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1ª edição: 2022

O texto desse livro foi a transcrição e adaptação do Módulo Quem é Deus


na Escola Bibotalk de Teologia

Edição: Rodrigo Bibo e Tháis Rocha


Transcrição: Deise R C M Costa
Capa e Diagramação: Caio Duarte

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xe-


rográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a
não ser em citações breves com indicação de fonte.
SUMÁRIO
6
AULA 01- O DEUS QUE SE REVELA - PARTE 1

14
AULA 02: O DEUS QUE SE REVELA – PARTE 2

19

AULA 03: DEUS É UMA PESSOA DO SEXO MASCULINO?

23

AULA 04: OS ATRIBUTOS DE DEUS – PARTE 1

32

AULA 05: OS ATRIBUTOS DE DEUS – PARTE 2

38

AULA 06: DEUS É SANTO

43

AULA 07: DEUS É AMOR

48

AULA 08: DEUS PODE SOFRER?


53

AULA 09: O DEUS TRINO

60

AULA 10:TRINDADE COM PEDRO PAMPLONA

77

AULA 11: TRINDADE NO ANTIGO TESTAMENTO

98

AULA 12 – TRINDADE E ESPIRITUALIDADE

105

AULA 13 – O DEUS CRIADOR

113

AULA 14 – COMO LER GÊNESIS 1 E 2

135

AULA 15 – O DEUS PROVEDOR


140

AULA 16 – O PROBLEMA DO MAL

165

AULA 17 – DEUS É PAI


AULA 01
O DEUS QUE SE REVELA - PARTE 1

Sejam muito bem-vindos a mais uma aula da EBT, a Escola Bibotalk de Teologia.
Eu sou o professor Rodrigo Bibo, iniciaremos o nosso módulo sobre Deus. Neste mó-
dulo,vamos falar sobre quem é Deus, aliás, aquilo que está disponível nas Escrituras e
que podemos então tentar traçar um perfil de quem Ele é.
Nós já tivemos movimentos ateístas no passado, temos até na Bíblia manifestações
da negação de Deus. Temos no mundo Egípcio, na Filosofia Grega... Só que, enquanto um
movimento organizado, o ateísmo é mais recente, ganhando força depois do Iluminismo.

A NEGAÇÃO DE DEUS
Com os ateus “saindo do armário” e o agnosticismo (que é uma postura neutra
diante da existência de Deus atraindo novos adeptos), é fundamental confessarmos
nossa crença em Deus. Mas em qual Deus, nós cristãos, cremos? Naquele que se re-
velou nas Escrituras, o Criador de todas as coisas, no Pai de Jesus Cristo. Porém, por
que vocês creem?
Não sei qual é a sua resposta, mas geralmente respondo: Creio porque Ele quis
que eu cresse. Porque Ele transformou a minha vida. A resposta é subjetiva e não
apresenta prova externa, eu sei, mas a própria Bíblia não procura oferecer uma prova
elaborada quanto à Sua existência, pelo contrário, ela já começa tomando como pres-
suposição básica que Deus existe (Gn 1.1).
Ou seja, eu fiz aqui uma pequena introdução e respeito demais o trabalho dos
apologistas como, por exemplo, Alvin Plantinga, que vai escrever sobre a “plausibilida-
de da fé”. E, de fato, nós podemos falar de forma razoável e racional sobre a existência
de Deus, mas, em última análise não existe um argumento que diga: Deus existe!
Nós temos os nossos argumentos, eles partem muitas vezes das Escrituras, e, só
por esse “partir das escrituras1”, para o ateu e o agnóstico isso acaba não sendo su-
ficiente, então, a resposta acaba sendo subjetiva mesmo: “Eu cri porque Ele quis que

1 Alvin Carl Plantinga é, atualmente, o principal filósofo cristão no meio acadêmico. Logo após finali-
zar sua formação acadêmica, com o Doutorado em Filosofia, na Universidade de Yale em 1958, iniciou

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eu cresse. Ele deu condições para que a minha fé viesse a se desenvolver, para que
a minha fé viesse a encontrá-Lo. Sem Deus, a crença, a fé, não seria possível, então,
repito, é importante nós falarmos sobre Deus, quem é o Deus das escrituras porque
o ateísmo está aí”.
Faço a brincadeira dos “ateus saindo do armário”, mas os próprios utilizam essa
expressão. Inclusive, foi conversando com meu amigo Tiago Garros que descobri essa
expressão.
Então, precisamos falar. O agnosticismo também está aí. E outra, nós temos uma
variedade de cristãos, que se dizem cristãos e que até mesmo utilizam a Bíblia, que têm
uma visão sobre Deus e que talvez nem sempre isso vá corresponder ao Deus da Bíblia.
Precisamos ter uma boa Teontologia. (Teontologia é uma palavra que é utilizada
para o conhecimento de Deus). Nós temos Teologia: o estudo de Deus; e Teontologia:
é o que alguns teóricos utilizam para especificar o estudo de Deus. Tem a Teontolo-
gia: o estudo de Deus, a Cristologia: o estudo de Cristo, a Pneumatologia: o estudo do
Espírito Santo e por aí vai.
Então, precisamos ter uma boa introdução de quem é Deus, uma boa introdução
à pessoa de Deus, justamente pela variedade de deuses que estão sendo pintadas na
teologia cristã. Bem, quando a falamos de um Deus que se revela, a gente fala de um
ato de amor

UM ATO DE AMOR
Só conseguimos falar sobre Deus porque Ele se apresentou a nós. Sem Sua re-
velação, continuaríamos a falar sobre deuses. Falar sobre Deus e sua auto revelação é
falar sobre Seu amor. Deus não nos criou e depois foi se aventurar em outras partes
do universo, como se nós fôssemos somente mais uma parte de seu imenso quebra-
-cabeça.
É uma tentação pensar dessa maneira, por quê? Por que Deus permite que coisas
ruins aconteçam? É tentador pensar que realmente não há Deus ou se há Deus ele foi
passear pelo universo ou Ele está de férias como brinca Morgan Freeman no filme “O
Todo Poderoso”2, quando ele pergunta: “Mas Deus tira férias? Aí ele responde: Você

vários estudos sobre a racionalidade da fé cristã. Já no início do século XX, a crença em Deus ou crenças
relacionadas ao cristianismo eram vistas como irracionais, incoerentes ou desprovidas de qualquer va-
lor epistemológico positivo. As defesas da fé cristã estavam restritas ao círculo teológico, tendo pouca
aceitação em outros campos de estudo. O projeto desse filósofo é revalidar o status epistemológico
das crenças cristãs.
2 Bruce Nolan (Jim Carrey) é um jornalista que tem um bom emprego na TV e uma bela namorada,
Grace (Jennifer Aniston). Num acesso de fúria ele começa a xingar e questionar Deus e seu modo de
fazer tudo funcionar, o que faz com que ele próprio (Morgan Freeman) resolva descer à Terra como
um homem comum e lhe entregar o poder de comandar o planeta da forma como desejar durante um
dia. É quando Bruce percebe o quão difícil é ser Deus e tomar conta de tudo o que ocorre no planeta.
Disponível na Star +

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não lembra da Idade Média?.”
Uma brincadeira, obviamente, tem muito de Deus na Idade Média. Eu acho que
essa visão da Idade Média como época das trevas, isso já foi desmistificado. Bem, se
você nunca ouviu podcasts que a gente produz sobre História da Igreja vai ouvir lá que
isto vai ser um pouco desmistificado. Teve muito de Deus na Idade Média, teve muita
beleza, muita arte, teve muita boa teologia.
Essa Idade das Trevas é um nome que os historiadores nem gostam de usar
muito, mas, enfim, é tentador mesmo a gente acreditar que Deus foi pra lá, mas
não, nós acreditamos num Deus que se revela e essa revelação é um ato de amor.
Essa revelação é um ato de amor por quê? Porque Ele se dá a conhecer, e nós
podermos conhecer a Deus é um ato de Seu amor e da Sua Graça, tanto é que
quando Deus revela a Lei para Israel, como você pode ler, por exemplo, no livro
de Êxodo, o segundo livro da Bíblia, Deus está dando a Sua Lei para um povo que
Ele ama.
Deus cobra obediência daqueles que Ele ama, por quê? Porque Ele sabe que o
Seu caminho, que a proposta de vida que Ele apresenta é o caminho certo que vai nos
levar àquilo que Ele preparou para nós. Não existe outro caminho. Então a revelação
de Deus é um ato de amor. Então podemos falar de uma revelação geral exterior.

REVELAÇÃO GERAL EXTERIOR


Na revelação geral, Deus se faz conhecer por meio da Sua criação, como Paulo
afirma em Romanos 1.20: “Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de
Deus, Seu eterno poder e Sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo com-
preendidos por meio das coisas criadas (...) Essa revelação exterior mostra a Glória de
Deus, visto que a criação é um espelho que reflete sua sabedoria e bondade. Sua beleza
e funcionamento preciso mostram a perfeição do seu Criador.”
Obviamente discutiremos um pouco mais sobre Romanos, mas Romanos, capí-
tulo 1 é um capítulo bem pesado, é um capítulo que tem muita teologia, e a gente tem
que dar uma pausa nele para observar algumas coisas, mas, grosso modo, há uma de-
monstração de Deus, uma demonstração geral, externa que, de alguma forma, aponta
para um ser superior.
Como eu falei lá no primeiro módulo, sobre Teologia Simples - Uma Introdução à
Teologia, é a revelação geral que dá origem às religiões, ou seja, o mundo ainda hoje
é um mundo religioso. Como eu disse, existem muitas expressões do ateísmo, do
agnosticismo, e crescem cada vez mais, entretanto, a história da humanidade deixa
claro: a humanidade é um ser religioso com pouquíssimas expressões da negação de
divindades e da divindade ao longo da história.
É essa revelação geral que desperta no ser humano essa busca por: Cara,
existe algo maior. É a revelação geral que faz com que pessoas questionem a própria
existência, que questionem a sua pequenez diante de um ser que é grande e criou
todas essas coisas. Olha o que o salmista expressou:
“Os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento demonstra a habilidade de
Suas mãos. Dia após dia, eles continuam a falar; noite após noite, eles o tornam co-

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nhecido.” Salmos 19:1,2.

Obviamente que é uma literatura poética, mas existe teologia sendo feita
aqui e na teologia do salmista a criação, os céus proclamam a glória de
Deus, ou seja, há algo de Deus que pode ser conhecido na natureza. Há
um conhecimento de Deus que está impresso na Sua criação e a gente
pode ler isso em Romanos, capítulo 1, a gente pode ler aqui no Salmo 19,
a gente pode ler em Atos, capítulo 17 (a gente vai falar um pouquinho dele
também), ou seja, há algo na criação que espelha esse Deus e a gente
precisa atentar para isso e isso se chama, então, revelação geral exterior.
Bavinck3 disse o seguinte:

Ao longo de toda a Bíblia, somos ensinados sobre a revelação geral. A revelação


de Deus começou na criação e continua na sustentação e no governo de todas as coi-
sas. Ele se revela na natureza a Seu redor, exibe nela Seu eterno poder e divindade, e,
em bênçãos e juízos, alternadamente mostra Sua bondade e Sua ira [...]. Essa revela-
ção de Deus é geral, perceptível como tal e inteligível a todo ser humano. A natureza e
a história são o livro da sabedoria e da onipotência de Deus, de Sua bondade e justiça.
Todas as pessoas, em certa medida, reconhecem essa revelação.
Inclusive falaremos disso mais a frente. O que eu quero falar agora, para ficar
bem claro, esse é o motivo, pelo qual, em Romanos, capítulo 1, os seres humanos são
indesculpáveis, esse é o motivo, pelo qual, em Romanos, capítulo 1, não há salvação
para aqueles que negam a revelação de Deus. Então, a revelação de Deus, de alguma
forma, mostra o suficiente para que a humanidade perceba que há um Deus.
Obviamente que a revelação geral não é suficiente, falaremos depois sobre
isso, tanto que existe a revelação especial (vai ser o assunto da próxima aula), mas,
grosso modo, a revelação geral já é suficiente para mostrar a justiça e a bondade
de Deus.
Bavinck coloca aqui: “Deus começou na criação e continua na sustentação e no
governo de todas as coisas. Ele se revela na natureza ao seu redor exibe nela Seu eterno
poder e divindade, em bênçãos e juízos, alternadamente mostra Sua bondade e Sua ira.”
Pegamos a própria história de Israel. É incrível como este povo que já tentaram
calar tantas vezes, tentaram acabar, exterminar com esse povo tantas vezes, é uma
prova, alguns dizem, e eu tendo a concordar com isso, que a existência do povo de Is-
rael é uma manifestação da revelação geral de Deus, porque, gente, esse povo está aí,

3 Herman Bavinck foi um holandês reformado, teólogo e clérigo. Em 1906 ele se tornou membro da
Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos.Herman Bavinck forneceu o fundamento intelec-
tual para o avivamento da teologia e erudição reformada holandesa dos séculos 19 e 20 comumente
denominado neocalvinismo.

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esse povo continua, e Deus ainda não acabou com esse povo, ainda que Deus já tenha
exercido juízo sobre esse povo, mas, ao mesmo tempo, sustenta também. É incrível,
a existência do povo de Israel, é um milagre, gente. É um milagre a existência do povo
de Israel da forma como ele está hoje.
Claro que tem muitas variações dentro da história do judaísmo. O judeu de hoje
não é o mesmo judeu da Bíblia, mas é um povo que ainda mantém uma certa iden-
tidade e isso pode ser, realmente, a mão de Deus guardando esse povo. Não estou
dizendo que é, estou dizendo que pode ser, como alguns teólogos ventilam essa ideia.
Eu tendo a concordar com isso, acho interessante, mas também não boto a minha
mão no fogo por isso, porém acho o argumento interessante. Vamos agora para a
revelação geral interior. Tudo que falamos até aqui reflete a revelação geral exterior.
Olharemos um pouco para a revelação geral interior.

REVELAÇÃO GERAL INTERIOR


Como criação de Deus, o próprio ser humano tem a noção da existência de um
ser superior. Para Lutero, um dos reformadores da Igreja no século XVI, a revelação
geral se manifestava por meio de um conhecimento inato da existência de Deus. Dizia
ainda que a lei moral de Deus está escrita no coração das criaturas, de forma que to-
dos têm uma noção do que é certo e errado. João Calvino, outro reformador, do mes-
mo período, disse: “que existe na mente humana, e na verdade por disposição natural,
certo senso da divindade, consideramos como além de qualquer dúvida”.
Ou seja, falaremos um pouquinho sobre esse argumento também da Lei, dessa
Lei universal. Paulo arranha um pouco isso no capítulo 2, ou seja, eu concordo com os
reformadores sobre essa noção de certo e errado, essa questão da moralidade. É muito
difícil você falar da origem da moral a partir do próprio ser humano. Existem explicações
ateias para a origem da moralidade, mas eu não as acho convincente, por mais que eu,
enquanto cristão, acredite na teoria da evolução como uma possível explicação para a
origem da vida, para a origem do ser humano (nós vamos ter aula sobre isso e vocês vão
entender um pouco mais essa relação entre fé e ciência4. Se não quiser esperar as aulas,
ouçam os podcasts com a ABC2 que a gente já falou bastante dessa relação entre fé e
ciência). Ainda assim, eu sou um cristão, então eu creio que Deus criou todas as coisas
e, consequentemente, também dotou a humanidade do Seu atributo moral. A gente vai
ter uma aula aqui sobre os atributos comunicáveis de Deus, ou seja, atributos que Deus
tem e comunicou com a Sua criação. Então eu creio, por exemplo, que essa noção de
certo e errado é uma consequência de o ser humano ser Imago Dei, ou seja, o ser hu-
mano ser imagem e semelhança de Deus. Olha o que diz aí em Romanos, no capítulo 2,
que eu falei para vocês que a gente iria dar uma olhada.

4 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/ciencia-e-religiao-btcast-abc2-040/

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REVELAÇÃO GERAL INTERIOR
Em Romanos 2.14-16, o locus da revelação é bem diferente. Em vez de estar si-
tuada no mundo externo criado, nesse texto Paulo enfatiza o coração humano como
locus (como lugar) da revelação. Referindo-se àqueles que não possuem a lei, supos-
tamente a Lei revelada no AT, ele diz que esses indivíduos, no entanto, praticam as
exigências da Lei (v. 14). Paulo afirma que, ao fazerem isso, mostram que “o que a lei
exige está escrito no coração deles” O apóstolo não deixa claro se isso é uma percep-
ção interior das exigências específicas da lei, ou apenas a consciência de que há um
Deus santo, cujas expectativas devem ser cumpridas. Parece que, sem determinar o
conteúdo da revelação interna, Paulo está afirmando que Deus deixou na composição
moral humana um testemunho de suas exigências. Millard Erickson
Essa é uma fala de Millard Erickson, um grande teólogo que eu já indiquei no mó-
dulo passado e continuo indicando, ou seja, dá a entender que há um aspecto moral
inato no ser humano. E aí levanto até uma questão que o Millard Erickson expõe em
sua Teologia Sistemática5, indico para vocês, vou usá-la bastante aqui nos módulos
sobre Deus, Jesus, sobre Igreja, enfim, é uma baita Teologia Sistemática. Inclusive, ao
longo do módulo eu vou indicar outros materiais para vocês também). Mas, olha só,
como é que fica a questão da salvação? Será que então o fato de ter algo da Lei de
Deus no coração das pessoas, isso pode indicar que há uma salvação sem a revelação
especial, ou seja, sem a revelação de Jesus Cristo?
Isso é um ponto que a teologia tem discutido e que Paulo, por exemplo, nessa
passagem de Romanos 2, deixa isso meio claro, ou melhor, Paulo aponta para isso,
acho que pensar nisso não está errado a partir de Paulo que a gente está lendo aqui.
Por exemplo, no capítulo 1 de Romanos Paulo vai falar que a galera vai ser condenada,
o ser humano é condenado, ele é indesculpável porque não percebeu a Deus, porque
tomou uma vida conforme seus próprios pensamentos, seus próprios desejos e, na
verdade, Deus os entrega, então, a essa vida devassa porque eles não reconheceram,
ao invés disso, trocaram Deus por ídolos.
O que acontece? O fato de ter uma ira de Deus manifesta sobre a humanidade
e o fato dessa ira de Deus se manifestar porque o ser humano não reconheceu Deus
aponta para uma revelação geral e a um conteúdo nessa revelação geral que, de al-
guma forma, já dá a entender ao ser humano que há um ser superior. E, pelo fato de
ter essa lei no seu coração, como diz no capítulo 2, é como se o ser humano, com a
revelação geral, pudesse ter uma noção mínima de que ele está aquém desse criador,
de que existe um ser superior e que ele tem uma Lei dentro dele e que, obviamente,
ele nem sempre consegue suprir. E quem sabe, ele tendo esse sentimento, com base
na revelação geral, ele, e então, pudesse ter uma consciência de que precisa de um
salvador que é esse ser, esse Deus desconhecido. Então é interessante a gente pensar
nessa possibilidade.

5 Disponível para compra em: https://amzn.to/3ew9gw5

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E olha só o que o Erickson relata aqui:
“Parece-me que a resposta mais sábia a essa questão confusa seja reconhecer
que não podemos descartar a possibilidade de que algumas pessoas que nunca ou-
viram o evangelho (o evangelho é o tema da próxima aula), possam, todavia, por meio
da Graça de Deus, responder ao que elas sabem de Deus mediante a revelação geral
e se voltar para Ele com fé em Seu perdão. No entanto, ir além disso e especular sobre
quantos serão salvos desse modo, se é que haverá alguém, implica em ir além do que
é permitido pelas Escrituras.”
Então, assim, não saberemos quem vai ser salvo por meio dessa revelação geral,
mas consideramos a possibilidade de que pode haver uma salvação disponível so-
mente na revelação geral. Obviamente precisamos da revelação especial, mas aí, eu
vou falar na próxima aula, a importância da revelação especial e da missão da igreja.
E ainda traz uma síntese de Romanos 1, conforme o Millard Erickson. Mas, olha
só, você que está vendo só videoaula, no PDF, ou seja, no powerpoint que está aqui
disponível também na plataforma, você tem uma síntese de John Stott e eu queria que
você desse uma olhada. Fica como tarefa desta aula você olhar o powerpoint porque
tem alguns slides que eu não estou passando aqui nesta aula.

SÍNTESE DE ROMANOS 1 ACERCA DA REVELAÇÃO


GERAL DE ACORDO COM ERICKSON
“O pecado (significando aqui tanto a Queda da humanidade como os nossos atos
pecaminosos contínuos) tem um efeito duplo sobre a eficácia da revelação geral. Por
um lado, ele desfigurou o testemunho da revelação geral. A ordem criada encontra-se
agora sob maldição (Gn 3.16-19). A terra produz espinhos e ervas daninhas para o
homem que a cultivará (v.18); as mulheres precisam sofrer a grande dor de dar à luz
(v. 16). Em Romanos 8.18-25, Paulo fala sobre a criação submetida à inutilidade (v.20);
ela aguarda sua libertação (v. 19,21,23).
Consequentemente, seu testemunho está distorcido. Embora não tenha deixado
de ser criação de Deus e, portanto, continue a dar testemunho dele, não é mais o que
era quando foi feita pela mão do Criador. É uma criação danificada. O testemunho do
seu Criador está manchado.”
Ou seja, o Erickson está comentando aqui que, realmente, falar de salvação a
partir da revelação geral é bem complicado, ou seja, como eu falei anteriormente e ele
até cita um outro pensador, não é que a gente está descartando, mas é complicado.
Por que? Porque a nossa percepção da revelação de Deus de forma geral ou a espe-
cial, é danificada pelo pecado. Gênesis 3 vai manchar todo o rolê. Gênesis 3 estraga
nossa percepção, a nossa cognição.
Não temos como conhecer a Deus se realmente Deus não se revelar de maneira
especial, porque a revelação geral também está danificada pelo pecado e isso a gente
tem que levar em consideração.
Em resumo, é isso, a revelação geral é então as migalhas, as pistas que Deus
deixa sobre Si na criação, tanto de forma externa como na criação, como na história

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da humanidade, bem como de forma interna com esse sentimento religioso que o ser
humano tem, essa moralidade que está dentro do seu coração, essa noção de certo e
errado que perpassa a história da humanidade.
A revelação geral está aí, pode ser captada pelo ser humano e, por isso, o ser
humano precisa da revelação especial para poder entender melhor a revelação geral.
Mas a revelação geral em si já aponta para um Criador, ela já aponta para um Susten-
tador, ela já aponta para um Salvador, por isso, negar a revelação geral é também, de
alguma forma, negar o próprio Deus e, por isso, ser digno do Seu juízo.

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AULA 02
O DEUS QUE SE REVELA – PARTE 2

E vamos continuar falando sobre esse Deus que se apresenta. Agora vamos falar
sobre a Revelação Especial. Lembrando que na aula anterior nós falamos sobre a reve-
lação geral e ela não tem um conteúdo salvífico, ainda que no finalzinho da aula a gente
discute a possibilidade de se ter uma espécie de salvação. Aliás, o que eu quero dizer
com “uma espécie de salvação”? De se ter uma salvação por meio da Revelação Geral.
Obviamente que nós defendemos que é melhor dizer que não, talvez deixar a possi-
bilidade, mas, grosso modo, não há chance de salvação, por isso nós temos uma Revelação
Especial. Então, como você pode ver no slide aqui: Os modos da Revelação Especial. Tem
algumas coisas interessantes, ela é particular, ela é progressiva e verbal e ela é pessoal.

OS MODOS DA REVELAÇÃO ESPECIAL

1 – ELA É PARTICULAR
Vocês, porém, são povo escolhido, reino de sacerdotes, nação santa, proprie-
dade exclusiva de Deus. Assim, vocês podem mostrar às pessoas como é admirável
aquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz. (1 Pedro 2:9)
Aliás, é em cima desse texto que eu vou escrever a continuação do meu livro “O
Deus que destrói sonhos”, afinal o Deus que destrói sonhos é o Deus que está cons-
truindo um povo. Bem, com base nesse versículo podemos afirmar o seguinte: a Re-
velação Especial é particular até porque ela é especial e é direcionada a um povo. Ela
tem uma particularidade. Deus não sai revelando de Si de forma especial para todas
as nações. Ele escolhe Israel e essa escolha reverbera numa Revelação Especial. Tem
coisas que Deus só revelou para o povo de Israel.
Como eu já disse aqui, a Lei, por exemplo, entregue ao povo de Israel, não foi en-
tregue para todos os povos. Ela foi entregue para um povo, para que esse povo fosse
um povo sacerdotal e mostrasse, e demonstrasse na prática os preceitos desse Deus
que chamou esse povo.
Então, existe essa particularidade da Revelação Especial, ela não é dada a todo
mundo, ela é dada a um povo. Por isso que ao falar sobre os modos da Revelação Es-
pecial falamos no segundo ponto, que ela é progressiva e verbal, (veja o slide).

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2 - ELA É PROGRESSIVA E VERBAL
Ao longo da Bíblia Deus vai manifestando seu caráter e propósito. Escritos vão se
tornando sagrados!
Isso aqui tem particularidades muito legais porque é progressiva e verbal, ou
seja, Deus vai revelando de Si de forma especial ao longo da Escritura. Vai falando por
meio dos profetas, ou seja, os profetas são um grande meio pelo qual Deus revela-Se
de maneira especial ao povo. A gente vai falar no próximo slide sobre a revelação ser
particular. O encontro que Deus tem com Moisés e revela o Seu nome, mas, antes
disso, há o chamado de Abraão.
Nós temos esse Deus que vai se revelando e se mostrando ao povo ao longo da
história. Tanto que se você ler o Antigo Testamento você vai percebendo que a relação
do povo com Deus vai mudando, novos escritos vão aparecendo.
A revelação progressivamente vai sendo descoberta. Será que eu posso falar que
vai sendo descoberta? Porque Deus é Deus. Ele já está ali, né. O povo vai perceben-
do Deus conforme Deus vai agindo. É uma mistura de “o povo vai descobrindo” com
“Deus vai se revelando”.
Eu acho muito legal, porque não dá pra ficarmos fechando. São as duas reve-
lações ao mesmo tempo: Deus vai se revelando, vai mostrando de Si, vai chamando
Seus profetas, vai aperfeiçoando o povo, enquanto o povo, ao mesmo tempo, vai per-
cebendo, vai descobrindo esse Deus.
Então nós temos toda a história do Antigo Testamento, mais de um milênio de
história acontecendo. Deus tendo encontro com pessoas e, a partir dessas pessoas,
abençoando e modificando Seu povo. Modificando Seu povo ficou feio, ficou como se
fossem pecinhas que Deus fosse modificando. Deus vai lapidando o Seu povo.
Mas é isso, gente, ela é progressiva, ela é verbal, Deus vai falando por meio dos
profetas e aí Deus fala com os profetas por meio de visões, por meio de sonhos.
Deus fala com os profetas, “a voz do Senhor veio a mim e veio a voz do Senhor ao
profeta tal”, então isto é muito maravilhoso, os profetas como esse meio da Revela-
ção Especial.
Deus está falando. A grande caraterística da Revelação Especial é que Deus está
falando, Ele está se manifestando e, como vocês podem ver neste slide, ela é pessoal,
é o Deus que se apresenta.
Gente, isso é maravilhoso. A Revelação Especial é especial porque nós temos
o próprio Deus, o Criador, Aquele que criou todas as coisas e deixou pistas de Si na
Criação. Lembra da aula passada – a Revelação Geral? Ele deixou migalhas de Si na
criação, só que na Revelação Especial Ele se apresenta, (veja slide).

3 – ELA É PESSOAL
O nome de Deus Iahweh ou Javé, assemelha-se à expressão Eu sou, em he-
braico (Ex 3.14), ou seja, relaciona-se ao verbo hebraico “ser”, verbo que não sig-
nifica simplesmente “existir”, mas antes “estar ativamente presente”; dessa forma,
tem o sentido de uma presença relacional e atuante. Deus dá a conhecer o Seu

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nome ao povo, pretendendo lhes revelar seu caráter mais íntimo. Javé é o Deus
ativamente presente entre o Seu povo, nome revelado em meio à crise, escravidão
e incertezas (Ex 3; 33.19).
Isso é maravilhoso. Deus não espera Moisés dar um nome para Ele, porque na
antiguidade dar um nome à divindade era ter controle sobre essa divindade. Não, Moi-
sés não dá um nome para Deus. Deus se apresenta. E é mais que um nome, porque
o nome na antiguidade não representa só um nome, uma identificação, o nome está
ligado ao caráter, está ligado a quem a pessoa é. E é interessante que quando Deus se
apresenta a Moisés, Ele dá um nome muito especial.

Continuando no slide:
Então a tradução mais próxima do sentido do nome de Deus não seria EU SOU
O QUE SOU, mas, EU ESTAREI PRESENTE QUANDO VOCÊS PRECISAREM (ou EU SEREI
O QUE SEREI é outra possibilidade), isto é, transformar-me-ei naquilo que precisam.!
Isso, porque “ser”, no AT, não significa um ser em si absoluto, mas antes, um “estar aí/
presente/atuante” ou até um “revelar-se como auxiliador”. Resumindo, a interpretação
mais simples é [...] de acordo com Êxodo 3.14: ele é/se mostra/atua”.
Gosto muito dessa definição, inclusive isso eu tirei de uma Teologia do Antigo
Testamento do Gerhard Von Rad. Eu não a tenho mais, eu doei para uma faculda-
de aqui de Joinville. Eu tinha muitas Teologias do AT e essa, que é um pouco mais
técnica, eu acabei doando para a faculdade da minha cidade ou eu vendi. Eu não
lembro agora.
Importante o que Von Rad fala, porque a tradução do nome de Deus, então, é
EU SEREI O QUE SEREI, O ETERNO, como a NTLH traz, Ele é O ETERNO. Mas não é
só um nome: “Oi! Tudo bem? Meu nome é Dejair!” Não. Deus, quando dá um nome
Iahweh ou Javé, Ele está dizendo também uma característica, Ele é um Deus atu-
ante, Ele é um Deus que se apresenta no meio da crise e Ele não se apresenta de
qualquer forma, Ele se apresenta para dizer que está atuante e que vai preservar
esse povo.
Como falei na aula passada, o fato de Israel estar presente nos dias de hoje pode
ser, eu não quero afirmar, uma característica da presença de Deus no mundo e a Re-
velação de Deus porque, esse povo resiste, e como ele resiste? Por força própria? Não.
Só pode ser algo divino mesmo que protege Israel e mantém esse povo ainda na face
da Terra. Provavelmente Deus ainda não acabou com Israel e tem histórias com Israel
que só o futuro irá nos dizer.
Mas o fato é isso, gente, Deus se revelou de maneira pessoal: EU SOU JAVÉ, EU
SOU O DEUS PRESENTE e isso aqui, gente, é maravilhoso e a gente tem que louvar a
Deus porque Ele é um Deus pessoal, é uma revelação pessoal, ela é personalizada no
sentido de que Deus se dá a conhecer ao seu povo.
Inclusive eu acabei de ler um Tweet de um amigo meu Igor Miguel, como eu vou
falar uma coisa boa, vou dizer o nome, o Igor Miguel acabou de colocar no Twitter
antes de eu gravar esta aula, eu vou parafrasear aqui, mas ele disse o seguinte: “Um
pouco de oração e a leitura da Bíblia com o coração tira toda a aridez espiritual.” Ele
está dizendo que a devoção trouxe calor ao seu coração, o tirou dessa aridez espiritu-

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al que ele deveria estar passando nessa semana. Isso mostra um Deus presente, um
Deus atuante, isso é maravilhoso. E para entendermos bem o Tweet do meu amigo
Igor Miguel a gente precisa falar do ápice da revelação especial:
O clímax dessa Revelação Pessoal é Jesus Cristo, pois, Nele “a Palavra tor-
nou-se carne” (Jo 1.14). Na pessoa de Jesus Cristo, Deus estava confrontando as
pessoas de maneira imediata e decisiva. Jesus mesmo declarou: Quem me vê, vê
o Pai (14.9), e assim declarou o cumprimento da revelação de Deus Pai em Sua
pessoa. Assim, a Palavra se tornou ser humano, carne e osso, e habitou entre
nós. Ele era cheio de graça e verdade. E vimos Sua glória, a glória do Filho único
do Pai.( João 1:14)
Esse é o clímax da Revelação Especial, é a Palavra se fazendo Carne. O logos se
faz carne. A segunda pessoa da Trindade está entre nós e Ele veio para revelar o Pai.
Ele veio para cumprir a Lei. Ele veio para fazer o povo de Deus obediente. Ele veio para
trazer o Espírito Santo. Ele veio para revelar de maneira especial a pessoa do Pai.
Jesus Cristo é o clímax, é o ápice da Revelação Especial e, por isso, que ela é
pessoal, porque nós temos um encontro pessoal com esse Deus. Somente quem
tem um encontro com Jesus é que pode orar, ler a Bíblia e ter um encontro pessoal
com esse Deus.
É por isso que o Igor Miguel, ao ler a Bíblia e ao orar, se sentiu cheio do Espírito
porque nosso Deus é vivo, Ele é atuante e Ele ainda continua se revelando de maneira
Especial para nós. Obviamente que essa Revelação Especial é mediada pelo próprio
Jesus, pelos apóstolos e pelas escrituras agora canonizadas

REVELAÇÃO ESPECIAL
Na Revelação Especial Deus se faz conhecer mediante as Escrituras. Como po-
demos ler em uma confissão de fé reformada: “Foi Deus quem se fez conhecer aos
homens. Primeiramente, por suas obras, tanto pela criação como pela conservação e
maneira como Ele a conduz (Revelação Geral). E claro, pela Palavra, a qual foi primeira-
mente revelada verbalmente e em seguida escrita nos livros que nós chamamos: Santa
Escritura.”
Confissão de Fé de La Rochelle. Ou seja, aqui nós temos essa confissão, um resu-
mo muito legal do que é a Revelação Especial. E para encerrar essa aula:
O que precisamos saber do verdadeiro Deus está restrito àquilo que Ele es-
colheu revelar de Si mesmo na Bíblia (Barth) pois é nela que Cristo é apresentado
e o ser humano descobre que é caído e carente de salvação. Sendo assim, a reve-
lação especial, ainda que seja para todo o mundo, não está ao alcance de todos
(por isso ela é particular), por isso estamos em missão, levando a mensagem do
evangelho (revelação especial) para que os seres humanos tenham ciência da sua
condição e da salvação que Deus oferece em Jesus Cristo. Fica evidente assim, que
nós conhecemos a Deus por causa de Deus; porque Sua vontade está voltada para
relacionamentos.
Portanto, a Revelação Especial nos comissiona, porque, se nós recebemos isso
que é tão especial e particular precisamos compartilhar, porque, por mais que a re-

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velação especial seja particular, foi dada a um povo, foi revelada a um povo, ela não é
privada, ela não é só nossa.
Ela é revelada para aqueles que têm um encontro com Jesus, que são chamados
por Jesus, entretanto, não é privada “é minha, my precious6”, não, ela precisa ser com-
partilhada e espalhada. Então é isso. Espero que você tenha gostado dessa aula!
Nessa Teologia Sistemática, de J. Rodman Williams7. O capítulo sobre Revelação
Geral e Revelação Especial está bem legal. É uma baita teologia sistemática, carismá-
tica, bem conservadora, muito boa mesmo. Recomendamos. Obviamente que tem
outras sistemáticas também que tratam de forma mais ampla a Revelação Geral e
Especial.
Eu quero indicar dois podcasts para você ouvir para ampliar um pouco mais ain-
da esse assunto. O primeiro é sobre a formação da Bíblia Hebraica – BTCAST 3768. É
muito legal esse papo que eu tenho com o André Reinke e com o Paulo Won (inclusive
eles serão professores aqui na EBT), sobre a formação da Bíblia Hebraica, esse proces-
so histórico, teológico, social. É muito legal a gente entender tudo o que aconteceu aí,
que levou à formação da Bíblia Hebraica.
O outro podcast é sobre Teologia Natural – BTCAST Vida Nova 0239, para a gente
resgatar o tema da primeira aula sobre a Revelação Geral. É muito legal este podcast
com a Vida Nova, é sobre um livro que a Vida Nova lançou. Está bem bacana. Marcelo
Cabral e Tiago Garros dão um espetáculo. Então fica a dica para você se aprofundar
um pouco mais nesses temas.

6 Para aqueles que leram as obras do britânico J. R. R. Tolkien, The Hobbit e The Lord of the Rings (O se-
nhor dos anéis) ou assistiram as adaptações feitas para o cinema, se recordam do famoso bordão dito
pelo personagem Sméagol: “my precious”. Personagem esse que é repleto de contradições, conflitos
e uma obsessão pelo anel, “o precioso”, o qual possui poderes mágicos e é item de todas as histórias,
recebendo maior destaque em O Senhor dos Anéis.
7 Disponível para compra em: https://amzn.to/3VsGMUx
8 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/a-formacao-da-biblia-hebraica-btcast-376/
9 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/teologia-natural/

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AULA 03
DEUS É UMA PESSOA DO
SEXO MASCULINO?

