem e mulher. É possível ver que são criados papéis de gênero que devem ser
seguidos para se encaixar como um ou outro; características que, segundo Cruz (1998), quando
não seguidas, causam estranhamento e dúvidas quanto à identidade do indivíduo por parte das
outras pessoas. Essa fixidez, “[...]se por um lado restringe, por outro, confere a homens e
mulheres uma autoafirmação de identidade” (Cruz, 1998, p. 246), pois parece haver uma
estruturação e busca por equilíbrio que só é conseguida quando “[..]aqueles de um gênero se
comportarem como aqueles de outro gênero esperam[...]” (Cruz, 1998, p 246). Uma
divergência, então, se mostra como uma necessidade de reorganização de espaços de poder e
identidade (Cruz, 1998). Joyce, para os homens, é quase uma herege; quer arrancar aquilo que
lhe dar poder: o seu pênis. Isso é, ao mesmo tempo para eles, um absurdo e um motivo de ódio
e repulsa.

Essa questão da fixidez também é evidenciada na recusa das pessoas ao redor dela em
aceitar seu gênero. Tanto a sua família como moradores de sua pequena cidade constantemente
se referem a ela como João, um nome que não lhe diz respeito, usando pronomes masculinos
ao invés dos femininos que lhe são cabidos de forma cansativa inclusive para quem lê. Além
da recusa, Joyce também é afetada pela exclusão social, ou seja, está às margens da sociedade.
Jodelet (2014) traz a exclusão como aliada ao autoritarismo, que por sua vez se relaciona com
o conservadorismo, etnocentrismo e antissemitismo, e se caracteriza pelo desprezo à fraqueza,
respeito ao uso da força, intolerância à diferença e aos que divergem dos valores convencionais.
Cercada por pessoas em grande parte influenciadas por um contexto, como já falado, de
intolerância à alteridade, Joyce é posta de lado por sua família, que a rejeita e não admite seu
comportamento; pelos habitantes do distrito, é tratada de forma cômica e quase como algo
radioativo (sobretudo pelos homens) que parecem ver na proximidade física algo absurdo e
colérico, mas afirmam serem seus “amigos”. É emblemático observar que as crianças, pelo
contrário, a tratam da forma correta. Talvez devido à pouca idade e, consequentemente, o pouco
repertório relacional com os sistemas no qual estão inseridas. A Psicologia do Desenvolvimento
veria aqui uma oportunidade para fortalecer ainda mais esse comportamento tolerante.

Em um trabalho acerca das representações e estereótipos sobre o uso de droga na mídia


impressa, Sousa, Barreto, Mendes e Techio (2020) discutem sobre como os meios de
comunicação podem fortalecer e dar justificativa a estes processos, criando uma diferenciação
entre “eles e nós”, naturalizando fenômenos de exclusão, violência e vulnerabilidade social. As
novelas, jornais, inclusive alguns filmes da tv aberta, fortalecem estigmas sobre o “jeito de ser”
da população LGBT+, com comportamentos estereotipados e caricatos que avivam um
preconceito já muito presente na nossa realidade, que, na maioria das vezes, atinge seu
componente mais perigoso: o ato. Falamos aqui do comportamento, envolvendo atos de
agressão, opressão e violência.

A violência não é simplesmente a agressão, como é pensado comumente, mas um ato de


reificação do indivíduo, que está ao lado não da violação dos costumes e leis, mas da sujeição
e dominação, da obediência e de sua interiorização, sendo um efeito do aumento da
desigualdade (Chauí, 1980). Ainda neste mesmo trabalho, discute o conceito de uma não-
violência, característica do povo brasileiro, onde há uma negação dos meios de dominação,
colocando tudo que manifesta a exploração, dominação e divisão como algo acidental, enquanto
cria uma narrativa não-violenta que legitima e justifica processos de repressão e a verdadeira
violência, que é o silenciamento, o genocídio, a culpabilização da vítima e a negação de direitos
(Chauí, 1980). Joyce faz parte de diversos grupos minoritários, de tal forma que é atravessada
pelas mais variadas formas de opressão.

