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A RATIO FIDEI E A EXISTÊNCIA DE DEUS EM SANTO ANSELMO DA

CANTUÁRIA A PARTIR DA OBRA MONOLÓGIO

Arthur Ayres Messerchmidt


Alceu Cavalheiri

Resumo: Pretende-se identificar a ratio fidei desenvolvida por Anselmo de Cantuária, partindo
de sua obra Monológio, com o objetivo de a evidenciar não como fé subjetiva, mas as razões
da fé na qual se crê. O estudo será realizado por meio de uma revisão bibliográfica, da obra de
Anselmo e de outros autores. Verificou-se que por meio da razão, do conceito de gradação e de
contingência do mundo, é possível demonstrar a existência de Deus. Conclui-se que, por meio
da ratio fidei e sem a necessidade de recorrer à Sagrada Escritura, é possível provar a existência
de Deus.
Palavras-chave: Monológio. Ontologia. Razão.

Considerações iniciais

No Monológio, Anselmo1 busca, pois, através dos predicativos e atributos que se possui
de Deus, provar a sua existência inclusive para o não crente, por meio de provas a posteriori2
ou cosmológicas. Assim, no Monológio, Anselmo procura a fides quae, ou seja, a fé na qual se
crê e não a fides qua, ou seja, a fé com a qual se crê (Tomatis, 2003, p. 12), provando que, a
partir do mundo, se chega até Deus. Anselmo explora a natureza divina segundo os termos de
grandeza e de necessidade.
O intuito da presente pesquisa está em identificar, a partir de sua obra Monológio, a
ratio fidei, razão da fé, não enquanto uma fé subjetiva, mas como razões sólidas da fé na qual
se crê, além de provar a existência de Deus com base na observação do mundo. A metodologia
empregada consistirá em uma revisão bibliográfica da obra supracitada, bem como de
pesquisas, escritos e comentários de outros autores acerca da obra de Anselmo.

1 A ratio fidei e as provas da existência de Deus, a partir do Monológio


Acadêmico do II semestre do Curso de Graduação em Filosofia da Faculdade Palotina de Santa Maria /RS. E-
mail: arthurmesserchmidt@outlook.com

Docente do Curso de Graduação em Filosofia (Disciplina de Estudos Dirigidos em Filosofia) da Faculdade
Palotina de Santa Maria/RS. E-mail: alceucavalheiri@gmail.com
1
Monge beneditino, filósofo e arcebispo da Cantuária (1093-1109). Reconhecido por ser o fundador da
Escolástica, elaborou um argumento ontológico para a existência de Deus.
2
Conhecimento que se baseia em evidências empíricas e experiências sensoriais para chegar às conclusões ou
sínteses.
A pedido de irmãos monges, Anselmo decide, através de escritos, tornar evidente a
existência de Deus, por meio de argumentos de cunho racional, sem a necessidade de recorrer
às Sagradas Escrituras (sola ratione), porém, de forma que não haja contradição. Assim, escreve
o Monológio, recorrendo às razões da fé, para provar a existência de Deus.

1.1 Provas a posteriori da existência de Deus

No Monológio, Anselmo afirma que tudo o que se pode falar sobre Deus é dito através
da sua substância, não segundo os acidentes ou contingências, como aplicado às criaturas. Desta
forma, predicação que se possui acerca da natureza suprema será sempre substancial ou de
relação3, de forma que, segundo Vasconcellos, suas características são intrínsecas à Sua
natureza, de forma que não as pode separar dele (1996, p. 6). Logo, tudo o que se afirmar sobre
Deus é sempre relacionado à Sua natureza suprema e à Sua relação única com o mundo criado.

1.1.1 Prova do valor ou gradação e experiência dos bens particulares

Os seres humanos desejam bens particulares em suas vidas. Os desejos por esses bens
são naturais e inerentes à natureza humana. No entanto, dado que não todos os bens são
igualmente bons, os seres humanos têm uma tendência natural a buscar um bem que seja a fonte
de toda bondade ou um princípio de bondade supremo (Cordeiro, 2009, p. 2). Anselmo sugere
que as coisas no mundo têm valor em diferentes graus 4 e, por isso, há uma necessidade de um
padrão supremo de valor, que é Deus. Esse argumento baseia-se na ideia de que o valor é um
conceito objetivo e que sua existência requer uma referência absoluta.

