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DEUS

y a teologia, o estudo da doutrina de Deus é normalmente chamado


I I de teologia própria. Este é o assunto principal da teologia, Deus
-L 1 na história de suas ações .38 Vamos aqui considerar a questão da
existência de Deus, quem ou como é Deus e suas qualidades essenciais,
chamadas de atributos. Este conhecimento acerca de Deus é imprescind í ¬

vel para a firmeza da fé cristã e para um relacionamento correto com ele.


O car áter da nossa religião e a firmeza da nossa teologia dependem da com ¬

preensão que temos de Deus.

I . A CRENÇA NA EXISTÊNCIA DE DEUS


A crença na existência de Deus é um pressuposto básico da teologia.
Partimos da convicção de que Deus existe e tem relações com o mundo
e conosco. Contudo, para clareza do assunto, precisamos considerar os
fundamentos dessa convicção. Esses fundamentos são encontrados princi ¬

palmente no fato da crença universal em Deus, nas obras da natureza e nas


Escrituras.

A. A Crença como Fenômeno Universal


A crença na existência de uma divindade (deus ou deuses) é um
fenômeno universal. Todos os povos, em qualquer tempo e cultura,
manifestam sua crença em um ser sobrenatural e supremo, de quem
dependem e a quem temem. Essa crença não se adquire, necessariamente,
nas escolas, nem depende da tradição dos pais. Ela origina-se na mente e na

38 BARTH, Karl. Introdução à teologia evangélica. São Leopoldo: Sinodal, 1981, p. 8.


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alma das pessoas e desenvolve-se pela observação, reflexão e experiência ao
longo da vida. Por isto se diz que a crença em Deus é de natureza intuitiva e
racional .
Deus se mostra real para o ser humano através das obras da natureza,
das suas ações na história e na própria consciência humana, imprimindo
nela aspectos da sua lei moral (revelação geral) (SI 19.1; Rm 1.19; At 14.17).
Assim, o homem não pode viver sem a ideia de Deus (cf. Ec 3.11; At 17.27,28).
Daí ser natural o comportamento religioso das pessoas.
Diz-se também que a existência de Deus é uma verdade primá ria ou
fundamental. Entende-se por verdade primá ria ou fundamental aquela que
se caracteriza pela universalidade, necessidade e auto-evid ê ncia . Quer dizer,
uma verdade que é aceita universalmente, que se impõem como necessá ria
para que se possam explicar as demais realidades, e que se mostra por si
mesma, sem depender de uma prova prévia, dada pelo homem, para que
seja aceita. Assim é a existência de Deus: ela é percebida universalmente,
necessá ria para a devida compreensão de todo o resto, e se prova por si
mesma.
Contudo, o pecado tem obscurecido o coração e o entendimento da
humanidade concernente a Deus. Por isto, muitos têm sérias dúvidas acerca
da existência de um ser divino e supremo, e outros chegam até a negar a
existência da realidade divina. Nesse contexto de incertezas e negação da
divindade, alguns teólogos elaboraram argumentos racionais em favor da
existência de Deus.

B. Argumentos Racionais da Existência de Deus


Os principais argumentos são cinco. Os dois primeiros se baseiam
na natureza do universo, outros dois, na natureza humana, e o último na
história.

1. Argumento cosmol ógico.


O nome vem de cosmos (mundo). Este argumento foi desenvolvido
por Tomás de Aquino (1225-1274). O raciocínio leva em conta a lei de causa
e efeito. Afirma que tudo quanto existe tem uma causa adequada e suficiente.
Ora, o mundo existe, e é efeito de uma causa que, para ser adequada e
suficiente, tem de ser infinitamente grande, inteligente e poderoso. Essa
causa é Deus.
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Este argumento tem recebido críticas por parte daqueles que


afirmam que o universo originou-se por si mesmo, através de um processo
de evolução, sem uma causa maior. Mas a evolução não explica a causa
primeira do universo. Trata apenas do processo de desenvolvimento de algo
já existente, e não do fator que deu origem a esse algo e ao processo. Para
muitos, o argumento cosmológico é válido.
A Bíblia d á respaldo a ele ao declarar que as coisas criadas e a sub ¬

sistência delas apontam para a existência, a grandeza e a providência do


Criador (SI 19.1-6; 139.14; Rm 1.20; Mt 6.26-30). Contudo, o argumento não
é suficiente para justificar a ideia cristã de um Deus que se revelou na história
para salvar o homem.

