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Filosofia Moderna
Prof. Pedro Galvão
Cláudia Borges Lopes [160705]
2022
Resumo:
A “Ética” de Espinosa foi já alvo de inúmeras interpretações desde a sua publicação. A
obra desde sempre foi criticada como polémica, herege ou obscura. No entanto,
podemos observar que, a par das novas conceções éticas de Espinosa, a sua
compreensão de Deus e do mundo não difere tanto assim de pensadores anteriores,
nomeadamente Heraclito, Parménides, Aristóteles e Giordano Bruno. Neste ensaio
procederei a uma exposição e interpretação da “Ética” à luz dos filósofos mencionados,
defendendo o panteísmo e a moral espinosista.
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Espinosa é um dos pensadores que conseguiu perdurar como uma das mais relevantes
vozes da Filosofia não apenas devido ao seu génio, mas igualmente por causa da sua
tese algo ambígua, há quem diga até obscura, que resultou em múltiplas interpretações
ao longo do tempo. Falo nomeadamente da obra “Ética”, que se assume como um
modelo de interpretação do mundo, via de conhecimento da realidade e, através das
informações necessárias sobre a verdade, permite o alcance da beatitude.
Não pretendo uma leitura revolucionária da “Ética”, nem a defesa de uma concreta
interpretação entre tantas outras. Procuro apenas compreender as palavras de Espinosa,
particularmente na Parte I – De Deus, à luz dos seus antecessores e influências
filosóficas e literárias, sem com isso retirar a originalidade ao seu pensamento. Julgo
que, com as ferramentas certas, é possível atender a questões discutidas, amiúde, como
o panteísmo, monismo ou ateísmo de Espinosa, que Deus é este de que o autor parece
tão convicto e de que forma a compreensão integral da existência pretende um avanço
ético em vez de o egoísmo frequentemente apontado.
Existe uma única substância, segundo Espinosa, substância esta a que chama Deus.
Tudo o que existe é composto por uma só substância. A substância existe, pois, a
existência faz parte da sua natureza. Ela forma-se por si, dá-se à luz, põe a sua própria
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existência, é causa de si própria. Isto é a sua determinação. Isto é Deus. Existência
necessária e resultante da sua potência.
Esta ideia não é nova. Deus, ou a substância, ou o Ser, é tido desde os primórdios da
filosofia como a génese de tudo o que existe, a origem e a finalidade do cosmos,
simultaneamente. Para além disso, a palpitação do Ser é sentida em tudo, as coisas são
apenas modos do Ser se mostrar, de se dar a conhecer. As coisas são apenas espelhos da
unidade divina, do todo infinito e universal, partilhado por cada ente no seu âmago.
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O panteísmo espinosista passa também pela relação simbiótica entre Deus e a Natureza.
Deus sive Natura, Deus é inseparável da Natureza. A natureza naturada são os modos da
substância infinita, as suas várias representações. A natureza naturante é o próprio Deus
nas suas estruturas, nas leis da natureza que se identificam com a justiça cósmica. Como
que uma folha e o seu cair numa manhã de outono. Ou o entendimento como atributo de
Deus que exprime a essência eterna e infinita do pensamento.
Deus é ambas, pois “tudo o que é, é em Deus.” (Espinosa 2020). Existe uma só
realidade, Deus ou Natureza. Cada coisa é um modo de Deus ser. O conhecimento do
Ser não começa com Deus, mas com a Natureza. Conhecer Deus é conhecer a infinitude
do todo e também as suas partes, as coisas particulares e a singularidade de cada uma
delas. A Natureza cria-se a si própria, porque é Deus, não obedece a ordens, descobre-se
e expande-se livremente, decide por si, não pela razão, mas pela necessidade de ser, de
continuar a existir. Como explicita Diogo Pires Aurélio:
“Daí o ter de se começar por Deus. Não porque ele seja a causa remota e
separada das coisas, como supõe o criacionismo, ou porque seja o princípio
imanente que age no interior das coisas, sem se confundir com elas, como supõe
um panteísmo, mas porque ele é tão-só as próprias coisas na sua infinita e eterna
produção e interação, puro processo sem sujeito nem finalidade. Cada coisa é
um modo de Deus ser, e não se pode conhecê-la se, a par da identificação do seu
lugar na cadeia causal em que os seres interagem, não identificarmos
igualmente como parte da natureza.” (Idem.)
