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Palavras chaves:

Salmo 23, Deus, Epistemologia, Pressuposições

Assuntos:
Cosmovisão Reformada

Rei e Pastor:
O Senhor na visão e vivência dos salmistas (4)

Provas da existência de Deus?

As Escrituras não gastam tempo discutindo sobre as “provas da existência de


Deus”, antes, nos apresentam um Deus que fala e age. A Bíblia parte do
pressuposto da existência de Deus. Deus é o Senhor. Ele é um ser necessário e
concreto.1

Muito de o seu agir é agenciado por sua palavra que cria, recria, sustenta e
transforma (Gn 1.1/Gn 2.4).2 Antes de tratar da matéria, as Escrituras iniciam com o
Deus que cria e depois, narra o que realizou.

As primeiras palavras das Escrituras fornecem o fundamento de toda a nossa


compreensão teológica. No primeiro verso de Gênesis temos uma profunda
proposição ontológica e epistemológica.3 A negação dessa declaração revelacional:
“No princípio, Deus” -, acarreta, um caos em nossa epistemologia, possibilitando a
fabricação de um deus esvaziado de seu poder e glória, produto de nossa
imaginação4 o, que pode pavimentar o caminho para um total ateísmo.
1
Cf. Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, São Paulo: Vida Nova, 2018, p.
72.
2
“Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o SENHOR Deus os criou” (Gn 2.4).
3
Veja-se palestra que fiz na 5ª Conferência Teológica do Seminário JMC. Palestra ministrada no dia
28.04.2023:
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EB&sclient=gws-wiz-serp#fpstate=ive&vld=cid:1c39c225,vid:XPHDYqozigQ (Consultado em 01.05.2023)
4
“Tanto nas épocas antigas como hoje, os ídolos se conformam à imaginação de quem os cria. Os ídolos têm,
com o verdadeiro Deus, semelhanças o bastante para serem plausíveis, mas diferem no sentido de que nos
deixam confortáveis e com a satisfação de manipular os substitutos que construímos” (Vern S. Poythress,
Redimindo a Matemática: uma abordagem teocêntrica, Brasília, DF.: Monergismo, 2020, p. 20-21). “Essa é
a essência da idolatria: substituir a realidade por uma imitação. Distorcemos a verdade do Senhor e
reconfiguramos nosso entendimento acerca dele de acordo com nossas próprias preferências, ficando com um
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A idolatria é a carência de Deus em rebeldia contra o Deus das Escrituras


revelado em Cristo. Um teísmo sem Cristo é uma religião vaga, sem sentido,
desprovida de significado e sem salvação. Por sua vez, o caminho natural da
idolatria, não é um teísmo, ainda que vago, mas, o deísmo ou ateísmo.

Um dos fundamentos da doutrina cristã é a certeza de que cremos em um Deus


soberano,5 Todo-Poderoso6 que nos ama e se dá a conhecer pessoalmente a nós.

Sem a revelação de Deus seria impossível crer ou falar de Deus. 7 No entanto, nós
podemos conhecê-lo genuína e pessoalmente. Nesse sentido, exulta o salmista:
“Conhecido ([d;y") (yada’)8 é Deus em Judá; grande (lAdG") (gadol) (= supremo), o
seu nome em Israel” (Sl 76.1).

O Senhor em sua Palavra, além de nos revelar facetas sublimes de sua natureza,
nos dá a conhecer aspectos de seu propósito eterno, que envolve o seu amor que
antecede à nossa criação, o seu cuidado para conosco nos instruindo como
devemos viver, a correção quando nos desviamos, e, a garantia final de nossa
salvação futura já assegurada.

Aqui vemos uma diferença bastante significativa entre a narrativa/concepção


bíblica e toda filosofia antiga. A diferença ontológica está no fato de que Deus se
distingue da matéria criada. Ele, somente Ele, é necessário, essencial, eterno e
absoluto; de nada precisa. Toda a criação não é necessária nem se sustenta; é
contingente e essencialmente sustentada para que possa existir.

Há também uma diferença epistemológica porque os escritores bíblicos não


estão preocupados em explicar, argumentar, provar ou demonstrar a existência de
Deus, antes, creem que Ele existe, é autônomo e autopoderoso.9 Todo o
conhecimento possível advém desse mesmo Deus que se revela.
Deus que é tudo, exceto santo” (R.C. Sproul, A santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 205).
5
"33Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os
seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! 34 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem
foi o seu conselheiro? 35 Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? 36 Porque dele, e
por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!" (Rm 11.33-36).
6
“No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele
o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “... O meu conselho permanecerá de
pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e,
segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa
deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos
herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua
vontade” (Ef 1.11).
7
“A revelação cristã não é somente necessária para que se possa crer no Deus da religião cristã, como também
não tem sentido imaginar que se possa conhecer a existência desse mesmo Deus de outro modo que não pela
fé em sua própria revelação” (Étienne Gilson, O Filósofo e a Teologia, São Paulo; Santo André, SP.: Paulus;
Academia Cristã, 2021, p. 88).
8
([d;y") (yada’). Este conhecimento envolve a capacidade de discernir (Sl 4.4), experimentar (Sl 9.11; 20.7;
25.4.14; 119.75; 139.1,2,4; 139.14), ver (Sl 16.11); pensar/perceber (Sl 35.8); perfeito conhecimento (Sl
37.18; 44.21; 50.11; 69.5; 94.11; 103.14; 139.23; 142.3); conhecimento íntimo e pessoal (Sl 51.3);
intimidade/proximidade (Sl 55.13; 88.18); compreender (Sl 73.16); aprender (Sl 78.3); ensinar (Sl 90.12);
fazer notório/manifestar (Sl 98.2; 103.7; 145.12).
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Transcendência e imanência

