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O homem do pau-brasil (1981) de Joaquim Pedro de Andrade: releitura oswaldiana

no Brasil da Abertura

LUIZ OCTAVIO GRACINI ANCONA*

Nesta comunicação, abordo minha pesquisa de doutorado, iniciada este ano no


Programa de Pós-Graduação em História Social da USP sob orientação do professor
Marcos Napolitano. Como se trata de uma pesquisa em estágio inicial, não apresento
resultados, mas algumas questões que têm orientado a investigação. A pesquisa tem como
fonte e objeto o filme de 1981 O homem do pau-brasil, último longa-metragem de
Joaquim Pedro de Andrade, biografia do escritor modernista Oswald de Andrade (1890-
1954). Meu principal objetivo é identificar no filme as representações e memórias
construídas sobre a vida e obra de Oswald de Andrade e sobre a tradição modernista
nacional, avaliando se o filme opera a monumentalização dos objetos retratados ou se
descontrói monumentos já consolidados.

O homem do pau-brasil foi coproduzido pela Embrafilme, fruto de um programa


especial de financiamento de filmes históricos lançado pela empresa em 1977
(AMANCIO, 2000: 87). Aqui, é preciso lembrar, que desde 1971, a ditadura manifestava
especial interesse pelo filme histórico, através do qual ela buscava, além de contribuir
para o imaginário ufanista, elevar o “nível” das produções – reagindo às críticas recebidas
pelo financiamento de filmes de “mau gosto” como as pornochanchadas (MORETTIN,
2018: 17-18). A despeito do financiamento estatal, O homem do pau-brasil contraria por
completo os anseios cívicos do regime. E também quebra todas as expectativas em torno
do gênero histórico-biográfico, recusando qualquer pretensão de fidelidade histórica. A
começar pelo fato do biografado ser interpretado não por um, mas por dois atores, um
homem (Flávio Galvão) e uma mulher (Ítala Nandi).

Outros personagens históricos têm seus nomes alterados e o filme sequer se


inscreve temporalmente de maneira clara. Reconhecemos eventos, como a Semana de
Arte Moderna de 1922, mas nenhuma data é mencionada, não há envelhecimento das

*
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES.
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personagens nem preocupação em seguir fidedignamente a vida do biografado. A trama


se desenvolve como um grande carnaval atemporal. E, como em Os inconfidentes, de
1972, Pau-brasil mescla radicalmente história e literatura. Vida e obra de Oswald,
biografia e ficção, se fundem por completo. Os diálogos do filme reproduzem excertos de
romances, poemas, peças, ensaios e manifestos – de Oswald, e também de outros autores-
personagens, como Mário de Andrade, Paulo Prado, Blaise Cendrars e Pagu. Há uma
profunda relação intermidiática entre cinema, literatura e realidade – complexificada pelo
fato da prosa oswaldiana também promover a indistinção entre autobiografia e ficção.

Pau-brasil vai ainda na contramão do naturalismo e do realismo predominantes


no cinema da Abertura (XAVIER, 2001: 102). A narrativa é dividida em quatro partes,
de acordo com a sucessão de relacionamentos dos protagonistas, mas sem recorrer ao
melodrama e à estrutura dramática convencional. Não há psicologização das personagens
e a encenação é paródica. Em vez de dramas subjetivos, assistimos às desventuras eróticas
de personagens caricatas, com piadas e trocadilhos, às vezes chulos. Dessa forma, Pau-
brasil dialoga, à sua própria maneira, com a pornochanchada – logo, contrariando também
as pretensões de “bom-gosto” do regime militar. Há uma progressão de acontecimentos,
que, esvaziados de motivações dramáticas, se sucedem de maneira fragmentária, em um
ritmo que lembra tanto uma colagem modernista quanto gags e sketches de comédias
populares.

A primeira parte do filme acompanha os relacionamentos dos Oswalds com Lalá


(infelizmente interpretada por Regina Duarte) e com a jovem bailarina Doroteia
(interpretada por Cristina Aché, esposa de Joaquim Pedro à época). As duas são nomeadas
a partir de personagens de Serafim Ponte Grande, de 1933, e fazem referência ao
triângulo amoroso que o escritor viveu com a primeira esposa, Kamiá, e a jovem bailarina
Landa. No romance, o protagonista vive um casamento forçado com Lalá quando se
apaixona pela prima Doroteia. Na vida real, o escritor era casado com a francesa Kamiá,
mãe de seu primeiro filho, e, entre 1915 e 1916, se envolveu com Landa, chegando a
dividir a casa com as duas mulheres. Os conturbados episódios decorrentes foram
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narrados nas memórias de 1954 Um homem sem profissão (ANDRADE, 2002), principal
fonte dessa parte do filme.