1.1.1.1 Conceito de bondade


Neste raciocínio, compreende-se que todas as coisas boas convergem em torno da
bondade. Logo, há, pois, um ser que é bom por si próprio e que todos os outros bens procedem
dele. Ele é, assim, soberanamente bom e sumamente superior a tudo o que existe. Este Ser
Supremo é o único a existir por si próprio, de forma que todo o restante da natureza procede

3
Compreende-se a relação existente na Trindade, do Pai, do Filho e do Espírito, onde os três estão unidos
mutuamente entre si e iguais, sem que nenhum deles exceda ao outro e constituam, assim, uma essência suprema
única – Cf. Capítulo LIX, p.79.
4
. Com o uso da razão é possível afirmar que todas as coisas que possuem uma relação de superioridade,
inferioridade ou de igualdade são assim em virtude de algo comum.
dele, logo, ele comunica essência a todo o resto – ele é o ser por excelência - de forma que os
demais seres, embora existam, quando comparados a ele, praticamente, não existem.

1.1.1.2 Conceito de grandeza e perfeição

Evidencia-se por Anselmo no Monológio5, que a ideia de “bom” está relacionada à


grandeza. Assim, aquilo que é soberanamente bom, também é soberanamente grande6
Compreende-se, que aquilo que é grande, também é perfeito. Ademais, na mesma comparação
explicitada no conceito de bondade, tudo o que é grande, é assim em virtude de algo, sendo que
existe um ser grande por si. Quanto maior é o ser, mais digno ele também é, de forma
semelhante como acontece com a sabedoria (1973, p.15). A Natureza suprema é, assim, tudo o
que é melhor ser, do que não ser.

1.1.2 Tudo o que existe foi gerado por algo: um causa necessária

Há uma evidência de que tudo no mundo é contingente 7, todavia a natureza suprema


não deriva de outra e não é posterior a si mesma ou menor do que ela própria. Logo, ela não
pode ter sido feita nem por si mesma, nem por outro ser. Também, nem ela nem outro ser é a
matéria donde tirou existência. Seguindo essa lógica, chegaria à conclusão de que essa natureza
deveria considerar-se ‘nada’, ou se é algo, seria algo que existiria do nada pelo nada. Porém,
seguindo a linha de raciocínio de Anselmo, isso não se aplica à natureza suprema, visto que
afirmar isso8, seria o mesmo que dizer que tudo o que existe não existe.
Ainda, é incompreensível que algo exista pelo poder do nada, pois do nada, nada vem a
ser. Também não poderia ter sido criada por sua própria força, pois essa força existiria antes à
natureza suprema e essa força seria superior e ela e anterior a mesma. Dessarte, a natureza
suprema ou Deus é uma entidade única e independente, que não pode ser explicada por causas
materiais, sendo causa eficiente de tudo que é criado. A ideia subjacente é que a natureza
suprema, se fosse composta de matéria, seria limitada e sujeita a mudanças, uma vez que os
objetos materiais estão sujeitos às transformações e degradação ao longo do tempo. Portanto,
para manter a concepção de Deus como a entidade absolutamente perfeita e imutável, é

5
Cf. Capítulo II.
6
Compreende-se no sentido qualitativo e não quantitativo.
7
Depende de causas anteriores, ou seja, de causa e efeito.
8
Ou seja, que aquela natureza sem a qual não existe qualquer outra coisa seria nada.
necessário negar que Ele tenha qualquer elemento material em sua essência. A natureza
suprema, assim, produziu de si mesma e do nada 9, o imenso universo das coisas. Esta natureza
é, assim, a primeira da primeiríssima causa, que não possui nenhuma causa e originou tudo.