Desta forma, afirmamos a transcendência de Deus, negando com isso o


panteísmo; e, também afirmamos a imanência de Deus, partindo de um fato real: a
Revelação de Deus, negando, portanto, o deísmo. A fé cristã sustenta a criação de
todas as coisas pela vontade livre, que nos é inacessível, e soberana de Deus e, ao
mesmo tempo, a manutenção dessa realidade por meio deste Deus pessoal e que
se revela, se relacionando conosco.

A Bíblia ensina essas duas verdades:

1) O Céu e a Terra não podem conter Deus: 1Rs 8.27; Is 66.1; At 7.48,49.

2) Todavia, Ele sustenta os Céus e a Terra, estando especial e qualitativamente


próximo daqueles que sinceramente o buscam: Sl 139.7-10; Is 57.15; Jr
23.23,24; At 17.27,28. Calvino exulta: “A glória de nossa fé é que Deus, o
Criador do mundo, não descarta nem abandona a ordem que Ele mesmo no
princípio estabelecera”.10

Apresentando a questão de outro modo, podemos dizer que o nosso Deus é


soberano sobre todas as coisas (Transcendente) e onipresente, estando presente
em toda criação (Imanente).11

Foi com este Deus que nossos primeiros Pais se relacionavam, mas, optaram por
rejeitarem-no, justamente porque tinham a pretensão de serem iguais a Ele.

Quando voltamos ao livro de Gênesis, vemos em Adão o conceito de pecado,


limitação, transitoriedade e, paradoxalmente, o desejo de ser igual a Deus; portanto,
presunção e arrogância.
Quando contemplamos a cruz de Cristo, deparamo-nos com o Deus encarnado,
o Senhor glorioso e o Servo sofredor, onde há plenitude de conhecimento e de
sabedoria (Cl 2.3) que ultrapassam totalmente a nossa capacidade de compreensão.

Por maravilhosa graça, podemos então ter um verdadeiro conhecimento de Deus


e da realidade. A epistemologia cristã, como qualquer outra, parte do pressuposto de
que há um mundo real e, que este mundo é acessível. Não enxergamos
simplesmente miragens, antes, temos contato com a realidade que é autoevidente.
Por isso, mesmo admitindo que as percepções da realidade variam devido a
questões intelectuais, físicas, emocionais e circunstanciais, podemos, assim mesmo
conhecer, e chegar a um grau bastante consistente de senso comum.

9
Ele é “independente e verdadeiramente autopoderoso”, sintetiza Turretini. (François Turretini,
Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 334). Do mesmo modo,
veja-se também a p. 547. Veja-se o instrutivo e edificante capítulo de MacArthur: John F. MacArthur,
Jr., Deus: face a face com Sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 91-107.
10
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4-5), p. 241.
11
Veja-se: John Frame, Teologia Sistemática, São Paulo: Cultura Cristã, 2019, v. 1, p. 92ss.
Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (Sl 23) - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 4

Isso não significa que possamos esgotar o mundo real ou, que em todos os
pontos do conhecimento teremos unanimidade, antes, que é possível submeter o
nosso conhecimento ao que é considerado absoluto, podendo, assim, sujeitar as
nossas compreensões a um aperfeiçoamento constante. Contudo, conforme
escrevemos em outro lugar, uma visão conjunta, considerando as visões diferentes
e complementares de pessoas, lugares e épocas diferentes, ainda que não esgotem
o fenômeno, podem nos ajudar a obter uma compreensão mais rica e completa.
Aliás, há ciência justamente porque pensamos haver essa possibilidade.

A ciência é transitória e, justamente é transitória por ser uma ciência humana, em


construção e depuração.12 No entanto, talvez falte a ela a consciência de sua própria
limitação. Ela pouco se conhece. Como escreveu Morin: “A questão ‘o que é a
ciência?’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica”.13

Maringá, 01 de maio de 2023.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

12
Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se
também: K.R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44),
1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper, O Realismo e o objectivo da ciência, (Pós-Escrito à Lógica da
Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A
Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).
13
Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 21. À frente:
“A questão ‘o que é ciência?’ não tem resposta científica. A última descoberta da epistemologia anglo-
saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso quer
dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto de ciência, e o cientista,
sujeito” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 119). “A ciência não controla sua própria estrutura
de pensamento. O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece. Essa ciência que
desenvolveu metodologias tão surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela
externos, não dispõe de nenhum método para se conhecer e se pensar” (Edgar Morin, Ciência com
consciência, p. 20). Para uma abordagem mais amplo desse assunto. Veja-se: Hermisten M.P.
Costa, Uma fé que investiga e uma ciência que crê, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2020.

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