Muito bem! Muito bem! Muito bem! Começa mais uma aula da Escola Bibotalk
de Teologia! Eu sou o professor Rodrigo Bibo. Espero que você esteja gostando desta
caminhada que estamos fazendo em torno da pessoa de Deus. Quem é Deus? É a
pergunta que estamos tentando responder com este módulo.
Já tivemos duas aulas muito importantes, e agora vamos para esta terceira aula.
Afinal, Deus é uma pessoa do sexo masculino? Olha só, como você pode ver aí na nos-
sa tela, Deus é uma pessoa do sexo masculino? É a pergunta que a gente vai tentar
responder nesta aula, porque é muito importante nós pensarmos sobre isto, afinal
Deus se apresenta como Pai, como Rei.
Será que o fato de a Bíblia usar linguagem masculina significa que Deus seja do
sexo masculino? Tem as pessoas que vão dizer que Deus é mãe, enfim, vamos discutir
um pouquinho sobre isso na aula de hoje. Tenho certeza de que você vai gostar.
Deus pertence ao gênero masculino?
Tanto o Novo quanto o Antigo Testamentos usam o gênero masculino quando
se referem a Deus. A palavra grega theos é, indubitavelmente, masculina, e muitas das
analogias usadas ao longo das Escrituras para referenciar-se a Deus, como pai, rei e
pastor – são relacionadas à figura masculina. Isso seria um indício de que Deus é do
gênero masculino?
Embora observe a verdade de que a linguagem bíblica usa principalmente as
analogias do gênero masculino para Deus, é importante observar que isso tem mui-
to a ver com a sociologia e antropologia de Israel da Antiguidade, que levou darem
prioridade a essas analogias do gênero masculino para representar Deus. Contudo,
Deus, mesmo nesse contexto cultural patriarcal, não era entendido como pertencente
à sexualidade masculina.
Bem, de fato a Bíblia utiliza essas linguagens para Deus, mas aqui a gente precisa
se atentar para o seguinte. Talvez você esteja se perguntando: “Bibo, qual a importân-
cia de discutirmos isto, se Deus é do gênero masculino ou feminino, afinal, Jesus Cristo
diz que quem O vê, vê o Pai?’’.
A figura de Deus como Pai (isso até talvez mereça uma aula à parte) está muito
presente nas escrituras, Antigo e Novo Testamento. A paternidade de Deus é muito

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clara. Agora, a gente precisa entender que quando eu trago essa discussão para a
questão do gênero, “Ah, se Ele é Pai, logo é gênero masculino”, isso tem implicações
com as quais a antiguidade de Israel não queria lidar.
Por exemplo, o fato de Israel utilizar a linguagem masculina para Deus, de forma
predominante, não significa afirmar que Deus é alguém do gênero masculino. Esta
questão da sexualidade de Deus é muito clara para Israel, porque na antiguidade os
deuses pagãos, ou seja, aqueles que não eram o Deus de Israel, estavam ligados a esta
questão da sexualidade.
Temos a deusa da fertilidade ou temos os outros deuses que também tem os
seus filhos e por aí vai. Ou seja, essa questão da sexualidade está ligada à teologia de
outros povos, então, de certa forma, Israel foge um pouco disso porque figuras femi-
ninas também são utilizadas para Deus como a gente vai ver no próximo slide.
O fato de a figura masculina se destacar tem uma questão cultural, a figura do
homem, a predominância do homem, a figura do homem como provedor, como man-
tenedor. Agora, ao mesmo tempo, tem figuras também femininas para a questão do
cuidado, do amor de Deus.
Então , gente, Israel utiliza as duas figuras para Deus. Configura o que? Que Deus
não é nem do gênero masculino, nem do gênero feminino, ainda que, de forma pre-
dominante, a figura masculina esteja mais associada a Deus.
Eu até leio aqui o que o Pannenberg disse, (inclusive esta aula eu preparei com
base nesta Teologia Sistemática do Alister McGrath10, uma excelente Teologia Sistemá-
tica, se você quiser adquirir, o link está na descrição desta aula. É uma boa Teologia
Sistemática. Olha só, aqui diz o seguinte: O aspecto do cuidado paternal em particular
é retirado do que o Antigo Testamento tem a dizer sobre o cuidado paternal de Deus
para com Israel, ou seja, essa ideia de Deus como Pai está ligada à figura que o Pai
representa, não quer falar sobre a sexualidade de Deus, ou seja, Israel foge dessa
discussão sobre a sexualidade das divindades, isso era coisa de pagão. Israel tem um
Deus e esse Deus age como Pai, mas Ele também tem figuras maternas. Israel não
discute a sexualidade de Deus.
Olha, como vocês podem ver neste slide:
Além disso, Israel reconhecia a importância da imagem feminina para conhecer
aspectos do caráter de Deus: por exemplo, a imagem de Deus “fazendo nascer” a Isra-
el (Dt 32.18) como um parteira que ajuda o processo de nascimento (Is 66.9-11) e que
cuida de Israel como uma mãe cuida de seu filho (Is 66.13). Fora que também tem a
imagem da galinha. Tem aí um ponto interessante que é o princípio da analogia como
vocês podem ver aí:

10 Disponível para compra em: https://amzn.to/3T9SAK1

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O PRINCÍPIO DA ANALOGIA
A teologia, ao agir dessa forma, não está reduzindo Deus à esfera de um objeto
criado, mas está simplesmente afirmando a existência de uma semelhança ou corres-
pondência entre Deus e um determinado ente da criação, o que permite que esta úl-
tima funcione como evidência que aponte para Deus. Um ente que é parte da criação
pode ser como Deus, sem que seja idêntico a Deus.
E aí, antes de eu ler a frase do Tomás de Aquino, você precisa entender esse
princípio da analogia. Quando os autores bíblicos utilizam de forma metafórica algum
aspecto da criação para se referir a Deus, é uma ideia de acomodação, é uma ideia
de tentar aproximar Deus da nossa realidade para que a gente possa compreender
Deus. Porque toda a analogia é falha.
Vou dar um exemplo: Deus como Pai. A nossa visão de pai é muito diferente.
Você pode ter uma visão de pai bem legal, diferente da minha, que não tive um pai tão
legal. Agora, o fato de eu não ter tido um pai legal faz com que eu vá ter uma visão
errada da paternidade divina? Pode ser que sim. Pode ser que não.
Não dá para dizer: Você teve um péssimo pai, logo, você precisa encontrar Deus
como pai. Não é assim que funciona, porque as analogias são limitadas. Agora, pode
ter influência, não estou negando isso, entretanto, as analogias servem para tentar
acomodar um conceito divino à nossa realidade. Sem as analogias eu não teria como
aprender sobre Deus, eu não teria como conceber a ideia do Divino, do Criador, por
isso que Deus se revela de forma Geral e de forma Especial.
Deus se revela e, de alguma forma, as analogias são inevitáveis porque nós preci-
samos ter pontos de referência. E como nós vamos ter referência de um Deus eterno,
imutável, grandioso? A gente precisa ter um ponto de referência. Então as analogias
nos ajudam nesse aspecto, mas elas são limitadas. Ainda que a Bíblia utilize mais ana-
logia do aspecto masculino não quer dizer que Deus seja alguém ou um ser do sexo
masculino.Vamos ao que Tomás de Aquino disse:
A tese que Tomás de Aquino está tentando defender é bem simples. Deus, ao se
revelar, lança mão de imagens e ideias relacionadas a nossa existência cotidiana, con-
tudo, isso não reduz Deus ao contexto de nossa existência cotidiana. Dizer que “Deus
é nosso pai”, não significa dizer que Deus seja exatamente um outro pai igual ao que
temos nesse mundo. Também não significa que nós devemos conceber a Deus como
alguém do sexo masculino.
Antes, significa que o fato de pensar em nossos pais nos ajuda a pensar sobre
Deus. Essas figuras representam analogias. E como todas as analogias, elas são imper-
feitas, apresentam falhas. Entretanto, continuam sendo formas extremamente úteis
e intensas de pensar a respeito de Deus, que permitem que usemos o vocabulário
e as imagens do nosso próprio mundo para descrever algo que, em última instância,
encontra-se muito além dele.
Ou seja, essa tese de Tomás de Aquino explica e resume muito bem o que eu
estou dizendo para vocês. Sem as analogias nós não teríamos uma compreensão cla-
ra de quem é Deus. Ao mesmo tempo em que nós precisamos estar cientes de que
as analogias são falhas e são limitadas, ou seja, as analogias não definem quem Deus

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é, afinal quem Deus é está muito além da nossa capacidade de perceber e entender.
Entretanto, as analogias nos ajudam a entender aquilo que Deus quis revelar de Si.
Gregório de Nazianzo ensinou que:
Qualquer ideia de que Deus fosse do gênero masculino porque era mencionado
como Pai ou de que o Espírito Santo era um objeto impessoal porque o termo era
gramaticalmente neutro. O caráter paternal de Deus, insistia Gregório, não tinha nada
que ver com sexualidade ou com reprodução biológica. “Deus não é mulher. Deus não
é homem, Deus é Deus”.
Olha aí o Gregório de Nazianzo dando na veia, mandando a real para nós, “Deus
não é homem. Deus não é mulher, Deus é Deus”. E é muito interessante que às vezes
há um resgate de querer tentar pensar em Deus como mãe. Eu até entendo, devido a
um excesso de pensar Deus como um pai.
Agora, a gente não pode negar algumas coisas, a figura de Deus como pai é mui-
to martelada nas Escrituras e a gente não pode fugir disso, entretanto, o objetivo desta
aula é deixar bem claro para você, Deus não é masculino, Deus não é homem, Deus
não é do gênero masculino. Deus é Deus, certo? E imagens femininas cabem para
Deus também. Pode dizer que Deus é mãe? Pode, porque eu sei que Deus não é mãe.
Agora, Bibo, posso dizer que Deus é pai? Pode, porque a Bíblia diz que Deus é pai de
Jesus Cristo. A Bíblia não fala que Ele é mãe de Jesus Cristo, entende?. Então a figura
paterna está mais clara nas Escrituras. Agora, eu posso dizer que Deus age como uma
mãe? Com certeza Deus age como uma mãe. Deus age como uma galinha que cuida
dos seus pintinhos e por aí vai.
Nós temos outras analogias, porque as analogias não são a realidade, afinal a
Bíblia vai dizer também que Deus é fogo consumidor, então Deus é fogo consumidor?
Não. Ele age como fogo consumidor. Ele é a rocha da minha salvação. Deus não é uma
pedra, assim como Deus não é um pai.
Vocês entendem onde eu quero chegar? Deus é Deus, que tem aspectos da
paternidade, da maternidade, a firmeza de uma rocha. As analogias e metáforas só
querem nos ajudar a entender quem Deus é, mas Deus é espírito, Deus é Deus e isto
deve bastar para nós. E será que eu faço uma aula sobre Pai, Deus como Pai? Você
gostaria de uma aula de Deus como pai, a figura paterna de Deus?
Eu quero ver os comentários desta aula aqui, aqui na nossa plataforma. Eu quero
que você comente e, dependendo do número de comentários, vocês irão destravar
essa aula sobre a paternidade divina, tá bom! Eu não gravei ainda, mas se tiver bastan-
te comentários eu vou gravar essa aula e vocês destravarão esse novo conteúdo aqui
na EBT, no módulo sobre Deus.

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AULA 04
OS ATRIBUTOS DE DEUS – PARTE 1

É muito importante nós falarmos sobre os atributos de Deus, porque falar sobre
os atributos de Deus é falar sobre quem Deus é, sobre características inatas, sobre
a essência do Ser de Deus. Falar sobre os atributos de Deus é, de alguma forma, co-
nhecer a Deus, são as características que nós temos de Deus reveladas na Escrituras.
Então, nós precisamos conhecer a Deus e, conhecer a Deus é conhecer os seus atri-
butos, as qualidades que Deus manifesta de Si na criação e aquilo que está registrado
nas Escrituras.
Viver nesse mundo sem conhecer a Deus é uma loucura, por isso nós precisa-
mos conhecer a Deus. A gente sabe que o mundo em que vivemos é um mundo in-
sano, cheio de coisas esquisitas, às vezes um verdadeiro lixão e, ao estudar o livro de
Eclesiastes com meu amigo Marcelo Berti, ele conta a história, melhor, ele relata sobre
um artista plástico que organiza objetos, organiza lixo, de tal maneira que quando
você olha, você vê um amontoado de objetos, você vê um monte de coisa que não faz
sentido. Só que o artista organizou a sua obra de um ponto de vista, então ele cria um
quadrado e ele quer que você olhe para aquele amontoado de objetos, para aquele
amontoado de lixo a partir daquele quadrado. Quando você fica no centro do quadra-
do e olha aquele monte de objetos sem sentido, que parece um lixão, você vê a beleza,
você vê a arte, ou seja, você vê a visão do autor.
Então nós precisamos conhecer a Deus por que? Porque Deus organiza o caos
da nossa vida e nos ajuda a viver no caos que é um mundo que não conhece a Deus.
Infelizmente boa parte do mundo não conhece a Deus, não sabe dos Seus atributos.
Mesmo que tenham características que Deus deu a toda humanidade, não as conhe-
cem a partir disso, não vivem dessa realidade. Por isso, estudar os atributos de Deus
é algo importantíssimo e aqui nós vamos ter a parte 1 dessa aula que é praticamente
focando nos atributos incomunicáveis de Deus que são os atributos que Deus não
comunica com a sua criação.
Tem características de Deus que nós temos e tem características de Deus que
nós não temos. Aliás, todos os atributos que nós temos que são comunicados a par-
tir de Deus em nós são incompletos. Por exemplo: Deus é Santo. Esse é um atributo
que, de alguma forma, Deus comunica com a sua criação. Ele pede santidade de nós,
entretanto, nós somos santificados, não somos santos por natureza. Deus é Santo na
Sua pessoa, na Sua essência.

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Então, nós, por exemplo, não somos onipresentes, ainda que gostaríamos bas-
tante de ser onipresentes. Enquanto o Rodrigo Bibo trabalha, grava aula, o outro as-
siste uma sériezinha da Netflix, o outro fica atualizando as redes sociais, o outro fica
gravando podcast. Seria interessante, aliás, isso é onipresença. Eu falei onisciência
antes, enfim onisciência, onipresença e onipotência são características exclusivas de
Deus, que pertencem exclusivamente ao Seu Ser.
Mas Deus tem outras características também que Ele não comunica com a gente
e a gente vai aprender um pouquinho nessa aula. Mas antes, algumas informações im-
portantes aqui para a gente começar essa conversa, olha só o que diz Millard Erickson:

A IMPORTÂNCIA DE CONHECER OS
ATRIBUTOS DE DEUS.
Quando falamos dos atributos de Deus, estamos nos referindo àquelas qualida-
des de Deus que constituem o que ele é – as características exatas de Sua natureza.
Não estamos nos referindo a Seus atos, como criar, conduzir e preservar, nem aos
papéis correspondentes de Criador, Guia e Preservador.
Os atributos são qualidades permanentes e intrínsecas, que não podem ser ad-
quiridas nem perdidas. Assim, a santidade não é, nesse sentido, um atributo (uma ca-
racterística permanente e inseparável) de Adão, mas é de Deus. Os atributos de Deus
são dimensões essenciais e inerentes à sua natureza. Ou seja, quando a gente fala de
atributos de Deus, como você pode ver nesse texto do Millard Erickson, nós estamos
falando da pessoa do próprio Deus, então Deus é Santo.
Aliás, tem um lançamento da Mundo Cristão sobre a Santidade de Deus que eu
estou até curioso para ler. Deixe-me pegar aqui, um momentinho. É esse livro aqui da
Jackie Hill Perry “Santo, Santo, Santo”11. Inclusive tem um podcast sobre ele lá em Bibo-
talk.com. Esse livro aqui, a gente até gravou um podcast sobre ele, aliás, no momento
em que eu estou gravando esta aula, a gente ainda não gravou, mas quando você
estiver vendo esta aula a gente já vai ter lançado esse podcast sobre ele.
Então a Santidade de Deus é uma característica inerente à Sua pessoa. Então,
são qualidades permanentes intrínsecas, e, outra coisa, são coisas que Ele não vai
adquirindo, o todo de Deus já está em Deus, Deus é perfeito, Ele é o que é, EU SOU O
QUE SOU, EU SEREI O QUE SEREI. Deus não fica adquirindo novos atributos, tudo já
está Nele, e, a partir Dele. Ele comunica essas coisas com o ser humano.
Aliás, por isso a gente precisa falar sobre imanência e a transcendência de Deus, por-
que quando a gente fala de Deus e Seus atributos é importante nós percebermos que Deus
que é esse no sentido de como Ele se relaciona com a Sua criação, como Ele está agindo
na Sua criação, e nós temos aqui, então, duas possibilidades teológicas da reação de Deus
com a Sua criação e isso diz respeito ao Ser de Deus. A primeira questão é a imanência:

11 Disponível para compra em: https://amzn.to/3rXHHiy

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A IMANÊNCIA E A TRANSCENDÊNCIA DE DEUS
O significado da imanência é que Deus está presente e ativo dentro de Sua criação e
dentro da raça humana, mesmo naqueles membros que não creem Nele ou não Lhe obe-
decem. Sua influência está em toda parte. Ele age nos processos naturais e por meio deles.
Obviamente que existem erros quando as pessoas falam de imanência. Existem
algumas teologias que vão colocar Deus praticamente junto com a criação, uma ideia
de que Deus está na criação e é criação. A ideia bíblica da imanência, e a gente vê isso
por toda a Bíblia, um Deus que se corresponde com a Sua criação, um Deus que está
aqui, que perpassa a Sua criação. O espírito de Deus que manifesta a Graça comum
a toda criação. Então Deus está sim, de alguma forma, habitando na criação. A gente
precisa ter essa ideia de que Deus habita a Sua criação. Nós, enquanto corpo de Cris-
to, somos habitação de Deus, mas não somos deuses, não somos Deus. Nós temos
atributos de Deus que Ele compartilha conosco, mas nós não somos Deus.
Há uma diferença entre Deus e a Sua criação. Isso é muito claro na Bíblia Sagra-
da, porque nós não temos uma parte de Deus. Deus não arranca uma parte Dele para
nos formar,não, nós somos adam e somos feitos da adamá, ou seja, somos humani-
dade feitos da terra.
Então nós não somos feitos de uma parte de Deus como eram as cosmogonias
do tempo de Israel, não. Do pedaço de um deus, a partir de um pedaço de um deus
eram feitas as estrelas. Do pedaço de outro deus eram feitos os seres humanos ou
do sangue derramado da batalha dos deuses e por aí vai. Não, não, não. Ele cria a
partir dos elementos da Sua criação e Ele dá o fôlego de vida, Ele soprou o fôlego
de vida, ou seja, Ele anima essa criação e o ser humano é a coroa da criação. Então
é assim, nós não somos uma parte de Deus, nós não temos um fragmento de Deus
como erroneamente se ensina por aí, “Ah não, porque nós temos uma centelha di-
vina em nós…” Não!
Nós temos o fôlego de vida que Deus dá a nós, e também dá aos animais. Então
a gente precisa deixar bem claro que nós não somos Deus, nós não temos parte de
Deus. A árvore que a gente deve cuidar, a natureza, não são Deus, isso é panteísmo
(tudo é Deus) ou panenteísmo (Deus está em todas as coisas de forma ligada, intrínse-
ca, de forma essencial). Não! Isso é uma imanência deturpada.
Eu lembro de um teólogo da teologia da libertação que, ao fumar um cigarro,
(não era maconha). Então ele fumou o cigarro, tragou, e falou assim ó: Deus está nes-
sa “xepa” de cigarro e jogou assim. Então isso é um absurdo, é imanência levada de
maneira complicada e errada.
Lembrando que a imanência é bíblica: Deus habita com a Sua criação, Ele inter-
fere na Sua criação. Aliás, existe até uma teologia do processo que tem uma teologia
imanente bem complicada e a gente vai falar sobre ela hoje a partir do atributo que
Deus não comunica com a gente que é a constância. Mas, vamos lá!
O significado da transcendência é que Deus não é uma mera qualidade da natu-
reza ou da humanidade; Ele não é simplesmente o mais elevado dos seres humanos.
(ou seja, aqui é um problema de uma teologia imanentista errada, Deus é como se
fosse mais elevado do que o ser humano, Jesus é só um ser humano mais elevado que

25
tinha uma maior consciência de Deus, como vão dizer alguns teólogos. Não, Jesus Cris-
to era cem por cento homem e cem por cento Deus), mas vamos lá, Ele não é limitado
à nossa capacidade de compreendê-lo. Sua santidade e bondade vão muito além, infi-
nitamente além das nossas, e isso também é verdade em relação a seu conhecimento
e poder. Millard Erickson. Nós precisamos manter também essa ideia de que o finito
não pode conter o infinito, que, inclusive, como os medievais afirmavam, (veja slide)

A IMANÊNCIA E A TRANSCENDÊNCIA DE DEUS


Como os medievais afirmavam: “O finito não pode conter o infinito”!
Nós precisamos preservar essa ideia de que Deus é transcendente, de que Ele
não é o nosso amigão, nosso camarada, o nosso Deus de bolso, esse Deus que a gen-
te diz: “Não, ele é nosso amigão, nosso paizão!” Não.
Precisamos preservar também a ideia de que Deus é separado de Sua criação,
Ele está para além da sua criação, Ele habita nos altos céus. Precisamos manter
essa serenidade de ter um temor, porque não conhecemos Deus plenamente. Deus
é transcendente, Ele está para além da nossa capacidade cognitiva de entendê-lo
plenamente.
O máximo que chegaremos perto de Deus e da compreensão de quem é Deus
e dos Seus atributos é compreendendo o que Ele revelou nas Escrituras. É o máximo
que iremos conseguir.
Nós não podemos ir além porque somos seres finitos, e nós não conseguimos
conter aquilo que é infinito, ou, para ser mais exato, aquilo que é eterno, afinal, Ele é
Deus, Ele não tem começo nem fim. Ele não tem começo, Ele não tem fim, Ele é eterno.
Então a gente precisa abraçar essa limitação e, por isso, a doutrina da transcen-
dência é tão importante. Essa característica de Deus é tão importante. Ele é transcen-
dente, Ele está para além deste mundo. Obviamente que a gente também não pode
criar uma teologia em que Deus não é acessível e nós praticamente não conseguimos
ter uma relação com Deus mesmo em Jesus Cristo. Aí é complicado. Alguns teólogos,
ao longo da história, criaram uma transcendência onde Deus não é acessível, onde a
relação com Deus só se vai dar no fim dos tempos e isso é complicado.
Nós queremos um Deus que é imanente e transcendente. Queremos um Deus
que está agindo agora na humanidade e que nós podemos acessá-lo por meio da
oração ao mesmo tempo em que, reconhecemos que nós não somos como Ele, que
somente Jesus Cristo foi como o Pai, cem por cento homem, cem por cento Deus, e
também respeitamos que Ele está no alto sublime monte, que Ele está no céu e que
nós só temos acesso a Ele por meio da oração e do Espírito Santo que foi enviado, o
outro consolador.
Mas é importante mantermos isto: Deus está habitando entre nós, mas Ele não é
nós. A soma dos seres humanos não é Deus. A soma dos seres humanos e do cuidado
do ser humano com a natureza não é Deus. Cuidamos da natureza e dos outros seres
humanos porque é um mandamento desse Deus que transcende essa criação. Se os
seres humanos acabarem e o mundo acabar, Deus continua, isso é a transcendência,
porque Ele está para além.

26
IMUTABILIDADE – O SENHOR NÃO MUDA
É vontade de Deus que o mundo se acabe? Não, Ele já prometeu, inclusive, uma
restauração e conta com o Seu povo que está aqui agindo na Terra. Vamos caminhar
para um atributo incomunicável de Deus que eu quero compartilhar com vocês.
Vemos aqui a imutabilidade de Deus ou a constância de Deus e temos esse texto em
Tiago que é muito legal:
“Toda dádiva que é boa e perfeita vem do alto, do Pai que criou as luzes no céu.
Nele não há variação nem sombra de mudança.” Tiago 1:17

Portanto, Deus não muda, não é homem para que se arrependa. Deus não
tem pensamentos dúbios, pensamentos bipolares, Deus não fica assim:
“Ah agora eu vou tentar isso. Agora eu vou tentar aquilo outro.” Não, Ele é
constante, Ele é eterno, Ele é a sabedoria, Ele é a santidade, Ele é a pleni-
tude. Então, Deus é imutável, Deus não muda.

Agora, ser imutável não quer dizer, como alguns transcendentes acreditam, né,
aquela teologia muito transcendental, não, por Deus ser imutável, Ele inclusive nem se
relaciona porque o mundo muda toda hora. Como é que Deus vai ser imutável e, ao
mesmo tempo, vai interagir com uma criação que muda a toda hora?
Bem, o fato de Deus ser imutável não quer dizer que Deus seja estático, isso que
nós precisamos atentar. Deus é estático, sim. Deus tem mudanças, mas não no Seu
Ser, no Seu interior, mas Deus muda de humor. Sim, afinal, o ser humano faz coisas
que Deus pede para o ser humano fazer e o ser humano não faz.
Então sim, eu defendo uma teologia que, infelizmente, o ser humano não faz
tudo aquilo que Deus quer. Então nós temos, nesse sentido, vontades de Deus que
não são aplicadas da forma que Deus gostaria. Isso, ao ouvido de algumas pessoas,
soa meio escandaloso, mas eu sigo essa linha teológica, porque eu também creio que
Deus não criou robôs. Mas vamos entender algumas coisas antes de a gente che-
gar nesse ponto aí mais delicado que causa alguns arrepios. Olha só o que o Louis
Berkhof12 diz sobre a imutabilidade de Deus:
A imutabilidade divina não deve ser entendida no sentido de imobilidade, como
se não houvesse movimento em Deus. É hábito na teologia falar-se de Deus como
actus purus (como um ato puro), Deus sempre em ação. A Bíblia nos ensina que Deus

12 Louis Berkhof (14 de outubro de 1873 - 18 de maio de 1957) é um teólogo sistemático reformado
cujas obras têm sido muito influentes na teologia calvinista da América do Norte e da América Lati-
na. Sua Teologia Sistemática tem sido, durante décadas, o livro-texto utilizado em muitas faculdades
protestantes de teologia no Brasil. Ele nasceu nos Países Baixos e mudou-se, ainda pequeno, para os
Estados Unidos.

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entra em multiformes relações com os homens e, por assim dizer, vive sua vida com
eles. Ele está cercado de mudanças, mudanças nas relações dos homens com Ele, mas
não há nenhuma mudança em Seu Ser, em Seus atributos, em Seus propósitos, em
Seus motivos de ação, nem em Suas promessas.
Aqui a gente vai falar um pouquinho da teologia do processo que parece ser mui-
to legal, resolveu alguns problemas, mas ela tem justamente esse defeito, ela muda
Deus demais. Vamos continuar a leitura aqui do Louis Berkhof:
Seu propósito de criar o mundo é eterno como Ele, mas não houve mudança
nele quando esse propósito foi levado a esse efeito por um único ato de Sua vontade.
A encarnação não produziu mudança no Ser e nas perfeições de Deus, nem em Seu
propósito, pois era do Seu eterno beneplácito enviar ao mundo o Filho do Seu amor.
E se a Escritura fala do Seu arrependimento, de Sua mudança de intenção, e da alte-
ração que faz de Sua relação com pecadores quando estes se arrependem, devemos
lembrar-nos de que se trata apenas de um modo antropopático de falar. Na realidade,
a mudança não é em Deus, mas no homem e nas relações do homem com Deus. Louis
Berkhof
Tem alguns pontos interessantes aqui para a gente analisar na fala do Berkhof.
A primeira questão é isso: que Deus não muda em Seu Ser. Como é que a gente
explica então a encarnação? Afinal, nós temos a encarnação onde a gente acredita na
tradição cristã que a segunda pessoa da trindade se fez carne. A gente defende isso
inclusive a partir de Romanos, capítulo 5, é a explicação do Natal, a princípio: por que
Deus se faz carne é a pergunta que Anselmo de Cantuária vai escrever a partir do V
século: “Cur Deus Homo”, por que Deus se fez carne?
Ok, nós temos aí uma mudança no ser divino? Não, nós não temos uma mu-
dança, em última análise, no propósito eterno desse ser divino porque estava no Seu
propósito ser encarnado, ou seja, a partir do momento que nós temos a encarnação
é adicionada uma natureza a essa divindade. Ela não é mudada, afinal, como nós já
falamos, Jesus não deixa de ser Deus ao ser também plenamente homem.
Percebam, não é uma mudança em Deus que vai mudar a estrutura do Seu Ser, é
apenas acrescentada à natureza humana e, consequentemente, a natureza em todas
as suas formas como a forma corpórea. Jesus Cristo foi cem por cento homem, assim
nós defendemos a partir da tradição cristã, da ortodoxia cristã mais geral, por assim
dizer. Então nós temos o que? Uma mudança em Deus, mas não uma mudança no
Seu Ser. Isso precisa ficar muito claro para vocês.
Então tem essa questão do propósito de Deus, foi do propósito de Deus que
o Seu filho se manifestasse em forma de carne e aqui também ele utiliza a palavra
antropopático quando fala da questão de se arrepender. Bem, será que Deus se ar-
repende? A gente tem aí dois textos. Tem vários outros textos, mas eu quero me ater
somente a esses dois textos para falar sobre imutabilidade:

IMUTABILIDADE – O SENHOR SE ARREPENDEU?

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“E o Senhor se arrependeu de tê-los criado e colocado na terra. Isso lhe
causou imensa tristeza.” Gênesis 6:6

E aí, em contrapartida, temos:

“E aquele que é a Glória de Israel não mente nem se arrepende, pois não
é ser humano para se arrepender!” 1 Samuel 15:29

Temos aqui uma aparente contradição? Sim ou não? Não, não temos contradi-
ção nenhuma e para a gente entender essa “aparente” contradição precisamos olhar
para o termo arrependeu-se. Essa palavra hebraica pode ser melhor traduzida, e vai
depender muito do contexto, por entristeceu-se, ou seja, uma tradução melhor seria:
“ E o Senhor se entristeceu de tê-los criado”. Portanto, o Senhor não se arrepende.
O que eu quero dizer: Deus não ficou olhando para Adão e Eva lá no Jardim do
Éden e falou assim: “Caraca, que arrependimento! Ô Jesus, cara, lembra que a gente
conversou tempos atrás sobre tu morrer e, olha, realmente aquilo que a gente previu
aconteceu.” Eu não creio que Deus decretou a Queda, como acreditam alguns, eu
acho isso um absurdo, no meu ponto de vista teológico. Aliás, o que que você pensa?
Você acredita que Deus, lá do céu, junto com Jesus e o Espírito Santo, olhou; “Gente,
decreta a Queda aí, pra galera se lascar mesmo e aí depois a gente vai e salva. A gente
cria e a gente salva, mas vamos decretar que a Queda vai acontecer.” Eu não acredito
dessa maneira. Você acredita?
Enfim, eu creio que Deus criou já sabendo, já prevendo que o ser humano faria
a coisa errada na eternidade. Aliás, como costumam dizer, “antes do Haja luz houve o
Haja cruz”. Melhor dizendo, Deus não fica lá: “Nossa, que arrependimento de ter feito
o ser humano, eles fazem tanta coisa errada. Ó Jesus, que bendita hora que tivemos
essa ideia. Ô Espírito Santo, onde é que você estava com a cabeça, quando achou uma
boa ideia criarmos a humanidade?. Já criamos os anjos e se rebelaram. Já vimos que
damos consciência, e acabam rebelando-se contra nós. Poxa, que arrependimento!”
Não! Tudo está conforme Deus planejou. “Ok, Bibo, tu acabou de falar que não acredi-
ta que Deus planejou a Queda.” Não, Deus não planejou a Queda, mas ele já planejou
a Salvação em consequência do livre arbítrio do ser humano. Por isso que eu disse,
aliás, não sou eu quem digo essa frase ,bem conhecida dita por vários teólogos: “Antes
do Haja luz! Houve o Haja cruz!”
Obviamente que Deus entristeceu-se , mas Ele não foi pego de surpresa, afinal
Ele é imutável. Deus não muda. O Seu humor pode mudar. Quando nós temos uma
vida que obedece aos Seus mandamentos, isso alegra o coração de Deus. Da mesma
forma que quando nós caminhamos longe de Deus, Deus fica triste. Não porque Ele é
bipolar, ou porque Ele é psicologicamente afetado, ou Ele fica toda hora afetado pela
sua criação. Não! Não é nesse sentido que Deus agora está tristinho e, por isso, Ele vai

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mandar o apocalipse. Não, não é isso, Deus não muda na essência do Seu Ser, mas,
obviamente que Ele reage à Sua criação e às coisas que a Sua criação faz.
Ele não se surpreende, como eu sempre costumo dizer nas minhas pregações.
Ele não se surpreende pela sua vida de devoção, pela sua leitura bíblica, pelo seu in-
teresse em estudar teologia aqui na EBT para poder melhor servir a igreja. Isso aí Ele
não se surpreende, mas obviamente que Ele se alegra.
Assim como Ele não se surpreende também com o seu pecado, com a sua ne-
gligência, com a sua avareza, com o seu adultério emocional, físico, carnal, enfim, Ele
não se surpreende, mas obviamente que Ele fica triste pelo comportamento de Sua
criação. Entende o ponto? Vocês conseguem ver, entender essa imutabilidade ao mes-
mo tempo em que Deus se relaciona? O problema da teologia do processo é esse:
ela tem uma teologia que, de alguma forma, coloca Deus tão preso à criação, tão
imanente, e, de alguma forma, suprime a onipotência e a onisciência de Deus, porque
Deus está vivendo junto com a gente.No afã de preservar isso eles acabam mudando
demais Deus.
Então Deus, na teologia do processo, muda toda hora e não só muda como, tipo:
“Agora está rolando essa guerra aí, pode rolar uma bomba nuclear aí. Vamos ver qual
vai ser a cena dos próximos capítulos.” Não.
Sabe como eu entendo isso? Não creio em um Deus que programou cada de-
talhe: “Não, agora, no dia dezesseis de março, às doze horas e quatorze minutos, o
Rodrigo estará gravando a aula da EBT, ele vai apertar no número dois, vai aparecer o
slide, depois no três e aparece essa transição.” Não, eu não creio que Deus decretou
todas essas coisas.
Eu não creio que Ele decretou a morte de uma criança. Eu não creio que Ele
tenha decretado o câncer que matou aquele bebê, enfim, eu não creio que Ele tenha
feito essas coisas. Agora, eu creio que Ele criou o mundo com leis e colocou o ser
humano nesse mundo (e a gente vai falar mais sobre isso no problema do mal) e não
é que Ele deixou acontecer, mas, sim, a criação está evoluindo e está numa relação
com Ele. Agora, como é que eu penso isso e às vezes eu procuro usar o cenário de
videogame para ver se você entende melhor: “Bem, um videogame, hoje em dia, você
tem lá um jogo e nesse jogo você escolhe um personagem e tem todo um mundo
para explorar com aquele personagem. Só que acontece o seguinte, ainda que tenha
liberdade de pegar carro, de tirar carro, de atropelar pessoas, de ajudar pessoas, de
cumprir a missão, de não cumprir a missão, se você só quiser ficar andando de carro
no cenário, você pode fazer. Você pode fazer o que você quiser no jogo, só que o jogo
tem um propósito, tem uma missão.”
E eu penso que o mundo é a mesma coisa, um grande jogo de videogame, que
Deus, inclusive, determina algumas coisas. Eu creio que Deus, sim, na Sua soberania,
determina algumas coisas. Creio também que, sim, alguns seres humanos são esco-
lhidos para o propósito de Deus, de forma arbitrária. Eu creio nesse sentido, mas não
todos os seres humanos, não toda a criação, porque eu creio, que Deus já decretou
algumas coisas sim, e outras Ele conhece todos os futuros possíveis, nada sai do con-
trole Dele.
E, outra coisa, Ele já garantiu também o fim dessa história e, no fim dessa histó-

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ria, o povo Dele é resgatado, é eleito, o povo Dele é restaurado, o mundo é restau-
rado. Então eu creio que Ele já garantiu. Se o Putin apertar o botão de uma guerra
nuclear13, eu creio que, se o mundo for acabar, estava realmente programado para
o Putin fazer isso.
Agora, eu não posso afirmar que Deus fez isso, entende? Eu não posso afirmar
que Deus decretou a guerra na Ucrânia? Não, isso foi egoísmo do Putin e de toda uma
ideologia horrorosa da Rússia e de seu governo.
Vocês entendem? Agora, Deus dá liberdade para que essas coisas aconteçam
e lamenta. Eu creio que Deus lamenta pela negligência dos governos e, por isso, as
pessoas morrem de doenças que poderiam ser prevenidas, soterradas porque estão
morando em lugares insalubres. Isso é culpa nossa e não de Deus, falaremos sobre
isso no problema do mal.
Mas o fato é que Deus já garantiu a revelação final. Creio que Ele já tem a história
toda programada para o seu desfecho. Creio na redenção da criação, na redenção dos
filhos de Deus, em um futuro maravilhoso. Acredito em um Deus eterno. Viveremos a
eternidade com Deus em novos céus e em nova Terra.
Obviamente que tem uma história nesse meio. Entre Gênesis 1 e Apocalipse 22
existe uma história se desenrolando e, sim, Deus está reagindo a essa história, está
agindo nessa história, intervindo na história. Ele é um Deus imanente ao mesmo tem-
po em que é transcendente.
Essa é a primeira característica de Deus, a sua imutabilidade, ou seja, esse é um
atributo incomunicável de Deus. Ele não comunica essa imutabilidade conosco, infeliz-
mente. Mudamos toda hora, nos arrependemos, tentamos de novo, se desse, voltarí-
amos no tempo para corrigir alguns erros, mas não dá. Só Deus é imutável e, por isso,
é santo, por isso é eterno e não erra, não há dúvida, não há variação. Obviamente que
esse Deus tem sim tristeza, Ele reage à Sua criação, mas o Seu Ser permanece íntegro
e, por isso, nós podemos confiar nesse Deus e depositar a nossa vida a Ele.