Nessa parte inicial, os Oswalds possuem dois grandes objetivos: se livrar da Lalá
para ficar com Doroteia e promover a carreira da bailarina. E eles fracassam várias vezes
em ambos. Em Pau-brasil a dupla protagonista não assume o papel de herói, de sujeito
determinado que vence as adversidades e alcança seus objetivos. Pelo contrário: a trama
repetidamente expõe o contraste entre aquilo que almejam e aquilo que realizam. Eles
anunciam que querem abandonar Lalá e, na sequência seguinte, estão com ela na cama.
Não resistem às tentações e acabam a “enrabando”, como diz Oswald-homem. A carreira
da Doroteia, então, é a própria síntese da farsa. Ela é uma péssima bailarina e suas
apresentações são constrangedoras. Os Oswalds tentam promovê-la no Teatro Municipal
de São Paulo com todos os críticos comprados. Os anti-heróis não são éticos ou morais,
estão mais próximos de malandros burgueses – cuja malandragem, no entanto, é sempre
mal sucedida. Assim como Macunaíma, Pau-brasil incorpora a figura do malandro a fim
de desconstruí-la.

Na segunda parte do filme, o relacionamento é com Branca Clara (interpretada


por Dina Staf), representação de Tarsila do Amaral. O nome é também extraído de
Serafim Ponte Grande, de uma personagem por quem o protagonista se apaixona. O livro
foi publicado apenas em 1933, mas foi escrito entre 1928 e 1929, durante o casamento de
Oswald e Tarsila, e o próprio autor associou a personagem à esposa: em dado momento,
Serafim homenageia a amada com um poema intitulado “O amor”, adaptação do “Poema
Tarsiwald” que Mário de Andrade escrevera para o casal em 1925 (FONSECA, 2012:
181).

Nessa parte, o filme radicaliza a caricatura do elitismo e do estrangeirismo dos


artistas modernos. “Então o esnobismo social abre seus salões para a arte moderna”, diz
Branca Clara para Dona Azeitona – representação da Olívia Penteado, latifundiária e
mecenas dos modernistas paulistas. E é justamente com esnobismo e desqualificação do
Brasil que Azeitona responde: “quando se começa a achar as vitrines do Mappin bonitas,
é porque está na hora de se voltar para Paris”! As personagens viajam em um navio para
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Paris e frequentam o palácio-ateliê de Branca Clara, onde há uma atmosfera de chanchada


da Atlântida (BENTES, 1996: 109), com diálogos em uma mescla caricata de português
e francês. Somos apresentados ao príncipe africano Tourvalou de Blesi, interpretado por
Grande Otelo falando em francês. Branca Clara lhe mostra sua mais nova pintura,
reprodução da célebre A negra, de 1924, de Tarsila. A pintora descreve a tela como
“retrato metafísico” de sua “mãe preta”, e o príncipe exclama maravilhado “mais c’est
vovó”! Essa sequência é repleta de ambiguidade. Ao mesmo tempo em que evoca a
importância da presença africana em Paris para o “primitivismo” que marcou a pintura
moderna, tanto no Brasil quanto na Europa, (VIEIRA, 1982: 79), ela explicita o lugar de
classe, e de raça, dos modernistas, filhos dos escravocratas de outrora, e debocha do
paternalismo e do exotismo que marca suas relações com as raízes culturais não-
europeias.