Seu processo de conseguir fazer a cirurgia foi marcado por violências. Era violentada com
o silenciamento das pessoas que não aceitavam o que ela era – inclusive por vários dos
profissionais que deveriam lhe auxiliar –; pelo Estado, que além do silenciamento, não lhe
fornecia ajuda financeira para custear os 16.590km percorridos nos sete anos de luta e não lhe
reconhecia. Vivia precariamente e, por isso, teve de aprender não a viver, mas a sobreviver. Até
mesmo após a cirurgia, que segundo ela, era apenas o que lhe faltava para ser verdadeiramente
feliz, foi violentada: foi deixada ainda mais à margem, foi ameaçada e perdeu clientes de seu
salão de cabeleireira, e foi impedida de colocar nos seus documentos seu verdadeiro nome,
outra luta à qual ela precisou correr atrás – o que, inclusive, acabou prejudicando seu pós-
operatório, pois sua vagina inflamou e sofreu estenose. Como dito em uma passagem da
reportagem,

Esta é apenas uma história dentre incontáveis histórias. Histórias que, muitas vezes, não
acabam bem. As formas macabras de assassinato que são utilizadas para matar transexuais são
capazes de causar perturbação, mas são tratados como atos isolados, e não como parte de um
sistema, de tal formas que são naturalizados. Além disso, há aqueles que acham se tratar da
“punição divina” que a Bíblia há tanto avisou. Por serem invisibilizadas em todos os setores da
sociedade, impedidas de ascender socialmente por causa do desemprego, serem rejeitadas pela
família, pelos amigos e nas relações sociais, muitas acabam morando em condições precárias,
encontrando na prostituição a única forma de sustento. E ainda assim, são culpabilizadas, pois
aparentemente “estão ali porque querem”. Mais uma violência.

Joyce tinha jeito duro, rude, como muitos afirmavam. Precisava ser assim, sua vida impôs
a necessidade dessa força para sobreviver. Mas não fez mal a ninguém, seu único desejo era
fazer a cirurgia que a tornaria quem ela já era. Como ela mesmo disse: “A gente tem que ser
por fora o que é por dentro”.

REFERÊNCIAS

Chauí, M. (1980) A não-violência do brasileiro, um mito interessantíssimo. In: W. N. Galvão


& Prado Jr., B. (Orgs.) Almanaque 11: Educaçăo ou Desconversa? Săo Paulo: Brasiliense,
1980.
Cruz, E. F. (1998). “Quem leva o nenê e a bolsa?”: o masculino na creche. In M. Arilha, S. G.
U. Ridenti, & B. Medrado. (1998). Homens e masculinidades: outras palavras. Editora 34.
De Souza, C. V. B. (2020) Ser homem no sertão. In M. E. O. Lima, D. X. França & R. M. K.
Freitag. (2020) Processos psicossociais de exclusão social. Editora Blucher.
Jacques, M. da G. C. (2014). Identidade. In M. da G. C. Jacques, M. N. Strey, N. M. G.
Bernardes, P. A. Guareschi, S. A. Carlos, & T. M. G. Fonseca. (2014). Psicologia social
contemporânea: livro-texto. Editora Vozes Limitada.
Jodelet, D. (2004). Os processos psicossociais da exclusão. In B. B. Sawaia (Org.). As
artimanhas da exclusão. Petrópolis: Ed. Vozes, 12.
Lane, S. T. M. (1989). A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a Psicologia.
In S. T. M. Lane, & W. Codo (Orgs.) (1989). Psicologia social: o homem em movimento.
Brasiliense.
Sousa, Y. S. O., Barreto, L. H., Mendes, A. C., & Techio, E. M. (2020) Quem são os usuários
e traficantes de drogas? In M. E. O. Lima, D. X. França & R. M. K. Freitag. (2020) Processos
psicossociais de exclusão social. Editora Blucher.

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