13 Aula gravada em maio de 2022.

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AULA 05
OS ATRIBUTOS DE DEUS – PARTE 2

Estamos falando sobre os atributos de Deus e, obviamente, focados aqui nos atri-
butos incomunicáveis, aqueles atributos que Deus não compartilha conosco. Esta é a
parte 2 e digo para vocês que tem mais coisas ainda, que teremos uma terceira aula so-
bre os atributos de Deus, porque também quero falar sobre os atributos comunicáveis.
Detalhe, eu não estou falando de todos os atributos incomunicáveis de Deus, e
como não falarei de todos os atributos comunicáveis de Deus, vamos fazer um pano-
rama dos principais, mais evidentes, temos muito o que conversar.
Quem sabe vamos destravando para aulas futuras. Seguindo aqui nosso papo
sobre os atributos incomunicáveis de Deus, temos esse primeiro atributo, aliás, segun-
do, porque na outra aula, falei sobre a continuidade de Deus, ou seja, Deus não muda,
a imutabilidade divina. Gastamos um bom tempo falando sobre a constância de Deus
na aula de número quatro.
Iniciaremos falando sobre o Deus que é eterno, ou seja, Ele é O ETERNO. Como
eu falei na aula passada, na revelação do nome de Deus Ele se apresenta como EU
SEREI O QUE SEREI, EU SOU O QUE SOU, EU SOU O ETERNO. Veremos, então esses
dois versículos bíblicos:
“Antes que os montes nascessem, antes que formasses a terra e o mundo, de
eternidade a eternidade, tu és Deus” Salmos 90:2

“E agora, nestes últimos dias, ele nos falou por meio do Filho, o qual ele
designou como herdeiro de todas as coisas e por meio de quem criou o
universo.” Hebreus 1:2

Melhor dizendo, Ele é o criador do universo de eternidade em eternidade. São


palavras humanas para nós tentarmos entender. Lembra que eu falei que o finito não
pode conter o infinito? São palavras que a Bíblia utiliza para que a gente possa enten-
der um pouco de Deus, ou seja, são antropopatismos e antropomorfismos.
O que é isso, antropopatismo, antropomorfismo? Antropopatismos são senti-
mentos humanos que são colocados na pessoa de Deus. Então Deus se entristeceu,
Deus ficou com ira, Deus tem humor, enfim, por aí vai. São sentimentos humanos para

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descrever uma atitude em Deus. É uma forma de a gente tentar entender a pessoa
de Deus, tentar compreender quem é Deus e, Glória a Deus, que Ele permite essa
linguagem antropopática demonstrando alguns sentimentos que Ele tem na relação
com a Sua criação.
E antropomorfismo são formas, morfos, antropomorfos, formas humanas a Deus.
“Então Deus sentiu o cheiro do sacrifício, Ele estendeu a Sua mão, a terra é o estrado
dos Seus pés.” É uma ideia de tentarmos entender Deus, a Sua grandeza, e também
isso facilita na relação, afinal, Deus nos amar é um sentimento, é um sentimento divi-
no, é um sentimento humano, aliás, o amor é um atributo divino que é comunicado. O
amor é um dos atributos comunicáveis de Deus.
Mas, voltando a falar da eternidade, nós temos essa linguagem para tentarmos
entender o que é a eternidade, porque, no fundo, nós temos dificuldade, nós somos
presos ao tempo, Deus não. Ele é eterno. Ele está para além do tempo.
É muito difícil entendermos. Vamos pensar o seguinte, (Bibo mostra um pente).
Imagina que esse pente, seja a linha do universo, Big Bang e Apocalipse. Deus está
vendo o Apocalipse hoje. Tudo é hoje para Deus. Tem até aqui o Rodman Williams,
esse teólogo pentecostal. Rodman Williams disse: “Na perspectiva do tempo, porém,
podemos falar do Deus pré-temporal (ou seja, Ele é antes do tempo), supratemporal
(está para além do tempo) e após-temporal» (Ele é depois do tempo). Aqui a linguagem
do Apocalipse 4:8 é bem relevante. O Deus todo poderoso que era, que é e que há de
vir, antes de tudo ou mais Deus era. Jesus orou a Deus Pai: E agora, Pai, glorifica-me
junto a Ti com a glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse.”
Falando dessa questão da eternidade, antes da criação, tudo é presente para
Deus. Como Ele é eterno tudo é o agora para Deus. Esse atributo da eternidade, essa
característica de quem Deus é, o Deus eterno traz uma confiança para nós. Já falei isso
na outra aula e vou falar na próxima, porque os atributos de Deus, conhecer os atribu-
tos de Deus nos traz uma segurança. Nós servimos aquele que é O ETERNO.
“És o alfa e o ômega, princípio e fim, tudo pra mim...” Eu acho que a música não é
assim, mas, isso é maravilhoso, Deus é eterno, o início do universo e a expansão desse
universo até o dia em que Ele vai restaurar todas as coisas, tudo já está diante Dele.
Tudo já aconteceu, está acontecendo e vai acontecer. Para Deus tudo isso é agora.
Tem uma série, gente, chamada Watchmen14. É uma série bem bacana da HBO.
Ela é uma continuação direta dos quadrinhos Watchmen. Põe na tela aí, Rafa, por
gentileza, os quadrinhos do Watchmen. Um baita quadrinho. Mas tem um filme do
Zack Snyder, caso você não queira ler o quadrinho, só que o final do quadrinho é di-
ferente do final do filme do Zack Snyder. E é importante você conhecer o quadrinho
porque a série é uma continuação do quadrinho. Mas, cultura pop à parte, o que
eu acho interessante, cara, nessa parte do Watchmen é um personagem chamado

14 é uma série de televisão dramática de super-herói americana que continua a série em quadrinhos
de 1987 da DC Comics, Watchmen, criada por Alan Moore e Dave Gibbons. A série de televisão foi criada
por Damon Lindelof para HBO, com Lindelof servindo como produtor executivo e roteirista.

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Doutor Manhattan15 ,ele tem atributos de onisciência e, consequentemente, eu diria
até de uma espécie de eternidade, porque tem uma cena do Doutor Manhattan em
que ele está vivendo presente e passado ao mesmo tempo. Melhor dizendo, ele está
vivendo o presente, mas, ao mesmo tempo, ele está vivendo o passado e aquele
passado é como se ele estivesse vivendo o futuro. Meio complexo, mas foi a melhor
representação, uma tentativa de explicar como é que é a eternidade, ou seja, como
que Deus olha tudo.
Imagina que tudo já aconteceu para Deus ,porque, afinal, Ele também é oniscien-
te, Ele sabe de todas as coisas. Isso está muito ligado. Essa eternidade está ligada à
Sua onisciência. Isso é meio confuso, mas o que isso tem que trazer para nós? Deus
conhece todas as coisas e Ele sabe das coisas do passado, do presente e do futuro,
tudo é hoje para Deus. Nós servimos a um Deus que cuida, que controla, Ele é eterno.
Nós somos limitados. Ele é eterno. Isso tem que trazer uma certa segurança para nós.
Deus é independente
Ele é independente, outro atributo incomunicável de Deus, afinal, nós somos to-
talmente dependentes Dele, somos dependentes emocionais uns dos outros, enfim,
somos dependentes. Ele não precisa da criação e muito menos a criou porque estava
se sentindo solitário. Ele não precisava da criação para ter algo com que compartilhar
o amor. Ele já tinha tudo que precisava no seu próprio Ser Trino. Deus é auto existente
e não deriva seu ser de algo anterior. Ele não é condicionado pela criação, mas a cria-
ção é completamente sujeita à sua vontade.
Essa história de que Satanás era o ministro de louvor no céu, e que Satanás se
rebelou, Deus precisou criar um povo para ocupar o lugar de adoração que Satanás
ocupava (e eu já ouvi essa história, mais de uma vez, inclusive). Isso é mentira! Deus
é auto suficiente. Ele é independente. O Ser Trino de Deus, Pai, Filho e Espírito San-
to, essa dança da Trindade, esse amor que une a Trindade, o Pai é satisfeito no filho,
que é satisfeito no Espírito, o espírito que é satisfeito no Pai e no filho, o Filho que é
satisfeito no Pai e no Espírito, o Pai que é satisfeito no filho e no Espírito. Eles são in-
dependentes. É um Deus Trino, satisfeito em Si, afinal, é um único Deus que subsiste
em três pessoas.
Deus é independente e isso é muito bom, porque Ele não é um Deus carente, um
Deus possessivo. Ele respeita inclusive a nossa decisão: “Ah você não me quer? Tudo
bem, pode viver sem mim. Quem vai perder é você.” Deus é independente. Deus não
fica mendigando afeto, porque, cara, eu tive até uma lembrança aqui agora. Se você
pegar as histórias de origens de outros povos, o Enuma Elish, os relatos de criação de
outros povos do antigo oriente próximo, povos que conviveram com Israel, é uma bri-
ga de deuses. Os deuses todos ciumentos. Veja os deuses gregos, são todos ciumen-

15O Dr. Manhattan é notoriamente o único personagem em Watchmen com superpoderes reais, per-
mitindo que a venerável série de quadrinhos mantenha o selo de fãs de uma “história de super-herói
realista”. Suas habilidades têm um efeito profundo na história alternativa de Watchmen dos Estados
Unidos, e enquadram os limites de sua trama.

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tos, todos cheios de ira, cometem erros e penalizam a humanidade. A humanidade
está ali no meio daquela guerra de egos divinos. Isso é horrível. O próprio ser humano
é resultado da briga. É um demônio partido que surge do céu, que surge na terra. É
uma loucura. Se você pegar os outros relatos de criação.
O nosso não. Deus criou porque é bom. Deus criou para Sua Glória e não por-
que Ele estava carente ou entediado. Não, Deus nos criou para Sua Glória, o que
acontece? Temos que estar satisfeitos com Ele, porque Ele não precisa de nós para
estar satisfeito, mas nós precisamos de Deus. Ele é independente. Então isso traz
uma segurança. Ele não nos criou porque estava entediado. Ele nos criou para nos
amar e isso deve trazer um conforto em nosso coração. Outro atributo de Deus é a
Sua onipotência.

DEUS É ONIPOTENTE
Deus é livre (Ele é todo-poderoso) e onipotente (Gn 17.1; 18.14; Jr 32.27; Lc 1.37;
Mc 10.27). Isso não quer dizer que não haja limitações no poder de Deus, mas as li-
mitações que existem são apenas os limites impostos pela Sua própria natureza. Por
exemplo: “Deus não pode pecar ou fazer mal. Ele não pode desistir de ser (Deus não
pode tirar a Sua própria vida, porque isso é irracional, isso é ilógico, não faz sentido),
mas Deus tem todo poder para cumprir Sua vontade. E essa vontade nunca é frustra-
da. Todas as coisas são feitas segundo o conselho da Sua vontade.”
Então Deus é todo-poderoso, Ele é onipotente, Ele tem poder sobre todas as coi-
sas. Mais um motivo de segurança, ou seja, conhecer os atributos de Deus é ter uma
segurança, uma fé solidificada. O nosso Deus é todo-poderoso. Agora, tem uma pergun-
ta, meio que uma pegadinha filosófica que trazem de vez em quando: “Deus pode criar
uma pedra tão pesada que Ele mesmo não possa levantá-la?” Uma pegadinha filosófica
para negar a onipotência de Deus e consequentemente o Ser de Deus, porque: Se a
resposta for SIM, Deus não seria todo-poderoso, pois Ele não teria o poder de levantar a
pedra em questão. Se a resposta for NÃO, Deus também não seria todo-poderoso, pois
haveria pelo menos uma coisa que Ele não poderia fazer: criar a referida pedra.
Isso é o Paradoxo da Onipotência e, na verdade, esse paradoxo é uma falácia16
filosófica, porque onipotência tem uma regra e essa regra é aquilo que é possível ser
feito, aquilo que está dentro de uma lógica. Então Deus não pode mentir. Por que
Deus não pode mentir? Porque é contra a Sua natureza pecar, fazer o mal. Então a
gente precisa entender essa questão da falácia filosófica porque ela não faz sentido.
As categorias não fecham. Você está misturando o finito com o infinito. As categorias
de pensamento não fecham.

16 Falácias são argumentos que têm a pretensão de ser corretos e conclusivos mas que, no entanto,
possuem algum erro em sua estrutura ou seu conteúdo. São majoritariamente encontradas em
pensamentos envolvendo maus raciocínios ou ilusões que fazem com que um mau argumento pareça
adequado quando, na verdade, é frágil ou inconsistente.

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Este é o famoso Paradoxo da Onipotência. Ou seja, de qualquer maneira, tería-
mos um Deus que não seria todo-poderoso, Você está entendendo? É uma pergunta
que já leva para a resposta que Deus não é todo-poderoso. E quando nós falamos do
problema do mal tem aquela questão do mal: “Pô, mas se Deus é bom, por que existe
o mal? Então, se existe o mal, Ele não é todo bondoso. E, se existe o mal e Ele não faz
nada, então Ele não é todo-poderoso!” .A gente vai entrar nessa discussão quando fa-
larmos sobre o problema do mal, mas, por enquanto, ficando aqui na onipotência de
Deus e resolvendo esse paradoxo, é isso.
Então voltando, teríamos um Deus que não seria todo-poderoso e, portanto, que
nem mesmo Deus seja, já que a onipotência é uma das características essenciais de
Deus. Então nós precisamos entender que isso é uma falácia filosófica porque onipo-
tência não significa fazer tudo sem regras. Não. Deus estabeleceu regras a partir da
Sua natureza, a partir da Sua sabedoria, Ele não pode quebrar a própria regra.
Então ser todo-poderoso significa que Deus tem o controle de tudo aquilo que
Ele criou, de tudo aquilo que a Sua vontade traz à existência. Deus não pode fazer um
círculo quadrado porque isso não é lógico, não é racional, não faz sentido.

DEUS É ONISCIENTE
Deus sabe de todas as coisas!. Deus não aprendeu com alguém, Deus não fez um
curso. Deus sabe de todas as coisas porque Ele é o criador de todas as coisas, porque
Ele é o eterno, ou seja, o conhecimento de Deus não é aquele adquirido por meio de
raciocínio e reflexão, nem acumulado por meio de experiência e verificação. Deus não
é aprendiz. O profeta pergunta retoricamente: “Quem lhe ensinou o conhecimento ou
lhe apontou o caminho da sabedoria?” (Is 40.14). A resposta é obviamente “ninguém”.
Isso não significa que Deus seja autodidata, mas que Sua mente engloba todo o
conhecimento. Ele conhece o passado, o presente e Ele conhece, inclusive, o futuro, ou
seja, tudo está sob o controle Dele, nada escapa ao Seu controle, Ele sabe de todas as
coisas. E por que Ele sabe de todas as coisas? Porque o futuro para Ele é o agora, Ele é!
Na verdade Deus nem existe, em última análise, alguns irão dizer. Deus não
existe, porque existir, de alguma forma significa vir a ser, vir de algum lugar. Deus é. É
claro que Deus existe, mas vocês estão entendendo que a palavra existir talvez não se
aplique bem a Deus, porque Ele está para além da existência. Ele é. Ele criou. Ele faz as
coisas passarem a existir. Ele é onisciente, Ele sabe de todas as coisas.

DEUS É ONIPRESENTE
E obviamente que o outro atributo que Deus tem é a Sua onipresença. Ele está
em todos os lugares, atua em todos os Seus lugares, ora atua com amor, ora atua com
juízo. Nós não podemos fugir de Deus porque Ele está em todos os lugares.
Afinal, como diz o salmista no Salmo 139, dos versículos 7 a 12: “Para onde po-
deria eu escapar do Teu espírito? Para onde poderia fugir da Tua presença? Se eu subir
aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama na sepultura, também lá estás. Se eu subir

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com as asas da alvorada e morar na extremidade do mar, mesmo ali a Tua mão direita
me guiará e me sustentará.”
Quando nós temos o conhecimento de Deus e sabemos quem é Deus essa pre-
sença ganha um significado. Ganha um significado de misericórdia, de amor, de comu-
nhão. Nós temos comunhão com Deus porque sabemos que Deus está aqui.
Até tem uma frase pentecostal muito interessante. Ela é interessante no sentido
negativo, mas é que eu ouvi muito: “Irmãos, tem hora que a gente está orando e a
parede do quarto, o teto do quarto parece de bronze. Parece que a oração não sobe,
porque está tudo de bronze!” Bem, isso não é um problema porque Deus é onipre-
sente, Ele está em todos os lugares e Ele age com amor e age também com justiça.
Por exemplo, a presença de Deus no inferno vai ser uma manifestação de juízo,
enquanto que a manifestação da presença de Deus na eternidade para os escolhidos,
para os eleitos, para o Seu povo que é um povo eleito, ou seja, em novos céus, e nova
terra, vai ser uma manifestação de comunhão, de galardão, de alegria. Então Ele é oni-
potente, onisciente e onipresente. Esse é o nosso Deus.

37
AULA 06
DEUS É SANTO

Estamos falando agora de uma característica divina que tem a ver com a Sua
moral, afinal, Deus é Santo. Esse Deus que é Santo, nós podemos confiar? Essa é a
pergunta que precisamos fazer. Falamos na outra aula que esse Deus é onipresente,
onipotente, onisciente. Ele é todo-poderoso, mas será que esse Deus é bom?
Falamos sobre a bondade de Deus. Caberia, inclusive, nesses atributos comuni-
cáveis de Deus, mas eu não vou falar aqui. Eu vou deixar para falar sobre a bondade
de Deus quando falarmos sobre o problema do mal.
Sobre o caráter de Deus: Esse Deus poderoso descrito nas aulas anteriores é
bom ou ruim? Precisamos pensar agora nas qualidades morais desse Deus, isto é, Seu
caráter. Esse Deus é confiável?. Esse Deus que nós temos, que nós adoramos e que
demos a Ele um poder enorme. Não, na verdade, isso é só uma construção de frase.
Nós demos no sentido de analisar esse Deus, porque não damos nada para Ele. Mas,
de acordo com as escrituras, esse Deus é todo-poderoso, Ele é imutável, Ele faz o que
Ele quer, Ele tem o controle na história, Ele é soberano. Nós temos uma segurança.
Deus é bom, porque Ele é Santo. Então nós estamos estudando o que? Os atributos
comunicáveis de Deus. Relembrando:
Atributos incomunicáveis: aquilo que Deus não comunica para nós. Ele não co-
munica. Ele não comunicou a Sua onisciência, a Sua onipresença, a Sua onipotên-
cia, assim como a Sua imutabilidade. Enquanto nós mudamos a toda hora, Deus não
muda. Agora, existem os atributos comunicáveis de Deus, como a Sua Santidade. Ago-
ra, o que isto quer dizer?
Atributos comunicáveis: quer dizer que Deus compartilha esse atributo com a hu-
manidade, mas, mas, mas, mas, tem detalhes que a gente precisa entender para não
cair num erro. Bem, um desses atributos comunicáveis de Deus é a Sua Santidade.
Deus é Santo. E para isto vamos ler o texto de Isaías:

“No ano em que o rei Uzias morreu, eu vi o Senhor. Ele estava sentado em
um trono alto, e a borda de seu manto enchia o templo. Acima dele havia
Serafins, [...] Diziam em alta voz uns aos outros: “Santo, santo, santo é o Se-
nhor dos Exércitos; toda a terra está cheia de sua glória!” E ainda um outro
texto que a gente vai abordar um pouquinho depois, um outro versículo:

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[...] Então eu disse: “Estou perdido! É o meu fim, pois sou um homem de
lábios impuros e vivo no meio de pessoas de lábios impuros.”(Isaías 6:1-5)

“Santo, Santo, Santo’’ quer dar ênfase nessa característica divina . É interessante
que essa ideia, essa repetição “Santo, Santo, Santo’’ significa uma ênfase, ou seja, o
autor, aqui o profeta, quer dar ênfase na santidade, é o Santíssimo Deus.
A repetição, dentro da cultura hebraica, é para dar ênfase. Então quando uma
palavra é repetida assim, são poucos os casos em que a palavra Santo é repetida
dessa maneira: Santo, Santo, Santo. E aqui eu lembro da música do Morada: “Só Tu
és Santo!” Eu amo essa música. Não tem teólogo que fique de pé diante dessa música
do Morada. Mas, esse texto de Isaías é muito legal para começarmos a pensar sobre
a Santidade de Deus.
Primeiro já tem um ponto interessante aqui: “No ano em que o rei Uzias mor-
reu, eu vi o Senhor.” É interessante porque isso fala da diferença entre o rei Jesus,
ou melhor, o rei Deus, afinal, Ele está no alto e sublime trono, Ele está em um trono
sentado. Esse rei não morre, ou seja, a brincadeira aqui que o profeta está fazendo,
provavelmente: “No ano em que o rei Uzias morreu, eu vi o Senhor.”, ou seja, o rei Uzias
morreu, mas eu vi o Senhor e Ele continua governando. Esse rei terreno é passageiro,
finito, é efêmero, mas o Nosso Rei, esse não, esse Rei é Eterno, esse Rei é Santo.
Então Santidade está ligado a essa diferença. Esse Deus que é diferente, o rei
Uzias morreu, mas eu vi o Senhor. E aqui alguns pontos, né. Ele está exaltando essa
questão, inclusive Deus está lá, parado, sentado no Seu alto trono, no Seu trono alto.
Até essa ideia na cultura hebraica de que o que está no alto é nobre e o que está
no chão e abaixo do chão não é nobre, é inferior, então ele está no alto. Obviamente
que aqui não se está falando da grandeza de Deus no sentido de que Deus é maior
que a Terra, não, Deus é infinitamente maior. A ideia aqui é só nos dar uma dimensão
de que Ele está no alto, logo está refletindo uma ideia de nobreza.
Bem, seguindo aqui, temos essa ideia de que Deus é Santo, e se Deus é Santo,
o que significa ser Santo? Assim como as árvores, as palavras têm raízes. Se você es-
cavar o solo debaixo das letras, descobrirá sua definição. O radical da palavra “santo”
significa “cortar” ou “separar”. Quando aplicado a tudo fora de Deus, tudo que é santo
é separado para Deus.
Por exemplo, o shabbat (o dia do sábado) foi santificado; o solo em que Moisés
teve um encontro com Deus (Moisés teve que tirar as sandálias porque era uma terra
santa); utensílios do Tabernáculo (eram santificados), etc. Mas temos a pergunta: Deus
é Santificado do que? Deus está separado do que? Essa é a pergunta.
DEUS É SEPARADO DO QUE?
Quando nós falamos da santificação, quando Deus santifica alguém ou alguma
coisa, Ele o separa, então santidade, é separado, Ele corta para Ele. Ele separou para
Ele, para a obra Dele. Agora, quando eu digo que Deus, ou melhor, Deus não diz nada,
são Serafins que cantam “Santo, Santo, Santo”, o que isto quer dizer? Deus é separado,
Ele é cortado do que?

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Olha o que a Jackie responde: “Dizer que Deus é santo significa identificar sua
posição de ser separado. De que ou de quem Deus é separado? Pessoas e coisas só
são santas se forem separadas para Deus, mas Deus é separado de quem? A resposta
é simples. Deus é único, diferente, outro e distinto de tudo que existe.”
Nós falamos um pouco sobre isto quando falamos da transcendência de Deus.
Você se lembra dessa aula? Deus é transcendente. Então isso está ligado à Sua Santida-
de e a Santidade de Deus diz respeito que Ele é separado da Sua criação. Agora, a Jackie,
inclusive, reforça o seguinte: “Afirmar essa transcendência de Deus, como nós já falamos
também na aula anterior, não significa que Ele esteja descolado da Sua criação. Não.
Vamos ver o que a Jackie diz: “Isso é chamado de transcendência divina. Significa
que Deus é totalmente único, diferente de tudo que há. Deus não existe e não pode
existir da mesma maneira que nós ou qualquer outra coisa. Isso o separa de toda a
criação como um ser distinto dela: santo.”
Assim, vemos que a santidade de Deus diz respeito à pureza moral e também
a uma alteridade transcendente e auto existente. É totalmente certo e eternamente
existente. Algo que, é claro, somente Deus é. Deus compartilha Sua Santidade conosco,
eu falei, esse aqui é um atributo comunicável de Deus, entretanto, só Deus é eterno, só
Deus é imutável, portanto, se Ele é transcendente, se Ele é imutável e, ao mesmo tempo,
é Santo, isso quer dizer que nós podemos confiar nesse Deus. Ele é Santo. Ele é puro. Ele
é separado daquilo que é mal, daquilo que é sujo. Mesmo quando Ele assume a nature-
za humana, Ele assume para redimir essa maldade. Ele acaba com o próprio mal. Então,
Ele não é mal, Ele assume as consequências da maldade humana. Falaremos mais sobre
isso no módulo sobre Jesus, aliás, tem várias coisas sobre Deus que não falaremos neste
módulo, mas falaremos em outros módulos. Por exemplo, já falei da bondade de Deus e
ainda falaremos neste módulo. Sobre santidade, iremos estudar quando falarmos sobre
o Espírito Santo, então, por isso, você deve continuar na EBT.
Nós podemos confiar em Deus. Porque Ele é Santo, Ele é imutável. Deus é separa-
do de tudo, de todos. Ele não se contamina com nossa maldade. Não há contaminação
onde Ele habita e, claro, onde Deus está, Ele também vai santificando como veremos
a seguir. Olha o que a Jackie diz: Deus é absolutamente distinto, mas não separado a
ponto de ser inatingível ou incognoscível, Deus não é inatingível, nós podemos atingir, de
alguma forma, uma compreensão sobre Deus, compreender o Seu caráter. Essas aulas
que nós estamos fazendo aqui, só são possíveis porque Deus se revelou e já tratamos
bastante no módulo sobre Deus e também na Introdução à Teologia do módulo Teolo-
gia Simples. Ele pode ser, inclusive, conhecido. Nós podemos conhecer a Deus. Então,
por mais que Ele seja absolutamente distinto, Ele dá algo, Ele se mostra para nós e isso
é maravilhoso. Porém separado de nós por existir de maneira diferente. Por ser santo, é
absolutamente único. Sua singularidade é o que o define como santo, pois, conforme já
vimos, a palavra em si significa “cortar” ou “separar”. Ele é superior a nós no próprio ser,
totalmente diferente de nós em sua maneira de existir.
Esse Deus é maravilhoso. Ele é Santo. E sim, só Ele é Santo desta maneira. Ele é
sempre puro. Não há variação em Deus. Se não há variação em Deus, Ele sempre será
Santo, porque Ele é Santo, Ele foi Santo. Ele é o Eterno. Eternamente Santo. Isso dá
uma confiança maravilhosa.

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DEUS É SANTIFICADOR
Mas agora tem um aspecto interessante, já que é um atributo que Ele comunica,
Ele é um Deus Santificador e aí Isaías continua, aliás, já lemos esse texto antes: Então
eu disse: “Estou perdido! É o meu fim, (Olha Isaías) pois sou um homem de lábios impu-
ros e vivo no meio de pessoas de lábios impuros. Isaías 6:1-5
É interessante que já falei isso várias vezes pregando, enfim, em podcasts, a
galera fica pedindo para ver Deus e eu até nem sei se eu já não falei isso para vocês,
mas vou repetir, porque é sempre bom frisar aqui. Repetimos, a música gospel, de
forma geral, “Ah, eu quero ver Deus! Eu quero ver Deus! Eu quero Te ver!”. Temos
que tomar cuidado com esse pedido, porque ver Deus significa ver a Sua Santidade
e ver a Santidade de Deus tem um efeito em nós que não é esse cantado pelas
músicas gospel. Essa galera se sente numa mega intimidade com Deus e acaba, mui-
tas vezes, perdendo a reverência. Olha só o que acontece quando Isaías vê Deus:
Depois de ver o Deus Santo, Isaías viu a si mesmo. (E o que Isaías percebeu? O que
ele reconheceu?) E reconhece instantaneamente o que se encontrava entre ele e
Deus, o único verdadeiramente santo. Na presença do Senhor, sua culpa ficou clara,
seus pecados se destacaram, descobertos, expostos, revelados sem filtro. Em voz
alta, sem botão de mudo ou um dedo para colocar sobre a boca e fazer cessar o
barulho. Ele confessou a impureza de sua língua, que comunicava a poluição que
fazia parte de sua natureza. Ver o Deus Santo significa ver a humanidade pecadora,
a Santidade de Deus revela o nosso pecado.
Um aspecto muito interessante da santidade de Deus é que Ele dá a Lei e a Lei é
uma coisa boa. A Lei revela esse caráter Santo de Deus. E, ao mesmo tempo em que a
Lei revela esse caráter Santo de Deus, deixa muito claro a nossa incompetência diante
dessa Lei. A Lei de Deus deixa bem clara à humanidade que ela não é capaz de dar
conta, de obedecer plenamente a esse Deus.
Obviamente que, com o Espírito Santo, a gente caminha em direção a essa obe-
diência. A partir de Cristo nós caminhamos em Cristo e Ele é o caminho, a verdade e a
vida, Ele cumpriu a Lei e isso é maravilhoso. Entretanto, a Lei revela a minha maldade
e esse encontro com Deus, assim como Isaías, ela revela essa ideia de que nós somos
pecadores.
Eu achei linda essa frase: “Depois de ver o Deus Santo, Isaías viu a si mesmo.”
Toda intimidade com Deus que não me levar a um reconhecimento da santidade ab-
soluta de Deus e a minha santidade incompleta, manchada pelo meu pecado, essa
intimidade não é verdadeira. Olha que barulho que essa presença de Deus fez com
Isaías, mas, é claro, esse Deus é Santificador, e o texto continua: “Então um dos sera-
fins voou para mim, trazendo na mão uma brasa viva, que havia tirado do altar com
uma pinça. Com a brasa tocou a minha boca e disse: - Eis que esta brasa tocou os seus
lábios. A sua iniquidade foi tirada, e o seu pecado, perdoado.” Isaías 6:6,7
Isso é maravilhoso, essa promessa de que esse Deus, absolutamente Santo, San-
tifica o Seu povo. A partir do momento que nós temos essa postura de reconhecer
quem Deus é, e quem nós somos diante desse Deus, Ele age Santificando esse povo,
traz as brasas vivas do altar e nos purifica constantemente.

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Essa aula eu tirei basicamente do livro “Santo, Santo, Santo” da Jackie Hill Perry17,
uma teóloga americana, cantora de Rap, esposa, mãe de quatro e escritora. Recomen-
do demais. Sempre que você for comprar alguma coisa na Amazon, compre pelo link
do Bibotalk18 que você ajuda demais o nosso ministério.

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AULA 07
DEUS É AMOR

Vamos continuar aqui mais uma aula na Escola Bibotalk de Teologia. Agora va-
mos falar sobre esse atributo comunicável de Deus que é o amor. Inclusive uma das
primeiras músicas cristãs que eu aprendi fala sobre o amor. Cantarei pra vocês. Quem
me acompanha aqui no Bibotalk sabe que eu sou um cantor ruim, mas gosto de can-
tar. Fazer o que? A música era assim:
“O amor sem Deus tão passageiro é
Mas o doce amor de meu Mestre
É algo que jamais morrerá
Não morrerá! Não morrerá!
É algo que jamais morrerá!
Sim, o doce amor de meu Mestre
É algo que jamais morrerá!”

O amor de Deus é uma coisa maravilhosa! Então nesta aula vamos falar sobre
Deus é Amor que, inclusive, é o nome de uma igreja. Sobre essa questão de Deus ser
amor, todos nós queremos um Deus que ame incondicionalmente. Aliás, sem dúvida,
essa característica de Deus, o amor, é uma das mais faladas e uma das mais abusadas
e deturpadas na sociedade moderna. Nós vivemos realmente uma hipergraça, vive-
mos momentos em que as pessoas pensam que basta amar a Deus do jeito delas e
que Deus as ama do jeito que elas são. É assim: “Olha, o importante é você amar e o
importante é saber que Deus o ama como você é.”
Então nós criamos uma teologia do amor de Deus que nem sempre condiz com
as escrituras, como vocês podem ver aqui no slide, todos querem um Deus que ame
incondicionalmente. Será que o amor de Deus é sempre incondicional?: “Eu os amei
como o Pai me amou. Permaneçam no meu amor. Quando vocês obedecem a meus
mandamentos, permanecem no meu amor, assim como eu obedeço aos mandamentos
de meu Pai e permaneço no amor dele.” João 15:9,10
Carson afirma que em um relacionamento de aliança, a relação de Deus com o
povo eleito passa a ser condicionada pela obediência, DE CERTA FORMA, inclusive ele
apresenta ainda outras quatro manifestações diferentes do amor divino.
É importante percebermos isto: o amor de Deus nas escrituras, de alguma forma,
é incondicional, afinal Ele nos amou quando nós éramos ainda Seus inimigos. Então, é

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importante nós pensarmos nisto: o amor, em determinado momento, é incondicional.
Ele nos amou sem nenhuma condição. Mas, como Carson observa aqui, este amor
tem condições a partir do momento que Deus está em um relacionamento de aliança
com o Seu povo. Se é um relacionamento de aliança, começam a ter condições para
este amor.
Vamos voltar para um exemplo do Antigo Testamento que eu já falei em outras
aulas para vocês e eu imagino que já falei até no módulo Teologia Simples. Deus liber-
ta o povo do Egito, certo! É algo incondicional, aliás, é até um amor eletivo, Deus elegeu
amar Israel, ele escolheu, Ele selecionou Israel para ser alvo do Seu amor, então, isto
foi um amor incondicional. Agora, a partir do momento em que Deus se torna o Salva-
dor, se revela o Salvador para o povo de Israel o que começa a acontecer?

Deus entrega os dez mandamentos e, ao entregar os dez mandamentos,


a coisa muda. Por que? “Olha, eu estou dando aqui bênçãos e maldições para
vocês!” Em última análise, afinal, em Deuteronômio capítulo 28, terão bênçãos e
maldições da obediência à Lei. O próprio texto que acabamos de ler fala: “Quem
me ama obedece aos meus mandamentos assim como eu obedeço aos manda-
mentos de meu Pai.”
Então, sim, em um relacionamento de aliança o amor de Deus não é mais incon-
dicional, ele passa a ser condicionado à nossa obediência e, muitas vezes, a teologia
moderna, essa teologia coaching, esquece este detalhe e isto pode ser extremamente
perigoso. Seguindo nossa aula, Carson apresenta outras maneiras pelas quais a Bíblia
fala do amor de Deus:

MANEIRAS PELAS QUAIS A BÍBLIA


FALA DO AMOR DE DEUS
1 – Existe o amor de Deus. O elo na Trindade Santa. Cada pessoa na trindade
acha a outra gloriosa e perfeita. Ou seja, é o amor entre as pessoas da Trindade. Esse
elo entre as pessoas da Trindade, essa dança da Trindade que vamos examinar em
algumas aulas daqui para frente. Então olha só, existe o amor de Deus. Deus que é
satisfeito em Si mesmo. Então existe o amor de Deus, esse elo entre a Trindade.
2 – O amor de Deus sobre toda a criação. Que amor é esse? É o amor que faz o
sol nascer, a chuva cair sobre justos e injustos, sobre amigos e inimigos, como a gen-
te pode ler a partir de Mateus, capítulo 5, versículo 44: “Eu, porém, lhes digo: amem
os seus inimigos orem por aqueles que perseguem vocês para demonstrarem que são
filhos do Pai de vocês, que está nos céus. Porque ele faz o seu sol nascer sobre maus e
bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque se vocês amam aqueles que os amam,
que recompensa terão?” Olha só, não terão recompensa, né! “Os publicanos também
não fazem o mesmo? E, se saudarem somente os seus irmãos, o que é que estão fazen-
do demais? Os gentios também não fazem o mesmo? Portanto, sejam perfeitos como é
perfeito o Pai de vocês que está no céu.” É o amor de Deus, o amor de Deus que está
aí sobre toda a criação.

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3 – Um amor convidativo, categórico e anelante. É aquilo que Deus diz: “Vocês
acham que eu gosto de ver os perversos morrerem?’’, diz o Senhor Soberano. Claro que
não! Meu desejo é que eles se afastem de seus maus caminhos e vivam.” Ezequiel 18:23.
Ou seja, é o amor de Deus. É o amor de Deus sobre toda a criação, é o amor de Deus
que convida, que ama o ímpio, que não tem alegria, que não tem prazer na morte do
ímpio.
4 – Às vezes o amor de Deus é seletivo. Ele simplesmente resolveu amar Israel,
de um jeito que não amou as demais nações (Dt 7 a 10). Simples assim.
Então, são cinco maneiras. A primeira eu já falei: o amor de Deus é incondicional,
mas, na verdade, ele é condicional também e tem essas outras facetas do amor de
Deus. Lembrando, quando falamos que são cinco maneiras, não são cinco tipos de
amor, na verdade, são cinco formas, cinco maneiras diferentes que o amor de Deus
se expressa. O amor de Deus é o amor de Deus, mas, que na Bíblia, é expresso de
maneiras diferentes.

COMO HARMONIZAR ESSAS MANEIRAS DE DEUS AMAR?


Entender que a Bíblia é um livro plural com muitas ideias que vão, de alguma
forma, se concatenando. Por exemplo: Carson fala dos contextos em que as relações
se desenvolvem. Por isso, Deus não ama todos da mesma maneira, sempre. Depende
da estrutura dessa relação. Por exemplo, quem não estiver em Cristo sofrerá o juízo
de Deus.
Isso é muito sério para entendermos: essa ideia meio equivocada do amor de
Deus. De fato, como falamos na terceira aplicação do amor de Deus, o amor de Deus é
um amor convidativo, Deus realmente ama a todos nós, mas será que Ele ama da mes-
ma maneira?. Então, é um ponto, a nossa relação com Deus é dinâmica e obviamente
que “Ah Deus não muda, Bibo. Você falou na outra aula que Deus não muda!” Sim,
mas lembra que eu falei que Deus se entristece? Então, é claro, que o amor Dele per-
manece pela Sua criação, mas há determinados momentos e há determinados níveis
de amor conforme a relação da criatura com o criador. Nós precisamos entender isso.
Deus vai mandar gente que Ele ama para o inferno. Então, eu só sou o mensageiro,
mas esta é a verdade. Deus ama e não tem prazer na punição.
Então, é o que o Dane Ortlund fala no livro “Manso e Humilde”19, chama de “a
obra estranha de Deus’’. Que obra estranha é essa de Deus? É o juízo, porque o na-
tural de Deus é o amor, é o amar, é o trazer para perto, é trazer para a relação, isto é
o natural de Deus, é nisto que Deus se alegra. Ele se alegra em ter uma relação com
a Sua criação mediada pelo Seu espírito. Agora, existe uma obra estranha de Deus
e essa obra estranha é a punição, o juízo. Deus é Santo e a Sua Santidade revela
também o compromisso que Ele tem com essa Santidade de punir o mal e Deus vai

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punir os pecadores que não se arrependem dos seus pecados, que é como o Dane
fala em “Manso e Humilde”: A obra estranha de Deus, a Sua obra natural é a Sua obra
estranha. A obra natural de Deus é amar. A obra estranha é punir, mas fazem parte de
quem Deus é, das Suas características.

