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"Do que foi dito fica claro o que é a substância sensível e qual é seu modo de ser: ela é,
por um lado, matéria, por outro, forma e ato1, e, num terceiro sentido, o conjunto de
matéria e de forma".2
Para Aristóteles, "as substâncias que são admitidas por todos" 3 são as substâncias
sensíveis, os objetos sensíveis particulares, e é delas que o conhecimento (EPISTEME)
do filósofo, daquele que investiga o que significa ser para as coisas que são, deve partir.
No entanto, em sua concepção, não é possível haver conhecimento dos particulares, pois,
como diz, "nós só conhecemos todas as coisas na medida em que existe algo uno, idêntico
e universal " 4, e as substâncias sensíveis, o objeto de conhecimento da ciência do filósofo,
são particulares sujeitos à geração e à corrupção: são, em determinado sentido, compostos
de matéria e forma.
1
Não abordaremos aqui as noções aristotélicas de ato e potência, essenciais para a compreensão da questão
aqui esboçada, mas que infelizmente ultrapassaria o espaço aqui disponível.
2
Metafísica, 1043a 26-29
3
Metafísica, 1042a 24
4
Metafísica, 999a 28-29
universal com a consideração de que o que existe na realidade são substâncias sensíveis
que são sempre particulares.
"a substância se entende segundo dois significados: (a) o que é substrato último, o qual
não é predicado de outra coisa, e (b) aquilo que, sendo algo determinado, pode também
ser separável, como a estrutura e a forma de cada coisa".9
5
Ver Metafísica, 1003a 30 - 1004a 1; 1026a 31-1026b 1
6
Metafísica, 1003a 34
7
Metafísica, 1003a 34
8
Metafísica, 1028b 2-5
9
Metafísica, 1017b 24-25
10
Trata-se de um neologismo dos comentadores, dado que o termo não aparece em Aristóteles, para se
referir à sua doutrina da substância como um composto de matéria e forma.
predicações, mas que não é predicado de nada, justamente por ser um ser separado, por
não precisar ser de algo ou em algo: é substrato (HYPOKEIMENON). Ao mesmo tempo
em que tem que ser aquilo que responde à pergunta "o que é", tem que ter determinações
que permitam dizer o que ela é, que digam da coisa o que ela é por si mesma: é essência
(TI ESTI/TÒ TI ÊN EÎNAI).
A matéria é aquilo que é em si mesmo indeterminado, mas que pode vir a se tornar
algo, ela é o substrato em que as determinações da substância incorrem e é o que permite
11
Metafísica, 1003a 14-15
12
Já de início seria importante ressaltar que essa divisão em três modos de concepção das substâncias
sensíveis não se trata de uma divisão real, como se Aristóteles estivesse dizendo que algumas substâncias
são forma, outras são matéria, e outras são um composto de matéria e forma; trata-se, na verdade, de três
sentidos em que elas podem ser ditas.
13
Metafísica, 1042a 25-31
à substância ser subjacente às suas determinações. No entanto, não se depreende daí que
matéria seja substância e, no Livro Sétimo da Metafisica, Aristóteles expõe a
impossibilidade disso14. Segundo ele, procedendo-se de maneira abstrata, poder-se-ia
tentar extrair as determinações da matéria, buscando saber o que ela é. Mas, com isso, se
chegaria a um indeterminado, que nada é, e, no entanto, a substância tem de ser algo, e
tem de ser algo separável (KHORISTÓN) e ser algo determinado. De tal forma que todas
as substâncias sensíveis possuem matéria, como é explicitado no trecho central aqui
citado, mas não são pura e simplesmente matéria. É a matéria que possibilita que a
substância seja compreendida como substrato, garantindo a individualização do seres, já
que nela incorrem as determinações que os particularizam, mas algo mais tem de estar
presente para que a substância não seja algo indeterminado, dado que a matéria é a pura
indeterminação capaz de ser determinada, mas não de determinar-se por si mesma.