É também nessa parte que o filme radicaliza sua comicidade erótica. Apesar da
beleza, reforçada por figurinos transparentes e decotados, Branca Clara é uma virgem
recalcada, reprimida em seu próprio complexo de poder. Uma “vítima impassível de si
mesma”, como afirma Oswald-mulher. A dupla protagonista vai tentando seduzi-la e ela
vai gradativamente cedendo. Se intensificam os trocadilhos e o palavreado de baixo calão
e se acentua o clima pornochanchadesco. Oswald-homem flerta de maneira obscena:
queria “segurar os cabelos do vosso corpo depilado, o ventre que indica o grelo central
da terra”; eu “apanho nas mãos essa tua bunda quente, musculosa, buliçosa”. Branca-
Clara confessa ao capitão do navio (em rápida participação de Othon Bastos) suas
primeiras experiências sexuais: ele “me fez pegar em seu lança-perfume. Lambeu minha
tatarona”. Importante dizer que boa parte dessas falas são adaptadas de Serafim Ponte
Grande. Ou seja, é a própria palavra oswaldiana que dá o tom de deboche e rebaixamento,
denunciando, à maneira de Oswald, a farsa da moral e do bom-gosto burgueses.

Na terceira parte, os Oswalds se relacionam com a militante comunista Rosa


Lituana – interpretada por Dora Pellegrino, representação de Pagu (Patrícia Galvão) e
cujo nome é extraído do livro Parque industrial, que esta publicou em 1933. Agora, o
filme reproduz trechos do prefácio que Oswald escreveu por ocasião da publicação de
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Serafim em 1933. Naquele momento, adepto do marxismo e filiado ao Partido Comunista


Brasileiro, Oswald atacou o livro escrito na década anterior, acusando-se de ter sido um
“palhaço de classe” atolado “na trincheira social reacionária” (ANDRADE, 1972: 132).
Dessa forma, o filme incorpora a autocrítica oswaldiana da década de 1930, em uma
autocrítica interna de sua segunda parte, que era conduzida sobretudo pela verborragia
pornográfica de Serafim.

Nessa parte o filme se desloca para o bairro operário do Brás, onde assistimos a
caricatas assembleias políticas. É aqui que o filme acena mais claramente (e criticamente)
para o engajamento de esquerda da geração de Joaquim Pedro no início dos anos 1960. E
acena também para o seu presente histórico, quando as greves operárias eram o principal
acontecimento político no Brasil. Em dada sequência, assistimos a uma assembleia de
greve, que é interrompida por policiais que assassinam César, um operário negro
interpretado por Antônio Pitanga. Aqui, o filme referencia o assassinato do sindicalista
negro Santo Dias em São Paulo em 1979 – também presente em Eles não usam black-tie,
lançado no mesmo ano que Pau-Brasil.1

É também nessa terceira parte que o filme tem sua única sequência de sexo,
protagonizada apenas por Oswald-mulher e Rosa, em um estilo sóbrio que contrasta com
o exagero hipercolorido do restante da trama. E é bastante significativo que estejam
presentes apenas as personagens mulheres. Embora não deixe de levantar questões quanto
ao apelo comercial da nudez feminina, a sequência rompe com a heteronormatividade
pornochanchadesca e radicaliza a contestação dos valores morais e comportamentais.

A quarta parte foi filmada em Angra dos Reis. Os Oswalds e Rosa aparecem na
praia, nus e bronzeados, cobrindo apenas os genitais. Oswald-homem, apenas ele, veste
um falo ereto de borracha. Eles invadem um barco em que mafiosos fazem uma bacanal
com prostitutas. Na praia, encontram Jesus, num breve trecho carregado de crítica ao
Cristianismo, através sobretudo de excertos da peça O homem e o cavalo, de 1933. E, no
desfecho, o filme encena as ideias defendidas por Oswald em sua tese, escrita em 1950,

1
Sobre Eles não usam black-tie, ver CARDENUTO, 2014: 301-367.
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A crise da filosofia messiânica. Nela, Oswald defendeu uma teleologia na qual o estágio
final da história seria um retorno ao matriarcado e à antropofagia, a uma sociedade sem
classes nem Estado (ANDRADE, 2011). No filme, num carnaval surrealista, Oswald-
mulher e Rosa canibalizam o Oswald-homem, que termina soterrado na areia junto dos
mafiosos, enquanto as mulheres anunciam uma revolução com as prostitutas e os marujos.
E agora quem veste o falo postiço é Oswald-mulher, em uma alegoria freudiana da tomada
de poder.