A MEDIDA DO AMOR DE DEUS É JESUS CRISTO


Já vimos que a Bíblia fala de maneiras diferentes sobre o amor de Deus. Nesse
contexto imediato, o objeto do amor de Deus é o “mundo” – homens e mulheres, cada
etnia, judeus e gentios, todos perdidos em uma determinação ímpia que nos separa
do Deus presente – e Deus nos ama apesar disso. É admirável! E a medida deste amor
é Jesus, este Jesus que, antes de se encarnar era um com o Pai num perfeito círculo
de amor, na eternidade passada. Agora, o Pai dá o Seu filho por nós. Essa é a maneira
como Ele escolheu nos amar. Deus dá, em essência, a Si mesmo.
Esse é o tipo de Deus que nós temos. Um “Deus que amou o mundo de tal ma-
neira que deu Seu Filho Unigênito para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas
tenha a vida eterna.” Deus olha para esse mundo caído, para esse mundo pecador,
para esse mundo de gente deplorável como eu e você e nos ama, apesar de nós. Não
porque merecemos e não porque somos esse tipo de gente, mas porque Ele é esse
tipo de Deus, um Deus que ama, e como isso é maravilhoso! Como nós precisamos
conhecer a dimensão do amor de Deus, a Sua largura, a Sua profundidade!
Como nós precisamos ter os olhos do nosso coração abertos para desfrutar
desse amor, desse Deus que ama, sim, ama e nos busca! É um Deus que realmente
nos caça. Eu gosto desta figura. Eu lembro que tinha uma música do meu tempo bem
pentecostal que falava:

“Como um caçador eu Te seguirei


Se preciso for
Eu subirei nos altos montes
Mergulharei profundas águas
E andarei longos caminhos”

Essa música fala que nós somos os caçadores de Deus, aquela ideia de buscar
a Deus, e não é bem isso. No fundo nós somos caçados e vítimas do Seu amor. É Ele
quem vem ao nosso encontro. Foi Ele quem nos amou primeiro. É esse tipo de Deus
que as escrituras falam que se entregou por nós e isso é maravilhoso. Deus nos amou
de tal maneira. Que tal maneira é essa? Jesus. Amou ao ponto de entregar Seu próprio
filho. Carson fala, na página 203 do seu livro “ O Deus Presente”20, algumas coisas inte-
ressantes: “Para alguns escritores do Novo Testamento tão comovente foi esse amor

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de Deus mostrado em Cristo Jesus que, frequentemente, eles irromperam em deleite
em face a esse tema.” Ou seja, saber que eu sou amado, inclusive “Aprendam de mim
que sou manso e humilde”.
Esse livro é maravilhoso. Sabe o que os teólogos coach tentam fazer por aí falando
do amor de Deus de uma forma muito elástica e não bíblica? “Manso e Humilde” faz de
maneira teológica formidável, porque, de fato, o amor de Deus que se entregou por mim
é uma realidade. Inclusive, Paulo escreve aos Gálatas: “Vivo pela fé no filho de Deus que
me amou e a Si mesmo se entregou por mim.” Essa ideia: teve algo que foi por mim. Foi
por nós. Paulo tinha essa convicção de que Cristo se entregou, para obedecer a vontade
do Pai. E qual era a vontade do Pai? Que Ele se entregasse pela Sua criação.
Então, Paulo pode falar: Ele morreu por mim, Ele se entregou por mim: “Vivo pela
fé no filho de Deus que me amou e a Si mesmo se entregou por mim.” E outra pas-
sagem quando Ele orava por outro grupo de crentes da cidade de Éfeso, o apóstolo
Paulo lhes disse por que orava e o que ele pedia a Deus em favor deles, ou seja, Paulo
dizia: “Olha, eu quero que vocês entendam, que vocês compreendam, qual é a largura,
qual é o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo.” Efé-
sios, capítulo 3.
Então Paulo retrata as dimensões ilimitadas do amor de Cristo: Conhecer o amor
de Cristo que excede todo o entendimento, ou seja, conhecer este amor que é desco-
nhecível, que é insondável, que excede o entendimento, conhecê-lo, experimentá-lo.
Isto é maravilhoso. Ou seja, tudo isto para que sejamos tomados pela plenitude de
Deus.
E aí, meu querido aluno, minha querida aluna, você experimenta esse amor?
Você tem essa convicção de que é amado, de que é amada pelo Pai? Que Ele te ama
e que, sim, Ele te aceita do jeito que é? E, obviamente, que este amor te constrange
a viver uma nova vida, a lutar contra o pecado, a lutar contra a carne. Sabe, o amor
de Deus não é um passaporte para os deleites da carne. Ele é um passaporte para o
caminho da cruz, para o negar a si mesmo, e precisamos levar isto em consideração. O
amor de Deus é incrível e nos convida para essa família e transforma o nosso caráter.
Então, sim, o amor de Deus pede algumas condições. É uma relação normal de amor.
Numa relação de amor existe compromisso e o compromisso vai além das nos-
sas vontades e desejos. Pelo contrário, muitas vezes ele vai contra esses desejos e
vontades e a gente precisa mortificar o velho homem, mortificar a carne para poder
viver a plenitude desse amor sem legalismo, mas também não dá para abrir mão da
Lei. A Lei de Deus é boa, santa, pura e a gente precisa levá-la em conta, afinal ela é uma
manifestação da Graça de Deus e da Sua misericórdia e do Seu amor.

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AULA 08
DEUS PODE SOFRER?

Rodrigo Bibo por aqui em mais uma aula do módulo Quem é Deus? Muito obri-
gado a você que está estudando na EBT – Escola Bibotalk de Teologia. Quero lembrar
a você, que está fazendo este módulo: Quem é Deus, se você não fez ainda o módulo
Teologia Simples, eu o acho bem importante, bem fundamental. Ele vai apresentar
para você o rico universo da Teologia. Então não se esqueça, terminando o módulo
Quem é Deus, vai lá para o curso Teologia Simples.
Fiz uma pesquisa no grupo do Telegram com a pergunta: Deus pode sofrer? É
interessante que a maioria das pessoas responderam que não, Deus não pode sofrer.
Inclusive isso remete a uma aula anterior falando sobre a imutabilidade de Deus, a
ideia que Deus não muda, vocês lembram? Eu já arranhei um pouco essa questão
naquela aula. Mas, vamos procurar entender um pouco isso então, sobre a impassibi-
lidade de Deus. Deus não é afetado pelas nossas paixões.
A maioria das pessoas respondeu na pesquisa que eu fiz, que Deus não
pode sofrer e essas pessoas reverberam aquilo que está na história da teologia
,e que foi o pensamento corrente na maior parte do tempo da história da teolo-
gia cristã.

A IMPASSIBILIDADE DE DEUS
A ideia de que Deus não pode sofrer ganhou espaço na teologia cristã desde
muito cedo, a idéia grega da apatheia (Ele não se apaixona, não sofre, não sente dor),
foi assimilada por muitos séculos no cristianismo.
Segundo a filosofia estóica, o Logos (princípio divino de vida e razão que per-
meia o Universo) detinha absoluta perfeição – inclusive, no tocante à apatheia. No
momento em que se construiu a identificação do Logos, à Pessoa de Jesus Cristo
(com base no primeiro capítulo do Evangelho Joanino) e, posteriormente, à Sua
unidade com o Pai, o pensamento cristão herdou a ideia da insensibilidade de
Deus, a impassibilidade. Tal fato se tornou recorrente na tradição teológica do
Cristianismo, dificultando a aceitação de qualquer tipo de sofrimento divino asso-
ciado às aflições humanas. Por que isso acontece? Porque Deus é perfeito. É uma
ênfase na transcendência de Deus. É uma ênfase de que Deus está muito além do
nosso universo, da nossa realidade. No afã de querer preservar Deus das paixões,

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dos sentimentos, veio essa ideia da apatheia, que é uma idéia grega, da filosofia
grega, do estoicismo21.
E antes do estoicismo, o próprio platonismo22, o próprio aristotelismo23, essa
ideia do Deus, do motor imóvel, muito assimilada por Tomás de Aquino, depois na
teologia medieval. Mas o fato é que essa ideia de que Deus não sofre, Deus não pode
ser afetado pela criatura, isso permeia os primeiros mil anos do cristianismo com um
ou outro falando algo diferente. Grosso modo, os pais da igreja e posteriores a ele,
Agostinho, vão falar dessa ideia de que Deus não é afetado por nada exterior a Ele.
Continuando nessa ideia da Impassibilidade Divina, esse Deus que não sofre,
que não é afetado, ao longo da história. Vamos só dar uma pinceladinha aqui: Esse
conceito basicamente quer preservar a imutabilidade de Deus e a sua perfeição. Não
concebe a ideia de que Deus possa sofrer por conta do seu amor por nós! Anselmo
(de Cantuária, é um teólogo do início da escolástica, basicamente século XII), chegou a
dizer que a linguagem de amor e compaixão tem de ser tratada como figurada quan-
do usada em relação a Deus. Experimentamos Deus como compassivo; isso, no entan-
to, não o torna compassivo em essência.
A ideia de Anselmo e dos pais da igreja e até mesmo do início da escolástica é
essa: Deus fez um teatro, porque Ele mesmo, em essência, não pode ser afetado por
nenhuma emoção. Essa ideia da perfeição, da santidade, da imutabilidade divina.

NA REFORMA
Veremos alguns reformadores que sustentaram essa ideia:
CALVINO: “Embora ele esteja além de todo estado passional, no entanto, testifica
que se ira contra os pecadores (ou seja, Deus manifestando algum sentimento, alguma
manifestação de amor ou de ira) [...] quando ouvimos que Deus se ira, não devemos
imaginar que exista nele qualquer emoção (a impassibilidade, o conceito da impassibi-
lidade) [...] devemos considerar essa expressão como tomada de nosso prisma (nosso
ponto de vista, da nossa perspectiva) [...] não se reverte nele nem o plano, nem a von-
tade, nem se oscila seu sentimento”. Calvino deixa bem clara essa ideia de que Deus é
impassível, Deus não muda, Deus, ainda que interaja conosco, não é afetado por nós.
Bem, já falamos um pouco sobre isso, na aula sobre a Imutabilidade Divina e aqui
eu reforço, esses teólogos e esse pensamento sobre a impassibilidade divina que do-

21 Estoicismo é uma escola e doutrina filosófica surgida na Grécia Antiga, que preza a fidelidade ao co-
nhecimento e o foco em tudo aquilo que pode ser controlado somente pela própria pessoa. Despreza
todos os tipos de sentimentos externos, como a paixão e os desejos extremos.
22 Platonismo é a corrente filosófica criada por Platão, pensador influenciado por Sócrates é conside-
rado um dos mais importantes da Grécia Antiga (428 a.C. 347 a.C). Com uma teoria idealista, o filósofo
acreditava que quanto mais pensada uma ideia, mais chances teria para concretizá-la.
23 Aristotelismo é a influência exercida pela filosofia de Aristóteles ao longo da história do pensamen-
to ocidental. Geralmente caracterizada por lógica dedutiva e método analítico indutivo no estudo da
natureza e leis naturais.

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mina até hoje muitos pensadores, querem preservar Deus, eles querem preservar a
perfeição divina, a imutabilidade divina. Lutero, naquele tempo rompe um pouco isto:
LUTERO: “No Cristo crucificado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro
conhecimento de Deus.” Para Lutero Deus compartilha do sofrimento em Cristo. Te-
mos aqui um reformador alemão, um rompimento, uma mudança no sentido de que
Deus sofre em Cristo. Aliás, até essa expressão “Deus crucificado” que Lutero utiliza,
alguns não viram com bons olhos. Lutero, chega, inclusive, a ser acusado de patripas-
sianismo, ou seja, o Pai morrendo na cruz, porque: Como assim, o Deus crucificado?
Então Lutero chega a enfrentar alguma resistência, inclusive foi tido como here-
ge por alguns, até mesmo pela Igreja Católica Romana por conta dessa ideia do Deus
crucificado. Bem, terá uma mudança de paradigma aí no decorrer dos séculos.

MUDANÇA DE PARADIGMA
Depois da Primeira Guerra Mundial teve o surgimento do protesto ateísta, isto
é, uma série de questionamentos sobre o caráter moral do Deus cristão. Como acre-
ditar num Deus acima de toda essa dor e sofrimento (que não se envolve com essa
miséria humana)? Nesse tempo ocorre também a redescoberta da teologia da cruz de
Martinho Lutero. A ideia da impassibilidade de Deus, isto é, um Deus que ama sem se
envolver emocionalmente com o ser amado começa a ser questionada!
Claro que ao longo da história da teologia cristã outros autores manifestaram
outras opiniões, mas, o que trazemos aqui é que a ideia da impassibilidade de Deus
era predominante. Então Lutero já no século XVI dá uma questionada, outros também,
só que não tinham grande expressão.
A grande expressão no que diz respeito aos atributos divino, à impassibilidade
divina era essa: Deus até mostra algum sentimento de amor, algum sentimento de ira,
mas é um teatro divino, porque Ele mesmo não é afetado por nada que a Sua criação
possa oferecer, mas essa ideia, essa mudança começa a ocorrer a partir da Primeira
Guerra Mundial. As guerras mundiais geram um baque na filosofia, na teologia. Inclusi-
ve, esse protesto, essa ideia ateísta que questiona o Deus cristão. O próprio holocaus-
to levou a esse questionamento: “Esse Deus aí realmente não se envolve, e permite
esse tipo de coisa.” Então a ideia é essa, começa a haver uma mudança de paradigma
e aí nós temos o que? Nós temos um dos teólogos que se destaca nessa questão, com
certeza, é o teólogo alemão Jürgen Moltmann. E ele diz: “Um Deus que não pode sofrer
é mais pobre do que qualquer ser humano. Pois um Deus que é incapaz de sofrer é
um ser que não se envolve de forma relacional. O sofrimento e a injustiça não o afe-
tam. E pelo fato dele ser tão absolutamente insensível, nada pode afetá-lo ou abalá-lo.
Ele não pode chorar, pois não possui lágrimas. Contudo, quem é incapaz de sofrer
também é incapaz de amar. Assim, ele é também um ser destituído de amor.”
O que o Moltmann vai falar? Para preservar a tradição cristã, para preservar o
atributo da imutabilidade de Deus, o Moltmann vai dizer o seguinte: Deus decidiu
sofrer!. Ou seja, o Deus cristão sofre em Cristo. O Deus cristão, a segunda pessoa da
Trindade sofre. Então a pergunta: Deus pode sofrer? Não só pode, como sofreu em
Cristo crucificado. E aqui não é só uma emulação de sentimento, o Moltmann vai dizer

50
que Deus realmente sofre, e vários outros teólogos irão afirmar isto: que na relação
que Deus tem com a criação, Ele sofre. Agora, como relacionamos isto: a questão da
soberania divina, o Deus que conhece todas as coisas, Ele que é o eterno, que tem o
passado, o presente e o futuro nas Suas mãos, é o conhecedor de todas as coisas?
A partir do momento que Deus escolhe sofrer, a partir do momento que Ele rea-
ge à interação que Ele tem com a Sua criação, essas relações, essas interações que Ele
já sabe que irão ocorrer foram decisões Dele, Ele decide. Obviamente que Deus não
é pego de surpresa. Temos que tomar cuidado com a teologia do processo, que afir-
ma que Deus se limitou a não saber o futuro e vai experimentando o futuro conosco,
conforme as nossas reações.
A teologia do processo, eu confesso , que EU NÃO CONCORDO COM ELA, mas eu
gosto dela assim como eu gosto da ideia do universalismo. Eu queria (e nós vamos ter
um módulo sobre Cristo) que Deus salvasse todo mundo, eu queria que todo mundo
fosse para o céu. Percebam: dizer que gosta de uma determinada doutrina ou de
determinado pensamento não quer dizer que eu concorde com ele. Maturidade para
entender isso. Eu espero que vocês entendam. Então, eu gosto da ideia da teologia do
processo, esse Deus bem imanente que vai sofrendo e construindo com a gente, mas
a realidade bíblica é que Ele é o Eterno, Ele é transcendente, Ele está para além de nós,
da criação, da história.
Então como nós entendemos isso? Deus já conhece todas as coisas, todos os
futuros possíveis, sabe de todas as decisões que vamos tomar, das que não tomamos,
e às vezes até influência. Eu creio que Deus controla a história, então influencia até
alguns rumos conforme a Sua soberana vontade. Mas, tudo isso que Deus vai sofrer
nessas relações e nessas interações conosco foi uma escolha Dele. Como o Moltmann
disse: “Deus decidiu sofrer.” (É a parte final do nosso slide.) Então é muito vital enten-
dermos isso: Deus decidiu sofrer. É uma escolha Dele
Então, sim, Deus é afetado pela relação que Ele tem com o ser humano. Isso
não mancha Sua imutabilidade, mas Deus é um Deus relacional, Deus é uma pessoa
e, como pessoa, sofre ao ter uma relação conosco, se entristece, como explicamos
nas aulas passadas. Agora, isso não afeta o Seu Ser, a Sua Essência e tudo isso que
aconteceu por decisão Dele. Isso tem que ficar muito claro. E eu encerro esta aula
com um pensamento de um teólogo suíço, Alexander Vinet que declarou o seguinte:
“O deus sofredor não é somente o ensino dos teólogos modernos. É o pensamento
de um Novo Testamento e é alguém que responde todas as dúvidas que surgem à
vista do sofrimento humano. Saber que Deus está sofrendo torna esse sofrimento
mais terrível, porém dá força, vida e esperança, pois sabemos que, se Deus está nele,
o sofrimento é a estrada da vitória.”
Portanto, o nosso Deus sofre. O nosso Deus, na Sua relação com a Sua criação,
sofre, sente as nossas dores. A cada tragédia, a cada julgamento, a cada morte ino-
cente, a cada maldade que acontece nesse mundo, temos um Deus que sofre, que
está vendo a Sua criação escolhendo um caminho que é longe dele, por estar longe,
Ele sente essa dor. Ele sente essa dor ao ponto de mandar o Seu filho, a segunda pes-
soa da Trindade veio e morreu.

51
ENTÃO DEUS PODE SOFRER?
A teologia cristã, de certa forma, afirma que Deus pode morrer. Ele morreu na
cruz do Calvário. Há uma ruptura na Trindade com a morte da segunda pessoa da
Trindade. Jesus Cristo, não somente o filho de Deus, mas Deus, morre na cruz e isso é
chocante, e escandaloso. Na aula sobre Trindade vamos falar um pouco mais sobre
isto.
Então concluímos esta aula, dando a minha opinião que sim, Deus pode sofrer.
Não só pode como sofreu em Cristo e sofre ao longo da história, mas nada disso afeta
Sua essência, o Seu Ser, mas, antes, é uma decisão. Deus, de alguma forma, se limita,
se encolhe e resolve ter essa experiência muito humana que é a dor, que é o sofrimen-
to. E aí, o que você pensa? O que você acha?
Lembrando que teremos a aula sobre Trindade e vamos explicar um pouco mais
sobre a morte de Deus, a morte de Jesus Cristo que é Deus. E se Ele é Deus e morreu,
o que morre? Só a pessoa? Porque alguns irão dizer: “Deus até sofre, mas é só a parte
humana de Jesus que sofre.”
Nós entendemos que não. Nós entendemos que se Deus em Jesus Cristo sofre,
Deus sofre, o Pai sofre. É uma escolha Dele. O Pai sofreu quando entregou Seu filho
à cruz. O Pai sofreu quando, na eternidade, Eles tomam essa decisão de morrer pela
sua criação. Então, o Pai sofre também. É uma escolha Dele. Isso não muda a essência
Dele.
Deus abençoe todos vocês!

52
AULA 09
O DEUS TRINO

Sejam muito bem-vindos a mais uma aula aqui na EBT. Estamos na aula nove e
começamos agora a entrar em alguns temas mais pesados no que diz respeito à Te-
ontologia, o estudo da pessoa de Deus, ou somente Teologia, que é o estudo de Deus.
Teologia é o termo mais utilizado para a disciplina teológica como um todo e Teonto-
logia algumas sistemáticas utilizam para se referir à doutrina da pessoa de Deus.
E agora começamos a entrar em temas mais complicados. E já vamos começar
com o mais complicado de todos que é a doutrina da Trindade, o Deus Trino. Então
nós precisamos falar da doutrina da Trindade porque ela é um distintivo muito ca-
racterístico do cristianismo. A ideia de que nós acreditamos em um único Deus que
subsiste em três pessoas. Nesta primeira aula eu quero dar somente introduções,
aspectos básicos sobre a Trindade.

FUNDAMENTOS BÍBLICOS
A Bíblia não ensina explicitamente a visão trinitária de Deus, mas os ensinamen-
tos de que Deus é um, e de que as três pessoas são Deus, claramente implicam essa
concepção. O cristianismo é a única grande religião que faz essa afirmação acerca
de Deus. Numerosas tentativas têm sido feitas para compreender esta verdade tão
profunda. Algumas levaram a distorções dessa doutrina tão importante. Mesmo que
nunca consigamos entender plenamente a difícil doutrina da Trindade, há analogias
que podem nos ajudar a compreendê-la de forma mais abrangente.
Então, como vocês podem observar, a doutrina da Trindade é uma doutrina difí-
cil. Ela ocupa a mente teológica na história do cristianismo, desde a origem do cristia-
nismo. Por exemplo, a pessoa de Cristo: confrontando a humanidade ou a divindade
de Cristo é que temos sempre um problema Trinitário.
A palavra “Trindade’’, não aparece na Bíblia, por isto que a fundamentação bíblica
acaba sendo um pouco mais complicada. Ainda que consigamos caçar alguns textos
no AT e, principalmente no Novo Testamento, a fundamentação, a palavra Trindade
não aparece na Bíblia. A palavra Trindade vai ser utilizada pela primeira vez por Ter-
tuliano no segundo século. Desde muito cedo a igreja se preocupa com essa ideia da
Trindade. Essa compreensão de que Deus é um único Deus, mas, ao mesmo tempo,
é três, já ocupa a mente do cristianismo primitivo. Mas a partir dali começa a se ter

53
toda uma discussão da Cristologia: “ Jesus é Deus mesmo?” E, ao discutir a divindade
do Filho, se tem uma implicação direta na doutrina da Trindade.

A UNICIDADE DE DEUS

Nós já vimos que algumas analogias nos ajudam, mas, vamos lá, sobre
a unicidade de Deus, ou seja, nós acreditamos em um único Deus, e no
Antigo Testamento podemos ver no Shemá Israel: “Ouça, ó Israel! O Se-
nhor, nosso Deus, o Senhor é único!” Deuteronômio 6:4

Israel não poderia ter outros deuses, afinal, só Javé é o Senhor! A idolatria, em
última análise, não faz sentido. Nós sabemos que a monolatria é a adoração a um
único Deus. Você acredita na existência de outros deuses, mas você adora somente
um. Essa é a realidade da fé primitiva de Israel.
Hoje em dia se discute monoteísmo, monolatria. Inclusive tem um BtCast 446|
Monoteísmo e Monolatria em Israel 24, muito legal sobre isso . A fé primitiva de Israel
era monolátrica, por isso que tem esse chamado: “Olha Israel, o Senhor, nosso Deus
é o único Deus!” A revelação no Antigo Testamento quer apontar para essa ideia, de
que só existe um único Deus. Israel não poderia ter outros deuses, afinal, só Javé é
o Senhor. Só existe um Deus e esse Deus é Yahweh, é Javé, é aquele que nos tirou da
terra da escravidão. Vimos que algumas analogias nos ajudam, sobre a unicidade de
Deus, ou seja, nós acreditamos em um único Deus e lá no Antigo Testamento pode-
mos ver no Shemá Israel.
A idolatria, em última análise, não faz sentido, porque não existem outros deu-
ses. Paulo vai dizer lá no Novo Testamento, que a idolatria está pautada na ação de
demônios, mas isso é uma coisa mais neotestamentária. A verdade é que no Antigo
Testamento eles acreditavam na existência de outros deuses, tanto que os adoravam:

“Para nós, porém, há somente um Deus, o Pai, por meio de quem todas as
coisas foram criadas e para quem vivemos. E há somente um Senhor, Jesus
Cristo, por meio de quem todas as coisas foram criadas e por meio de quem
recebemos vida.” 1 Coríntios 8:6

24 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/monoteismo-e-monolatria-em-israel-btcast-446/

54
A unicidade de Deus é muito clara no Antigo Testamento. Aliás, tem aqui um pon-
to que é muito polêmico para alguns, você não acha de forma clara Trindade no Antigo
Testamento. Numa boa exegese você não tem espaço para uma Triunidade, você não
tem espaço para um Deus que é, ao mesmo tempo, três pessoas, um Deus que na
verdade é três. Você tem um único Deus, é o Deus de Israel.
No Antigo Testamento você tem a sabedoria de Deus, você tem o espírito de
Deus, só que isto, no Antigo Testamento não dá a entender que é alguém semelhante,
de igual poder e digno de ser adorado. O próprio anjo do Senhor que recebe adoração
pode ser um indicativo: “Pô, mas esse anjo já recebe adoração? Será que já não é uma
figura de Jesus Cristo no Antigo Testamento?” Enfim, são especulações que fazemos.
A verdade é que o povo que recebeu o Antigo Testamento não enxergava lá a
Trindade como nós enxergamos. Nós só conseguimos enxergar a Trindade no Antigo
Testamento porque nós temos o Novo Testamento. No Novo Testamento a Triunida-
de de Deus fica mais clara porque no Antigo Testamento impera a unicidade.

A TRIUNIDADE DE DEUS
Agora, o fundamental desta aula é que no Antigo Testamento temos a possibili-
dade dessa pluralidade em Deus e isso é algo muito legal, como podemos ver no slide:
“Façamos o ser humano à nossa imagem; ele será semelhante a nós...” (Nós te-
mos um plural aqui) Gênesis 1:26

Deus não poderia estar conversando com anjos ou outros seres celestiais,
pois o versículo 27 diz que Deus criou o homem à Sua imagem. “O contex-
to indica uma comunicação interpessoal divina, que requer uma unidade
de Pessoas na deidade” . McROBERTS

Percebam: nós conseguimos enxergar isso por causa do Novo Testamento. O leitor
primário, o primeiro leitor de Gênesis não enxergava dessa maneira, ele enxergava, prova-
velmente, até como um conselho divino: Deus conversando com os seres celestiais, enfim,
tem as possibilidades de interpretação, nos Midrash dos judeus e das escolas rabínicas.
Sobre a Triunidade de Deus no Novo Testamento tem vários textos, mas no Anti-
go Testamento temos até a ideia de uma pluralidade, mas é uma possibilidade. Vocês
entendem quando eu digo isto? O leitor primário, ou seja, quem leu Gênesis pela pri-
meira vez, não leu dessa maneira que nós estamos lendo hoje, porque temos o Novo
Testamento e no Novo Testamento, nós temos a Triunidade escapando pelas páginas.
A coisa fica um pouco mais clara, como, por exemplo, no clássico texto de Mateus.

“Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em


nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” Mateus 28:19

55
Então, aqui fica muito clara essa Triunidade de Deus. Sobre a divindade do Espí-
rito Santo temos algumas evidências escriturísticas, como Atos 5 no caso da mentira
de Ananias e Safira. Nós temos a divindade do Filho, por exemplo, basta você ler aqui
o evangelho de João no capítulo 1. Sobre o Pai ser Deus não restam dúvidas, o que
dificulta um pouco é a divindade do Filho e do espírito Santo. Mas só um pouco, afinal,
temos evidências da trindade.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” (João 1:1)

“Tenham a mesma atitude demonstrada por Cristo Jesus. Embora sendo


Deus, não considerou que ser igual a Deus fosse algo a que devesse se
apegar.” (Filipenses 2:5,6)

Portanto, sobre o Pai ser Deus não restam dúvidas. Nós temos muito clara essa
figura sendo demonstrada em toda a Escritura. A divindade do Espírito e a divindade
do Filho são claras no Novo Testamento. O próprio Jesus disse que Ele e o Pai são um,
que Ele vai enviar o outro consolador, ou seja, alguém semelhante a Ele. Então, se Ele
é um com o Pai, o Espírito também é um com o Pai. Isso é muito claro no evangelho
de João: a divindade do Filho, a divindade do Espírito, entre outros textos, como eu
já mostrei para vocês, o caso de Ananias e Safira, eles mentem para o Espírito Santo.
A exegese bíblica dos antigos pais da igreja classificava o ensino bíblico sobre as
três pessoas divinas em quatro categorias. Essas categorias são agrupadas segundo
temas que podem comprovar que cada uma das pessoas é Deus: 1) cada uma das
três pessoas é chamada pelos nomes divinos, 2) cada uma delas tem os atributos de
Deus, 3) cada uma faz obras que somente Deus pode fazer e 4) cada uma é digna de
louvor. Thomas Oden.
Isso mostra que em toda a Escritura, principalmente no Novo Testamento, nós
temos a demonstração da divindade. As três pessoas são igualmente eternas, as três
pessoas são Deus. Então Elas são divinas, Elas não são tornadas divinas, ou diviniza-
ção25. Esse é um ponto importante.
Então aqui nós temos uma síntese de que todas as pessoas da Trindade são
Deus. Obviamente que se estamos falando da Trindade, estamos falando que elas
são Deus. Aliás, deixa eu falar uma coisa aqui para vocês: nós não acreditamos em
Triteísmo. O que é Triteísmo? Nós não acreditamos em três deuses. O Triteísmo é uma
heresia.
O cristianismo não crê como, por exemplo, a mitologia grega ou romana, num
Olimpo onde os deuses estão lá e são iguais. Quando nós falamos de Trindade nós

25Divinização: dá a ideia de que algo não é divino e passa a ser. Alguém atribui uma característica de
divino.

56
não estamos falando sobre três deuses que pensam da mesma forma e que estão
juntos e estão tão interligados que parecem um, não é isso. Nós estamos falando de
um único Deus, não é que Ele parece um. Ele é um único Deus, mas que subsiste em
três pessoas.
Esse é o mistério que precisamos abraçar quando nós falamos da Trindade. Nós
não acreditamos em três deuses que parecem um e também não acreditamos em um
Deus que parece três. Se vocês entenderem isso fica um pouco mais fácil para vocês
caminharem para a próxima aula, que, daí, nós vamos falar de questões históricas da
Trindade, como a doutrina da Trindade foi distorcida ao longo da história da igreja.
Percebam, nós não estamos falando de três deuses que parecem um, assim
como não estamos falando de um único Deus que parece três. Nós defendemos na
tradição cristã que é um único Deus que subsiste como três pessoas, que são três
pessoas. Nosso Deus Uno e Trino. Aí preservamos um pouco o mistério e caímos em
adoração.
Apresento para vocês o Escudo da Trindade. Esse desenho nos ajuda a entender
essa relação e essa diferença. Ou seja, o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito é Deus.
Esse Escudo da Trindade resume o Credo de Atanásio, o nome que se deu na história
da igreja. Não podemos afirmar se foi mesmo Atanásio que escreveu, mas nós temos o
Credo Atanasiano, que é um Credo antigo da igreja que defende a doutrina da Trindade.
Aqui nós temos um ótimo resumo: o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito é Deus.
Agora lendo o triângulo: o Pai não é o Filho, o Filho não é o Espírito, o Espírito não é
Deus. Isso é fundamental para entendermos um pouco, ou seja, o fato da doutrina da
Trindade ser um mistério, não quer dizer que não devemos estudar sobre ela. Ela é
uma doutrina importante. Ela é o fundamento, inclusive, da nossa comunhão enquan-
to irmãos. Ela é o fundamento da ideia do ser humano que vive em unidade com o seu
semelhante.
A doutrina da Trindade é maravilhosa, porque mostra que Deus não nos criou
por carência ou porque estava entediado. A doutrina da Trindade quer trazer essa
segurança que o nosso Deus é suficiente Nele mesmo. As pessoas da Trindade são
suficientes umas para as outras. É o Pai que gera o Filho na eternidade e o Pai e o Filho
expiram o Espírito na eternidade.
Deus sempre foi Pai, e se foi Pai, é porque sempre teve o Filho, e o Pai não é
maior que o Filho, nem maior que o Espírito. Eles têm funções diferentes dentro da
economia da Trindade. Aliás, até em termos da economia da Trindade, basicamente,
podemos dizer o seguinte: o Pai é o criador, o Filho é o redentor, o Espírito Santo é o
sustentador, mas, na verdade, todos estão juntos um na obra do outro.
Acaba que um tem destaque diferente, ou outro ponto da criação, por exemplo:
“quando nós falamos em salvação, geralmente falamos do Filho que morreu em nos-
so lugar, mas, obviamente, que o Pai e o Espírito também estão envolvidos na morte
do filho. Assim como também na ressurreição. Deus ressuscita, o Espírito Santo res-
suscita, o Filho ressuscitou a Si mesmo. Então, as obras de um e de outro estão bem
mescladas.
Lembrem-se do Escudo da Trindade: o Pai não é o Espírito, o Espírito não é o
Filho, o filho não é o Espírito, o Filho não é o Pai. É muito importante nós não nos es-

57
quecermos disso, porque não falamos de três deuses, nós falamos de três pessoas
que são Deus. Nós não falamos de três deuses, e nós não falamos de um único Deus
que parece, ora como Pai, parece ora como Filho, ora como Espírito. É um único Deus
que subsiste em três pessoas.

UMA ANALOGIA
Uma analogia que o Millard Erickson traz: o conceito de perichoresis. Isso é
muito legal, muito bonito. É como se as três pessoas da Trindade dançassem de tal
maneira que nós só enxergássemos um único dançarino.
O conceito de perichoresis é muito proveitoso. É o ensinamento de que a vida
de uma pessoa da Trindade flui por meio de cada uma das outras; assim, cada pes-
soa sustenta as outras e cada uma tem acesso direto à consciência das outras. Nesse
sentido, o organismo humano serve como boa ilustração do Deus Trino. Por exemplo,
o cérebro, coração e pulmões de determinado indivíduo sustentam-se e suprem uns
aos outros, e cada um é dependente do outro (ainda que sejam órgãos distintos).
Gêmeos siameses, que compartilham um coração e um fígado, também ilustram essa
intercomunhão. Estas, no entanto, como todas as analogias, não conseguem explicar
totalmente a Trindade. Precisaremos usar várias delas, sendo que umas enfatizarão a
unicidade e outras, a trindade. Na aula que vem vocês irão perceber que eu vou falar
de algumas dessas analogias com o nosso amigo Pedro Pamplona: o ovo, a água.
A água já posso dizer para vocês que não dá para usar: água no estado gasoso,
água no estado líquido e a água no estado sólido. O problema é que são modos de
existência da água e isso é modalismo: hora Deus existe como Filho, hora Ele existe
como Espírito, hora Ele existe como Pai. Não é assim que funciona.
O ovo: a casca, a gema e a clara, mas é tudo um ovo só. O Agostinho vai falar
do amante, do amor e do objeto amado. Agostinho vai falar sobre a personalidade,
ele utiliza outras analogias que vamos abordar na aula que vem. Toda analogia para
se referir à Trindade pode nos ajudar um pouco, como essa questão dos órgãos do
ser humano, todos interligados, ainda que sejam órgãos diferentes, mas dependem
um do outro, estão conectados um com o outro. Eu até faria uma atualização aqui,
eu tiraria o coração e colocaria o intestino, por exemplo, o estômago, porque cérebro
e intestino estão muito bem ligados, como vocês sabem. Mas todas as analogias são
incompletas e limitadas, porque a doutrina da Trindade é uma doutrina difícil.

UMA DOUTRINA DIFÍCIL


Em última análise, a Trindade é incompreensível. Não conseguimos entender ple-
namente seu mistério. Quando, um dia, virmos a Deus, nós o veremos como ele é, e
vamos compreendê-lo melhor do que agora. Porém, mesmo assim, não o compreen-
deremos totalmente. Visto que ele é o Deus ilimitado e nós somos limitados em nossa
capacidade de conhecer e compreender, ele sempre ultrapassará nosso conhecimento
e compreensão. Sempre seremos seres humanos, ainda que seres humanos aperfeiço-

58
ados. Nunca nos tornaremos Deus. Aqueles aspectos de Deus que nunca compreen-
demos plenamente deveriam ser considerados mistérios que vão além de nossa razão,
e não paradoxos que entram em conflito com ela. (Millard Erickson) .Ou seja, não é um
paradoxo, é um mistério e vocês irão entender isso um pouco mais no problema do mal.
Não é paradoxal, mas é um mistério que a nossa razão não apreende.
Então, pode ler o livro “A Cabana”, aquilo não é a Trindade. É difícil, é limitado. Eu
sei que muitos de vocês devem ter pensado no livro “A Cabana’’. Foi o comentário da
geral: “Nossa, agora eu entendo a doutrina da Trindade!” Então, é uma tentativa que,
no fundo, acaba sendo falha também. Finalizo dizendo: “A mente do homem não pode
entender completamente o mistério da Trindade. Aquele que tentar entender com-
pletamente o mistério perderá a cabeça, mas aquele que negar a Trindade perderá
sua alma.”
Uma frase difícil de localizar na história da teologia, mas ela remonta ali pelo sé-
culo XVII , em um comentário de alguém, que eu não lembro mais. Não é de Agostinho
como alguns atribuem. Alguém disse: Perdemos a cabeça, mas se negarmos perde-
mos a alma, porque a doutrina da Trindade é Bíblica, é ortodoxa e é a maneira que nós
entendemos esse Deus que subsiste em três pessoas.
Fica aí a dica desse podcast: o BTCAST 165 – O Credo Niceno-Constantinopoli-
tano . É muito legal! Vamos discutir bastante essa questão do Espírito Santo. Como
26

vocês podem ver na capa tem o desenho da pomba (que é o símbolo do Espírito San-
to) segurada por todos os lados. Discutiremos também a questão da Trindade, tenho
certeza de que vocês irão gostar bastante desse episódio. Eu queria muito que vocês
terminassem essa aula e, ao invés de irem para a aula 10, ouvirem esse podcast que
vai ser um combo bem legal para vocês entenderem.

26 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/btcast-165-credo-niceno-constantinopolitano/

59
AULA 10
TRINDADE COM PEDRO PAMPLONA

Rodrigo Bibo: Pessoal, como eu havia prometido na última aula, trouxe


meu amigo Pedro Pamplona, seja muito bem-vindo aqui na EBT, cara!

Pedro Pamplona: Muito obrigado, Bibo, obrigado pelo convite. É um


prazer participar. Vou mandar um oi aí para os alunos da EBT. É sempre
bom estar nesses tipos de conteúdo sobre Trindade. Fico muito feliz com
a lembrança.

RB: Não é de hoje, Pedro, que você pesquisa esse tema sobre a Trindade.
Volta e meia você comenta alguma coisa no Twitter. Já trocamos algumas
figurinhas pelo WhatsApp sobre a questão da Trindade, enfim, mais
conteúdos como este aqui que eu estou fazendo com o Pedro virão no
futuro, já temos conversado aqui. Pedro, te trouxe aqui para nós falarmos
um pouquinho sobre a questão histórica da Trindade. Eu já mostrei para os
alunos um pouco as fundamentações bíblicas, Antigo e Novo Testamento,
trouxe alguns conceitos de leve sobre a Trindade, mas, obviamente,
que, como qualquer doutrina bíblica tem um desenvolvimento histórico,
tem muita história envolvendo essa doutrina, muita confusão e, muitas
vezes, percebemos que algumas dessas confusões que nós temos hoje
em relação à doutrina da Trindade, nada mais são do que repetições e
confusões do passado.
Então eu queria que você nos apresentasse, por gentileza, um panorama
histórico, uma sobrevoada principalmente sobre os cinco primeiros sécu-
los, que foram bem turbulentos no que diz respeito à formulação da dou-
trina da Trindade, por mais que já no primeiro século esse nome já tenha
sido ventilado, a ideia do Deus Triuno e Uno, enfim, no decorrer da história

60
sempre tem uma pessoa da Trindade que está em jogo no que diz respeito
a essa formulação da pessoa da Trindade. Cara, os alunos da EBT são to-
dos ouvidos e eu também estou muito a fim de aprender o que você tem
para nós.Fique à vontade, se você slide aí, manda bala, toma posse!