2. Argumento teleológico.
Telos significa fim , propósito, desígnio. O argumento teleológico
baseia-se no propósito ou desígnio que se verifica na ordem das coisas
criadas. O universo revela organização, ordem, harmonia, propósito,
indicando assim a existência de um ser inteligente que o teria planejado e
criado conforme os seus desígnios.
Este fato foi ilustrado, pensando-se num navio carregado, navegando.
Ao vermos esse navio, jamais poderemos concluir que ele teria se originado
de um amontoado de materiais jogados ao mar. Ao contrá rio, vamos
entender que ele foi planejado e construído por alguém inteligente, para
um propósito definido. Assim é o mundo, cuja organização e propósito
denunciam um planejador e construtor. Ele não pode ser resultado do acaso.
Ao contrá rio, uma mente divina, grande em poder e sabedoria, deu origem
a todas as coisas, com um propósito. A Bíblia afirma: O Senhor fez tudo
com um propósito (Pv 16.4).

3. Argumento ontológico.
Os dois primeiros argumentos têm por base a natureza do universo.
Este e o próximo argumento apóiam -se na natureza humana. Ontos
significa ser. Este argumento foi desenvolvido por Anselmo (1033-1109).
Baseia-se nas ideias abstratas necessá rias que vêm inevitavelmente à mente
humana. Ideia necessá ria é aquela que vem naturalmente à consciência
à medida que a mente se desenvolve em suas relações com o mundo.
O homem tem a ideia da existência de um ser absolutamente perfeito,
superior e infinito.
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Para fundamentar a ligação da ideia abstrata com a própria realidade,


argumenta-se que o homem tem percepções do mundo objetivo, subjetivo e
espiritual (religioso). Em todas essas percepções, há sempre três elementos:
aquele que percebe, o ato de perceber e a coisa percebida. Assim, como
acontece nos outros casos, a percepção no mundo espiritual, de um ser
perfeito e infinito, aponta para a existência de tal realidade. É uma ideia
intuitiva e universal, colocada no homem pelo Criador (cf. Ec 3.11). Este
argumento também tem sido criticado. Mesmo assim tem atraído a atenção
de filósofos e de cristãos.

4 . Argumento moral .
Este raciocínio baseia-se na natureza moral do homem. O ser humano
tem consciência do bem e do mal, e do seu dever de evitar o mal e praticar
o bem (Rm 2.14,15). Essa consciência moral põe o sujeito sob absoluta
obrigação de obedecer às ordens, sem desculpas, como um imperativo
categórico . O homem sente que deve responder por tudo que faz.
O caráter moral do ser humano se reflete no seu convívio social, onde
ele sabe que há uma ordem moral a ser obedecida. Mas ele sabe também
que neste mundo o bem e o mal não são proporcionalmente retribu ídos. Há
uma disparidade entre a conduta de alguns e o que sucede com eles. Tal de ¬

sequilíbrio demanda um ajuste futuro. O homem crê nessa justiça e espera


por ela. Ele tem “ fome e sede de justiça (Mt 5.6).
A natureza moral do ser humano, então, indica a existência de um
ser soberano, que legisla para o homem e exige obediência, e que é também
poderoso e perfeito para converter em realidade os ideais de justiça e as
esperanças humanas.

5. Argumento histó rico.


Este último argumento baseia-se nos fatos da história. Primeiro,
notamos a pr ática dos cultos dedicados à divindade, comum a todos os
povos e tribos da terra. Este sentimento religioso pode indicar a existência
daquele com quem o homem tenta se relacionar (At 17.27).
Mas notamos também os fatos ocorridos na história de Israel,
explicados e aceitos como atos de Deus. Pois, como entender aqueles acon ¬

tecimentos portentosos na vida de Israel senão como atos de Deus mesmo?


Como explicar as profecias e seus exatos cumprimentos, a menos que se
admita que Deus tenha revelado algo aos profetas? De fato, os vest ígios de
Deus podem ser encontrados na história.
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Todos esses cinco argumentos são válidos e coerentes com a revelação


bíblica. Eles podem ajudar as pessoas na sua fé, dando a elas um suporte
racional para aquilo que elas creem por intuição, e assim, fortalecer suas
convicções.

C. A Existência de Deus na Bíblia


Os escritores bíblicos não tiveram o propósito de provar a existência de
Deus. O objetivo deles foi narrar as ações redentoras de Deus na história da
humanidade. A existência de Deus para eles foi um pressuposto fundamental
de tudo que eles disseram.
A Bíblia começa com Deus já existindo e criando o universo e todas as
coisas da natureza. No princípio, Deus criou os céus e a terra (Gn 1.1). Da
ação criadora de Deus, os escritores bíblicos passaram a narrar a história da
rebelião da humanidade contra Deus, e, concomitantemente, a descrever os
atos redentores de Deus.
A maior parte da história bíblica (AT) se refere ao povo de Israel,
formado e instru ído por Deus com o propósito de servir de agente na
história da redenção. Outra parte ( NT) descreve a vida e as obras de Cristo,
o descendente prometido a Abraão, que veio para abençoar as famílias da
terra; descreve também a formação e expansão da igreja, o novo povo de
Deus, constitu ído por aqueles que creem Cristo, de todas as nações.
Ao descrever as ações e os propósitos de Deus e seus atributos,
as Escrituras suscitam a fé naqueles que ouvem a sua mensagem com
sinceridade de coração (Rm 10.17); ela também instrui, corrige e aperfeiçoa
a nossa crença e vida com Deus. Enfim, as Sagradas Letras podem tornar
o homem sábio para a salvação, pela fé em Cristo Jesus, e preparado para
agir segundo a vontade de Deus (2Tm 3.15-17). A Bíblia, então, é a fonte
primordial do conhecimento de Deus e seus propósitos.