No conjunto da obra do Joaquim Pedro, Pau-brasil é um de seus filmes menos


comentados. Não encontrei pesquisas monográficas sobre ele, apenas capítulos
(BENTES, 1996; FROSCH, 2011), artigos (SILVA, 2016) e rápidas menções em livros
de caráter mais geral (XAVIER, 2001: 107). E, nesses poucos trabalhos, o filme foi
algumas vezes lido como uma perfeita incorporação do estilo e da personalidade de
Oswald e como um monumento de exaltação ao escritor e ao modernismo.2 E, geralmente,
tais estudos argumentaram a partir de declarações do próprio cineasta, segundo o qual seu
filme acabou “encontrando o estilo das memórias” do escritor (ANDRADE apud
AVELLAR, 1982: 7). Sem desconsiderar a relevância desses trabalhos, penso que o filme
carece de uma análise mais detida, em cotejo com a produção oswaldiana que lhe serviu
de base e com outras fontes de época. O historiador não pode aceitar acriticamente as
declarações de Joaquim Pedro. Isso seria ignorar o caráter de representação do filme e
desconsiderar as ressignificações de acordo com questões de seu momento de produção.

Em perspectiva histórica é preciso ter em mente que entre a realização do filme e


o objeto retratado há décadas de debates com os quais o realizador teve que lidar na
construção de sua representação. Nesse sentido, outro objetivo da tese é mapear os
debates em torno do legado oswaldiano ao longo do tempo, a fim de avaliar quais
tradições o filme incorporou e quais ele recusou ou criticou, logo, de que maneira ele se
posicionou nesses debates que atravessavam as décadas. Apenas pra elencar de modo bem

2
Ivana Bentes (1996: 144), por exemplo, foi categórica e argumentou que “Oswald está inteiro no filme”.
Meire Oliveira Silva (2016: 177), em direção semelhante, afirmou que “toda a mise-en-scène é permeada
por uma atmosfera oswaldiana” e viu no filme um monumento: para ela, a obra “se propõe a exaltar o
Modernismo por todos os poros e detalhes”.
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sintético e preliminar: a noção oswaldiana de antropofagia foi reinterpretada na literatura


pelo concretismo paulista a partir de 1964; nas artes visuais pelo Esquema geral da Nova
Objetividade do Hélio Oiticica de 1967; no teatro pelo Oficina que em 1967 encenou pela
primeira vez O rei da vela, de 1937; na música popular pelo tropicalismo, que eclodiu
também em 1967; no cinema por realizadores que tinham projetos divergentes, como
Glauber Rocha e Rogério Sganzerla; e pelo crítico Paulo Emílio Sales Gomes no célebre
ensaio “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, de 1973. Nesse processo de
ressignificação da antropofagia pelo cinema, um importante protagonista foi Macunaíma,
de 1969, de Joaquim Pedro, desde seu lançamento associado a Oswald e repetidamente
lido como “filme tropicalista”.3

Após essa explosão de releituras antropofágicas, ao longo dos anos 1970 se


formou uma narrativa segundo a qual a influência oswaldiana seria o denominador
comum de manifestações vanguardistas, cosmopolitas e contraculturais, opostas a uma
arte convencional, nacionalista e dogmática – condensada sob o rótulo de “nacional-
popular”. No final daquela década, esse debate adentrou a produção acadêmica. O
contexto, da Abertura, era de construção e embate de memórias sobre a ditadura, inclusive
sobre as lutas culturais travadas em seu interior (NAPOLITANO, 2017: 299). E, nesse
primeiro momento, muitas pesquisas, endossando as memórias dos protagonistas, não só
reforçaram essa falsa dicotomia entre vanguarda-contracultural e nacional-popular como
privilegiaram a primeira em detrimento da segunda. De um lado, intelectuais ligados à
nascente “nova esquerda” buscavam uma narrativa que rompesse com o passado e
criticavam radicalmente a cultura nacional-popular formulada desde os anos 1950. E,
paralelamente, surgiam pesquisas afinadas à memória de artistas da corrente
contracultural-vanguardista. Foi nesse contexto que Joaquim Pedro concebeu e realizou
Pau-brasil.