TRINDADE NOS PRIMEIROS SÉCULOS

PP: Beleza, Bibo! Obrigado! Estou me sentindo em casa depois dessa sua
apresentação. Gente, eu vou caminhar aqui, eu acho que vou até o quar-
to século, Bibo. Eu diria que são os séculos de maior fluxo de debates
teológicos sobre Jesus Cristo e também o quarto século foi uma era de
ouro da teologia e também do debate Trinitário. Você se lembra de Nicéia
no quarto século, então eu vou até lá. Vou começar com a citação do livro
“A Trindade no Novo Testamento” de Arthur Wainwright:
“Por muitos séculos a igreja cristã tem interpretado essa doutrina de Deus
nos termos da metafísica grega. Mas os autores bíblicos apresentaram a
doutrina nos termos de suas próprias experiências, interpretadas pelos
nomes hebreus de Deus e pelas ideias hebraicas das funções divinas. É
uma disciplina salutar examinar o ensino bíblico e observar como a natu-
reza de Deus é demonstrada sem as categorias patrísticas.”
Essa é uma afirmação polêmica até, mas muito boa. Eu a coloco aqui,
porque, quando transitamos entre o estudo da Trindade nas Escrituras
e o estudo da Trindade na História, principalmente na patrística, nós te-
remos esse elemento da filosofia grega, da cultura de ensino e de apren-
dizado grego, da linguagem, trazidos dentro do estudo da Teologia. Por
isso vamos encontrar categorias diferentes, tipos de sistematização ou,
até mesmo, a sistematização que não havia nas Escrituras, vamos encon-
trar no pensamento grego. Por exemplo: Há uma discussão muito grande
nos primeiros séculos sobre termos da Trindade. Teve Tertuliano falando
de pessoa, de substância, teve o próprio termo Trindade, essência, e as
pessoas discutindo o isso tudo significava, parece uma confusão de ideias
e isso está muito ligado à ideia da filosofia grega, do pensamento grego.
Os autores Bíblicos não estão muito preocupados com isso, por isso não
encontramos o termo Trindade na Bíblia, não encontramos termos como
mesma essência, substância, pessoas diferentes, hipóstases diferentes
ou iguais, porque eles não estão escrevendo um dicionário teológico, eles
estão preocupados com os atos de Deus, com as falas de Deus e é aí que
a Trindade aparece nas escrituras.

61
RB: Pedro, desculpe-me te interromper, eu já ouvi uma frase, que eu não
sei se você concorda, eu sinto uma tentação em concordar com ela, nem
sei se destoa do que você está falando, se estiver destoando, já me corri-
ge e segue seu fluxo aí. Alguém já disse que, no fundo, a doutrina da Trin-
dade ganha força, principalmente, na igreja primitiva, não é nem no Novo
Testamento, os autores do Novo Testamento não discutem assuntos da
Trindade, eles vão na fluidez, o Pai, o Filho, Eu e o Pai somos um, o Espírito
Santo também tendo atributos que o Pai e o Filho têm. Só que no segun-
do século há uma necessidade de se explicar essa questão de Deus, do
Filho e do Espírito perante o panteão grego e o panteão romano. O que
queriam dizer com “Eu e o Pai somos um”, o que queriam dizer com “O
outro consolador” que também tem atributo. É como se a doutrina da
Trindade tivesse ganhado corpo no desenvolvimento da igreja.

PP: Sim, Bibo, tem muito a ver. Eu não vou dizer que ela ganha força nos
primeiros séculos com a igreja primitiva, mas ela ganha um esclarecimen-
to e um maior vocabulário, porque eles estão tentando dialogar com a
cultura deles, que é, inclusive, a cultura que nós herdamos muito. Quan-
do lemos uma teologia sistemática estamos mais ou menos entendendo
como eles estão sistematizando a Bíblia a partir daquele ponto, mesmo
que a sistemática tenha vindo depois. Nós começamos a perceber essas
características do pensamento racionalista, do pensamento filosófico.
Só para situar o pessoal, lógico que eu creio que a Trindade está nas
Escrituras, lá no Novo Testamento, Paulo tem uma consciência Trinitária
muito grande, João também tem essa consciência. Mas quando vamos
para a patrística vamos começar a ver a doutrina sendo formulada de
maneiras diferentes.
Eu vou caminhar por esses primeiros séculos. Eu gosto muito de trazer
essa citação do livro “O código Da Vinci”27, porque essa é uma ideia que
está dentro de uma ficção, mas foi uma ideia que o Dan Brown não inven-

27 O Código da Vinci é um dos romances best-sellers mais populares do século 21, escrito pelo nor-
te-americano Dan Brown. Publicado em 2003, o livro já teve mais de 80 milhões de cópias vendidas.O
livro narra a corrida do simbologista Robert Langdon contra o tempo para desvendar um assassinato
ligado à linhagem de Jesus Cristo, o Santo Graal, que era protegida pela fraternidade secreta intitulada
O Priorado de Sião.

62
tou, ele pegou uma ideia que circula por aí, principalmente nos ambien-
tes mais acadêmicos:
“O estabelecimento de Jesus como o Filho de Deus foi oficialmente pro-
posto e votado pelo Concílio de Nicéia... [Foi] uma votação relativamente
próxima... Ao endossar oficialmente Jesus como o Filho de Deus, Cons-
tantino transformou Jesus em uma divindade que existia além do alcance
do mundo humano, uma entidade cujo poder era inquestionável”.
Essa fala do livro traz esse tipo de argumento que alguns têm de que foi
em Nicéia que o dogma da divindade de Jesus e, portanto, da Trindade
foi criado, e que Constantino está diretamente ligado a isso. Vamos dizer
que tem 10% de verdade nisso, porque Nicéia foi muito importante para
o dogma da Trindade, Constantino estava diretamente ligado nisso, mas,
logicamente, que isso é uma farsa, é um mito. Mas muita gente acredita
nisso, que nos primeiros séculos da história do cristianismo até Nicéia,
não se falava de Trindade.
Vou trazer algumas citações aqui para dizer que isso não é verdade:
Constantino inventou a Trindade? Claro que não. Esta não é a verdade que
nós cremos. Eu vou colocar aqui algumas traduções que eu fiz desse artigo
que eu coloquei na referência aqui, inclusive ele está disponível na inter-
net, Bibo, depois eu te mando. O artigo se chama: Constantino inventou a
Trindade? A doutrina da trindade nos escritos dos pais da igreja primitiva:
Por exemplo, Inácio de Antioquia (50-117), que está no primeiro século
para o segundo século, ele é contemporâneo a alguns dos apóstolos, já
fala: “Nosso Deus, Jesus, O Cristo (ele já fala da divindade de Jesus), foi
concebido por Maria segundo o plano de Deus, tanto da descendência
de Davi como do Espírito Santo. Consequentemente, toda a magia e todo
tipo de feitiços foram dissolvidos, a ignorância tão característica da iniqui-
dade desapareceu, e o antigo reino foi abolido quando Deus apareceu
em forma humana para trazer a novidade da vida eterna”.
“Eu glorifico a Jesus Cristo, o Deus que te fez tão sábio, pois observei que
você está estabelecido em uma fé inabalável, tendo sido pregado, por as-
sim dizer, na cruz do Senhor Jesus Cristo”. Ele já está mostrando aqui que
a igreja, no primeiro século, já entende que Jesus é Deus. Não tem nada a
ver com: Constantino inventou, Nicéia inventou.
Justino Mártir (100-165), outro teólogo muito famoso, que marcou época,
no segundo século já está falando isso ainda mais claro, mais direto. Jesus
é Deus para ele aí:
“Portanto, estas palavras testificam explicitamente que Ele [Jesus] é teste-
munhado por Ele [o Pai] que estabeleceu estas coisas, como merecedor

63
de ser adorado, como Deus e como Cristo”.
“O Pai do universo tem um Filho; que também, sendo a primeira Palavra
gerada de Deus, é mesmo Deus. E antigamente Ele apareceu na forma de
fogo e na semelhança de um anjo a Moisés e aos outros profetas; mas
agora nos tempos de seu reinado, tendo, como dissemos antes, tornar-se
homem por uma virgem...”
“Pois se você tivesse entendido o que foi escrito pelos profetas, você não
teria negado que Ele era Deus, Filho do único Deus inegável...”
Dá para perceber, por estas citações que nós já temos a divindade de
Jesus sendo dita claramente, abertamente, por esses teólogos.
Há uma citação de Irineu de Lyon (130-202) que está no livro sobre a his-
tória da teologia (The Christian Theology Reader), que ele já fala em termos
Trinitários no segundo século. Ele fala do Deus Pai que é o não criado, de-
pois ele fala da Palavra de Deus que é o Filho de Deus Nosso Senhor Jesus
Cristo e depois ele fala do Espírito Santo. Ele junta esses três, ele já está
falando dos três nesse mesmo contexto divino, de ações divinas.
Então dá para ver que desde o primeiro século, indo para o segundo
século os teólogos falando da Trindade. Aqui eu vou fazer um parêntese
para situar o pessoal. Eu percebo que no final do primeiro século, ali,
quando nós temos os últimos Escritos do Novo Testamento pelo apósto-
lo João, depois a morte de João, no finalzinho do segundo século, alguns
datam aí de noventa, noventa e poucos do primeiro século e logo depois
disso surgem dois debates, que, para mim, são os dois principais debates
sobre discussões teológicas desse período dos dois primeiros séculos da
igreja, segundo século, terceiro século. Um é sobre os livros canônicos,
sobre quais livros iriam reconhecer como o Cânon do Novo Testamento.
Alguns homens propuseram algumas listas, debateram isso. E o outro
debate que tem mais a ver conosco é sobre a divindade de Jesus.

A FERROVIA DA TEOLOGIA

Prestem atenção a essa analogia: nós falamos que o pessoal estava deba-
tendo muito a divindade de Jesus. Quando escutamos isso hoje, nos per-
guntamos por que esses caras perderam tanto tempo debatendo a divin-
dade de Jesus? Isso já não é tão ensinado? Já não é tão martelo batido?
Quando estudamos a história do pensamento cristão ou a história do
desenvolvimento de qualquer ideia, nós precisamos voltar no tempo, vol-

64
tar para o ambiente cognitivo daquele tempo, estudar a cultura, o con-
texto, o conhecimento disponível daquela época, a tecnologia daquele
tempo. Quando voltamos ao primeiro, segundo e terceiro séculos, esses
teólogos ainda não tinham a tradição cristã que nós temos hoje, pelo
contrário, esses caras estavam construindo a tradição. Eles não tiveram
os Credos ainda, nem os Concílios, eles não tiveram 2.000 anos de in-
terpretação bíblica, exegese, pesquisa de manuscrito, eles não tinham
nem o Novo Testamento fechado ainda. Eles estavam discutindo ainda
quais livros seriam canônicos ou não. Então eles estavam debatendo a
divindade de Jesus sim pois, veja bem, quando nós estudamos Teologia
hoje, o que fazemos é sentar em um banco de um trem e esse trem vai
correr por cima de trilhos que já existem. O máximo que podemos fazer
é transitar entre os vagões, conhecer os vagões, mas o trilho da Teologia
Ortodoxa já está construído. Nosso trem só vai deslizar em cima dele.
Então é muito mais fácil para alguns desses temas nós falarmos que o
trilho já está construído por que se discute isso ainda? Mas aqueles caras
não estavam no trem, eles estavam construindo os trilhos. Algumas vezes
eles devem ter se perguntado se iam pela direita ou pela esquerda? Tem
uma montanha aqui, vamos rodear ou fazer um túnel? Então precisamos
pensar com a mentalidade deles. Por isso que eu tenho até uma certa
misericórdia com alguns hereges – “Eu errei tentando acertar.”

RB: Tem até um ouro contexto, Pedro, que é a ideia de, como você mes-
mo disse, a galera está construindo o trilho da tradição, eles estão em um
ambiente cultural com a crença em outros deuses, há imperador que se
acha deus, então como diferenciar Jesus do imperador, porque o impe-
rador diz que é deus, Jesus também diz que é Deus? Ele é o filho de Deus
como eram os reis de Israel que também eram filhos de Deus? É tudo
uma questão de percepção, há uma questão de entendimento: Como
assim, Jesus é Deus? Mas Ele é Deus como o Deus criador? Mas Paulo já
estava dizendo isto! Gente de repente aquela carta de Paulo não estava
circulando em determinada região. É por isso que alguns fazem essas
afirmações, por exemplo: Constantino criou as “paradas’’, que, na verda-
de, Jesus nem sempre foi tido como Deus. Jesus foi feito Deus pela igreja.
Não, nós temos declarações bem antigas da divindade de Jesus, como
Pedro já colocou. Walter Bauer e depois o seu discípulo Bart D.Ehrman,
por exemplo, não são honestos com as tradições mais antigas.
É fato que a igreja primitiva tem uma pluralidade maior, mas é por causa
disto. O cristianismo ainda era periferia. O cristianismo vai ocupar um

65
espaço mais central a partir de Constantino que, dentre as mais variadas
religiões, escolhe o cristianismo para ser sua religião oficial. Aliás, tem
um podcast muito bom sobre Constantino28 que vai mostrar mais esse
contexto cultural.
Então não é que a divindade de Jesus foi sendo construída pela igreja, ela
foi sendo percebida conforme os escritos iam sendo descobertos, anali-
sados e tendo autoridade, que é a discussão que você falou, a construção
do Cânon, o reconhecimento do Cânon.

POR QUE A DIVINDADE DE JESUS ESTÁ EM DEBATE?

PP: Então, Bibo, nós sabemos que o cristianismo é uma religião que tem
sua origem no judaísmo, inclusive os apóstolos e o próprio Jesus Cristo
que estava em debate era um judeu, dizendo que estava a serviço do
Deus de Israel, Yahweh, então como as pessoas ficavam? Elas tinham de
um lado o judaísmo que era uma religião monoteísta (tem um único Deus
– “Ouve ó Israel, o Senhor é o único Senhor!”). Quando Jesus apareceu
no meio dos judeus, sendo um judeu e se dizendo Yahweh também, isso
causou um bug na mente da galera: “Como, a gente acreditou a vida in-
teira que só havia um Deus e agora Jesus aparece como agente divino?
Eu estou vendo um ser humano de carne e osso dizendo que é Deus
também como Deus é, como Yahweh é, como o Pai é?”
Então nasceu esse debate, porque as pessoas precisavam defender tanto
de um lado o monoteísmo e também elas estavam vendo que o próprio
Jesus e os apóstolos defendiam a ideia de que Jesus era Deus realmente.
Então como ficaria essa questão? Por isso tivemos o debate. Os caras
estavam tentando resolver essa parada aqui de forma intelectual. Como
a gente pode entender isso e defender as duas coisas?
É a partir daí, Bibo, que surgiram essas tentativas de respostas que
algumas delas foram para heresias, que nós conhecemos hoje como
heresias. O pessoal do final do primeiro século, segundo século, terceiro
século, começou a debater isso.

28 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/o-imperador-constantino-btcast-447/

66
MONARQUIANISMO: TENTATIVA DE RESPOSTA

No final do segundo século, começo do terceiro século, alguns teólogos


começam a propor o que ficou conhecido na história como Monarquia-
nismo. A ideia do Monarquianismo, o nome já é um pouco didático, é a
ideia de que nós precisamos defender que Deus é um. Então eles estavam
preocupados com a unidade de Deus, porque quando se começou a falar
que Jesus era divino e que o Espírito também, mesmo de forma incipiente
se começou a falar do Espírito Santo. O Espírito Santo vai ser tratado mais
no quarto e quinto século, mas aqui já se falava dele também como “jun-
to” da divindade. Quando se começou a falar isso, o pessoal falou: “Opa,
nós estamos começando caminhar aqui talvez para um politeísmo, algo
do tipo. Vamos preservar a unicidade de Deus. Deus é um. “
Então eles encontraram a ideia de que só há um monarca, só há um de
quem a vida depende só há um soberano, um governador, uma fonte de
vida, e esse é o monarca, esse é Deus, por isso o Monarquianismo.
Essa corrente se dividiu em dois tipos de Monarquianismo. Talvez esse
nome seja estranho, mas quando eu falar agora dos outros nomes as
pessoas já devem ter escutado sobre isso em alguns momentos. Então
nós temos:

MONARQUIANISMO DINÂMICO

Foi uma dessas tentativas de resposta. O J.N.D. Kelly, no capítulo 5 do


livro Patrística29 (recomendo muito esse livro), trata dessa forma: “Monar-
quianismo dinâmico, cujo nome mais exato seria adocionismo, era a teo-
ria de que Cristo foi um simples homem sobre quem o Espírito de Deus
havia descido”.
Esse dinâmico é de poder (dynamis). A ideia aqui era de que Jesus era um
homem comum que apenas foi empoderado pelo Espírito Santo, pelo
Espírito de Deus. Era como se Jesus fosse um sobre-humano, um meta-
humano, tipo um super-herói (Ele foi dinamizado pelo Espírito) e se tor-

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67
nou alguém acima dos humanos. Alguém que pode até ter um status de
divindade, sub-divindade, mas não é o Deus propriamente dito.
O teólogo Teódoto falou que foi no batismo de Jesus, quando o Espírito
desceu sobre Jesus, que Jesus recebeu esse empoderamento, essa ele-
vação ao nível meta-humano ou sub-divino. Outro teólogo que também
era um Monarquianista foi Paulo de Samósata, no final do terceiro século.
Essa doutrina foi logo rechaçada, negada, não foi uma resposta aceita
pelo Mainstream da igreja, alguns teólogos escreveram contra ela. Ela
não ganhou tanta abrangência nem temporalmente nem numericamente
ao contrário do Monarquianismo Modalista.

MONARQUIANISMO MODALISTA

“A ideia essencial dessa escola de pensamento é que há uma divindade


que pode ser variavelmente designada de Pai, Filho e Espírito. Os termos
não representam distinções reais, são meramente nomes apropriados e
aplicáveis em momentos diferentes.” (Erickson, Teologia Sistemática)
Esse é famoso até hoje, justamente, porque ele ganhou mais corpo na an-
tiguidade. Essa é a ideia: nós precisamos resguardar a unidade de Deus,
Deus é um só. Então quem são Pai, Filho e Espírito Santo? Eles são apenas
manifestações temporais de acordo com a vontade e a necessidade de
Deus, desse Deus único. Então hora Ele aparece no modo Pai, hora Ele
aparece no modo Filho, hora Ele aparece no modo Espírito Santo, por
isso esse nome Modalista.

RB: O Michael Reeves no livro “Deleitando-se na Trindade”30, chama isso de


Humordalista, ou seja, Deus se apresenta conforme o humor Dele. Agora,
é legal nos ressaltarmos, Pedro, que essa galera que está propondo isso,
não é um crente de internet, no seu quarto, com seu celular e sua webcam
ligada fazendo críticas e sugerindo viagens como nós temos hoje. Muitos
deles eram bispos, pessoas ligadas à igreja, pastores, para usar uma lingua-

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68
gem contemporânea, era gente séria, tão séria que depois nós vamos falar
do Arianismo que demorou para sumir, se é que sumiu.

PP: Teólogos que defendiam esse Monarquianismo Modalista: Noeto de


Esmirna propagou muito o Monarquianismo Modalista e ele ganhou al-
guns importantes defensores dentro da igreja, pessoas de liderança e
membros de igreja também, principalmente quando entrou na história o
teólogo Sabélio que deu mais corpo teológico e filosófico, ele trouxe mais
intelectualidade para essa visão, inclusive o Modalismo também ficou co-
nhecido como Sabelianismo por causa dele.
O grande cara que criticou essa heresia foi Tertuliano. Ele escreveu o livro
Contra Práxeas (Praxeas é alguém anônimo, ninguém sabe quem é, que
seria um Modalista. Alguns dizem que era Noeto, outros dizem que era o
Papa). Tertuliano faz um tratado apologético contra o Modalismo.

RB: É aí que surge o termo Trindade?

PP: Não, não aqui. É antes disso. Tertuliano foi quem cunhou o termo Trin-
dade, mas bem antes daqui. Não que não se falasse sobre isso, já se falava
em Tríade, mas Trindade foi Tertuliano quem cunhou esse termo para nós.

O PROBLEMA DAS ANALOGIAS

O Sabélio tinha uma analogia que ele usava muito lá no terceiro século,
a analogia do sol. Ele dizia que Deus é o sol, o Pai seria o sol e manifesta-
ções ou extensões do sol como os raios solares, o calor ou até a luz que o
sol produz, isso seria o Filho e o Espírito Santo. Ele usava essa ilustração
para tentar manter a unidade de Deus. O sol é só um, mas o percebemos
como energia, como o calor e como luz.

69
RB: Ou seja, Deus é o grande astro, os raios solares seriam Jesus, o calor
seria o Espírito Santo.

PP: E hoje em dia muitos cristãos falam que creem na Trindade, eu creio
no Pai, no Filho, no Espírito Santo, mas peça para eles explicarem a Trin-
dade biblicamente e eles têm enorme dificuldade. É um tipo de analfa-
betismo funcional trinitário. Muitos deles vão dar explicações em termos
Modalistas. Muitas pessoas usam da economia da Trindade para dizer
que Deus primeiro apareceu como Pai, depois Ele apareceu como Filho e
quando Jesus ascendeu Ele apareceu como Espírito Santo. Muitas pesso-
as têm essas explicações em termos Modalistas, porque algumas igrejas
ensinam nesses termos.
E aí, por conta disso, uma ilustração que é talvez a mais famosa da Trin-
dade é a da água. Deus seria a água (H2O), mas, dependendo da circuns-
tância (aqui da temperatura, logicamente) Ele aparece como sólido, como
líquido ou como gasoso.
Essa é uma aula de como ensinar para crianças do Ministério Infantil.
Quando você ensina isso para um adulto, você pode explicar, dizer que
não é perfeita, explicar o Modalismo, etc., e o adulto iria entender. Agora,
quando você ensina isso para uma criança (o que normalmente aconte-
ce) ela vai crescer com essa imagem de Deus e depois, para tirar isso da
cabeça da pessoa, é muito difícil, você criou um Modalista. Por isso é im-
portante evitar essas analogias problemáticas do Ministério Infantil, dos
filhos, em todo lugar, especialmente com crianças.

RB: Por que essa analogia é complicada do ponto de vista teológico?

PP: Eu defendo que nenhuma analogia, pelo menos visual, é adequada.


Essa aqui acerta em um lado, ao defender uma única substância, uma
única essência, que é o H2O, mas ela erra ao não distinguir as pessoas da
Trindade como indivíduos diferentes, porque Elas são pessoas individu-
ais, Eles são consciências diferentes. Essa analogia mostra modos de ser
da água. Os modos se manifestam por circunstâncias diferentes e Deus
não é assim. A analogia do ovo também é problemática. Aqui a Trindade

70
é como o ovo porque ele é formado por casca, clara e gema. Essa é um
pouco inversa a da água porque ela acerta do outro lado, são três coisas
diferentes, tem a casca, tem a gema e tem a clara, mas só a casca não é o
ovo, só a gema não é o ovo e só a clara não é o ovo. Então, Deus não é um
ser que está dividido em três partes e que se complementa só quando
essas três partes estão juntas, como um quebra-cabeças. As pessoas da
Trindade também não são assim. Quando você pega Jesus, Nele há pleni-
tude de divindade, assim também como o Espírito, assim também como
Deus o Pai. Já o ovo não tem isso.
Nós sempre caímos nesses erros quando queremos ilustrar a Trindade des-
ses modos mais didáticos. Achamos que estamos abalando e acabamos co-
metendo esses erros. Essa analogia acaba se aproximando de um tipo de
Triteísmo (três deuses). Era uma heresia da parte mais oriental da igreja por-
que lá eles focaram muito na distinção das pessoas. Tem a analogia da vela
que o pessoal junta três velas e faz uma chama só. O pessoal é muito criativo.

RB: As analogias são tentativas válidas, mas não convém no sentido de


mostrar a complexidade que é a Trindade. A do condicionador é clássica:
shampoo três em um, que é o shampoo, anticaspa e condicionador. En-
fim, são tentativas, mas nenhuma delas dá conta de Deus.
Agostinho tenta. Vai falar do amor, do amante e do amado. Depois ele vai
para a questão das consciências, na questão da psicologia, mas todas elas
ou enfatizam a Triunidade ou enfatizam a Unicidade. Não existe uma ana-
logia que vai pegar a complexidade do Ser de Deus. Enfim, é um mistério.

PP: Eu sempre prefiro ensinar com as com as proposições bíblicas mes-


mo, com aquelas ideias que a teologia sistemática ajudou a gente a resu-
mir melhor, a ver os textos bíblicos. Essas ilustrações são muito perigosas
principalmente para as crianças.

A TEOLOGIA E INFLUÊNCIA DE ORÍGENES

A teologia de Orígenes de Alexandria (c.185-c.251) encontra-se sob a su-


perfície de muitas teologias do quarto século. Os estudiosos há muito reco-

71
nhecem sua importância: para alguns, no último século, a própria teologia
de Ário é um resultado direto do “subordinacionismo” de Orígenes. Essa vi-
são é implausível por três motivos” (Ayres, 2006 pág.21). Orígenes chama o
Filho de sabedoria e poder de Deus que se tornou uma existência própria.
• O Filho procede da vontade e da mente de Deus.
• O Filho passa a existir distinto de Deus.
• O Filho sempre existiu junto com o Pai.
• Nós temos todo esse caminho que viemos construindo agora no pri-
meiro século, segundo e terceiro: Orígenes é um cara que eu tenho
misericórdia dele, porque ele escreveu muita coisa boa, escreveu mui-
ta coisa estranha, mas foi alguém que escreveu coisas estranhas que-
rendo acertar. Ele foi o grande Teólogo do segundo para o terceiro
século. Ele foi uma grande influência. O debate de Nicéia tem muita
origem no que Orígenes escreveu e defendeu. Ele era um cara bem
polêmico. Vou passar a jato aqui para vocês verem de onde vem o
Arianismo (a última heresia que vamos tratar hoje aqui). Ele está no
debate sobre Jesus, sobre a Trindade.
Ele tem umas afirmações que podem ser interpretadas dos dois lados,
são meio confusas, ele não deixou claro, ele escrevia difícil às vezes, en-
tão, de Orígenes saem duas tradições:
Tradições Origenistas:
Origenismo Cauteloso que defende, principalmente que o Alexandre de
Alexandria defendia que o conceito de geração eterna para defender a
igualdade temporal (Eles são eternos, um não vem depois do outro);
• Origenismo Radical defendido, principalmente, por Eusébio de Cesa-
réia) defende que essa geração é em tempo mesmo (o Pai antecede
temporalmente o Filho, o filho veio depois, o Filho não é Deus eterno).
• Então são esses dois caras aqui que são os cabeças teológicos dessas
posições diferentes. Ainda não entrou na jogada nem Ário, que seria
mais radical, nem Atanásio que estaria no lado cauteloso.
Alexandre (era bispo de Alexandria) junto com Atanásio (ele não era bispo) de-
fendem o Origenismo mais cauteloso: que O Pai e o Filho são eternos, quem
nenhum veio depois do outro, que são Deus da mesma forma, Deus eterno.
Eusébio de Cesaréia (um dos primeiros historiadores da igreja) e Ário de-
fendiam já o que vamos chamar de Arianismo aqui, essa ideia de que o
Filho não é divino como o Pai é, eles estão tentando defender a unidade
de Deus.

72
Eles eram espertos e inteligentes. Eles usavam muito textos, como Joao
10:30 – “Eu e o Pai somos um” para dizer que Eles podiam até ter um tipo
de unidade, mas eles são distintos. Eusébio dizia que era só uma glória
semelhante, porque Jesus era uma sub-divindade, Ele tem uma glória se-
melhante, mas Ele não é igual perfeitamente.
Eles usavam muito o texto: “O Pai é maior do que Eu”, “Jesus é o primogê-
nito da criação”. Por essas coisas, a inteligência de Ário, de Eusébio de Ce-
saréia, o debate que houve, alguns desses textos distorcidos, não existia
tradição exegética ainda, muita gente começou a acreditar no Arianismo.
Robert Letham resumiu, definiu o Arianismo nesses cinco pontos:
Deus é solitário, sendo o Pai somente;
1. O Filho teve uma origem ex nihilo (a partir do nada) e houve um tem-
po em que ele não existia. Foi criado pela vontade de Deus. (essa é a
grande heresia do Arianismo)
2. Deus fez uma pessoa quando desejou criar, ele criou por um interme-
diário. (Jesus seria o intermediário da criação)
3. A Palavra, ou seja, O Filho, tem uma natureza mutável, mantendo-se
bom pelo seu livre arbítrio.
4. A substância do Pai, do Filho e do Espírito são diferentes uma da outra.

Depois de Ário, os Arianos desenvolveram ainda mais essa tese, trabalha-


ram nisto.

RB: O Arianismo ficou forte na igreja mesmo depois do Concílio de Nicéia


tendo sido declarado como não oficial, até porque suspeitam que o pró-
prio Constantino curtiu as ideias de Ário. E isso é possível de entender ,
pois a galera estava construindo a doutrina, fazendo os trilhos que hoje
nós passamos sobre eles.

PP: Vou encerrar nossa aula no Concílio de Nicéia.

73
CONCÍLIO DE NICÉIA (325 D.C.)

Ele foi convocado e liderado por Constantino, imperador romano, maior


autoridade do mundo que se envolveu na discussão teológica para aju-
dar a igreja cristã mesmo. Muito se debate sobre o porquê ele fez isso.
Alguns dizem que ele se converteu ao cristianismo (ele teve aquele so-
nho com a cruz), eu não sei se isso é verdadeiro. Ele poderia ser cris-
tão realmente, mas eu acho que um dos interesses de Constantino ou o
grande interesse é porque essa questão teológica aqui estava dividindo
o império romano, estava enfraquecendo o império, porque tinha uma
parte do império oriental, uma parte do império acidental, governadores
diferentes, inclusive, havia uma questão familiar envolvida entre parentes
de Constantino e essa guerra teológica foi realmente muito forte. Como
a igreja estava muito presente no status quo do império, estavam enfra-
quecendo, Constantino teve que resolver isso. Por isso que eu falei que a
ideia do Dan Brown tem 10% de verdade, porque realmente Constantino
estava muito presente aqui.

RB: São especulações, Pedro, nós não temos como saber porque, na ver-
dade, o cristianismo representava 10% do império, então não era uma
coisa que ameaçava a existência do império. Agora, realmente, pesso-
as próximas, porque muitos cristãos foram assumindo cargos de poder,
então poderia dar esse rolê. Dizem alguns que, no fundo, dentre tantos
outros deuses, o Constantino escolheu o Deus cristão. Não sabemos o
motivo, mas ele escolheu. Tem um livro do Peter Leithart, Em defesa de
Constantino, que é bem legalzinho, que defende a conversão genuína de
Constantino. Tem um podcast31 sobre esse livro.
O Concílio ocorreu durante o verão do ano 325 (verão na Turquia: final de
maio-setembro).
• Se fizeram presentes aproximadamente 300 bispos. O número 318
ficou marcado na história porque foi registrado por Atanásio, Hilário,
Jerônimo e outros (coincide com os 308 homens de Abraão em Gn
14:14).

31 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/o-imperador-constantino-btcast-447/

74
• Era uma reunião de Bispo, onde eles tinham a palavra. Mas cada Bispo
levou seus diáconos, assistentes e até aprendizes. Assim, o número
de pessoas reunidas era muito maior e incontável.
• Teve um debate lá, leram cartas, rasgaram cartas, havia quatro parti-
dos, eles debateram. Alguns mais poderosos do que os outros, mas o
que importa é que no final O CREDO NICENO foi proposto e aprovado.
RB: Galera, o Pedro está dando esses pulos aí, porque eu falei para ele
que ele poderia pular, porque tem um podcast que indicamos na aula
passada e depois vamos indicar alguma literatura, e o PDF do Pedro vai fi-
car disponível na íntegra para você poderem dar uma olhada com calma,
beleza! Muito legal, para você – aluno da EBT.

PP: Esse material foi um seminário que eu dei, foi mais de uma hora e
meia falando de Nicéia, então tem muito conteúdo esse PDF aí.
Então o Credo Niceno foi proposto rejeitando o Arianismo e ele estabe-
leceu a base Cristológica, porque lembre que o debate de Nicéia é mais
Cristológico do que Trinitário. Lógico que ele teve uma influência muito
grande na doutrina da Trindade, porque ele está estabelecendo Jesus
como Deus, mas é no pós-Nicéia que depois eles começam a se preocu-
par com o Espírito Santo. E é do Credo Niceno-Constantinopolitano que o
Espírito Santo é mais trabalhado. No final do Credo Niceno tem só assim:
Cremos no Espírito Santo e nada mais é falado. Em Constantinopla eles
adicionam mais coisas sobre o Espírito Santo.
Eles estão defendendo O “Credo Niceno”:
“Cremos em um só Deus, o Pai todo-poderoso, criador de todas as coi-
sas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho de Deus,
gerado do Pai (a ideia de Alexandre de geração eterna), unigênito, isto
é, das substância do Pai, Deus de Deus, luz de luz, verdadeiro Deus de
verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o Pai, pelo
qual todas as coisas vieram a ser, coisas nos céus e coisas na terra, o qual,
por nós, homens, e por nossa salvação, desceu e se encarnou, tornan-
do-se homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, e virá
para julgar os vivos e os mortos: E no Espírito Santo.”

RB: Geração eterna: o Pai sempre foi o Pai porque houve o Filho, foi ge-

75
rado na eternidade. Na eternidade eles expiram o Espírito. Dá uma ideia
de um ser maior do que o outro, porque um vai gerar o outro e os outros
vão expirar o outro, mas não é questão de um ser maior do que o outro
porque todos são Deus igualmente. É complicado.

PP: Esse é um tema que não tem na Bíblia. Os Teólogos formularam para
tentar explicar de alguma forma essa relação eterna e depois sobre o
Espírito vai ser dito que Ele procede eternamente do Pai e do Filho, ou só
do Pai, também tem esse debate, inclusive foi esse debate que dividiu a
igreja ocidental da oriental.
Então, esse Credo Niceno marcou essa época de ouro da teologia porque
foi onde mais se debateu teologia nesse período mais antigo. O Credo
Niceno foi a maior reunião até então da igreja cristã. Ele ficou muito mar-
cado na história do cristianismo.
O Credo Niceno, junto com o que vem de Constantinopla depois, é um
marco. Depois Calcedônia também no século quinto vai acrescentar mais
ainda mais no Credo Cristológico e eles formam um marco fundamental
na história, na tradição cristã.
Então é isso, Bibo, caminhamos até o quarto século. Tem minha aula tam-
bém no Youtube, eu coloquei de graça no meu canal Pedro Pamplona.
Tem um vídeo sobre a dinâmica da Trindade e o outro é sobre a Trindade
para crianças.

RB: Galera, por favor, o material do Pedro custou tempo, dinheiro, inves-
timento, assim como vocês investiram para estarem aqui na EBT, para
terem acesso a esse conteúdo, então vamos segurar para nós esse con-
teúdo, esses privilégios de aluno, tá bom, gente. Pedro, obrigada pelo teu
carinho, pelo teu tempo, valeu pelo PDF, são aulas prontas ali, uma boa
história da discussão sobre a Trindade.
Gente, é isso, ficamos por aqui!

76
AULA 11
TRINDADE NO ANTIGO TESTAMENTO

Rodrigo Bibo: Muito bem, muito bem, muito bem, começa mais um BT-
cast em parceria com a Escola Bibotalk de Teologia. Eu sou Rodrigo Bibo
e Trindade no AT é difícil de ver!

Igor Miguel: Eu sou Igor Miguel e não há vida fora da Trindade!

Guilherme Nunes: Eu sou Guilherme Nunes e eu creio na Trindade,


portanto eu não vou perder a minha cabeça!

RB: Vocês já conseguiram remontar quem é o autor dessa frase? É difícil


localizá-la, né? O Pedro Pamplona falou com um cara que tem investigado
isso e ele achou uma citação muito parecida lá pelo século XVII, se não me
falha a memória!

IM: É mesmo?

RB: Alguém lembra da frase? É: “Procure entendê-la e perderá a cabeça!


Negue-a e perderá a alma!” Alguma coisa assim, né!

77
GN: Atribuem às vezes erroneamente à Agostinho, mas Agostinho não
tem nada a ver com isso.

RB: No lombo de Agostinho, Clarice Lispector, C. S. Lewis e Oscar Wilde


tem muitas frases, mano. No lombo desse pessoal vocês podem colocar
o que quiserem. No lombo deles tem muitas frases que não são deles.
Também atribuem muitas frases a São Francisco de Assis que não são
bem dele.
Mas, olha só meus amigos e minhas amigas, ouvintes desse podcast e
alunos da Escola Bibotalk de Teologia, temos aqui dois feras. Eu não sou o
Faustão, mas digo que esses caras são feras. Vamos conversar um pouco
sobre Trindade. No podcast e na EBT nós já temos material sobre a Trin-
dade, mas hoje eu os trouxe aqui para darmos um pequeno foco nesse
assunto no Antigo Testamento. Nós já temos um episódio maravilhoso
em bibotalk.com falando sobre o Espírito Santo no Antigo Testamento32 e
é um belo complemento a tudo que iremos falar aqui.
Meus amigos, Guilherme Nunes e Igor Miguel, vamos conversar um pou-
quinho sobre esse tema, e para introduzir, eu digo o seguinte: Nós, cris-
tãos, somos Trinitários, acreditamos nesse Deus Uno, Trino, nesse Deus
que é um e, ao mesmo tempo, é três e nós olhamos para o antigo testa-
mento, enxergamos rapidamente menções à Trindade. É muito comum,
a maioria dos cristãos, enxergar Trindade: “Façamos o homem a nossa
imagem e semelhança”, “O Espírito de Deus pairava sobre as águas.”, “O
Espírito Santo que desce sobre reis, sacerdotes e profetas.” O Espírito de
Deus lá no Antigo Testamento é o Espírito Santo que vemos na Bíblia Sa-
grada. Então é muito comum nós fazermos essa sistematização.
Bem, eu quero começar fazendo essa pergunta: Vocês, que são Biblistas
e que gostam de exegese Bíblica, o Igor Miguel que eu sei que conhece
um pouco a cultura judaica, enfim, vocês que gostam desse tema, como
vocês veem esse movimento? Vocês enxergam a doutrina da Trindade
no Antigo Testamento, mas como vocês lidam com a questão exegética?
Para quem não entendeu onde eu quero chegar, o Antigo Testamento foi
escrito por judeus e, a princípio, para judeus. Antes de Jesus a galera lia
esses textos e eles não enxergavam a Trindade lá. Como podemos lidar

32 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/espirito-santo-no-at/

78
com isso e por onde vocês querem começar? Porque eu sei que falei de
forma muito ampla e geral, então, a partir daqui, podemos começar a
pinçar algumas coisas.