D. Posições Divergentes Acerca de Deus


Como vimos, a existência de Deus é uma verdade admitida e vivenciada
universalmente, evidenciada nas obras da natureza, na consciência humana e
gloriosamente testemunhada nas Escrituras. Mesmo assim, alguns assumem
posições divergentes, negando a existência de Deus ou distorcendo ideias
acerca de Deus. Apresentamos a seguir quatro dessas posições.
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1 Ate ísmo.
Os que negam a existência de Deus não nasceram ateus. Provavelmen ¬

te eles também tiveram alguma percepção intuitiva e racional da divindade,


como é natural a todos os seres humanos. Mas houve um afastamento dessa
percepção intuitiva, motivado por fatores internos e externos. Com uma
propensão para uma vida de liberdade , sem Deus , alguns buscaram jus ¬

tificativas para a sua opção de vida; outros foram fortemente influenciados


por fatores oriundos do seu próprio meio social.
Convém distinguir dois tipos de ateus: os práticos e os teóricos.
Os ateus por motivos práticos são os que negam a existência de Deus por
conveniência própria. Preferem viver como se Deus não existisse. É como diz
o salmista: “ O insensato diz no seu coração: Deus não existe” (SI 14.1). Eles
não têm uma teoria razoável para explicar a não existência de Deus; só não
querem pensar que Deus existe, porque isto atrapalha o seu estilo de vida.
Por outro lado, os ateus por razões teóricas negam a existência de
Deus por uma questão de convencimento racional. Eles têm uma explicação.
Entretanto, seus argumentos falham em algum lugar, ou nas premissas
ou nas conclusões ou em ambas. Porém, como não percebem isto, ou não
querem perceber, eles têm a convicção de que estão com a verdade, ao menos
no plano racional, embora, nem sempre, no nível da consciência. Mas
convém ressaltar que há mais argumentos racionais em favor da existência
de Deus do que em sentido contr á rio.

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2 Materialismo.
O materialismo nega qualquer conhecimento válido no campo religioso,
pois para o materialista tudo é matéria ou alguma manifestação dela. Nega
a realidade do espírito. Explica todos os fenômenos mentais ou espirituais
como propriedades e funções da matéria. Dizem: O cérebro tem fibras para
o pensamento como as pernas têm fibras para o movimento” ; ou “ o cérebro
segrega o pensamento como o fígado segrega a biles” . Para o materialista não
existe Deus, nem diabo, nem anjos, nem céu, nem inferno, nem imortalida ¬

de, mas apenas matéria e força. Ele é um ateu, porém, materialista.


Mas as Escrituras e a experiência humana testificam de algo além
da matéria que integra a realidade. A matéria não é a ú nica realidade, nem
mesmo a mais significativa no conjunto das coisas. A própria atitude do
homem, inclusive a dos materialistas, em face de valores imateriais da vida ,
denuncia a falácia do argumento materialista.
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3. Panteísmo.
No panteísmo não há um Deus pessoal nem revelação especial. Deus é
tudo, tudo é Deus. Deus é a inteligência impessoal e a vida que penetra todo
o universo. Portanto, o panteísta nega a existência de um ser divino distinto
da natureza; Deus é a natureza. Mas a Bíblia faz clara distinção entre Deus e
a criação, sendo esta oriunda e dependente do Criador. O panteísmo é, pois,
uma forma de ateísmo.

4. Agnosticismo.
O agnosticismo afirma que o homem não pode conhecer a realidade
das coisas. Não nega que haja uma realidade divina, mas nega que dela
possamos saber alguma coisa. Portanto, o agnóstico não pode afirmar
que Deus existe nem que não existe. Mas isto é um argumento falho.
Nós aprendemos com a Escritura que o homem foi feito à imagem e
semelhança de Deus, e isto implica em o ser humano ser capaz de conhecer
as manifestações do Criador e ter comunhão com ele (Rm 1.19-21).
Todos esses argumentos contrá rios à existência de um Deus pessoal,
que se revelou e que se deixa conhecer pelo homem, podem ser superados
pelo conhecimento certo que nos vem da revelação especial e da própria
experiência, conhecimento esse elaborado e explicitado na teologia.

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