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no Brasil da Abertura
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Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES.
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narrados nas memórias de 1954 Um homem sem profissão (ANDRADE, 2002), principal
fonte dessa parte do filme.
Nessa parte inicial, os Oswalds possuem dois grandes objetivos: se livrar da Lalá
para ficar com Doroteia e promover a carreira da bailarina. E eles fracassam várias vezes
em ambos. Em Pau-brasil a dupla protagonista não assume o papel de herói, de sujeito
determinado que vence as adversidades e alcança seus objetivos. Pelo contrário: a trama
repetidamente expõe o contraste entre aquilo que almejam e aquilo que realizam. Eles
anunciam que querem abandonar Lalá e, na sequência seguinte, estão com ela na cama.
Não resistem às tentações e acabam a “enrabando”, como diz Oswald-homem. A carreira
da Doroteia, então, é a própria síntese da farsa. Ela é uma péssima bailarina e suas
apresentações são constrangedoras. Os Oswalds tentam promovê-la no Teatro Municipal
de São Paulo com todos os críticos comprados. Os anti-heróis não são éticos ou morais,
estão mais próximos de malandros burgueses – cuja malandragem, no entanto, é sempre
mal sucedida. Assim como Macunaíma, Pau-brasil incorpora a figura do malandro a fim
de desconstruí-la.
É também nessa parte que o filme radicaliza sua comicidade erótica. Apesar da
beleza, reforçada por figurinos transparentes e decotados, Branca Clara é uma virgem
recalcada, reprimida em seu próprio complexo de poder. Uma “vítima impassível de si
mesma”, como afirma Oswald-mulher. A dupla protagonista vai tentando seduzi-la e ela
vai gradativamente cedendo. Se intensificam os trocadilhos e o palavreado de baixo calão
e se acentua o clima pornochanchadesco. Oswald-homem flerta de maneira obscena:
queria “segurar os cabelos do vosso corpo depilado, o ventre que indica o grelo central
da terra”; eu “apanho nas mãos essa tua bunda quente, musculosa, buliçosa”. Branca-
Clara confessa ao capitão do navio (em rápida participação de Othon Bastos) suas
primeiras experiências sexuais: ele “me fez pegar em seu lança-perfume. Lambeu minha
tatarona”. Importante dizer que boa parte dessas falas são adaptadas de Serafim Ponte
Grande. Ou seja, é a própria palavra oswaldiana que dá o tom de deboche e rebaixamento,
denunciando, à maneira de Oswald, a farsa da moral e do bom-gosto burgueses.
Nessa parte o filme se desloca para o bairro operário do Brás, onde assistimos a
caricatas assembleias políticas. É aqui que o filme acena mais claramente (e criticamente)
para o engajamento de esquerda da geração de Joaquim Pedro no início dos anos 1960. E
acena também para o seu presente histórico, quando as greves operárias eram o principal
acontecimento político no Brasil. Em dada sequência, assistimos a uma assembleia de
greve, que é interrompida por policiais que assassinam César, um operário negro
interpretado por Antônio Pitanga. Aqui, o filme referencia o assassinato do sindicalista
negro Santo Dias em São Paulo em 1979 – também presente em Eles não usam black-tie,
lançado no mesmo ano que Pau-Brasil.1
É também nessa terceira parte que o filme tem sua única sequência de sexo,
protagonizada apenas por Oswald-mulher e Rosa, em um estilo sóbrio que contrasta com
o exagero hipercolorido do restante da trama. E é bastante significativo que estejam
presentes apenas as personagens mulheres. Embora não deixe de levantar questões quanto
ao apelo comercial da nudez feminina, a sequência rompe com a heteronormatividade
pornochanchadesca e radicaliza a contestação dos valores morais e comportamentais.
A quarta parte foi filmada em Angra dos Reis. Os Oswalds e Rosa aparecem na
praia, nus e bronzeados, cobrindo apenas os genitais. Oswald-homem, apenas ele, veste
um falo ereto de borracha. Eles invadem um barco em que mafiosos fazem uma bacanal
com prostitutas. Na praia, encontram Jesus, num breve trecho carregado de crítica ao
Cristianismo, através sobretudo de excertos da peça O homem e o cavalo, de 1933. E, no
desfecho, o filme encena as ideias defendidas por Oswald em sua tese, escrita em 1950,
1
Sobre Eles não usam black-tie, ver CARDENUTO, 2014: 301-367.
