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O ente e essência: comentários ao capítulo IV

Sofia Vanni Rovighi - No quarto capítulo, Tomás fala da essência das substâncias
‘separadas’, ou seja, incorpóreas. Que existissem tais substâncias era por todos
admitido; quais fossem a natureza delas, isto sim era discutido; que, ainda que fossem
incorpóreas eram diversas de Deus, era por todos admitido; em que coisa se
diferenciavam de Deus, isto sim era discutido. A teoria mais difundida no mundo cristão
do século XIII era aquela de Avicebrol, segundo a qual todas as substâncias criadas,
incluindo os anjos, são compostas de matéria e forma. Tomás havia rejeitado esta teoria
e a razão era que uma substância capaz de conhecer intelectivamente não pode ser
constituída de matéria e forma.

As substâncias separadas, logo, os entes puramente espirituais, não são compostos de


matéria e forma, mas são formas puras. E porque o princípio de individuação é a
matéria assinalada, em tais substâncias não poderão estar muitos indivíduos de uma
mesma espécie, mas cada uma delas se configura como espécie única.

Mas, se as substâncias separadas são formas puras, em que se diferem de Deus? Tomás
recorre a Avicena e afirma que nos entes puramente espirituais, mas criados, se encontra
composição de essência e ser. Ora, cada realidade em que se distinguem a essência e o
ser, cada realidade que tem o ser, mas não é o ser mesmo, deve ter recebido o ser de
outro, e precisamente daquele que não tenha recebido o ser, mas é o seu ser mesmo.
Este é a razão de ser, a causa essendi de toda a realidade: Deus. A essência de toda a
realidade recebe, logo, o ser. ‘ora, aquilo que recebe alguma coisa de alguém é em
potência em relação àquilo que recebe, e aquilo que é recebido em este é o seu ato’,
logo, a essência que não é por força própria, a essência que recebe o ser de Deus é em
potência ao ser que recebe; logo, existe potência e ato nas substâncias separadas, porque
a essência delas é em potência ao ser, mas não existem nelas matéria e forma.

Andrea Porcarelli - Se discute sobre a existência de substâncias totalmente imateriais


(as inteligências angélicas e as almas humanas) das quais Avicebron sustentava que
eram compostas de matéria e forma, enquanto Aristóteles demonstra que – sendo
capazes de acolher as formas inteligíveis – devem ser obrigatoriamente privadas de
materialidade, mas não são privadas da composição entre essência e ser. É de fato
possível que existam formas sem matéria (visto que é a forma a conferir o ser à matéria
nas substâncias materiais e não vice-versa), antes se trata de formas mais próximas ao
princípio primeiro que é Ato Puro e nessas coincidem a forma e essência (enquanto isto
não acontece pelas substâncias materiais, em que a mesma essência é composta de
matéria e forma). Isto comporta o fato que as essências das realidades compostas, pelo
fato de serem recebidas na matéria marcada pela quantidade (que é princípio de
individuação), se multiplicam em força da divisão da matéria e podem ser idênticas na
espécie e diversas no número, enquanto para as substâncias imateriais existem tantas
espécies quantos são os indivíduos, como afirmava também Avicena.

Tais substâncias, porém, não são de tudo privadas de toda forma de composição e de
potencialidade, visto que nenhuma de tais substâncias tem o ser por essência (isto se
pode dizer do ser absolutamente primeiro, que existe de modo necessário, isto é, o Ato
Puro), logo existe nestas – como em todas as substâncias que existem – uma distinção
real entre essência e ato de existir.

Tudo aquilo que caracteriza uma determinada realidade ou é causada por princípios da
sua própria natureza (como é para o homem o fato de ser capaz de sorrir) ou provém de
um princípio extrínseco (como a luz no ar quando é iluminada); mas não é possível que
o ato de ser de uma determinada forma seja causado por aquela mesma forma como
causa eficiente. Logo – dado que o ser das substâncias imateriais é distinto de sua forma
ou essência – é necessário que toda a realidade em que o ser é distinto da sua essência
receba o ato de existir de outro. Tudo aquilo que recebe de outro qualquer coisa é em
potência em relação a este outro, e aquilo que vem recebido representa o seu ato, o que
significa que a mesma essência – enquanto tal – é em potência em relação ao ato de ser
que recebe de Deus.

Existe, portanto, uma distinção e uma hierarquia entre as inteligências separadas,


segundo o grau de potência e de ato: a inteligência superior, que é mais próxima,
ontologicamente falando, ao primeiro a um grau maior de ato e menor de potência, e
assim por diante. A alma humana se encontra em uma situação particular: ocupa o
último posto, isto é, o grau ontologicamente mais baixo, entre as substâncias
intelectivas, pelo qual o seu intelecto passivo se reporta às formas inteligíveis como a
matéria prima se reporta àquelas sensíveis e – escreve Tomás – ‘E pelo fato que entre as
outras substâncias inteligíveis é aquela dotada de um maior grau de potencialidade, essa
é considerada tanto próxima às coisas materiais a ponto de atrair estas últimas a
participar do seu ser, em modo tal que da união de alma e corpo resulte um só ser
composto, embora este ser, enquanto é da alma, não dependa do corpo. E, portanto,
depois desta forma que é a alma se encontrem outras formas que possuam ainda um
maior grau de potência e mais próximas à matéria, até ao ponto que o ser delas não
podem dar-se sem a matéria”.

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