14
Ver Metafisica, 1029a 10-28
15
Metafísica, 1035a 6
particular, mas cujas determinações essenciais são determinações universais, são aquilo
que permitem dizer o que o composto é. Isso é o que torna possível que o indivíduo seja,
que tenha existência separada, que seja "separado em sentido próprio" (HAPLOS)16,
diferentemente da substância tomada no sentido de forma, que pode ser separada apenas
no discurso.
Essas duas características, ser um particular e ser um particular que pode ser dito
por universais, só podem existir, portanto, no composto de matéria e forma, e ele é o que
realmente tem existência, é o que está sujeito à geração e à corrupção: "ninguém produz
ou gera a forma; o que é produzido é o indivíduo e o que é gerado é o conjunto de matéria
e forma".17 Há, como vemos, uma dependência recíproca entre matéria e forma, elas só
podem ser no sentido pleno se forem uma agindo sobre a outra, e, enquanto separadas,
tem que ser pensadas de modo relativo: matéria de algo e forma de algo.
16
Quanto à discussão dos comentadores a respeito do que tem anterioridade ontológica (tem estatuto
simples - HAPLÔS), a forma ou o composto, dado a divergência de concepção apresentada por Aristóteles
nos livros Sétimo e Oitavo da Metafísica, sendo conferida, no primeiro, maior anterioridade e ser à forma
do que à matéria, e, consequentemente, afirmando-se a anterioridade da forma em relação ao composto (ver
Metafísica, 1029a 29); e, no livro posterior, concebendo-se anterioridade ontológica ao composto (ver
Metafísica, 1042a 30); adotamos aqui, em função de uma concepção dos livros Sétimo, Oitavo e Nono
como uma espécie de unidade, sendo as questões discutidas no Livro Sétimo retomadas e esclarecidas no
Livro Oitavo, e, sobretudo, por um entendimento da noção de composto de matéria e forma como dotada
de um o relacionamento intrínseco e de uma interdependência entre matéria e forma, sendo o composto
aquilo que satisfaz as condições que possibilitam que seja ele o que efetivamente e plenamente existe,
adotamos aqui a interpretação de conferir o caráter de anterioridade ontológica ao composto de matéria e
forma.
17
Metafísica, 1043b 16-17
18
A distinção feita por Aristóteles no Tratado das Categorias (parte do Órganon, o conjunto de textos
lógicos de Aristóteles) entre substância primeira e substância segunda (ver Categorias, 2a1 11-20), e que,
de certa maneira, está operando na Metafísica, auxilia a compreender a relação entre a substância enquanto
forma e a essência, e a relação da forma com o composto. Em linhas gerais, Aristóteles chama substância
primeira "aquilo que não é nem dito de um sujeito nem em um sujeito", ou seja, aquilo que não é um
subjacente e que não está em um subjacente: "um homem", "um certo homem", "este homem", por exemplo;
e substância segunda, as espécies a que as substâncias ditas primeiras pertencem, isto é, no vocabulário
adotado aqui, as determinações da substância primeira que respondem à pergunta "o que [ela] é", no
exemplo considerado, "homem".
de tal maneira que esta não é passível de geração. A forma enquanto tal é um conjunto de
determinações que só serão algo determinado e existente em sua relação com a matéria.19
"das substâncias sensíveis e particulares não existe nem definição nem demonstração21,
enquanto tem matéria, cuja natureza implica a possibilidade de ser e de não-ser: por isso
todas essas substâncias sensíveis individuais são corruptíveis"22.
19
Fica claro, então, que Aristóteles não está dizendo que aquilo que no composto é matéria é o que faz com
que ele seja uma substância única, e, inversamente, aquilo que no composto é forma é o que garante que
ele seja universal. Isso não se dá assim porque a forma, como explicitado na nota anterior, é essência, o que
é comum a determinado conjunto de indivíduos, e, ao mesmo tempo, substância primeira, aquilo que é
próprio de cada indivíduo.
20
Metafísica, 1059b 26
21
Não discutiremos aqui a concepção aristotélica de conhecimento como definição (HORISMÓS) e
demonstração (APÓDEIXIS), como silogismo demonstrativo.