Contudo, julgo ser relevante contra-argumentar a defesa panteísta, pois a forma como
Espinosa encara a natureza da substância pode muito bem ser interpretada como um
monismo mascarado. Podemos inferir que, por dar a existência a todas as coisas, Deus
está separado de tudo, como o absoluto em si próprio. Deus como fonte de todo o finito,
é o lugar da sua unidade. Como numa circunferência, todos os pontos, todas as
diferenças, são parte de um todo. Esta circularidade ontológica supõe uma única
substância, comum a tudo, como afirma Espinosa. Apesar dos vários pontos, há apenas
uma circunferência, uma única realidade, em vez de realidades infinitas, como
poderíamos deduzir. O finito é uma negação de Deus. A determinação é uma negação
do absoluto, mas tudo é expressão da mesma unidade, esta certeza eleva-nos a um plano
de visão total. À luz do todo, todas as contradições se dissolvem.
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Outro aspeto fundamental da “Ética”, nomeadamente do argumento de Deus e da
natureza da substância, é o necessitarismo espinosista e a causalidade. Na natureza não
se dá o vazio, nada perece, apenas se transforma. As partes distinguem-se modalmente e
não realmente. Imaginamos a realidade separada, mas entendemo-la una. “Tudo o que é,
é em Deus.” Tudo o que acontece rege-se pelas “leis da natureza infinita de Deus e
segue-se da necessidade da sua essência.” (Espinosa 2020) Nada é indigno da natureza
divina. Tudo comunga da mesma substância e é por ela interligado, infinita e
eternamente. As coisas finitas não o são quando concebidas enquanto substâncias. As
coisas encadeiam-se através de causa e efeito, causa e efeito, causa e efeito. Tudo tem
causas próximas, contudo, a causa primeira e absoluta é Deus, de onde surgem os
efeitos imediatos e os subsequentes.
Deus é absolutamente a causa primeira, pois todas as coisas que caem sob o
entendimento do infinito têm Deus como causa eficiente. Deus é também causa de si
próprio, dá-se a si mesmo a existência, pois pertence à sua essência existir, existe
necessariamente. Assim, sendo absolutamente causa primeira, não é coagido por nada
nem ninguém, age apenas conforme as leis da natureza, ou seja, pelo respetivo devir, a
justiça divina, a ordem cósmica. Existe uma causalidade vertical, de Deus para as
coisas.
A perfeição da essência de Deus incita-o a agir. Esta essência perfeita é a causa de todas
as coisas. A existência não pode ser sozinha, exalta mais existência, como que uma
cadeia perfeita e perfeitamente ordenada, sob o ímpeto amoroso de Deus. Assim, Deus
não age através do entendimento ou da vontade. A sua liberdade não reside nestas
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condições. O entendimento e a vontade de Deus são causa das do Homem, por isso
devem diferenciar em essência e existência. Se fossem iguais, não seriam verdadeira e
integralmente causa.
Desta forma, a Natureza não pode ser classificada como boa ou má, pois simplesmente
é. O intelecto é a força ativa da alma – o conatus, a essência da alma humana. O
intelecto distingue bom de mau, o bom uso do intelecto faz o Homem escolher o que o
faz feliz em vez de triste. Não precisamos de justificar as injustiças como ações de
Deus, pois elas não têm de ser questionadas. As coisas são, perfeitamente, por mais
moroso que seja suportar isso. Devemos render-nos, assim, às leis naturais, não num
sentido fatalista, mas sorrindo a Deus e aceitando a vida. Se compreendermos o sentido
profundo do mundo, de uma unidade comum a cada ente, podemos amar, repousar e
sentir a realidade, em vez de lutar freneticamente pela sobrevivência e conveniência. O
mundo é o desdobramento da unidade divina, Deus é puro intelecto, potência infinita
que se exprime na Natureza. Aqui subjaz o Racionalismo de Espinosa, a verdadeira
liberdade é seguir o intelecto, o bom senso na medida em que somos racionais.