IM: Então, Bibo, essa é uma boa conversa, eu achei o assunto muito su-
gestivo, de fato, porque ter um olhar Trinitário sobre a Bíblia hebraica é
sempre ter um olhar retroativo, porque nós somos fruto de um processo
de revelação canônica que culmina com Jesus Cristo, culmina com a reve-
lação do Filho de Deus, que à propósito, não apenas revela-Se como Ver-
bo e Unigênito de Deus, mas, de alguma maneira, também revela alguma
coisa sobre Deus que não era muito nítida simplesmente com o Cânon
do Antigo Testamento. Então, é claro, que o nosso olhar sobre a Bíblia
hebraica, como cristãos, é, de alguma maneira, um olhar que passa pela
mediação da revelação de Jesus. Isso é inegável.
Então, nós não lemos a Bíblia hebraica como o judeu lê. O cristão lê a Bí-
blia hebraica também como cristão, lemos a Bíblia hebraica como Escritu-
ra Cristã, sem ignorar, naturalmente, a matriz hebraica na qual a Escritura
foi forjada. Não podemos desprezar isso de maneira alguma.
Inclusive esse é um ponto muito singular dentro da tradição reformada,
em específico a calvinista, que trata os pactos anteriormente firmados
como componentes essenciais para a revelação da nova aliança em Jesus
Cristo.
O fato de termos uma compreensão de Deus que nos foi dada de forma
adicional com a revelação de Jesus, lança luz, inclusive, sobre uma série
de textos que nós lemos de maneira Cristológica no Antigo Testamento.
É importante deixar claro que a leitura do coração do texto, da localização
do texto, tem seu valor, mas nunca podemos nos esquecer de que os
cristãos não lêem a Bíblia apenas por esse viés exegético. Nós fazemos
uma leitura teológica de fato, uma leitura ainda mais que teológica,
uma leitura Cristológica. Sabe a imagem de Jesus no caminho de Emaús
com os discípulos que, de repente, o entendimento dos discípulos foi
dilatado e eles conseguiram compreender as escrituras à luz do evento
ressurreição? É bem isso, como nós também lemos as escrituras.
E eu entendo que isso não seja uma desonestidade com a leitura exegé-
tica do Antigo Testamento na medida em que consideramos a produção
exegética, mas nunca há dispensa ou sacrifício da revelação Cristológica.
A revelação de Deus em Cristo lança luz sobre a nossa leitura do Antigo
Testamento e não precisamos criar uma tensão. De fato, eu não consigo

79
hoje olhar para o Antigo Testamento, para a Bíblia hebraica sem fazer isso
de maneira Trinitária.

RB: É legal essa ideia do Sitz im Leben33, nós aprendemos isso na exegese
na faculdade, mas acho que você toca em um ponto importante no senti-
do de que o Cristianismo nasce entre os judeus, a igreja primitiva era ba-
sicamente de judeus que estavam lendo aquilo que hoje nós chamamos
de Antigo Testamento, mas que, para eles, era A Escritura.

IM: E para o povo do Novo Testamento também era A Escritura.

RB: Exatamente. Nós já tínhamos as cartas de Paulo circulando que ti-


nham uma autoridade também. Pedro coloca as cartas de Paulo junto
com as Escrituras, mas, quando Timóteo vai falar que toda a Escritura é
inspirada, ele está pensando naquilo que nós chamamos agora de Antigo
Testamento, depois do Cânon fechado. Mas é legal que eles já fizessem
uma leitura a partir de Jesus, ou seja, toda leitura do Antigo Testamento
já é a partir do evento Cristo. Nós sabemos que o texto tinha um signifi-
cado para os seus leitores originais, não negamos isso, mas o significado
para eles é incompleto porque eles não tinham o evento Cristo como nós
temos.

GN: Foi muito maravilhoso isso. Tenho medo de estragar o resto!. Eu


acho que isso que o Igor falou é primordial para todo teólogo cristão. Ele
precisa olhar a Escritura como um todo e de forma canônica, se não, ele
não é um teólogo, ele é um pesquisador. É muito importante entender-

33 Sitz im Leben é uma expressão alemã utilizada na exegese de textos bíblicos. Traduz-se comumente
por “contexto vital”. De uma forma simples, o Sitz im Leben descreve em que ocasião uma determina-
da passagem da Bíblia foi escrita, ou seja, qual foi o fato que motivou o surgimento de um determinado
gênero literário bíblico.

80
mos que o Monoteísmo judaico, principalmente o judaísmo em crise pós
Babilônia, não tinha tudo resolvido.
Quando nós falamos de Monoteísmo, estamos falando de judeus que
adoravam somente um Deus, não necessariamente eles pensavam em
termos numerológicos, a ideia era “Adorem somente a esse Deus que
tem essa identidade de criador e soberano”, e, na medida em que algu-
mas coisas vão acontecendo no Antigo Testamento e dentro do judaísmo
do segundo tempo, principalmente nas inscrições de I Enoque e II Esdras,
vamos percebendo que a identidade divina não está resolvida para os
judeus.
Isso é importante porque há um suspense na própria revelação do nome
de Deus no Antigo Testamento, há um suspense na própria interação de
Deus com o homem no Antigo Testamento, Deus falando para Ele mes-
mo, Deus tendo uma briga com Jacó e ali tem uma discussão sobre o anjo
ou não, mas a recepção de Jacó foi como se tivesse sido com Deus. Então,
a meu ver, quando pensamos em judaísmo pensamos num judaísmo que
tem a sua convicção de adorar somente a um Deus, mas também em
um judaísmo que sabe que não está tudo resolvido quanto a identidade
divina. Isso significa que havia uma expectativa na identidade divina a ser
completada e dentro de I Enoque e dentro de II Esdras essa identidade
divina seria completada por uma figura chamada Filho do Homem, já na
expectativa de Daniel.
Então, a meu ver, o Antigo Testamento prepara sim uma revelação mais
clara da Trindade no Novo Testamento, porque o próprio contexto judai-
co não tinha tudo resolvido. E aí entra o contexto da igreja primitiva como
judeus recebendo agora o evento Cristo. Não temos evidências de que a
igreja tenha arrumado confusão com isso, pois a devoção a Jesus Cristo
começou muito cedo na igreja primitiva, os primeiros hinos cristãos de-
monstram essa divindade de Jesus como Deus.
A figura do Filho do Homem em Jesus fez com que a igreja primitiva olhas-
se e percebesse que, de fato, Jesus estava envolvido na identidade divi-
na, não em questões numerológicas, que vão acontecer mais no perío-
do iluminista, mais analítico da filosofia, da linguagem. Uma tentativa de
tirar tudo o que o fenômeno tem, com Russel, para poder identificar o
fenômeno em si, para poder encontrar um direcionamento para outras
coisas, que é impossível interpretarmos uma coisa por ela mesma, sem
o seu contexto, sem a sua vivência, por isso a importância hermenêutica.
O que acontece na igreja primitiva é apenas uma conclusão lógica do in-
completo que estava dentro do coração de muitos judeus com relação à
identidade divina. Por exemplo Moisés: “Me diga o Seu nome.”, “Me mos-

81
tra Tua Glória.” Jó: “Eu quero Te ver.” “Eu quero falar Contigo.” A identidade
divina tem um suspense no Antigo e é revelada muito clara no Novo.
A igreja primitiva então: “Ora, se o Deus do antigo é o único soberano
e criador e Jesus é o único soberano e criador (segundo I Coríntios 8:6,
o Shemá do Novo Testamento) atribui a mesma identidade a Deus e ao
Senhor Jesus, então eles adoraram agora esse Deus e muitos, na verda-
de vão chamar não de Trindade, mas de algo mais Bi, mais Di, seria uma
adoração que se inicia mais referente a Jesus e ao Pai. E, no desenvolver
não da doutrina, mas da compreensão, o Espírito Santo vai ganhando Sua
força cada vez mais dentro da identidade divina como Trindade. Então eu
vejo que havia um suspense no Antigo que é deixado claro no Novo e os
cristãos primitivos entendem isso e não têm problema com isso, só vai
aparecer no quarto século.

IM: Guilherme, eu acho isso legal, porque é muito comum o pessoal falar
por aí de uma auto-cristologia e se desenvolve apenas em períodos tar-
dios da igreja e eu fiquei muito feliz quando li o raciocínio do N. T. Wright
no livro “Como Deus se tornou Rei”34. Ele fala uma coisa muito interessan-
te, que quando você olha para os profetas e vai vendo como os profetas
vão falando sobre o dia em que Yahweh volta e habita em Sião e toda essa
linguagem de Yahweh vindo ao mundo e você vê que essa imagem da
habitação de Yahweh se mescla com a linguagem do tempo e se mescla
com a linguagem messiânica, você já vê traços de alta Cristologia antes
do Novo Testamento, antes de Jesus, antes dos apóstolos. E vamos ven-
do como esses traços de uma auto-cristologia começa apresentar traços
dentro dos profetas. É claro que estamos falando aqui de fragmentos.
Uma coisa que eu acho sensacional, olhando para a teologia Joanina, por
exemplo, e fazendo de novo um momento retroativo, é essa noção de
paternidade de Deus, por exemplo. A paternidade de Deus é um tema
caríssimo para a Trindade, nós sabemos disso, e não é um tema que está
claro no Antigo Testamento, em hipótese nenhuma. Podemos perceber
talvez uma linguagem de paternidade meio analógica relacionando Deus
com a formação de Israel (Israel, meu primogênito. – Na linguagem de
Êxodo inclusive da Páscoa). A primogenitura de Israel contrastando com a
primogenitura do filho do faraó, os primogênitos do Egito. Inclusive no ju-

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daísmo temos uma oração muito tradicional Avinu Malkeinu (Nosso Deus,
Nosso Rei), que é recitada em muitos textos da tradição litúrgica judaica,
mas está longe de ser a ideia de paternidade divina como revelada na
exibição de Jesus como Filho Eterno de Deus e como Monogenes na teo-
logia de João, o Unigênito. Acho que esse é outro elemento que é trazido
na revelação de Jesus que tem efeitos também retroativos na revelação
canônica de quem Deus é.
Guilherme, eu achei muito legal essa ideia que você trouxe de que Israel
tem uma sede, uma fome e o próprio Deus coloca um germe dessa ne-
cessidade de “Conhecer e prosseguir em conhecer Yahweh”, como en-
contramos nos profetas e, de repente, isso culmina na revelação de Jesus.
A pergunta de Moisés sobre qual o nome de Deus, ficamos intrigados, e
Lutero traduziu como EU SEREI O QUE SEREI, dá essa ideia de conheci-
mento progressivo de Yahweh. Yahweh vai se revelando na medida em
que a história se desenrola. E vemos finalmente Jesus dizendo: “Eu lhes
revelei o Teu nome”, ou seja, a resposta para a pergunta de Moisés é
dada em Jesus. Isso é lindo!

RB: Ou seja, a pergunta de Moisés foi respondida.

GN: Uma coisa que você falou, Igor, que eu achei fantástica é que tanto
no Novo Testamento nós aprendemos sobre Cristo como em Cristo, o
efeito retroativo nos dá uma amplitude do que nós líamos no Antigo. É
por isso que Filipenses capítulo dois não é tanto hino cristológico. Para
mim ele é mais teológico, o escândalo é o Deus que se esvazia. E aí o ju-
deu vai olhar aquilo “O Deus que se esvazia.” e vai achar isso um absurdo.
Esse hino de Paulo, para mim, é uma revelação mais do Deus de Israel,
envolve a Cristologia obviamente, mas o foco do hino não é esse.

IM: O N. T. Wright vai dizer neste livro, “Como Deus se tornou Rei”, que
ele vê traços do Monoteísmo israelita, em Filipenses, nesse cântico, no
final Deus está chamando Seus eleitos para olharem para o único Deus,
por essa Cristologia. Não tem outro jeito de você ser Monoteísta, fora de
Cristo.

83
GN: E o interessante é que Filipenses 2 , termina com Isaias 45, que é
“Todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Ele é Senhor.” E lá no
texto a aplicação direta a Jesus. Então há um interesse do texto do Novo
mostrar esses traços que revelam o Deus de Israel, um Deus Trino e um
Deus como Jesus, que é Jesus.

RB: Agora, Gui, na tua fala antes, você colocou que eles não viam na ques-
tão de números, você fala isso no sentido de eles não enxergarem Deus
como duas pessoas? Eles não tinham esse entendimento ainda? Até você
terminar seu pensamento falando que no começo a igreja primitiva até
entendeu Jesus como Deus, como sendo Um com o Pai, mas eles não
pensavam em termo de números. Eu não entendi muito bem essa sua
fala. Queria que você elucidasse um pouquinho melhor.

GN: Eu acho que o trabalho principal nessa área é de Richard Bauckham


principalmente no livro “Judaísmo Primitivo e o Deus de Israel” e tam-
bém alguns outros livros dele, Larry W. Hurtado também vale a pena ler.
Quando pensamos em termos de números 1, 2, 3, 4 deuses, essa talvez
não seja a ênfase de um povo marcado pelo politeísmo em suas regiões
ao redor, como era Israel e o próprio Shemá, quando se inicia, não se ini-
cia com único na ideia de um, mas único em termos de adoração.
Então a ideia não era pressupor que os outros deuses eram verdadeiros
e, portanto, você deve adorar só a Deus. Não. Havia algo implícito de que
os outros deuses eram falsos, mas o ponto do Shemá é de que a ênfase
era mais em um único Senhor e Soberano e que deve ser adorado.
Na tese de Bauckham, ele diz que o Monoteísmo estava mais ligado à
identidade do que a número porque, eles não estavam preocupados com
Único, ainda que esteja implícita a ideia numeral de Um, mas essa não era
a ênfase principal do judaísmo no Antigo Testamento, tanto no pré-Babi-
lônico como no pós-Babilônico.
Quando chegamos na igreja primitiva, o povo judeu continua com essa
ideia porque eles estavam dentro dessa ideia de que o Deus de Israel
era o único que deveria ser adorado e, portanto, Ele é o único Senhor e
o único Soberano.
Essa ideia analítica de se pensar 1, 2, 3 e as discussões 3 + 1, ou 3 = 1, sur-

84
ge de maneira mais tardia, pois, inicialmente a igreja primitiva me parece
que faz um único link: a mesma identidade do Deus de Israel é aplicada
agora a Jesus e, se existe só um Senhor no Antigo, só um Deus soberano
e criador de todas as coisas, então Jesus é Deus, ainda que distinto do Pai.

IM: Guilherme, só para assentar o que você falou que eu acho que é
muito importante. Essa coisa do Bauckham que você citou: que não é um
Monoteísmo numérico, que Deus não é uma unidade divina no sentido
numérico, mas é Uno no sentido de uma extensão. A unidade de Deus é
Um porque isso está relacionado à extensão do seu governo e à exclusi-
vidade deste governo.
Isso é muito interessante porque a cultura ocidental, particularmente a
do mundo Helênico, onde a Cristologia vai ser debatida e a Trindade vai
ser debatida, existe essa tentação de tratar a unidade de Deus no sentido
numérico e não no sentido de uma exclusividade, não no sentido de um
governo soberano que se estende sobre a totalidade da vida.
E foi muito bom você ter falado isso, porque nas minhas leituras de te-
ologia do reino eu falo bastante sobre essa associação do Monoteísmo
com a noção de Monarquia Divina – Deus sendo o soberano, como você
enfatizou. A afirmação da revelação Monoteísta no contexto da libertação
do Egito vai muito nesses termos: Por que Deus está fazendo tudo aquilo
com o Faraó? Para mostrar que Ele é soberano. “Toda terra é minha em
toda sua plenitude.” Então a ideia da extensão do governo de Deus. En-
tão, dizer que Ele é Um é dizer que Ele é o soberano.

GN: Bem, o texto principal da tese de Bauckham e tanto o de Larry Hurta-


do na obra principal dele que é Devoção a Jesus Cristo na igreja primitiva
é I Coríntios 8. Nesse texto há para alguns uma espécie de eco do cha-
mado, não só eco, mas uma implicação direta, quando Paulo começa di-
zendo assim: “Portanto, em relação aos alimentos sacrificados aos ídolos,
sabemos que o ídolo não significa nada no mundo e que só existe um Deus,
pois, mesmo que haja os chamados deuses quer no céu, quer na terra,
como de fato há muitos deuses e muitos senhores, para nós, porém, há um
único Deus, o Pai, de quem vem todas as coisas, ou seja, o Criador, e por
meio de quem vivemos”, ou seja, Senhor. Aí ele diz assim: “E um só Senhor
por quem vieram todas as coisas e por meio de quem vivemos.” Então

85
as mesmas duas identidades dadas ao Pai são dadas ao Filho agora. Isso
significa que, para a igreja primitiva, Jesus era digno de adoração porque
Ele era Deus, pois Ele tinha a identidade exclusiva do Deus de Israel.

RB: Perfeito. Até aqui nós temos uma verdadeira aula. Eu acho que já
ficou muito clara essa questão hermenêutica. Maravilhoso! Sobre o Espí-
rito Santo, serão discussões posteriores, mas eu acho legal entendermos
como a igreja primitiva entendeu o evento Cristo e entendeu Cristo como
sendo Um com o Pai.
Agora, gente, eu quero fazer um exercício de nós entendermos os textos,
apesar de que quem prestou atenção já aprendeu, já fez as conexões.
Vamos agora cair no Sitz im Leben, ou seja, ir para o lugar vivencial.
Textos do Antigo Testamento que nós lemos de maneira Trinitária, dá
para ler de maneira Trinitária esses textos? Por exemplo: “E o Espírito de
Deus pairava sobre a face das águas.”, vocês leem como Espírito Santo?
Guilherme, você já consegue fazer uma leitura Trinitária ali, um reflexo do
Espírito Santo ou para você só é o Espírito de Yahweh mesmo, que não
é o Espírito Santo? Como você faz essa leitura a partir dos teus óculos
Trinitário, obviamente, mas também considerando o lugar do texto para
seus primeiros leitores.

GN: Quando eu penso no Espírito de Yahweh ou o Espírito que pairava, o


Espírito de Deus, eu tento pensar muito no judaísmo, no que significava
esse Espírito. Quando estamos lendo um texto como o de Isaías 56 ou
58, se eu não me engano, existe um paralelo entre Deus na criação com
algo muito interessante que é o paralelo entre a presença de Deus entre
o povo e o Espírito de Deus. Isso significa que, para os profetas, Deus
sempre se revela da seguinte forma: “Olha, eu andei no meio do povo. Eu
estava no meio de vocês no deserto.” Mais para frente o texto vai dizer: “E
o Espírito de Deus andou no meio de vocês.” O Espírito de Deus estava ali
também com vocês no deserto. Em outras palavras: a presença de Deus
no deserto é igualada com a presença do Espírito de Deus no deserto, o
que significa que quando olhamos todo esse espectro de que o Espírito
de Deus representa a presença de Deus pessoal no meio do povo, isso
não é muito diferente do Novo Testamento.
Gordon D. Fee, no tratado dele sobre o Espírito Santo, deixa muito claro

86
que parece que a função de Cristo é de fato ser o Salvador e a do Espí-
rito é de ser a presença pessoal do Deus Trino entre o povo. A palavra
Espírito, ao meu ver, é muito cara para as Escrituras hebraicas e, por mais
que alguns teólogos, falam que é uma espécie de ato criador de Deus, eu
acho que isso é muito possível, muito provável, mas eu acho mais prová-
vel que o texto está indicando a presença de Deus ali sobre as águas im-
plicando que ali é o Espírito de Deus. Parece ser uma interpretação meio
arcaica, conservadora, porém eu vejo que é muito caro esse termo, então
eu entendo que é o Espírito de Deus como nós entendemos dentro da
Trindade.

IM: Se você me permite complementar, Guilherme, eu me lembrei aqui


também do uso da expressão que aparece em Gênesis Ruah Elohim, é
uma expressão que aparece, por exemplo, dentro do próprio Pentateuco
associado a Bezalel, que era um homem das artes e o texto diz que o
Espírito de Elohim, Ruah Elohim, encheu de sabedoria e habilidade, etc.
Eu achei muito curioso porque, na verdade, é uma associação que está
em Gênesis, mas que reaparece aqui em outras obras do Pentateuco
apontando para a associação entre o Espírito de Deus com a criativida-
de. Então Deus cria e o Espírito, de alguma maneira, coopera com o ato
criativo e, de novo, o Espírito de Deus aparece em Bezalel. Toda aquela
linguagem de enchimento, do Espírito enchendo, que encontramos nos
profetas. E, de fato, inúmeras vezes, vamos ver, ao longo de todo Cânon
do Antigo Testamento, essa combinação de expressões Ruah Elohim as-
sociado a uma atuação realmente muito específica. Eu sei a tentação do
exegeta de olhar a expressão Ruah e falar que é um sopro divino, talvez
até com o sentido de despersonalizar isso, tirando a característica que
chamamos na teologia de característica hipostática do Espírito com uma
estrutura pessoal distinta do Pai e do Filho apesar de, obviamente, parti-
cipar da mesma natureza. E percebemos, ao longo do Antigo Testamento,
do Cânon, que o Espírito vai assumindo igualmente características hipos-
táticas, ou seja, Ele vai assumindo características de pessoa, inclusive na
maneira que Deus fala “Enviarei o Meu Espírito.” Então, claro que há uma
unidade, há também uma distinção aqui. Tem toda essa discussão, mas
eu não tenho dúvida que o Espírito que está aqui pairando sobre a face
das águas não é nada distinto do mesmo Espírito que está no deserto,
do Espírito que está enchendo os profetas, e do mesmo Espírito que está
capacitando Bezalel a fazer sua obra criativa.

87
RB: Legal. Eu acho muito legal essa opinião, esse argumento de vocês. Eu
concordo. Eu também gosto de fazer essa leitura, mas em um podcast
que gravamos (O Espírito Santo no Antigo Testamento35) um integrante
mostrou uma opinião um pouco diferente que é super aceita também na
academia. Não é uma discussão fechada. Não vou trazer isso aqui porque
vocês podem ouvir lá no episódio e confirmar se é isso mesmo.
Bem, e o “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” ? O argu-
mento que geralmente se utiliza é o de que Deus está conversando com
alguém ali, alguém como Ele, então, obviamente, não pode ser aquela
classe dos deuses, aquele panteão, aquela assembléia divina. Alguns tex-
tos dão a entender que tem uma assembleia que comparece perante a
presença de Deus, uma espécie de Olimpo judaico.
Mas “Façamos o homem.” Deus está falando com essa assembleia? Alguns
dizem que não, porque “a nossa imagem e semelhança” = igual a nós, e
não existe nada igual a Deus. Nós lemos já de forma Trinitária: “Aqui já era
o Pai e o Filho trocando uma ideia com o Espírito: “Vamos soprar aí nesse
boneco, e faremos igual a nós.”
Como vocês enxergam esse texto? Como a cultura judaica enxergou esse
texto? Ele indica uma pluralidade? É assembleia divina? Eu gosto da leitu-
ra da assembleia divina, porque quando diz que está fazendo igual não
quer dizer necessariamente igual, até porque demut tzelem não fala de
igual no sentido ontológico, mas parecido, remonta às estátuas, etc. Igor,
como é que o povo judeu, de alguma forma, leu esse texto?

IM: O que é curioso no texto hebraico, no verso 26, é que aparece o ver-
bo “fazer aí” conjugado na primeira pessoa do plural. O mesmo verbo (fa-
zer) associado a Elohim aparece no verso anterior conjugado na terceira
pessoa do singular quando fala “E Deus fez os animais selváticos”. Claro
que a justificativa judaica é a justificativa dos hebraístas de que aqui é um
plural majestático, de que Elohim está sendo pluralizado como nome de
Deus, Adonai é pluralizado e isso era comum no mundo antigo, inclusive
os pagãos nomeavam suas divindades no plural, por exemplo, Baal era
chamado de Baalins, mas era um Baal só e não vários.

35 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/espirito-santo-no-at/

88
RB: Desculpe-me a pergunta ingênua, mas por que pluralizar? O que quer
dizer plural majestático?

IM: Nós não temos o “Vossa Senhoria” para nos referir a uma pessoa, em
português? É o uso do plural para dar uma ideia de exaltação, uma ideia
de majestade, dá, inclusive, a ideia de intensidade.
Um exemplo é o uso da palavra VIDA em hebraico, que quase nunca apa-
rece no singular, aparece sempre HAIM (VIDAS). Outro exemplo: no livro
de Gênesis fala que Adão e Eva fugiram da presença de Deus. O termo
que está ali em hebraico é “FACES” - fugiram das faces de Deus. Essas
expressões aparecem na Bíblia pluralizadas com o sentido de exaltação,
de afirmar uma grandeza. Sinceramente, eu acho que isso não está muito
distante do que nós compreendemos tardiamente com a Trindade, se
nós não consideramos a Trindade necessariamente como uma questão
numérica, o Monoteísmo como uma questão numérica, mas como uma
questão abrangente. Essa ideia de pluralidade contribui, inclusive, com
essa noção de forma tardia. Agora, podemos olhar para esse texto sem
ponderar que esse texto é um texto explicitamente Trinitário? Eu acho
que não. Podemos cair aqui numa falha anacrônica. Agora, eu não teria
nenhum desconforto em ler um pai da igreja, que inúmeros fizeram essa
leitura, e olhar para esse termo e dizer que esse é um plural curioso. Por
que só aparece aqui? E você fazer uma leitura depois da revelação Trinitá-
ria e dizer: “Caramba, isso é, no mínimo, interessante!” Isso não contradiz
a leitura Trinitária.
Vou dar só um outro acréscimo, me permitam, que eu acho que vai fechar
aqui. Por exemplo, um pouco mais para baixo você continua lendo o texto
e você vai chegar em Adão. E o texto mostra Deus dizendo: “Não é bom que
Adão esteja só.” Eu estou falando Adão porque as Bíblias traduzem como
homem, mas em hebraico há essa distinção de Adam (humanidade) e Ish
e Isha (homem e mulher). Olha que interessante: Por que Deus olha para
Adão solitário, e ali no caso não podemos falar que era o homem do sexo
masculino. Tem muita gente que lê o texto como Deus criando a fêmea
para salvar o macho da sua solidão, como se a mulher não tivesse solidão.
O termo hebraico é Adam, a humanidade não pode estar só. Deus olhou
para a solidão da humanidade e falou “Não é bom.” Então, de onde Deus
tirou o critério, de que a solidão Adâmica era um problema?
Isso é uma boa pergunta, porque, é claro que estou fazendo leitura retro-
ativa aqui, mas pra gente é óbvio que responde uma questão: Deus tem

89
critérios para fazer um julgamento sobre a estrutura das coisas que Ele
está criando e qual o critério que Ele está utilizando? O critério que Ele
está utilizando é que Ele mesmo não é solitário. Ele mesmo não é môna-
da, como a concepção islâmica vê Alá, por exemplo, Alá como uma divin-
dade solitária. Não, Deus aqui é uma comunidade, a partir de uma leitura
Trinitária Agostiniana, e Ele olha para a solidão Adâmica e fala: “Não, tem
alguma coisa ali que não está legal, ainda não é minha imagem!” Porque
Deus não é solitário, então Ele cria uma ajudadora, Ele cria uma comuni-
dade, porque o próprio Deus é uma comunidade. E o que é curioso é que
essa que é criada de Adam, que na verdade nós sempre falamos que a
mulher foi criada de Adam, e eu gosto muito de frisar que, na verdade, o
que foi criado ali foi Ish e Isha, homem e mulher nasceram daquilo, não
foi só a mulher que nasceu. Eu não estou falando aquela coisa ridícula
que Adão era andrógeno, não é isso, nós não podemos falar que Adão
era homem no sentido de macho a não ser depois que a mulher foi cria-
da, inclusive o termo homem em hebraico só surge quando a mulher é
criada. Sem a Eva não teríamos o macho, até mesmo porque não havia
critérios de comparação. Nós só fazemos isso porque nós lemos também
de forma retroativa a criação de Adão.
Então, quando olhamos para Adão e Eva vemos uma distinção. Não tem
como olharmos para isso e não vemos traços da Trindade. Vemos distin-
ção, mas quando aproximamos essa distinção, nós vemos Adam de novo.
Como Deus, nós vemos Pai, Filho, Espírito Santo e quando nós integra-
mos as pessoas o que vemos? Vemos Deus. Então eu não vejo nenhum
problema quando olhamos para a cultura hebraica à luz da Trindade per-
cebermos esses elementos.

GN: Então, vou só acrescentar só algumas coisas. Eu não acho que a


Escritura esteja inferindo a Trindade, ela é Bíblica, ela está no texto e,
junto com isso, eu entendo que a Trindade é teológica, ou seja, a Trinda-
de serve como modelo conceitual para leitura e entendimento de toda
revelação. Então ela tanto é um objeto epistemológico do processo de se
conhecer como ela também é algo direto ali do texto onde eu conheço.
Quando eu olho para algumas questões dos pronomes no plural é o que
o Igor falou, eu vejo a teologia Joanina aí, porque lá em João Jesus vai falar
muitas vezes “Eu e o Pai somos um.” ou Ele vai falar “Como é que você
fala isso a nós?” Em alguns momentos Jesus se chama no plural e aí pre-
cisamos entender que quando Jesus faz isso não é mais no imaginário
meramente hebraico, agora é um imaginário pós-exílio em um tipo de

90
judaísmo que já está sofrendo um embate muito grande pela falta do seu
tempo. E ali já é algo que não tem como não olhar para Gênesis e perce-
ber que os pronomes no plural em Gênesis têm rastros da Trindade que
fica muito clara em João.
O termo Elohim no plural junto com o verbo no singular (substantivo e su-
jeito no plural com o verbo no singular) para nós é errado, fica estranho,
já na Bíblia hebraica acontece mais ou menos 2.500 vezes. Temos algo ao
contrário também como o termo “o homem” no plural fazendo algumas
coisas no verbo no singular. Então nós temos uma espécie de jogo grama-
tical que, em termos gramaticais, estou com o Igor, eu não acho que dá
para olhar para o texto e dizer: “Aqui é a Trindade.”, mas aqui tem rastros
da Trindade quando se é um teólogo cristão e qual é o propósito do plu-
ral de majestade ali? É porque acontece no texto um triplex de três, três,
três. Então, por exemplo, o homem (Adam - humanidade) acontece três
vezes, criar (o verbo) acontece três vezes e Elohim acontece três vezes
dentro da estrutura do 1:26 um pouco ali adiante. Então todas as vezes
que esses nomes são repetidos três vezes com verbos não concordando
com o sujeito é sempre no contexto de gerar vida. Então se pergunta: Por
que há o plural de majestade? Há o efeito majestoso e há o efeito poético
estrutural do texto que seria: todas as vezes que essas coisas se repetem
mostrando algum tipo de irregularidade gramatical para nós, um anaco-
luto (no grego), não é que eu ache que há um erro gramatical. O autor de
Gênesis não seria tão ingênuo, um cara que faz uma espécie de literatura
absurda naquele texto. Então, para mim, esses plurais chamam atenção
para a estrutura do texto onde, quando isso acontece, o foco é gerar vida.
É um recurso literário para chamar atenção.

IM: E esse texto de Gênesis 1:27 que você citou, Bibo, logo depois que Ele
diz: “Criou Deus, pois, o homem à Sua imagem, à imagem de Deus os criou;
homem e mulher os criou.” Olha que coisa curiosa: quando afirma que o
homem foi criado à imagem de Deus, e você faz uma leitura natural desse
verso, a informação de que a distinção homem e mulher estão presentes
no ato criativo também estão presentes no fato de que Adam (homem) foi
criado à imagem de Deus. Para mim está muito nítido, lendo esse texto,
que, ao afirmar que o homem remete ao criador em algum nível, por que
Moisés, quando escreveu esse versículo, fez questão de adicionar essa di-
versidade homem e mulher como parte inerente desse ato de criar um ser
à Sua imagem e semelhança? Tem uma pluralidade na unidade da nature-
za humana porque há uma unidade na pluralidade da natureza divina.

91
RB: Perfeito!

GN: E aí nós nem apelamos para a gramática, apelamos para o texto.

IM: Exato! Dentro do Gênesis tem outro texto que eu sempre fiquei in-
trigado com ele, porque ele tem conexões com o Novo Testamento. Eu
fiquei impressionado com o detalhe que eu vi no Targum Onkelos. Os
targumim são as traduções aramaicas do Antigo Testamento. Só que são
traduções meio que parafraseadas, um pouco interpretativas. O que é
curioso é Gênesis 3:9, depois que houve a queda o texto diz: “E chamou
o Senhor Deus ao homem e lhe perguntou: Onde estás? E ele respon-
deu: Ouvi a voz no jardim, porque estava nu tive medo e me escondi.”
O que é curioso no verso 8, que é o verso anterior, diz que quando eles
ouviram a voz do Senhor Deus que andava pelo jardim pela viração do
dia, esconderam-se da presença do Senhor Deus. Se você olha para esse
texto no original hebraico é super interessante porque, na nossa Bíblia
colocaram um monte de vírgulas, porque, de fato, o sujeito da oração não
é só Yahweh, o sujeito da oração é o conjunto. Qual é o conjunto? Quem
é o sujeito da oração? “E ouviram a voz do Senhor.” O que eles ouviram?
Eles não ouviram Adonai andando. Eles ouviram a voz do Senhor andan-
do. Esse é o sujeito da oração. O sujeito da oração é a voz do Senhor que
anda, não é o Senhor que está andando necessariamente. Quem está
andando? A voz do Senhor. O curioso é como os targumim traduzem
isso. Toda vez que os tradutores aramaicos da Bíblia encontram essas
expressões antropomórficas de Deus, como os judeus tinham muito zelo
com relação a Deus por causa do Monoteísmo, eles tendem a usar essas
expressões como a voz do Senhor, a presença do Senhor, eles usam uma
expressão aramaica que é a expressão Memra que quer dizer PALAVRA.
Existem muitos estudiosos hoje em dia falando que o uso da expressão
LOGOS, por exemplo, em João, capítulo 1, “No princípio era a palavra.” é
um eco dos targumim aramaicos que associavam o nome de Deus, prin-
cipalmente nessas ações antropomórficas, a alguma outra coisa para po-
der sacralizar o nome, eles usavam o termo Memra ao invés de usar a
voz de Deus. “Como assim a voz de Deus andando na viração da luz do
dia? Isso é uma coisa humana.” Usar esse tipo de expressão trazia uma
camada de respeito a Deus.

92
A ideia de que a voz de Deus andava e a de que a voz de Deus é quase
uma pessoa andando no jardim, para a mentalidade ocidental essa coisa
da voz assumindo características humanas é uma coisa estranha.
Estranho também é Provérbios, capítulo 8: “A sabedoria que estava com
Deus no princípio.” “A sabedoria que cria.” “Por meio Dele foi criada.” “A
sabedoria grita sua voz na praça.” “A sabedoria encontra o seu prazer en-
tre os filhos dos homens.” O que é isso? Para o mundo grego a sabedoria
é uma abstração, um conceito. No mundo hebraico a palavra e a sabe-
doria estão encarnadas nesse sentido. Isso para mim é um outro traço
Trinitário no Antigo Testamento que é muito intrigante.

RB: Igor, eu não sei se, a partir dessa sua fala, podemos puxar justamente
a questão da sabedoria que parece ter, no Antigo Testamento, uma vida
própria. Se não me falha a memória, em Provérbios, ela está ao lado de
Deus junto na criação. Parece que a sabedoria é um ser meio à parte jun-
to no conselho divino. A sabedoria no Antigo Testamento não parece ser
um conjunto de saberes que as pessoas demonstram, parece ser uma
outra ontologia. Como nós lidamos com isso?

IM: No meu livro eu introduzo uma corrente, um subcampo da Cristolo-


gia, que está virando uma disciplina, que se chama Cristologia da Sabe-
doria. Há um livro chamado “Jesus o Sábio’’, o subtítulo é ”A Peregrinação
da Sabedoria”, e um artigo sobre “Cristologia da Sabedoria” de James D.
G. Dunn36 em que eles começam a perceber esses traços. Ele começa em
Provérbios, mas ele tem uma produção muito interessante nos textos
apocalípticos judaicos não canônicos, mas importante matriz da teologia
judaica que vai pavimentar o caminho. Para a imaginação judaica que per-
mite João, no seu evangelho, fazer essa associação, porque percebemos
nitidamente os ecos de Provérbios 8 no prólogo de João quando diz que
a sabedoria estava com Ele, vemos a mesma expressão em provérbios.
Existe um paralelo entre o livro de Sabedoria de Salomão que aparece
Deus falando com a sabedoria: “Vai lá e habita entre as tendas de Jacó.” O

36 https://drive.google.com/file/d/1FEIFjeO0sZ1AuibUREhalxl2QhNXlHvi/view?usp=sharing

93
termo que é utilizado em grego para esse trecho do livro de Eclesiastes
é o mesmo que aparece em João, capítulo 1, verso 14, quando fala que o
verbo se fez carne e habitou entre nós e encontramos isso em textos de
sabedoria extra-canônicos (fora do Cânon). Mas esses textos extra-canô-
nicos são inspirados em Provérbios, capítulo 8, quando diz que a sabe-
doria habita entre os filhos dos homens e encontra a sua alegria entre os
filhos dos homens.
Percebemos aí um desenvolvimento teológico e Cristológico que pavi-
menta tudo que encontramos em João. João está dizendo Ele é o verbo.
Ele é a sabedoria. O termo LOGOS usado por João seria basicamente
um sinônimo de SOPHIA em grego, com exceção do gênero. Por que ele
usou LOGOS e não SOPHIA? Porque SOPHIA era um termo feminino. Ele
adota um equivalente masculino em grego que é LOGOS, que possibilita
uma associação imediata para os leitores judeus que conheciam grego e
tinham uma septuaginta produzida. Eles olharam e deduziram que era
claro que ele estava falando de sabedoria. Por que João tem tanta ênfase
nos discursos de Jesus ao longo de seu evangelho? Porque mostra justa-
mente que Jesus é o sábio, ele é a sabedoria encarnada. E aí está toda a
preocupação de João destacar o discurso de Jesus e nem tanto os atos.
Os atos estão lá presentes, mas sempre acompanhados por grandes dis-
cursos de Jesus.