À primeira vista, a incorporação que o filme faz da literatura oswaldiana e de


algumas de suas releituras poderia facilmente ser lida como mais uma defesa do
vanguardismo-contracultural, em consonância com a memória que se impunha naquele

3
Para um balanço crítico das diversas associações de Macunaíma ao tropicalismo, ver GUEDES, 2011.
8

momento. O filme de fato não só incorpora como endossa a palavra oswaldiana, que
constitui a própria base sobre a qual ele se organiza. Da mesma maneira que ele de fato
endossa elementos da releitura contracultural de Oswald. Com seu protagonista duplo,
meio homem meio mulher, bissexual4, que inverte toda e qualquer convenção de gênero,
Pau-brasil ataca violentamente a moral conservadora – que, ao lado do anticomunismo,
constituía um dos pilares ideológicos da ditadura militar (ANCONA, 2018: 207-209).
Nessa mesma direção, o recurso à pornochanchada poderia ser aproximado do
tropicalismo e sua celebração da cultura de massas de “mau-gosto”; ou do “Manifesto do
Oficina”, de 1967, e sua noção de “chacriníssima realidade nacional” (CORRÊA, 1967:
9). Porém, é preciso destacar que a incorporação que Pau-brasil faz da pornochanchada
não é celebratória. Talvez o filme assuma a pornochanchada como expressão exemplar
de nossa realidade – numa direção semelhante à de Paulo Emílio no já citado ensaio de
1973 (SALES GOMES, 2016: 186-206). Mas o filme também opera a desconstrução da
pornochanchada – o que já era o mote em Guerra conjugal, de 1974, e em Vereda
tropical, de 1977. Em vez do universo machista das pornochanchadas, o filme traz uma
radical inversão dos estereótipos de gênero e se encerra com a celebração de uma
revolução matriarcal.

Tampouco é possível caracterizar Pau-brasil como mera monumentalização da


vida e obra de Oswald, em particular, e da tradição modernista em geral. A incorporação
que o filme realiza da matéria oswaldiana é ela mesma avessa à monumentalização. Em
Pau-brasil a metralhadora de críticas, a “esculhambação total”, está voltada contra si
mesma. Se para o Oficina e para os tropicalistas a antropofagia era arma contra o
moralismo, de direita e de esquerda, no filme de Joaquim Pedro ela é usada para
representar o próprio Oswald e seu projeto modernista. Assim, o filme insere as
personagens em chave crítica e apresenta sua empreitada como uma mal sucedida farsa.
Se no “Manifesto do Oficina” José Celso falava em representar “a não História do Brasil”

4
Em dado momento, Oswald-homem comenta com entusiasmo sobre um “garotão”, descrito como “um
verdadeiro Adônis”, que acabara de se mudar para seu bairro. Nessa mesma direção, são interessantes os
diálogos em que Oswald-mulher refere-se a seu “pau duro”, subvertendo até mesmo as convenções
biológicas em torno de sexo e gênero.
9

(CORRÊA, 1967: 13), Pau-brasil representou a “não História” do modernismo.


Incorporou e radicalizou alguns de seus elementos, mas a fim de expor seus limites e suas
contradições. Se, como caracterizado pelo próprio Oswald, a burguesia brasileira era uma
farsa, incapaz de realizar seu papel histórico, o mesmo poderia ser dito do projeto
modernista, radicalismo de uma parcela reformista e ilustrada dessa burguesia. Em seu
clima festivo e “desbundado”, Pau-brasil traz um balanço crítico e questiona se, nestas
terras subdesenvolvidas, a utopia modernista não seria um fracasso inexorável.

Assim, a posição do filme no debate de sua época não foi uma mera adesão à
memória vanguardista-contracultural que se impunha. O filme faz da autocrítica seu mote
interno – e, importante lembrar, a autocrítica é um traço fundamental tanto da literatura
oswaldiana quanto do cinema de Joaquim Pedro. Então, Pau-brasil ao mesmo tempo em
que celebra a subversão comportamental e determinadas releituras oswaldianas, alerta
para os perigos de sua monumentalização. E, com a agressiva crítica ao estrangeirismo
subserviente das personagens, o filme não adere ao clima de recusa radical do
nacionalismo, muito menos à celebração acrítica de todo e qualquer elemento
internacional – visões que, no início dos anos 1980, eram cada vez mais presentes na vida
cultural brasileira.5

5
Sobre o clima de recusa ao nacionalismo e celebração acrítica da indústria cultural internacional no início
dos anos 1980, ver SCHWARZ, 1987: 29-48.
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Referências bibliográficas

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