Deus é causa fiendi e causa essendi das coisas que produz, como o escritor dispõe as
palavras e o livro as segura para sempre. A essência das coisas não evolve a existência
ou a duração. Tudo está dependente da ação de Deus, a possibilidade e a atualização são
também obras de Deus. Deus é ato absoluto, porquanto determina a atualização das
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coisas, as quais não podem escolher determinar-se a si próprias. Nada é, portanto,
contingente.
Julgo que o pretexto para a composição da “Ética” foi o facto de o percurso para a
sabedoria parecer ser naturalmente sondado pelo Homem. Há uma disposição orgânica
para a beatitude, para o conhecimento, como que um regresso imperativo à génese, uma
orientação natural para o Ser.
Para sabermos como envergar pelo caminho da felicidade, temos de entender o mundo
verdadeiramente. Não nos podemos deixar enganar pela imaginação, por desatualizadas
conceções que não servem realmente o universo. É necessário compreender Deus
através do que nos é acessível.
Ao longo da História, o ser humano conjurou teorias que servem e resultam das suas
próprias vontades, cego pela noção de que a sua existência é diferente, ou melhor, ou
mais valiosa do que qualquer outra coisa. Tudo está diante dele, todos os apetites lhe
são saciados por meio da natureza e, assim, julgou haver um ente cujo objetivo era, de
certa forma, servi-lo. Enquanto humanos, pensamos que a natureza está ao nosso
serviço, que existe para nós e podemos instrumentalizá-la, e essa é a vontade de Deus,
pois somos fruto precioso da sua criação.
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Devemos compreender a verdadeira causa do mundo, nossa também e, deste modo,
compreender a sua ordem. Deus não nos serve, nem à sua própria vontade. Deus e as
coisas, são necessariamente. A crítica aqui não está em Deus, na fé ou nos crentes, mas
na superstição dos homens e a sua manipulação do divino.
Julgo que, por estas razões, é incrivelmente insensível referirmo-nos a Espinosa como
um egoísta ético. Esta conclusão recorre de uma interpretação vazia e apática da obra e,
francamente, da realidade. A compreensão de que o Eu é apenas uma conceção
protetora da consciência humana abre-nos a porta para a realidade da empatia, da
igualdade, do outro que sou eu, que é ele, que é a folha, e o gato, e o sol e as estrelas. A
solidão e a agressão não têm lugar neste mundo. O que é verdadeiramente bom para
mim, ou seja, o que devo procurar de acordo com Espinosa, é o bem comum. Pois a
felicidade do outro é minha, como me pertence também a sua dor, aparente desordem
cruel do cosmos, a qual, no fluxo inevitável do devir, me atormentará de igual modo
eventualmente.
Existe, no entanto, um conforto escoante destas palavas. De acordo com esta teodiceia,
é inevitável um encontro pessoal com Deus e um respeito florescente para com tudo o
que existe. As repercussões éticas e morais são imensas, a nível pessoal, político,
ecológico e não só. Apela a um questionamento acerca da nossa relação com os outros e
com o nosso meio. É, na realidade, a antítese do egoísmo do qual muitas vezes é
acusado, pois ensina-nos que devemos respeitar a totalidade, e que o encontro com a
felicidade individual advém da procura da felicidade do todo.
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Bibliografia
Aristóteles. Metafísica. Traduzido por Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70,
2021.
Bruno, Giordano. Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos. Traduzido por Aura
Montenegro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.
Espinosa, Baruch. Ética. Traduzido por Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Relógio d'Água,
2020.
Graham, Daniel. The Texts of Early Greek Philosophy: The Complete Fragments and
Selected Testimonies of the Major Presocratics. Vols. I-II. Cambridge:
Cambridge Uiversity Press, 2010.
Jaeger, Werner. The Theology of the Early Greek Philosophers. Traduzido por Edward
S. Robinson. London: Oxford University Press, 1936.
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