GN: Muitas vezes nos perdemos em João quando LOGOS é entendido


como mera razão filosófica. A ideia de palavra do LOGOS é muito fraca
para o peso que LOGOS tem. João, capítulo 1 é um eco de Provérbios,
capítulo 8, e outras formas de sabedoria que vão sendo descritas no de-
correr do Antigo Testamento.
Quando chegarmos em João vamos ter uma leitura retroativa. Se você
quiser entendê-lo, olhe um pouco para trás. Mas agora nele há palavras
de vida, há algo a mais do que a sabedoria não foi revelada. É importante
não olharmos para a sabedoria no Antigo meramente como Jesus, igual
a Jesus, principalmente em Provérbios, fazer uma relação ontológica. Me
parece que expressa sim, por uma leitura retroativa, Jesus em Sua essên-
cia, mas, em termos de contexto histórico e em termos de Antigo Testa-
mento isso parecia apenas o preparo, uma espécie de sombra do que
ficaria mais claro no Novo.
A sabedoria aqui é personificada porque há essa tendência de personifi-
car questões mais abstratas. A literatura de sabedoria tem uma tendên-

94
cia de personificar e Provérbios, para mim, é um pai chamando seu filho
a casar com a sabedoria porque existe a tolice. A tolice é expressada na
mulher adúltera. Então o filho é colocado com as duas possibilidades:
ou a que está a mulher que é a sabedoria ou a mulher adúltera. A casa
da mulher adúltera é perto do precipício, a casa da sabedoria é sobre as
colinas, sobre a rocha. Aí essa sabedoria vai sendo personificada e o pai
vai meio que tentando “vender” a sabedoria para o filho.
Por que a sabedoria estava com Deus na criação? Porque é a sabedoria
que sabe como o mundo de Deus funciona. Então, se o filho queria viver
uma vida boa nessa vida que é complexa, como diz em Eclesiastes, então
ele deveria se casar com a sabedoria. Para mim, Provérbios 31, portanto,
não é uma expressão literal de uma mulher. Alguns vão falar que é Rute
porque a mulher corajosa lá é expressa em Juízes e expressa para a única
mulher que seria Rute, mas eu entendo que lá é a expressão do filho que
escolheu casar com a sabedoria.

IM: No capítulo 7, a tradução ficou a mulher adúltera, mas, na verdade, é


a estrangeira, idólatra, mas está recuperada no texto como uma imagem
da tolice, da impulsividade. Olhando o texto hebraico eu fico imaginando
um jovem judeu israelita ouvindo aquela história e a história é sedutora,
ele se vê ali. “O cara saiu de casa e a mulher está falando: Vem cá, vamos
lá em casa! Eu já perfumei minha cama com canela, com mirra! Vamos
nos deliciar em amores até de noite!” Tem uma sedução. Eu imagino o
jovem imaginando aquela cena, e essa é a pedagogia de Provérbios, que
é profundamente imaginativa, e quando chega no final associa um jovem
que está indo para um matadouro, aí ele toma aquele susto e já chama
para outra sedução que é a sedução para a sabedoria, que é o capítulo
8, que a dama sabedoria aparece no texto, que no final é retomado em
Provérbios com o acróstico maravilhoso feito com as letras do alfabeto
hebraico. Há várias especulações sobre a razão de aparecer todas as le-
tras, uma delas é para dar a ideia de totalidade, a sabedoria como uma
inteligência para a vida, é com ela que você toma as palavras, a sabedoria
é representada por todo alfabeto hebraico. É sensacional!

GN: Diante disso a melhor expressão para a encarnação e para como a


encarnação de Cristo se daria é a sabedoria expressa em Provérbios e
o tabernaculou entre nós é o próprio ato do sábio que vem não só para

95
falar conteúdo cognitivo, mas para ser o exemplo da encarnação da pala-
vra. Nesse sentido, a ideia da encarnação da palavra, quando Cristo, não
é só um mero exemplo, mas Cristo é aquele que vai além do mero cogni-
tivo. A verdade é conhecida não somente como algo cognitivo, mas agora
como uma estética, porque a estética vai além de informar, ela impacta.
A verdade não é só o conteúdo, mas o impacto existencial que causa em
mim e a sabedoria, portanto, personificada em Provérbios, é uma forma
de mostrar que é mais do que conhecimento cognitivo, é também o im-
pacto da personificação da vida de alguém em você e Jesus é o exemplo
perfeito desse impacto através da vida de alguém.
Gadamer inicia o livro “Verdade e Método’’ falando da importância da es-
tética. O que isso significa? A melhor expressão do que é verdade é a es-
tética porque nela você não só entende, você é impactado pelo que você
entende numa espécie de reviravolta existencial. Para ele, quando você
vê um quadro você está tendo aquele contato não só para ser informado,
mas para ser impactado e para mim esse é o motivo de que, na literatura
de sabedoria, existe uma personificação da sabedoria, para causar um
impacto através do exemplo vivo de alguém. Jesus, então, é o exemplo
perfeito dessa sabedoria e é o exemplo perfeito para ser seguido.

RB: Gente, eu vou até deixar Isaías para um outro momento, mas acho
que já ficou claro, a partir de tudo o que vocês falaram que não são vários
espíritos, mas que é o mesmo Deus de forma múltipla. Maravilhoso! Vo-
cês são fera! Meus amigos, muito obrigado pela presença de vocês aqui
nessa aula, nesse podcast! Foi um prazer para mim estar com vocês mais
uma vez aqui.

IM: Guilherme, foi muito bom, meu irmão, te ouvir e participar contigo
também. Foi muito agradável. Deus abençoe seu ministério, sua vocação
com ensino. Sei que você está colado com nosso amigo Yago, Deus aben-
çoe também essa parceria aí. Vida longa!

GN: Amém! Eu agradeço. Aprendi demais. Aprendi como falar alguns as-
suntos. Fiquei profundamente abençoado hoje de manhã, Bibo!

96
RB: É isso gente, vamos ficar por aqui nessa aula e no podcast voltamos na
semana que vem no Deus Trino se Ele quiser e assim permitir, estaremos
novamente por aqui. Fiquem todos na paz do Senhor Jesus ou, já que o
Igor está aqui, fiquem todos na Shalom.

97
AULA 12
TRINDADE E ESPIRITUALIDADE

Sejam muito bem-vindos a mais uma aula aqui na EBT – A Escola Bibotalk de Te-
ologia! Eu espero que vocês estejam bem, espero que vocês estejam gostando dessas
aulas sobre Deus e nós vamos continuar falando sobre Trindade porque é um dos
assuntos centrais quando nós estamos estudando a pessoa de Deus ou as pessoas
de Deus, já que Deus é três.
Você teve uma aula maravilhosa com o Pedro Pamplona, você teve uma aula ma-
ravilhosa com o Igor Miguel e o Guilherme Nunes. Gente, que conteúdo maravilhoso!
Eu me sinto alegre em poder passar esse conteúdo para vocês. Simbora então que o
tema hoje é Trindade e Espiritualidade.
Afinal, por que devemos estudar esse tema? Qual a importância prática dessa
doutrina que parece ser um amontoado de discussões filosóficas sobre Deus, dis-
cussões ontológicas. Sim, tem essa parte na doutrina da Trindade que não vamos
entrar aqui no curso, mas você pode correr atrás, como falamos na aula com o
Pedro Pamplona. Tem muitos aspectos históricos para você correr atrás acerca da
doutrina da Trindade.
Aliás, para quem quer entrar fundo no universo das discussões sistemáticas sobre
Deus, Espírito Santo e Jesus, tem esse livro aqui: Teologia Histórica do Gregg R. Allison37.
Esse livro é um suporte para a Teologia Sistemática de Wayne Grudem. Então aqui ele
vai se deter realmente sobre a história da doutrina. Olha aqui na página 336: “A doutrina
da providência na idade média.” Nós vamos ter uma aula sobre a providência divina aqui
e no livro você vai ter como a providência divina é entendida na Idade Média.
Nós não temos como passar por todas essas nuances nesse módulo de introdu-
ção aqui, então eu estou dando para vocês já o suquinho, o caldinho. Vamos falar de
“Trindade e Espiritualidade”
Aqui eu quero começar com esse teólogo místico do séc XII, Ricardo de São Vic-
tor, alguém muito caro para Ricardo Barbosa, aliás, essa minha aula está fortemente
embasada no livro “O Caminho do Coração”38 de Ricardo Barbosa. O Ricardo Barbosa

37 Disponível para compra em: https://a.co/d/39Sy3nC


38 Disponível para compra: https://amzn.to/3To8Wy8

98
tinha algumas contribuições muito interessantes acerca da praticidade da doutrina da
Trindade. Vamos ler aqui alguns excertos do Ricardo de São Vitor:

RICARDO DE SÃO VICTOR – TEÓLOGO MÍSTICO SÉC XII


Para Ricardo de São Vitor, a teologia das relações interpessoais baseadas na
Trindade pode ser resumida assim:

1. Comunhão/caridade;
2. Individualidade/felicidade;
3. Liberdade/criatividade.

A comunhão só é possível entre pessoas que no ato de compartilhar exercem a


caridade; isto pressupõe a individualidade de cada pessoa, pois só compartilhamos o
que somos. Se alguém teme ser rejeitado não se abrirá para a comunhão e a carida-
de, tornando-se um escravo de si mesmo. Não alcançará a felicidade. Se falharmos na
transcendência de nós mesmos para alcançarmos a comunhão, iremos falhar na com-
preensão da nossa própria individualidade, liberdade e criatividade. Ou seja, falhamos
em nos tornar pessoas.
A partir da doutrina da Trindade, Ricardo de São Vitor percebe que o que une a
Trindade é essa questão do amor, já discutida por filósofos anteriores a ele, inclusive
já citados aqui por mim também, e ele vai dizer então que essa comunhão vai levar à
caridade. Ele entende que, assim como o Ser de Deus é um Ser relacional, isso reflete
também na nossa comunhão com o nosso irmão. Se somos criados à imagem e seme-
lhança desse Deus, somos também seres relacionais, isso vai nos levar à comunhão e,
consequentemente, à caridade.
É importante esse nosso encontro como pessoa, isso vai ficar muito mais claro
quando falarmos um pouquinho nos próximos slides. Então, eu tenho um encontro
comigo mesmo a partir dessa relação com Deus e isso me traz uma felicidade que,
obviamente, vai ser completa quando eu compartilhar. (Aliás tem aquele filme Na
Natureza Selvagem39. Vocês se lembram desse filme? É um filme meio lento, eu não
curto essa proposta, esses filmes mais cults, inds, mas esse filme tem uma frase muito
legal, ele sai do meio da população, ele sai do meio da multidão para encontrar a si
mesmo, se perde porque está sozinho e, lendo os filósofos, percebe que a felicidade
só faz sentido se ela for compartilhada). E é isso, isso é muito Ricardo de São Vitor,
essa mística medieval já ensinava muito isso.
E tem essa liberdade e essa criatividade, ou seja, nós não podemos ficar ensi-
mesmados, achando que nós somos o centro do universo. Não, nós precisamos partir

39Na Natureza Selvagem é inspirado na história real de Christopher McCandless (Emile Hirsch), um jo-
vem rapaz que abandona sua vida de conforto para buscar a liberdade pelos caminhos do mundo, uma
viagem que o leva ao Alasca selvagem e ao desafio supremo. Disponível na Apple TV

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para a relação. Nós não vamos alcançar a felicidade se não partirmos para a relação.
O que nós podemos entender, então, a partir de Trindade e Unidade?

TRINDADE E UNIDADE
A partir da Trindade descobrimos que a comunhão e a amizade com Deus e o
próximo não é mais uma opção num mundo cada vez mais individualista e autônomo.
A comunhão e a amizade são a razão de ser do próprio homem. Deus é comunhão
e foi assim que nos criou. O Pai é Pai, porque tem um Filho. É o Filho quem define a
identidade do Pai. Da mesma forma, é o Pai quem define a identidade do Filho. Deus é
comunhão e assim nos criou! E em Deus não existe individualismo autônomo!
Se dentro do próprio ser de Deus não existe essa individualidade autônoma,
ou seja, ainda que cada pessoa da Trindade tenha a autonomia em Si como um ser,
como uma pessoa, não é autônomo, por que? Porque o Pai só é Pai porque tem um
Filho, o Espírito é o Espírito de Deus. O Filho é Filho porque tem um Pai e, por ser Filho,
concede ao Pai esse título de paternidade. Então, a própria Trindade mostra que não
existe uma autonomia.
Agora imaginem nós! Nós que somos criaturas, como podemos querer autonomia?
Por isso o pecado no Éden é um absurdo, porque é a busca por independência,
por autonomia e nós não conseguimos. Jamais conseguiremos autonomia, porque
fomos criados à imagem de um Deus que subsiste em três pessoas, e Ele mesmo não
tem uma individualidade autônoma, ou seja, não existe um individualismo.
Existe uma individualidade, mas ela não é autônoma, porque Eles três estão liga-
dos no mesmo propósito, na mesma missão, no mesmo amor, e, por isso, nós temos
essa comunhão. Por isso que Trindade e Unidade é um assunto tão caro e podemos
ver isso a partir de alguns conceitos do teólogo católico Leonardo Boff.
Gente, eu sei que esse nome, Leonardo Boff, para alguns pode já soar como
teologia de má qualidade, coisas da teologia da libertação, apoiador do Lula, mas es-
queçam um pouco isso. Isso é tudo verdade, ele realmente apoia o ex-presidente
Lula, ele está envolvido com a fundação da teologia da liberdade e já falou coisas bem
complicadas e estranhas.
Agora, precisamos ter maturidade no estudo da teologia para reconhecer quan-
do a pessoa faz e fala uma coisa legal, inclusive, o próprio Ricardo Barbosa cita muito
Leonardo Boff. O meu professor de Sistemática Euler Renato Westphal citava muito
Leonardo Boff, porque é inegável que quando o assunto é Trindade/Comunidade/
Unidade o Leonardo Boff fez estudos maravilhosos nesse texto. Vamos dar uma olha-
dinha para aquilo de bom que ele escreveu.
Boff então vai deixar bem claro que a doutrina da Trindade confronta esse indi-
vidualismo da nossa sociedade e, por isso, ele fala em três momentos ou três concep-
ções, três aspectos da manifestação de Deus na sua relação com o ser humano que
ajudam o ser humano a entender melhor a Deus, a si mesmo e ao próximo. Então ele
fala em transcendência, imanência e transparência.

100
NA TRANSCENDÊNCIA
Na transcendência o homem olha para cima em busca da razão primeira da sua
existência. (Lembra que eu já falei nas primeiras aulas do Deus transcendente, que
não é alcançável, que está para além da Sua criação, que não pode ser domesticado,
que não pode ser entendido plenamente? É o Deus transcendente. Na transcendência
o homem procura pela sua origem para além de si mesmo, ele procura aquilo que é
transcendente). Nesta experiência, o Pai surge como o Deus criador que dá sentido
e significado ao homem. (Porque ele procura uma origem, ele procura uma razão
para além de si mesmo, para fora daquilo que ele é criado e aí, surge o Pai como
Deus criador que dá sentido e significado ao homem. Tem um filme horrível chamado
Prometheus40, da trilogia Alien, de Ridley Scott, esse filme tem uma questão filosófica
ali naquela busca pelo criador, poderia ser um filme filosoficamente interessante). Na
transcendência, o homem se descobre verdadeiramente humano no encontro com o
Pai.
É neste encontro de amor e aceitação com o Pai que descobrimos não apenas
nossa origem, mas também a fonte da qual nossa vida emerge. O Pai resgata o
sentido da nossa existência a partir do mistério da criação e da aliança que ele mesmo
estabeleceu com o seu povo, aliança de amor e graça onde o significado da vida brota
da certeza e segurança do seu amor.
Ainda que Deus seja transcendente, ele se revela na Sua transcendência e, a
partir disso, o ser humano entende a sua fonte, entende a sua origem que está para
além, se entende como ser criado, mas também como um ser cuidado. Alguém que é
cuidado pelo próprio criador. Ele encontra significado na sua vida.
Bem, esse é um aspecto na transcendência. Agora nós temos a imanência. Na
imanência, lembra que que falei nas outras aulas? Deus imanente que está presente
na Sua criação, mas, ao mesmo tempo, não é a Sua criação. Pois bem, o que o Boff vai
dizer na imanência:

NA IMANÊNCIA
Na imanência dá-se o encontro do homem consigo mesmo enquanto ser criado.
Aqui, o Filho surge como revelação do Pai, que na encarnação aponta o caminho, e
determina a forma e o conteúdo do relacionamento com toda a criação. (Nós temos
que ser à imagem do Filho, estamos sendo transformados à imagem do Filho de Deus.
O nosso molde de masculinidade, o nosso molde de feminilidade não são os padrões
criados pela sociedade, mas o próprio Jesus Cristo. Precisamos ser um homem segun-
do a imagem do Filho, precisamos ser uma mulher segundo a imagem do Filho. Então,

40 Este prelúdio do filme Alien conta a história de uma equipe de cientistas que embarca em uma jor-
nada espacial para descobrir a verdade sobre a origem da raça humana. No planeta de destino, eles
encontram criaturas poderosas e revelações assustadoras. Disponível na Star +

101
nessa relação com Filho, Deus imanente, o Emanuel, o Deus que está no nosso meio.
Isso faz sentido porque eu me entendo como ser criado, mas agora essa relação que
eu posso ter com Deus se dá porque Ele é um Deus presente, Ele é um Deus ima-
nente). E o Filho que, em sua encarnação, define que toda a lei e todos os profetas se
resumem num só mandamento: “Amarás, pois o Senhor teu Deus de todo coração, de
toda a alma, e com todo o entendimento, e ao próximo como a ti mesmo.”
Ele (o Boff) propõe que a relação transcendente com o Pai se transforme numa
relação imanente com o próximo e toda a criação. O ser pessoa na encarnação não é
determinado pelo sentar-se à direita ou à esquerda do Senhor em Sua glória, mas em
ser servo, em participar da vida do próximo, em criar laços de amor e afeto com Cristo
e com o mundo.
Na imanência, essa relação com Deus alcança a mim mesmo e ao próximo. Bem,
como é essa junção de transcendência com imanência?
Na transcendência eu encontro a Deus, o meu criador, na imanência eu tenho
essa relação com o criador e sou movido em compaixão e amor pela comunidade,
para com o próximo, mas isso é efetivado, segundo Leonardo Boff, por um terceiro as-
pecto que é a transparência. A junção, o encontro da transcendência com a imanência
resultam na transparência.

NA TRANSPARÊNCIA
Por fim temos a transparência, que nos faz perceber quem somos, como tam-
bém quem o outro é. É o Espírito que, segundo o apóstolo Paulo, tira os véus e másca-
ras do nosso rosto, para que possamos contemplar, como por um espelho, a glória do
Senhor (2Cor 3.16-18). O mistério do Espírito é unir o transcendente com o imanente,
é estabelecer a comunhão do homem com Deus. A Bíblia afirma-nos que todos nós
fomos “batizados num só Espírito”, e que é Ele, o Espírito, que clama: “Aba Pai”. Este
poder do Espírito de nos irmanar pela transparência, respeitando nossas diferenças e
individualidades, estabelece a comunhão do “corpo” e dá visibilidade à igreja de Jesus
Cristo.
Olha que coisa preciosa essa ideia do Leonardo Boff, essa transparência. O en-
contro da transcendência onde eu me percebo gente, onde me percebo criador, a
imanência, Jesus Cristo me dá o molde de como eu devo ser humano, Jesus Cristo é o
meu molde de ser humano, essa imanência, o Deus presente, e na transparência, ou
seja, nesse sentido, nesse significado de ser pessoa eu tenho o Espírito Santo. O Pai
me diz que eu sou criado à Sua imagem e semelhança, ou seja, criado à imagem da
Trindade, o Pai me diz que Ele é o sustentador, Ele me diz que Ele é diferente de tudo
o que Ele criou, mas Ele se importa com tudo o que Ele criou. O Filho vai estabelecer
a aliança, essa relação que eu tenho com Deus, comigo mesmo. Ele é o mediador en-
tre Deus e os homens, entre Deus e eu mesmo, Ele é o mediador de todas as minhas
relações e aí eu tenho a transparência. Tudo isso que eu tenho em Deus por meio do
Espírito Santo vai me levar à unidade da igreja. Por isso podemos falar de Missão, po-
demos falar de Trindade, Espiritualidade e Missão.

102
A MISSÃO
A missão cristã é, antes de tudo, um convite a esta vida comunitária. Sabe, indo
um pouco além do que o Boff disse, eu fiquei pensando na ideia de transparência e
aí, dando um sentido para essa ideia, sobre o que eu entendi do que o Leonardo Boff
escreve, sabe essa ideia de que eu vou ficando transparente à medida em que as pes-
soas vão vendo Jesus na comunidade, à medida em que as pessoas vão vendo Jesus
em mim? Ou seja, “Já não sou mais eu quem vivo, mas Cristo vive em mim.” Sabe essa
ideia de transparência quando você está editando uma imagem e você tem duas ima-
gens, uma está sobreposta à outra, você seleciona a imagem da frente e vai aplicando
uma transparência nela? Ela vai diminuindo a intensidade da luz e, consequentemen-
te, você vê o que está atrás.
Conforme nós vamos entendendo a obra de Deus em nós, quem nós somos em
Deus, como devemos viver a partir de Jesus Cristo e em Jesus Cristo, e toda essa ação
do Espírito Santo em nós, vamos ficando transparentes. O que vai transparecer em
nossa vida? Jesus. Por isso é importante falar de Trindade, Espiritualidade e Missão,
como o Ricardo Barbosa faz). Ao receber o próximo, como pessoa que participa desta
relação comunitária.
A missão cristã não pode ser descrita apenas em termos de ação e projetos,
implica em amor e aceitação. A encarnação não deve ser vista apenas como processo
de aculturação e integração, mas como caminho de identificação pessoal e amizade.
Acho muito lindo isso porque Jesus Cristo veio, se encarnou, se aculturou, Ele viveu
no nosso meio e amou as pessoas, então não foi só um projeto. Foi uma relação que
Ele veio estabelecer. Ele não veio aqui cumprir a missão do Pai no sentido estrito, essa
missão envolvia justamente relações. Não era uma coisa fria e calculista. Envolvia re-
lações, horas à mesa ouvindo as pessoas, conversando. Muito legal pensarmos sobre
a vida de Jesus no dia a dia. Nos evangelhos realmente tem muita ação, muita coisa
acontecendo, mas não foram três anos assim de toda hora acontecendo uma coisa,
um milagre, um demônio, um fariseu. Não, Jesus teve momentos de mesa, de tranqui-
lidade, de caminhar, de estar com a galera. É muito legal pensar nisso. É um projeto
de relação e não de poder.
O índio, o pobre, o idoso, o enfermo são pessoas, não são problemas, devem ser
recebidos e amados pelo que são, e não pelo que virão a ser. E somente neste ato de
amar que estaremos traduzindo mais fielmente o sentido do evangelho, do convite ao
discipulado, da participação no mundo novo criado por Deus.
Esse é o desafio que nós temos como igreja. A doutrina da Trindade é uma dou-
trina super prática, que envolve a nossa espiritualidade. Não somos seres autônomos,
porque nem cada pessoa da Trindade tem autonomia. Elas estão em uma relação de
amor, de obediência umas com as outras. Obviamente que a obediência do Filho se
destaca porque Ele obedece ao Pai, mas Deus só é Pai porque existe um Filho. Existe
essa interdependência de uma pessoa da Trindade com a outra. Eles agem em con-
junto ainda que são diferentes e isso diz muito sobre a igreja.
É uma doutrina extremamente prática, fala de caridade, fala de doação, como
um se doa ao outro. É lindo no ministério de Jesus como o Pai está presente, como o

103
Espírito está presente, isso nos move. Ou seja, nessa transcendência, nessa imanência,
nessa transparência.
A doutrina da Trindade nos mostra isso, se Deus transcendente se faz imanente
em Jesus Cristo e, por meio do Seu espírito, nos torna transparentes no sentido de
que estamos aqui nessa junção de Pai, Filho e Espírito numa igreja, batizados em um
só Espírito, ou seja, somos batizados em Deus para vivermos uma unidade, para ser-
mos aperfeiçoados na unidade. A doutrina da Trindade nos ensina isso.
Para mim a grande lição é: a comunhão que nós devemos ter, porque o Pai, o
Filho e o Espírito, são comunhão pura, essa ideia para mim é central: a comunhão, e a
ideia de que não existe autonomia, eu não sou independente, porque nem as pessoas
da Trindade tem uma relação autônoma, imagina eu que sou mera criação, pó falante,
poeira estelar.
Então é isso: COMUNHÃO e DEPENDÊNCIA, INTERDEPENDÊNCIA, nós depende-
mos de Deus e isso é maravilhoso. É isso! Vou ficando por aqui. Vamos para a próxima
aula e agora nós vamos caminhar por outros temas. Deu de Trindade por agora, ainda
que nós não esgotamos o assunto da Trindade. Talvez apareçam coisas novas, lives
com especialistas para falarmos um pouquinho mais sobre a Trindade, mas vamos
agora caminhar em outros aspectos da doutrina sobre Deus. Vamos falar sobre O
Deus Criador.

104
AULA 13
O DEUS CRIADOR

Falaremos sobre O Deus Criador. Sim, precisamos nos aproximar dessa doutrina
bíblica com o coração alegre e, obviamente, ir além do óbvio. Se bem que, reforçar o
óbvio, é muito importante, afinal, se nós deixarmos de falar o óbvio, ele pode ser es-
quecido e, consequentemente, coisas ruins começam a acontecer na igreja.
Por isso, eu costumo dizer que sou um arauto do óbvio. E é muito importante
nós, como cristãos, pensarmos a doutrina bíblica da criação. Nós vamos ter pelo me-
nos umas duas aulas falando sobre essa doutrina pensando em Deus como o Criador,
um pouquinho da leitura de Gênesis. Não vou entrar tanto em detalhes nas questões
de ciência e fé, no que diz respeito às nossas origens, porque eu quero convidar você
a ouvir os podcasts que já gravamos sobre essa temática de criação, a ciência, a rela-
ção fé e ciência. Já temos alguns episódios no podcast do Bibotalk.
Vou focar mais na questão teológica, afinal, é para isto que o texto de Gêne-
sis foi escrito. Ele é uma questão teológica, não biológica, geológica, etc. Antes de
mais nada, devemos achegar-nos à doutrina da criação com um sentimento de as-
sombro com a maravilha do que o que Deus fez é totalmente correto e adequado.
Não é uma questão de buscar entendimento, mas de permitir que a grandeza da
ação criativa de Deus preencha cada vez mais a nossa existência. Como és grande,
ó Deus!
Tem uma série da Netflix chamada Nosso Planeta41 e é muito bonito ficarmos
olhando a natureza, todos os detalhes, os ecossistemas, os funcionamentos, é sim-
plesmente maravilhoso. E se tem uma coisa que acontece quando nós assistimos es-
ses documentários sobre o nosso planeta, sem sombra de dúvida, pelo menos lá em
casa, nós que somos cristãos, é um sentimento de “Como és grande, ó Deus! Como
tudo o que Tu criaste é bom, é perfeito!”
Quando nós olhamos só essa parte da natureza, mesmo com os animais mais
fortes comendo os mais fracos, toda aquela cadeia alimentar, ainda assim é bonito.
É tipo como quando Mufasa ensina para o Simba: “Simba, tudo o que o sol toca... e a

41 Com imagens nunca vistas, esse ambicioso documentário mostra a beleza natural da Terra e mostra
como as mudanças climáticas têm impacto sobre todas as criaturas vivas.

105
gente come o antílope e o antílope vira grama...” Sabe aquele ciclo sem fim? É uma coi-
sa bonita, ou seja, não é estranho quando olhamos um animal comendo outro animal.
É meio chocante, como, por exemplo, um episódio que minha filha Milena viu
tinha as orcas, conhecidas como baleias assassinas, atacando e comendo, ou quando
você vê o tigre correndo atrás da presa, mas é o ciclo, faz parte do ecossistema. Isso
no fundo é muito bacana.
É diferente de quando nós olhamos alguém da nossa espécie, quando nós
olhamos seres humanos matando outros seres humanos. Isso é chocante. Inclusive na
semana em que gravo essa aula o Brasil foi tomado por assassinatos. Pelo menos uns
quatro noticiários que eu acabei vendo só navegando no Instagram. Isso realmente
nos choca, isso é abominável.
Mas a criação de Deus é boa, então nos assombra falar desse Deus criador e
que, segundo a Bíblia, criou todas as coisas muito boas, “Viu Deus que era bom.”
Por isso esse assombro, quando nós falamos desse Deus Criador, o Deus que cria
para Sua Glória. Não cria porque estava entediado, não cria para brincar conos-
co. Cria porque nos ama, porque quer compartilhar do Seu amor. Cria para a Sua
Glória.
Bem, a primeira coisa que precisamos afirmar é que somos Criacionistas, porque
acreditamos que Deus criou todas as coisas. Você pode ser um cristão e acreditar na
teoria da evolução, nenhum problema com isso. Há discussões teológicas para defen-
der essa posição. Agora, todo cristão genuíno é Criacionista, porque ele crê que Deus
criou todas as coisas como podemos ler aqui:

SOMOS CRIACIONISTAS
Podemos ler em Hebreus 11.3:

“Pela fé, entendemos que todo o universo foi formado pela palavra de
Deus; assim, o que se vê originou-se daquilo que não se vê”.

Dali para a frente, essa fé é ilustrada por referências a muitos como Noé,
Abraão e Moisés, e ao próprio povo de Israel. Pela fé nós também entendemos que
o Universo tem um Criador divino. Ou seja, pela fé cremos que todas as coisas foram
criadas e formadas pela palavra de Deus. O evangelho de João fala isso, Paulo nas
suas cartas fala isso, ou seja, tudo foi criado por Jesus, por meio de Jesus, tudo o que
foi feito foi feito por Ele e, sem Ele, nada existiria. Lembrei do Projeto Sola, aquela
música Colossenses 142. É linda, você já ouviu? Maravilhosa essa canção!

42 Ouça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Xzbj3r3h7ps

106
Bem, se o autor de Hebreus está falando isso e logo depois ele começa a citar
uma série de heróis da fé, pessoas, personagens históricas, ele está falando da vera-
cidade, ou seja, acreditamos em Deus como criador porque a Bíblia assim diz, assim
como ela fala desses grandes heróis que também agiram pela fé.
Nós cremos pela fé que o Senhor é criador de todas as coisas. Acreditamos que
o mundo, da forma que existe, clama, pede um criador e isso é maravilhoso. Então,
somos Criacionistas, não temos como fugir dessa realidade se somos cristãos, porque
cremos que Deus criou no princípio. A Bíblia já começa com essa afirmação: “No prin-
cípio Deus criou os céus e a terra.” Isso, para nós, é inegociável.
E tem outra coisa muito interessante também. Vocês perceberam ali no versículo
que “Pela fé entendemos que todo universo foi formado pela palavra de Deus: assim o
que se vê originou-se daquilo que não se vê”. Nós defendemos uma criação a partir do
nada, ou seja, “Creatio Ex Nihilo”, é chamada dessa maneira essa doutrina da criação a
partir do nada. Bem, porque acreditamos e defendemos uma criação absolutamente
original? Qual o propósito de afirmar que tudo foi criado a partir do nada?

CRIAÇÃO DO NADA
A Criação é absolutamente original. O que foi criado por Deus não surgiu de um
material preexistente. É “creatio ex nihilo”, “criação do nada”. “No princípio Deus criou
os céus e a terra” – assim diz Gênesis 1.1. Não há nenhuma declaração sobre algum
recurso material de que Deus tenha se valido. O que se aponta aqui não tem paralelos
na experiência humana, porque a atividade criativa humana sempre envolve a molda-
gem de material já existente. Com Deus, porém, é totalmente diferente: só Ele cria de
fato do nada.
Nós defendemos a “creatio ex nihilo” porque acreditamos que não existe nada
igual a Deus. Não existe nada que estava com Deus que Ele pudesse olhar para o lado
e pensar: “Opa, eu vou começar a criar a partir desse material.” Não, não existe nada
pré-existente. Antes de Deus não havia nada, só Deus, só a Trindade.
A “creatio ex nihilo” quer justamente garantir isso: não existe nada igual a Deus,
então Ele cria do zero, ele cria a partir do nada.
Talvez na próxima aula exploramos essa questão, mas nos outros relatos de cria-
ção dos outros povos, a origem do universo, o surgimento dos mundos e das coisas,
geralmente, é a partir de alguma coisa: da briga dos deuses, então um Deus vence o
outro e, com os destroços desse outro faz os seres humanos, cria a terra... Geralmen-
te é assim. Nos outros relatos de criação nós temos uma criação a partir de um ma-
terial existente. Isso você pode ouvir, por exemplo, na série “Os Outros”43, você pode
ler no livro de André Daniel Reinke, Os Outros da Bíblia, você pode ler um pouquinho
sobre essas outras cosmogonias,

43Playlist aqui: https://open.spotify.com/playlist/4WVzi0bxzOhB2G7gJIS50l?si=aP9gFjbLTri9pCeC-zZiyg

107
Eu vou discutir na próxima aula a questão de Gênesis, porque “No princípio criou Deus
os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia...” Ali parece que dá a entender que Deus
começa a moldar o caos. Será que esse caos é anterior à criação? Claro que não, porque
lemos o relato de Gênesis a partir da ideia de Hebreus, a partir da ideia de que não há nada.
É importante você prestar atenção nisso e eu vou voltar a isso na próxima aula de
alguma forma: no relato de Gênesis para o povo judeu, o primeiro que recebe esse texto,
não tem essa preocupação do criar a partir do nada. Não, ele faz uma comparação e
até mesmo uma defesa do seu relato da criação meio que em comparação aos relatos
dos outros povos. Então não tem essa preocupação filosófica do “a partir do nada”.
Ainda que o texto também não deixa claro essa matéria pré-existente “No princípio
criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia...”. Dá a entender que
primeiro ele criou esse caos e depois foi trabalhar nele. Então a “creatio ex nihilo” tam-
bém não é prejudicada por causa do relato de Gênesis, mas o relato de Gênesis não
tem essa preocupação.
Vocês conseguem entender isso? O relato de Gênesis pode dar a entender que
Deus começou a trabalhar a partir do caos, tem um porquê de o leitor primitivo pen-
sar dessa maneira e eu explico na próxima aula ou você pode ouvir nos podcasts que
nós temos na playlist especial do Bibotalk. Só digitar Gênesis Bibotalk44 e você ouvirá e
verá vídeos variados sobre isso.
Você entende isso? Essa preocupação “creatio ex nihilo” é uma preocupação
mais moderna, mais filosófica, por exemplo, os pensadores cristãos chegaram à con-
clusão: “Gente, não pode ter existido nada junto com Deus, se não, alguma coisa
seria eterna igual a Deus.” Entende? É uma preocupação posterior, assim como a
doutrina da Trindade.
A doutrina da Trindade está na Bíblia, mas não é uma formulação Bíblica clara na
Bíblia, até porque a doutrina da Trindade começa a ser formulada quando os cristãos têm
que falar sobre o seu Deus a partir do Panteão Romano. Entende onde eu quero chegar?

A IMPORTÂNCIA DA CREATIO EX NIHILO


A “creatio ex nihilo” faz muito sentido biblicamente, mas ela não é assim já vista
no relato de Gênesis, afinal, o relato de Gênesis não tinha essa preocupação. Como
você pode ver no slide, aqui fica mais claro o que eu estava falando:
A DOUTRINA da creatio ex nihilo nega indiretamente tanto o dualismo metafísico
como o panteísmo. O dualismo, em vários aspectos, entende que o mundo ou alguma
outra realidade (como na filosofia de Platão e na mitologia babilônica) existe eterna-
mente junto com Deus ou mesmo lutando contra ele. Da perspectiva bíblica, isso nega
Deus como Criador e também como Senhor, pois se algo sempre existiu à parte de
Deus e junto Dele, Ele obviamente não é o Criador;

44 Clique aqui: https://bibotalk.com/?s=Gen%C3%AAsis

108
Vocês percebem como é importante afirmar a “creatio ex nihilo”? Porque se eu
digo que alguma coisa existe antes de Deus, então Ele não é o criador, porque existe
esse ser ou esse algo que rivaliza com Ele antes da eternidade. Então, esse dualismo
metafísico não existe. Não existe nada igual a Deus. Ele é diferente, Ele é distante, Ele
é transcendente da Sua criação. A “creatio ex nihilo” quer nos privar disso: ninguém
é como Deus. Só Ele é o Criador. Não tem algo antes de Deus que criou Deus. Quem
criou Deus? Ele é auto-existente, Ele é o criador. Isso é difícil de explicar.
O panteísmo, em qualquer forma, ao identificar Deus e o mundo de algum modo,
também é uma negação da Criação. Segundo Rodman em sua Teologia Sistemática, o
panenteísmo é, em essência, um monismo em que Deus e o mundo são eternamente
um: eles são inseparáveis um do outro.
Todas as filosofias de emanação, em que se considera que o mundo flui eterna-
mente de Deus, são igualmente panenteístas e contrárias à criação. O mundo não é
formado de Deus nem de matéria pré-existente.
Vamos pensar um pouquinho porque aqui temos dois conceitos, o panteísmo e
o panenteísmo. O panteísmo é aquela ideia de que tudo é Deus, ou seja, como Deus
criou, logo tudo é divino.
O panenteísmo é um pouco diferente. Ele até preserva uma separação entre
Deus e a criação, mas fala que Deus está de tal forma nessa criação que as coisas
acabam se misturando demais. A “creatio ex nihilo” quer deixar bem claro que Deus é
o Criador, Ele cria a partir do nada, então a criação não é divina, ou seja, Ele faz uma
criação original, Ele cria à Sua imagem e semelhança, mas Ele não dá da Sua essência
para essa criação. Bem, aqui eu trago o conceito do Leonardo Boff, teólogo católico,
que eu já falei para vocês na outra aula, e ele tem uma ideia do panenteísmo que qua-
se é legal e tem muita gente que pensa como ele.