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A crise da filosofia messiânica. Nela, Oswald defendeu uma teleologia na qual o estágio
final da história seria um retorno ao matriarcado e à antropofagia, a uma sociedade sem
classes nem Estado (ANDRADE, 2011). No filme, num carnaval surrealista, Oswald-
mulher e Rosa canibalizam o Oswald-homem, que termina soterrado na areia junto dos
mafiosos, enquanto as mulheres anunciam uma revolução com as prostitutas e os marujos.
E agora quem veste o falo postiço é Oswald-mulher, em uma alegoria freudiana da tomada
de poder.
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Ivana Bentes (1996: 144), por exemplo, foi categórica e argumentou que “Oswald está inteiro no filme”.
Meire Oliveira Silva (2016: 177), em direção semelhante, afirmou que “toda a mise-en-scène é permeada
por uma atmosfera oswaldiana” e viu no filme um monumento: para ela, a obra “se propõe a exaltar o
Modernismo por todos os poros e detalhes”.
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Para um balanço crítico das diversas associações de Macunaíma ao tropicalismo, ver GUEDES, 2011.
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momento. O filme de fato não só incorpora como endossa a palavra oswaldiana, que
constitui a própria base sobre a qual ele se organiza. Da mesma maneira que ele de fato
endossa elementos da releitura contracultural de Oswald. Com seu protagonista duplo,
meio homem meio mulher, bissexual4, que inverte toda e qualquer convenção de gênero,
Pau-brasil ataca violentamente a moral conservadora – que, ao lado do anticomunismo,
constituía um dos pilares ideológicos da ditadura militar (ANCONA, 2018: 207-209).
Nessa mesma direção, o recurso à pornochanchada poderia ser aproximado do
tropicalismo e sua celebração da cultura de massas de “mau-gosto”; ou do “Manifesto do
Oficina”, de 1967, e sua noção de “chacriníssima realidade nacional” (CORRÊA, 1967:
9). Porém, é preciso destacar que a incorporação que Pau-brasil faz da pornochanchada
não é celebratória. Talvez o filme assuma a pornochanchada como expressão exemplar
de nossa realidade – numa direção semelhante à de Paulo Emílio no já citado ensaio de
1973 (SALES GOMES, 2016: 186-206). Mas o filme também opera a desconstrução da
pornochanchada – o que já era o mote em Guerra conjugal, de 1974, e em Vereda
tropical, de 1977. Em vez do universo machista das pornochanchadas, o filme traz uma
radical inversão dos estereótipos de gênero e se encerra com a celebração de uma
revolução matriarcal.
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Em dado momento, Oswald-homem comenta com entusiasmo sobre um “garotão”, descrito como “um
verdadeiro Adônis”, que acabara de se mudar para seu bairro. Nessa mesma direção, são interessantes os
diálogos em que Oswald-mulher refere-se a seu “pau duro”, subvertendo até mesmo as convenções
biológicas em torno de sexo e gênero.
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Assim, a posição do filme no debate de sua época não foi uma mera adesão à
memória vanguardista-contracultural que se impunha. O filme faz da autocrítica seu mote
interno – e, importante lembrar, a autocrítica é um traço fundamental tanto da literatura
oswaldiana quanto do cinema de Joaquim Pedro. Então, Pau-brasil ao mesmo tempo em
que celebra a subversão comportamental e determinadas releituras oswaldianas, alerta
para os perigos de sua monumentalização. E, com a agressiva crítica ao estrangeirismo
subserviente das personagens, o filme não adere ao clima de recusa radical do
nacionalismo, muito menos à celebração acrítica de todo e qualquer elemento
internacional – visões que, no início dos anos 1980, eram cada vez mais presentes na vida
cultural brasileira.5
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Sobre o clima de recusa ao nacionalismo e celebração acrítica da indústria cultural internacional no início
dos anos 1980, ver SCHWARZ, 1987: 29-48.
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Referências bibliográficas
__________. Serafim Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972 [1933].
AVELLAR, José Carlos. “Joaquim Oswald Mário Pedro de Andrade Rocha”. Entrevista
com Joaquim Pedro de Andrade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Cad. B, p. 7, 05
maio 1982.
CORRÊA, José Celso Martinez. “‘O rei da vela: manifesto do Oficina’”. In: O rei da vela.
Programa da peça. São Paulo: 1967. p. 7-13.
FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo: Globo, 2012.
NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar
(1964-1985) – ensaio histórico. São Paulo: Intermeios/História Social-USP, 2017.
SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: ___. Que horas são? São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. p. 29-48.
VIEIRA, João Luís. “Bibicos e tataronas vs. pau-brasil”. Filme Cultura, v. 15, n. 40, p.
78-80, ago.-out. 1982.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. 2a ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.