1.2 De que forma essa natureza suprema é Una e Trina

É correto afirmar que o verbo10 da natureza suprema é mesma coisa que a natureza
suprema, visto que se nada que ele fez (a não ser por si mesmo) e que tudo o que ele fez foi
feito através da sua palavra, logo, ela não poderia ser algo diferente daquilo que ele mesmo é,
não sendo, pois, uma criatura. É, pois, próprio de um (verbo) proceder do outro (natureza
suprema), de forma que é acessível afirmar que um nasce 11 do outro. O verbo da natureza
suprema procede de maneira tão absoluta apenas da essência deste (tão semelhante a ele), como
nenhum filho procede tão completamente da essência do pai.
Dada essa perfeita comunhão entre o pai e o filho, é possível perceber o sentimento de
amor recíproco entre eles. Assim, o espírito supremo ama a si mesmo (como o espírito supremo
recorda a si mesmo e compreende a si mesmo, assim, igualmente, ama a si mesmo) e ama ao
outro com o mesmo amor. Como o espírito supremo ama a si mesmo, da mesma forma que
recorda de si mesmo e compreende a si mesmo, o amor dele é tão grande como ele mesmo.
Visto que só pode ser igual ao espírito supremo apenas o próprio amor dele e este amor é o
próprio espírito supremo. Esse amor não é outra coisa senão aquilo que é o pai e o filho (isto é,
a essência Suprema) e como não é possível haver várias essências supremas, conclui-se que o
pai, o filho e o amor de ambos são uma essência única e suprema. Esse amor emanado 12 pelos
dois, é o Espírito Santo.

Considerações finais

9
A ideia básica é que, antes da criação do universo, não havia nada além de Deus, e Ele trouxe tudo o que existe
à existência a partir do nada, por meio de Sua vontade. Isso implica que o universo não tem uma existência
independente ou eterna, mas depende totalmente da vontade de Deus para existir. Por meio Dele, o “nada” tornou-
se “algo”.
10
Entretanto, esse verbo não é o mesmo das criaturas que pressupõe uma recordação. É, pois, um verbo coeterno,
que se recorda eternamente de si mesmo e compreende a si mesmo.
11
Não como algo criado, mas como engendrado.
12
O verbo, ao ser examinado, mostra com toda evidência ser prole daquele donde procede porque apresenta uma
imagem imediata e clara do seu genitor. O amor, por sua vez, nega abertamente ser prole, porque, embora se
compreenda que procede do pai e do filho, entretanto, não apresenta imediatamente tão evidente semelhança com
aquele do qual deriva, ainda que a relação que os une informe que é completamente aquilo que são o pai e o filho.
Anselmo é conhecido por seu esforço em conciliar a fé com a razão, e o Monológio é
um exemplo de sua tentativa de demonstrar a existência de Deus por meio de argumentos
racionais e filosóficos – e reconhece a importância da fé13 na compreensão mais profunda de
Deus. Isso reflete a ideia de que a fé e a razão podem coexistir e se complementar na busca de
Deus.
O autor considera a gradação e a contingência no mundo como evidências que podem
levar à conclusão da existência de Deus. A ideia é que a existência de coisas que variam em
graus de perfeição e que dependem de outras coisas para sua existência sugere a existência de
um Ser Supremo e necessário. Esta é, pois, a tentativa de provar a existência de Deus apenas
pelo uso da razão no Monológio. Todavia, posteriormente, ele escreve o Proslógio, na tentativa
de elaborar um único argumento, de mais fácil compreensão, para provar a existência de Deus
e concluir o desenvolvimento do argumento ontológico, que desencadeou críticas e
contribuições para a filosofia e para a teologia cristã.

Referências bibliográficas
CANTUÁRIA, Santo Anselmo de. Monológio. São Paulo: Abril S.A Cultural e Industrial,
1973.

CORDEIRO, Andréa Maria. A interpretação do argumento Ontológico segundo Leibniz.


Intuitio, Porto Alegre, v. II, n. 03, p. 56-65, 2009. Disponível em:
<https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/5994#:~:text=A%20IN
TERPRETA%C3%87%C3%83O%20DO%20ARGUMENTO%20ONTOL%C3%93GICO%2
0SEGUNDO%20LEIBNIZ,-Autores&text=Ele%20busca%20passar%20do%20simples,demo
nstrar%20previamente%20a%20sua%20possibilidade.>. Acesso em: 26 set. 2023.

STREFLING, Sérgio Ricardo. O argumento ontológico de Santo Anselmo. Porto Alegre,


1997.

TOMATIS, Francesco. O argumento ontológico: a existência de Deus de Anselmo a


Schelling. São Paulo, 2003.

VASCONCELLOS, Manoel. Fé e Razão no Monológio de Anselmo de Aosta. Dissertatio,


Pelotas - RS, v. I, n. 04, p. 71-83, 1996. Disponível em:
<http://www2.ufpel.edu.br/ich/filosofiamedieval/pdf/anselmo_ferazao.pdf>. Acesso em: 25
set. 2023.

13 Ratio fidei

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