22
Metafísica, 1039b 29-30
23
Metafísica, 1036a 8
24
Não abordaremos aqui as noções aristotélicas de necessidade e acidente. No entanto, para auxiliar a
compreensão, cabe dizer que, para Aristóteles, segundo as definições do Livro Quinto da Metafisica,
"acidente significa o que pertence a uma coisa e pode ser afirmado com verdade da coisa, mas não sempre
nem habitualmente" (Metafísica, 1025a 15-16); e necessário é aquilo "que não pode ser diferente do que
é"(Metafísica, 1015a 35), em seu sentido primeiro e fundamental "é o simples, pois este não pode ser de
muitos modos e, consequentemente, não pode ser ora de um modo, ora de outro, pois nesse caso seria de
muitos modos." (Metafísica, 1025a 13-14).
"não existe definição do composto como, por exemplo, deste círculo ou de um círculo
particular (...). estes só são conhecidos mediante intuição ou percepção25; e quando não
estão mais atualmente presentes a nossa intuição ou percepção, não podemos saber se
existem ou não; todavia eles sempre podem ser constituídos e definidos em sua noção
universal".26
25
Foge a nosso escopo discutir aqui as ideias de intuição (NÓESIS) e percepção.
26
Metafísica, 1036a 1-8
27
Não discutiremos aqui de forma detalhada os processos intelectuais que permitem essa operação de
extração, a partir dos diversos compostos, da forma, a saber: a indução (EPAGOGE) e a abstração.
28
Toda essa temática aqui desenvolvida e, de certa a forma, os conteúdos discutidos na Metafísica, perdem
muito de sua riqueza e da profundidade de sua elaboração quando não relacionados ao pano de fundo do
platonismo com o qual Aristóteles está em diálogo nessas elaborações, sobretudo a Doutrina das Ideias de
Platão e a noção platônica de participação. Obviamente foge a nosso escopo tecer possíveis aproximações
e distanciamentos, no entanto, nesse ponto a respeito do estatuto ontológico dos universais que são objeto
de conhecimento, é interessante ressaltar a diferença entre a concepção platônica de forma (ou Ideia), ao
menos segundo a interpretação de Aristóteles, como aquilo que tem existência separada e da qual as coisas
particulares devem participar para que sejam aquilo que são, e a concepção de Aristóteles, em que forma
esteja presente nos particulares, mas tampouco é algo que existe em sentido pleno nas
coisas: o que temos é algo de universalizável no particular, algo que pode ser concebido
como universal.
O ponto central dessa articulação, pelo menos no recorte que fizemos aqui, e que
esperamos ter ao menos exposto um início de compreensão, é a duplicidade do significado
de substância enquanto composto e enquanto forma, já que é isso que permite a Aristóteles
satisfazer as duas exigências apresentadas, ainda que, e devemos insistentemente lembrar,
os três sentidos de concepção da substância estejam intrinsecamente relacionados e sejam
interdependentes entre si. O composto, enquanto união da matéria com a forma,
possibilita a individualização da substância, isto é, que ela seja uma certa matéria sendo
determinada por uma certa forma; e a concepção da substância no sentido da "forma
enquanto tal"29ou, se quisermos, forma em geral, permite a formulação de uma noção de
essência, ou seja, torna possível conhecer o "o que é" da substância enquanto composto,
já que apenas este tem existência no sentido pleno. Desse modo, é por essa forma
enquanto tal ser uma formulação do pensamento, e não estar, portanto, sujeita à geração
e à corrupção como o composto, que é possível um conhecimento universal e imutável
dos particulares.
REFERÊNCIAS
não é uma realidade substancial plena, e só pode ser pensada porque há particulares, estes sim,
ontologicamente plenos, que permitem que algo universal seja abstraído a partir deles.
29
Metafísica, 1039b 21
ARISTÓTELES. Órganon: Categorias, Da interpretação, Analíticos anteriores,
Analíticos posteriores, Tópicos, Refutações sofísticas. Trad. Edson Bini. Bauru- SP:
Edipro, 2005.