O PANTEÍSMO DE LEONARDO BOFF


Tudo não é Deus. As coisas são o que são: coisas. No entanto, Deus está nas
coisas e as coisas estão em Deus, por causa de seu ato criador. A criatura sempre
depende de Deus e sem Ele voltaria ao nada de onde foi tirada. Deus e mundo são
diferentes. Mas não estão separados ou fechados. Estão abertos um ao outro. Se são
diferentes, é para possibilitar o encontro e a mútua comunhão. Por causa dela supe-
ram-se as categorias de procedência grega que se contrapunham: transcendência e
imanência. Imanência é este mundo aqui. Transcendência é o mundo que está para
além deste. O Cristianismo, por causa da encarnação de Deus, criou uma categoria
nova: a transparência. Ela é a presença da transcendência (Deus) dentro da imanência
(mundo). Quando isso ocorre, Deus e mundo se fazem mutuamente transparentes.
Como dizia Jesus: “quem vê a mim, vê o Pai”.
Tem coisas complicadas aqui no panenteísmo de Leonardo Boff. O interessante
numa visão assim, ainda que exagerada, é que ela traz uma consciência ambiental
melhor do que, muitas vezes, nós que ficamos, muitas vezes, só na categoria transcen-
dência e imanência. A nossa imanência muitas vezes é fraca. Essa ideia de que Deus
está presente na criação, muitas vezes, não nos leva a termos cuidado com a nossa

109
irmã natureza. Ela não é a nossa mãe, ela é nossa irmã porque também foi criada pelo
nosso Pai.
Se você não entendeu muito bem isso, esse conceito da irmã natureza, quero
muito que você ouça um episódio no Bibotalk chamado Ecoteologia45, maravilhoso,
que gravamos com o pessoal da ABC2.
É interessante que muitas vezes essas teologias mais panenteístas tem uma
valorização do outro, da natureza, porque enxerga essa transparência, enxerga
essa presença de Deus. Obviamente, eu concordo com o Boff que nós não estamos
separados ou fechados de Deus, nós estamos abertos um ao outro e há uma
possibilidade de encontro. Agora, tem uma questão perigosa quando ele diz que essa
transparência é Deus dentro da imanência, ou seja, Deus dentro das coisas, as coisas
meio que divinizadas. Isso pode ser um pouco complicado.
Eu gosto desse conceito de transparência do Boff que é essa junção da imanên-
cia com a transcendência para não ficamos nesse jogo de Deus está aqui, mas está lá.
Na transparência Deus está presente neste mundo, muito presente. Esse encontro do
imanente com o transcendente é a transparência. Ele até fala mais aqui como pode-
mos ver nesse slide sobre o Panteísmo de Boff:
O universo em cosmogênese nos convida a vivenciarmos a experiência que sub-
jaz ao panenteísmo: em cada mínima manifestação de ser, em cada movimento, em
cada expressão de vida, estamos às voltas com a presença e a ação de Deus. Aqui já é
uma linguagem um pouco mais acessível e nós acreditamos mesmo na beleza do sor-
riso. Nós falamos “Eu vejo Deus na beleza do sorriso da criança. Eu vejo Deus na ajuda
ao outro. Eu vejo Deus quando protegemos a natureza, quando protegemos a boa
criação de Deus.” Isso é interessante, agora, quando ele fala que Deus está dentro, eu
tenho dificuldade com essa ideia. Abraçando o mundo, estamos abraçando Deus. Lido
assim, pode causar um certo arrepio, agora, metaforicamente, tudo certo para mim,
porque quando ajudamos alguém é como se estivéssemos ajudando o próprio Jesus.
Quando Jesus fala: “Senhor, quando nós fizemos essas coisas boas para Ti? Quando
fizestes aos outros.” Então, metaforicamente, cuidar da natureza é cuidar das coisas
de Deus, mas não de Deus. Percebe onde às vezes esse exagero é complicado? As
pessoas sensíveis ao Sagrado e ao Mistério tiram Deus de Seu anonimato e dão-lhe
um nome. Nós temos que ver beleza e, ao mesmo tempo, reconhecer o perigo de al-
gumas coisas. Isso é lindo, maravilhoso: Deus, o transcendente, o Senhor, de repente
ganha um nome. É a ideia de que se fizermos os outros fazemos a Deus e isso é ma-
ravilhoso. Quando tiramos o anonimato de Deus e damos um nome a Ele. E qual é o
nome? É o nome do meu próximo. Celebram-no com hinos, cânticos e ritos mediante
os quais expressam sua experiência de Deus.
Testemunham o que Paulo disse aos gregos de Atenas: “Em Deus vivemos, nos
movemos e existimos” (Atos dos Apóstolos 17, 28). Se eu não me engano essa é uma
parte do hino de Zeus, mas tem alguma coisa envolvendo os gregos. É bacana isso:

45 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/ecoteologia-btcast-abc2-034/

110
“Nele vivemos, nos movemos e existimos”, ou seja, vivemos neste mundo e logo nos
movemos em Deus. Gente, eu não sei como amarrar esses nós aí, só sei que eu acho
legal, eu acho bonito, eu acho profundo, leva a uma consciência muito bacana da rela-
ção de Deus com o mundo. Eu não afirmo que o mundo é Deus e também que Deus
está dentro das coisas, porque Deus é totalmente diferente. Karl Barth berra aqui para
nós: “Deus é totalmente outro.” Mas é interessante vermos esse Deus que se encarna
“Quem vê a mim, vê ao pai” É muito interessante esse cuidado, e sim, o cuidado com a
natureza faz parte, vemos isso em toda a Bíblia Sagrada.

A TRANSCENDENTALIDADE DE KIERKEGAARD
Aqui nós temos uma alternativa com nosso amigo Kierkegaard, esse pensador,
esse filósofo cristão, que traz o conceito de transcendentalidade. Ele dá um contra-
ponto bacana ao panenteísmo do Boff. E depois o Millard Erickson, em cima dessa
teologia do Kierkegaard, desenvolve isso que eu vou ler para vocês. Com isso conse-
guimos nos localizar e não sermos chamados de hereges por aí.
O conceito de transcendentalidade dimensional nos capacita a pensar em trans-
cendência e imanência juntas. Deus está no mesmo lugar em que nós estamos, mas
não é acessível a nós de maneira simples, pois está numa dimensão diferente. Ele está
num plano diferente, ou num âmbito da realidade diferente. Os muitos sons dentro
de determinada sala podem servir de exemplo aqui. A maioria deles é inaudível para o
sentido normal da audição. Se, no entanto, introduzirmos um rádio e o sintonizarmos
nas diversas frequências do indicador, descobriremos uma enorme diversidade de
sons. Todas aquelas ondas de rádio eram imanentes ao ambiente, mas, como modu-
lações de frequências de rádio, os sons não eram detectados pelo ouvido humano
sem o auxílio do aparelho de rádio. Da mesma forma, Deus está próximo de nós; sua
presença e influência estão em todo lugar. Porém, visto que ele está em um âmbito
espiritual da realidade, não podemos ir até ele por meio da mera locomoção espacial.
Exige-se uma mudança de estado para fazer essa transição, uma mudança que geral-
mente envolve a morte. Assim, Deus pode estar próximo, muito próximo, mas tam-
bém muito distante, como indicam várias referências das Escrituras (Jr 23.23; Ef 4.6).
Acho muito interessante esse exemplo que o Millard Erickson dá a partir daquilo
que ele desenvolve da teologia do filósofo Kierkegaard, porque é justamente isso: Deus
está presente como as ondas de rádio estão presentes aqui na minha sala e estão
presentes também aí na sua casa, só que não conseguimos percebê-las, somente
sintonizando-as, ou seja, tem um aparelho que vai nos fazer sintonizar e que nos faz
perceber essa realidade.
Eu acho muito bacana essa transcendentalidade dimensional, Deus está aqui,
nós podemos, de alguma forma, acessá-lo. Creio, inclusive, que Deus faz milagres
nessa manifestação e muitas vezes se manifesta para nós, fazendo-nos sentir a Sua
presença. Eu acredito muito nisso e, por isso, eu acho legal essa sensibilidade do
panenteísmo do Leonardo Boff, que, infelizmente, vai acabar desembocando, muitas
vezes, num panteísmo, por mais que o Leonardo Boff tenha deixado bem claro que
Deus é Deus e as coisas são coisas, mas às vezes a relação fica tão próxima, uma

111
linha tão difícil de discernir que acaba virando um panteísmo. Mas eu gosto da sen-
sibilidade que isso traz.
Agora, a transcendentalidade também é interessante, Deus está aqui, mas em
uma outra dimensão e nem sempre eu consigo acessá-lo, mas eu creio nesse mila-
gre do Espírito Santo em que eu, ao ajudar o outro, ao servir a Deus, acabo vendo-O,
acabo sentindo-O e tendo a certeza de que Ele está aqui e que Ele é atuante nesse
mundo, afinal, milagres acontecem.
Na próxima aula nós vamos dar uma divagada bem legal, bem bacana sobre o
relato da criação de Gênesis. O que esse relato quer nos ensinar? O relato da criação
tem alguma coisa a ver com o templo? Seria o mundo o templo de Deus?
Aguarde que a próxima aula está espetacular, inclusive, provavelmente, terá um
convidado muito especial. Aliás nesse módulo eu estou com vários convidados espe-
ciais também. No módulo Teologia Simples eu fiz lives com vários especialistas e foi
muito legal.
Agora eu os trouxe aqui para as aulas também. Então aguarde que é isso que
você pode esperar da EBT, um currículo bem bacana com pessoas legais e eu por
aqui. Deus nos abençoe e vamos lá para a próxima aula!
Obs.: E me cobrem aqui nos comentários que eu vou colocar o link dos podcasts
citados. Você também encontra esses links, uma playlist no Spotify46 com os principais
podcasts do Bibotalk que te ajudam a entender e aperfeiçoar o seu conhecimento
aqui na EBT, lá no nosso grupo do Telegram. Lá tem os links e tem interação. Se você
não tem tempo para interação, entre no grupo e vai lá em arquivos, links e veja o que
compartilhamos. Você vai achar muita coisa boa, principalmente nas mensagens pré-
-fixadas no topo do grupo, tá bom!

46 Acesse aqui: https://open.spotify.com/playlist/5pjJDYblUNADGc4YSRVM5r?si=TzmaPZKATv-YveWry-

112
AULA 14
COMO LER GÊNESIS 1 E 2

Rodrigo Bibo: E aí pessoal, tudo bem? Espero que vocês estejam bem,
porque começa mais uma aula aqui na EBT – Escola Bibotalk de Teologia.
Estamos dando continuidade sobre a pessoa de Deus e falando sobre a
criação, O Deus Criador. Já fizemos uma introdução a esse tema, mas, é
óbvio, que nós precisamos falar sobre a leitura de Gênesis, como ler Gê-
nesis 1 e 2?
E, é claro, que para falar sobre esse assunto eu trouxe meu amigo Paulo
Won, que, para quem ouve os podcasts do Bibotalk, já está acostumado
com a presença desse brother, desse pastor, desse estudioso, desse aca-
dêmico, desse professor de Teologia, enfim, um cara com muitas quali-
dades e, acima de tudo, um homem de Deus. Paulo, muito obrigado por
aceitar o convite e vir aqui na EBT para ensinar um pouquinho para nós
como ler Gênesis 1 e 2.

Paulo Won: Valeu Bibo! É privilégio meu estar aqui com você. E depois de
você ter enchido a bola, eu tenho que fazer bonito agora.

RB: Rapaz! Mas eu tenho certeza de que isso vai ser tranquilo para você.
Nós vamos dar essa introdução. Obviamente não vamos esgotar o assun-
to, mas eu penso que é muito legal nós trazermos essa reflexão. É um

-oTIw

113
pouco de Teologia do Antigo Testamento com toques hermenêuticos, So-
ciologia da Religião, tem tudo um pouco misturado aqui, porque a nossa
leitura de Gênesis é muito influenciada, obviamente, pelo tempo em que
nós vivemos e, muitas vezes, por temos essa leitura positivista, vou usar
esse termo aqui, uma leitura que olha para Gênesis e quer encontrar
respostas que Gênesis não quer nos dar. E nós, muitas vezes, fazemos as
perguntas erradas para o texto bíblico e é muito importante nós apren-
dermos a localizá-lo.
Eu sei que você tem uma série de slides aí. O Paulo é um professor convi-
dado que prepara slides, vocês vêem o nível do negócio aí. Mas, Paulo, eu
não sei se está no seu slide aí, e eu acho que seria legal para nós aquecer-
mos os motores, a ideia de que Gênesis é um texto muito antigo, muito
distante de nós. Eu acho que cabe uma reflexão nesse sentido.

PW: É, de fato, nós não sabemos se Gênesis foi o primeiro documento


a ser escrito na Bíblia Hebraica, mas nós sabemos por evidências até do
texto, da gramática que é utilizada, que Gênesis é um documento muito,
muito, muito antigo.
Se nós estamos separados de Apocalipse e de João por 2.000 anos, pode-
mos colocar 3.000 anos fácil para alguma coisa que possamos considerar
de Gênesis. 3.000 anos e, se você for conservador, ainda mais para cima.
Então, um livro antigo com um texto antigo que utiliza de imagens peculia-
res ao seu próprio tempo e que é lido por nós hoje com uma mentalidade
diferente, com cosmovisões diferentes, com pressupostos diferentes, já
com toda uma bagagem de conhecimento científico, de conhecimento de
todas as áreas acumulado, e é muito difícil nós cravarmos qual é a ma-
neira certa de nós lermos Gênesis, porque Gênesis não nos ensina qual
é a metodologia que nós temos que usar para lê-lo. Ele só tem o texto
a apresentar, mas é lição de casa nossa, daqueles que estudam a Bíblia
com seriedade, analisar qual é a mais razoável forma de nós lermos esse
documento tão antigo e tão importante da Bíblia Hebraica.

RB: Paulo, eu sei que você acabou de dizer que nós não podemos cravar a
maneira correta de ler Gênesis, perfeito, acho que isso abre margem para
conversa, para o diálogo e isso é muito importante quando nós conver-
samos sobre a história das origens e qualquer coisa envolvendo a Bíblia

114
Sagrada, agora, eu poderia cravar e afirmar que o modelo científico como
nós temos hoje não é o modelo certo para lermos o livro de Gênesis?

PW: Com certeza, porque o modelo científico é nosso, os autores bíblicos


não tinham conhecimento nem de perto do que nós temos como conhe-
cimento científico. A forma de a Bíblia ter sido revelada e a linguagem
que ela utiliza para afirmar coisas relacionadas à fé e à história não é um
padrão nosso, não usa as regras da ABNT, não usa nossa metodologia
científica. É uma forma de se contar história, por exemplo, que era pecu-
liar àquela época, não da nossa.
Nós prezamos muito pela exatidão das informações, pela exatidão
cronológica, e esse tipo de exatidão não é o que move o coração dos
antigos. Os antigos estão mais apaixonados pela ideia da estética de
como você narra, das imagens que você utiliza para contar uma his-
tória, e temos que navegar por esse mundo meio que imagético para
chegar perto daquilo que foi intenção dos autores escreverem sob a
inspiração de Deus.
Por nós termos essa metodologia tão diferente dos antigos, fica muito
difícil encaixarmos as coisas de hoje com as coisas de ontem e falarmos
que é só dessa maneira e não tem outra maneira de se interpretar.
O mundo do Gênesis é muito amplo, é um livro que lida com o maior
“gap” temporal na Bíblia toda e é muito difícil lermos esse texto com base
naquilo que nós sabemos hoje, nos nossos pressupostos hoje. Se lermos
desse jeito, provavelmente, estaremos caminhando por um terreno que
não é um terreno traçado pelos autores ou pelo autor de Gênesis.

RB: Eu penso que é isso que nós vamos propor nessa aula, Paulo, cami-
nhos para nós podermos ter uma leitura, afinal, Gênesis está na Bíblia,
quer ser lido, quer ser interpretado, quer ser aplicado, desenvolveu um
papel fundamental na história de Israel, na história da igreja. O pessoal
até diz que Gênesis contém a Bíblia, por assim dizer, não é à toa que o
nome dele é Gênesis.
Como começamos então, Paulo, por onde nós começamos a entender, a
traçar algum caminho para lê-lo? Já percebemos que essa leitura cientifi-
cista, científica, que quer ler Gênesis com os óculos da ciência hoje, não é
um caminho adequado, porque é um escrito que está muito distante de

115
nós e do modelo científico.
Agora, entendemos também que a Bíblia não é contra a ciência, então é
por aí que precisamos começar a entender.
Ok, qual a mensagem teológica do livro de Gênesis? Eu penso que essa
é a leitura certa a se fazer, não qual é a mensagem científica, enfim, mas
qual é a mensagem teológica. É para isso que ele foi escrito, para carregar
uma mensagem acerca do que Deus está fazendo, do que Deus fez. Por
quais caminhos você quer nos conduzir agora?

PW: Mensagem teológica é o ponto de partida certo, porque o pressu-


posto que abraçamos e carregamos até o fim de Gênesis, ou até o fim
da Bíblia, em toda parte das escrituras é o que nós temos no primeiro
versículo, que no princípio Deus criou todas as coisas. Então esse é o
marco inicial, esse é o tom da música, esse é o acorde inicial que vai ser
reafirmado pelo autor de Hebreus no capítulo 11, onde ele diz que, pela
fé, nós cremos que o universo foi criado por Deus, de maneira que as
coisas visíveis vieram daquilo que não se vê.
Então tudo começa com a questão da fé. Nós não propomos uma abor-
dagem de utilizar a Bíblia como um texto prova. É incabível fazer isso, é
anacrônico fazermos isso, mas, no sentido de que a Bíblia começa com
uma declaração de fé, e, no sentido antigo, a fé está relacionada com a
história, com a nossa realidade.
Nós também não podemos cair em outro extremo de pensar que a Bí-
blia é apenas um livro de realidades espirituais ou de mitos que tentam
explicar algo que o ser humano não consegue explicar com a sua própria
racionalidade.
Nós estamos muito mais no meio termo que é onde Deus vem ao nosso
encontro na nossa realidade, nas nossas contingências, mas contando
uma história que talvez não seja com aquela exatidão que nós, como
pessoas modernas, queremos e desejaríamos que a Bíblia tivesse, mas
com uma estética própria da época. Nós precisamos estar nesse meio
para entender o que a Bíblia fala de verdade, o que a Bíblia fala de ele-
mentos que podem, por ventura, confirmar a ciência, o que a Bíblia fala
dos aspectos teológicos, porque se toda a verdade é a verdade de Deus,
e se, por meios científicos, nós podemos chegar às facetas da verdade,
a Bíblia não necessariamente contradiz verdades ou fatos que a ciência
estabelece como consenso.

116
O problema é que a Bíblia não foi escrita para esse fim, ela pode indicar
alguma coisa nesse sentido, mas essa não é a intenção principal, porque
a intenção principal é nos apresentar quem é Deus, o que Ele fez, o que
Ele quer de nós.
Então, Gênesis é o começo de tudo isso, Gênesis, propriamente, não co-
meça com o aspecto da criação, Gênesis começa com o aspecto da pró-
pria existência de Deus que é anterior à criação, que é eterno em relação
à criação. E esse Deus, que, por obra Sua, cria todas as coisas e, dentro
dessa criação, ele coloca todos os seres vivos e entre esses seres vivos
ele coloca os seres humanos e estabelece um tipo de aliança com todos
esses elementos da natureza.
Gêneses vai nos afirmar que o relacionamento que Deus tem, não apenas
um relacionamento exclusivo entre Deus e o ser humano, mas abrange
todo o cosmo, entretanto, o ser humano tem um papel principal em todo
esse tipo de relacionamento que vem até nós hoje.

RB: Aliás, o John Walton, no livro “O mundo perdido de Adão e Eva”47 (que
é um livro que eu sei que você gosta e também usa como base para sua
pesquisa, um livro muito gostoso de ler e necessário), explica a questão
do Tohu wa-bohu, essa ideia do sem forma e vazia e como realmente as
nossas traduções perdem. Walton fala que Tohu wa-bohu antes de ser
uma ideia de sem forma e vazia indica uma ausência de propósito. Eu
achei isso fantástico.

PW: Nós vamos chegar nessa estrutura dentro da nossa aula, mas está
tudo junto e misturado.

RB: Eu lembrei disso porque a preocupação do Gênesis não é contar


como Deus fez e ficarmos procurando na Ciência o que corrobora com a
Bíblia para ver que a Bíblia está certa. Nós não podemos fazer esse cami-

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nho, ele é muito perigoso, porque vai chegar uma hora que a Ciência vai
falar uma coisa que não vai fechar com a Bíblia. Isso não vai querer dizer
que a Bíblia está errada.
Eu gosto muito do conceito dos dois livros de Deus. Deus escreveu dois
livros, ele escreveu a Bíblia e Ele fez a natureza, então esses dois livros
conversam entre si, não há contradição entre eles, o que nós precisamos
fazer é aprender a ler esses dois livros. Pela fé nós acreditamos que Ele é
o criador e Ele fez a natureza, Ele criou tanto a bíblia quanto a natureza,
então essas coisas correspondem.
Quando eu entendo que Gênesis não é um livro científico, e essa afirma-
ção é muito perigosa, sou eu quem está falando, e não o Paulo Won, tá,
mas quando eu ouço pessoas falando que Gênesis é um livro de Ciências
sim, eu acho isso uma afirmação tão perigosa, porque não é, Ciência é
uma categoria moderna. Se fazia Ciência naquela época, mas era outra
metodologia, outro sistema, outra forma de pensar.

PW: Se quisermos especificar, a Bíblia não é um livro de Ciência Natural


ou de cosmogonia, no sentido de explicar como o universo foi criado nas
suas minúcias. A Bíblia simplesmente narra certos eventos, narra como
tudo foi feito, a grosso modo, de forma resumida, com o propósito muito
maior do que simplesmente narrar por narrar, para saciar um tipo de
curiosidade de onde nós viemos, mas dá um propósito, para que nós
fomos feitos.
Vamos fazer um rápido exercício de interpretação de Gênesis 1 e 2, por-
que isso é muito importante para nós termos familiaridade com a estru-
tura e podermos entender e aplicar isso na nossa vida. É lógico que o tipo
de interpretação que eu estou dando não é uma interpretação que seja
um consenso dentro da Academia, mas muita gente boa tem defendido
esse tipo de leitura e eu também acho razoável.
Quando nós falamos de relato das origens, nós estamos basicamente nos
referindo a Gênesis, capítulo 1 e capítulo 2. Quando nós lemos Gênesis
capítulo 1 comparado a Gênesis capítulo 2, nós vemos uma série de fato-
res diferentes de um mesmo evento. Muitas pessoas falam que Gênesis
capítulo 1 está falando de um outro tipo de relato, de narrativa diferente
do capítulo 2, que são duas composições juntadas em um bololô só. Mas
eu vejo Gênesis 1 e 2 de uma perspectiva um pouquinho mais no nível de
Teologia Bíblica na maneira de encontrarmos coerência na forma que o
redator colocou esses dois capítulos, essas duas narrativas juntas.

118
Esse conjunto todo é o que nós chamamos de relato das origens e quan-
do nós falamos das origens aqui não é no sentido pleno da palavra, ou
seja, existiam elementos criados antes dessa origem, mas quando nós
estamos falando de origem nós estamos falando de origem do universo,
origem da vida, nós não estamos falando da origem dos seres angelicais,
ou bestiários ou qualquer outra coisa que parece que existia antes dos
ditos de criação de Deus, como por exemplo a água, todo esse mistério
que nós temos aí presente nesses dois relatos.
Esses dois capítulos são muito importantes e podemos começar com
essa discussão aqui que é muito interessante, o Bibo conhece bem, que
é a questão: como nós lemos Gênesis? Vai muito no sentido que está-
vamos falando na introdução. A nossa leitura tem que ser uma leitura
literal ou literalista? Esse tipo de diferenciação é porque a leitura literal é
a forma por meio da qual o texto deve ser lido, principalmente um texto
narrativo. Ainda que nós possamos considerar que Gênesis, capítulo 1 e
capítulo 2 tenham elementos que extrapolam uma simples narrativa, nós
consideramos que é uma narrativa da origem, ainda considerando mui-
tas imagens e que ela deve ser lida de forma literal, literal no sentido de
considerar o que Deus fez, qual foi o resultado e que permanece até hoje.
Agora, quando eu falo de uma leitura literalista, eu costumo dizer que
é uma literalidade tola, que é ser ingênuo o suficiente para pensar que
tudo o que está escrito em Gênesis daquele jeito foi feito naquela ordem,
com aquele intervalo, com aqueles detalhes. Aliás, se nós formos tomar
como sério a leitura literalista, faltam muitos detalhes que o texto não nos
responde: como aconteceu, com que sequência aconteceu... Nós temos
vários hiatos, porque o texto não foi escrito para que seja um documen-
to analítico, esse sim tem que ser lido com uma literalidade muito mais
aguçada.
A literalidade que nós estamos falando é uma literalidade que recebe,
que considera vários aspectos literários do texto. Isso que é ser literal, é
considerar os aspectos literais, a linguagem, o contexto no qual esse re-
lato foi estabelecido, a forma como esse relato dialoga com os contextos
imediatos adjacentes dos povos que habitavam Canaã naquela época,
porque Israel não é um gueto fechado, Israel não está flutuando no meio
dos ares, ele está dentro de um contexto. Ou seja, como o relato das ori-
gens, tal qual foi revelado por Deus, responde de uma forma ampla para
outros povos quem é o Deus de Israel? O que Ele fez por esse povo? Por
que esse povo de Israel se torna importante dentro desse esquema de
narrativa?
É isso que justamente o Walton chama de comunicação de alto contexto.

119
Então, comunicação de baixo contexto é essa literalidade tola, é estar
com cabresto sobre o texto, só vendo o texto, considerando que só existe
o texto e nada além do texto. Muita gente vai dizer: “Mas não é isso que
é a verdade?” . O serviço de interpretação sobrepassa tudo isso, tem
que considerar muito mais coisas, muito mais elementos e é isso que
chamamos de alto contexto.
É como se estivéssemos vendo a foto de nossa casa, do nosso bairro,
via satélite, no Google Maps. A visão que temos de dentro de nossa casa
da rua onde moramos, do bairro onde vivemos é muito mais limitada do
que uma visão que considera a topografia, que considera uma distância
alta o suficiente para vermos que nossa casa não está sozinha, está
cercada de diversas outras, que tem ruas, que tem rios, que tem relevo,
e isso dá uma sensação muito mais ampla e traz muito mais elementos
interessantes à narrativa para que essa narrativa das origens seja, de
fato, uma narrativa muito mais rica, que abrange muito mais coisas e que
abrange satisfatoriamente a complexidade da vida e da existência que
nós temos aqui no mundo.
Então é muito importante nós diferenciarmos uma leitura literal e litera-
lista. John Walton responde que não é que não estamos lendo a Bíblia
corretamente, estamos lendo de forma literal, mas quando falamos literal
o que queremos dizer como literal? Talvez nós não estejamos lendo de
forma literal que, de acordo com Walton, é ler com a mente daqueles que
lá atrás leram esses documentos e entendiam todas as figuras, todas as
imagens que nós temos aqui.
O Bibo usa no livro dele a teoria da Xuxa, daqui a mil anos, se o livro do
Bibo sobreviver até lá, ninguém vai saber quem é a Xuxa.

RB: Não precisa nem falar 1000 anos, Paulo. Estamos pensando em tra-
duzir meu livro para o inglês, não faz sentido a Xuxa, ainda que a Xuxa até
possa ser conhecida por alguns nerds americanos, mas quando falamos
teologia da Xuxa e lua de cristal, automaticamente pegamos uma galera,
mas até mesmo adolescentes não entenderam a referência. Nós vemos
que aqui nós já precisamos fazer uma questão de contexto para poder-
mos entender o texto.
Essa distinção de literal e literalidade é muito importante entendermos
porque o erro está justamente nisso: quem acompanha os podcasts
sobre fé e ciência do Bibotalk sabe mais ou menos por quais caminhos
eu, Bibo, ando. Por eu ter uma leitura diferente do “my stream” evangé-

120
lico sobre as nossas origens, a galera vem e pergunta se eu acredito na
ressurreição? Tipo, “Cara, eu não sei onde você quer chegar com essa
pergunta.” Por exemplo: eu não vejo problema na teoria da evolução,
achei-a esquisita, mas se é o que a ciência está dizendo, ok, pra mim está
bom. Daí perguntam: “Você não é criacionista então?” As pessoas não
sabem fazer as perguntas certas. Um crente de verdade, se ele não for
criacionista está negando a Bíblia, está errado. Todo cristão é criacionista,
porque lemos de forma literal “No princípio Deus criou.” Isso é literal, aí
depois temos um espaço para conversar.

PW: É tudo questão de interpretação. Se temos esse problema no con-


texto de hoje, de diferença de anos de gerações, onde uma geração não
compreende a outra, imaginem quantas gerações nós estamos em rela-
ção aos leitores originais e em relação ao autor. Milhares de gerações. E
termos a presunção de falar que é da forma literalista, e essa forma que
vamos interpretar desconsidera uma tradição muito longa de interpreta-
ções diversas. Até mesmo no começo, dentro da tradição judaica, dentro
da patrística, a forma literal é a predominante, mas não era toda predo-
minante, tinha variações.
Dentro da teologia reformada também tem variações do que são os dias,
se são intervalos, se são correntes, se são eras. Essa riqueza toda existe
porque o texto é rico e nos abre essa possibilidade, e é legal ficar discutin-
do essas coisas, mas o ponto nevrálgico, central é que Deus criou todas
as coisas, independente da velocidade e da sequência, porque sem Deus
nada disso teria acontecido da forma que aconteceu.
Então essa definição é muito importante: é uma leitura literal, mas não
uma leitura literalista e eu estou usando “ista” literalista, porque o ser lite-
ral, para algumas pessoas, é uma ideologia de interpretação, é algo que
a pessoa agarra, aplica à torto e à direito e acha que está arrasando, mas
não, está cometendo uma bola fora monumental, dependendo do tipo
de literatura que está lidando, porque desconsidera totalmente o que o
texto na verdade quer dizer e a riqueza dos elementos literários que o
texto está trazendo. Aí nós vamos para um outro tipo de diferenciação
que é muito importante.
Nós falamos da forma como nós lemos, mas e em termos de conteúdo? O
que Gênesis nos apresenta? Gênesis nos apresenta um foco no material
ou no funcional? O texto da narrativa das origens pode ser interpretado
com dois tipos de focos diferentes, porém complementares.

121
O material e o funcional são complementares, não é questão de um ser
em detrimento do outro, mas qual é o foco, qual tem o maior peso? O
foco material, ou seja, o que Deus criou, como Ele criou, a sequência que
Deus criou, o tempo que Deus usou para criar, enfim, estamos falando da
criação em um modus operandi, como se fosse uma instrução, um ma-
nual de instrução: Deus fez isso, isso, isso, isso, isso, isso, isso, isso desse
jeito e tudo ficou bonitinho.
Outro tipo de foco que nós podemos dar na leitura é o que nós cha-
mamos de foco funcional. Funcional quer dizer que, por mais que Deus
tenha criado todas as coisas da maneira que Ele criou e nós afirmamos e
reafirmamos que Deus criou todas as coisas, Deus criou o material, Deus
criou o físico, a intenção dos autores sobrepassa a questão meramen-
te da matéria, do biológico. Essa matéria tem uma função, a função dos
elementos dentro da criação: qual é a função do ser humano? Qual é a
função do cosmos? Qual é a função de Deus? O que Deus quer que o ser
humano faça? É justamente a ênfase que nós temos dentro do relato de
Gênesis.
Gênesis no capítulo 1 mostra Deus fazendo todas as coisas, mas Deus, já
em Gênesis 1 dá um mandamento, dá um norte para todas as criaturas:
“Cresçam, multipliquem-se!” para o homem e para a mulher: “Dominem
todas as coisas!”
No capítulo 2 é como se Deus estivesse explicando tudo o que aconte-
ceu com uma nova perspectiva, com uma perspectiva mais centrada no
homem, enfatizando mais uma vez a questão da função: qual é a função
do ser humano? O que o ser humano faz na criação? Qual a função de
Deus? Qual a função de todo o restante da criação? Qual é a interface
que existe entre todas as coisas? Qual é o relacionamento mais amplo e
geral que nós temos em relação à criação, ao criador e ao criado que é o
ser humano?
Então, essa dicotomia que, na verdade, não é uma dicotomia, mas são
duas coisas que se ligam, são complementares, mas, diferente da ênfase
que nós queremos ter em Gênesis, que é discutirmos as minúcias: “Como
Deus criou a luz? Como Deus fez o sol? Como Deus esculpiu o ser huma-
no?” Gênesis não está nem aí para isso, só afirma de forma genérica o
que Deus fez. A função sim é algo que é enfatizado como o porquê Deus
cria e para que Deus cria, qual é o propósito de todas as coisas.
Então, dentro da função, nós temos também a questão do propósito, ou
seja, como eu posso encontrar a vontade de Deus em todos os aspectos
da criação? E o que eu tenho a ver com isso?

122
Então, a questão da literalidade, a questão da funcionalidade são elemen-
tos básicos para nós começarmos a grande brincadeira que é ler o relato
das origens e ler o relato de Gênesis.
Tudo isso foi feito dentro desse cenário mais amplo, do Antigo Oriente
Próximo (AOP). Esse Antigo Oriente Próximo tem uma maneira de pensar
que é só dele, que é diferente da nossa maneira de pensar que é uma
maneira ocidental.
A Bíblia, se nós considerarmos um mundo mais específico da Bíblia, que
foi acontecendo na terra de Canaã, e Canaã estava cercado por diversos
povos, é como toda a narrativa das origens estivesse oferecendo uma
resposta a toda uma variedade de crenças que existiam nessa região, que
lidavam, com certeza, com a questão da criação do universo, do relacio-
namento que os deuses tinham com o ser humano, mas cuja a proposta
da Bíblia hebraica era radicalmente diferente à todas essas propostas
que eram mais ou menos semelhantes.
Então nós temos que enxergar como isso acontece dentro do relato de
Gênesis, ou seja, como Gênesis é distintivo em relação à proposta, lidan-
do com a questão da criação, ainda que considere elementos comuns
a todos esses povos em termo de linguagem mitológica, em termos de
concepções mais básicas da criação. Então, ao mesmo tempo, Gênesis
lida com aspectos comuns de toda essa região, mas, ao mesmo tempo,
lida com essa proposta do Deus de Israel de revelar a Sua palavra e de
apresentar uma narrativa da criação é radicalmente diferente a qualquer
matriz de cosmogonia que existe dentro dessa região.
O aspecto talvez mais gritante e mais notável é que em todo Oriente Pró-
ximo a concepção mais básica era que os deuses e a criação, os deuses
e o cosmo nasciam mais ou menos de forma concomitante, ou seja, nas-
ciam os deuses e junto com os deuses nascia o cosmo, uma mistura meio
que caótica.
Mas a Bíblia hebraica vai ser categórica em afirmar que, embora nós te-
nhamos uma cosmogonia, ou seja, um processo de criação do cosmo,
nós não temos uma teogonia, Deus é pressuposto, Deus é existente e
isso é uma questão muito séria, uma das principais respostas que os ju-
deus, que Israel deu em relação à sua visão de criação, à sua narrativa de
criação que nós cremos que foi Deus quem a inspirou.

RB: Se eu estou entendendo onde você está chegando é essa ideia que
nós já exploramos na série “Os Outros da Bíblia’’, o livro do André, o seu li-

123
vro “Deus falou na língua dos homens ``também aborda essas questões
de contexto. Temos várias diferenças do relato da criação de Israel para
os povos do entorno, diferenças gritantes, e temos semelhanças incríveis.
Afinal, eles estão dentro de um contexto e escrevem a partir desse con-
texto, mas tem algo novo também que é trazido ali, enfim, a própria ideia
de que envolve só um Deus criador, enquanto que muitas vezes, nos ou-
tros relatos, é uma briga de deuses e a partir da briga desses deuses, do
corpo de um é feito isso e aquilo e tal.
É interessante que no relato da criação de Gênesis, até por conta desse
contexto que você apresenta, temos uma questão apologética aí também,
trazer esse aspecto que não é um texto só escrito: “Ô gente, todo mundo
tem um relato de criação, vamos escrever o nosso também!” Não.
Onde está o distintivo da fé de Israel? Tem uma questão apologética de
apresentar esse Deus, que é o nosso Deus, é o Deus de Israel, e isso tem
diferenças muito interessantes. O relato de criação de Israel é diferente
de todos os outros relatos. É impressionante. A sensação que eu tenho,
pelo que eu li, é que não tem nada parecido.

PW: Não tem nada parecido porque a criação da nação também é inicia-
tiva divina da mesma maneira que a criação do universo é uma iniciativa
divina e uma coisa está relacionada com a outra, porque a criação de Is-
rael lá com Abraão em Gênesis 12 é um tipo de retomada, um esforço de
se completar aquilo que é o relato da criação e com a queda veio azedar.
Desse mapa que mostra a região toda onde Canaã está inserida, a per-
gunta que nós temos que fazer é qual o mundo dentro do qual Gênesis
foi revelado? Isso é muito importante. Algumas pessoas irão falar que
estamos condicionando a leitura da Bíblia ao aspecto cultural, ao aspecto
contextual, mas não, não estamos condicionando, mas precisamos des-
sas informações para que nossa leitura bíblica possa não somente ser
enriquecida, como de fato é, mas também muitas lacunas que o texto
não responde, que não é intenção do texto responder, nos ficam mais
claras, quando vemos o contexto no qual esse texto nasceu, porque o
texto, por mais que seja um texto inspirado, e de fato é, é fruto do seu
tempo, é fruto da sua época, dos seus leitores, daqueles que redigiram
esse texto com um tipo de visão de mundo.
Então Bartolomeu e Goheen dizem: “No AOP (antigo Oriente Próximo), as
pessoas conheciam muito bem o que é autoridade. Entre elas, o poder
até mesmo de líderes tribais ou nacionais era quase absoluto. (Então nós

124
estamos falando em um tempo em que aquele que tinha autoridade na
mão mandava e desmandava, poder total e absoluto. E de vários modos
em Gênesis 1, Deus é descrito como o Monarca, a figura real cuja sobera-
nia se estende por direito e por poder sobre toda a sua criação.” Então a
criação é o campo de atuação da soberania divina, ou seja, Deus é o rei e
Ele reina sobre a criação.
Ele é o rei e o ato de Ele criar, o ato de Ele falar, o ato de Ele ordenar mos-
tra que Ele, de fato, exerce o Seu domínio, exerce a Sua autoridade como
Rei e, como Rei, Ele não se ausenta do seu reino. Aqui nós temos uma
ideia Teísta da realidade que Deus está junto da sua criação, mas uma
ideia muito mais profunda do que mera ideia Teísta. Deus se relaciona
com a Sua criação, porque a maneira pela qual Deus exerce a sua autori-
dade não é meramente por imposição de poder, mas é por se relacionar
com os aspectos que estão dentro do guarda-chuva da Sua soberania.
Então todo o relato da criação mostra esse Deus. O rei emite decreto,
emite uma ordem verbal. Cada ordem de criação é uma ordem de decre-
to, é uma ordem verbal onde todas as coisas simplesmente vêm a existir,
porque tudo tem que se submeter e obedecer a vontade de Deus.
O mais interessante é que Deus, como Rei, compartilha essa prerrogativa
de governo com o ser humano na medida em que Ele divide com ele a
grande missão de reinar sobre o mundo. “Crescei e multiplicai.”, “Enchei
a terra.” O que é encher a terra? O que é crescer e multiplicar? Guardar
e cultivar o Jardim? É você, como ser humano, exercer uma prerrogativa
que é só de Deus, mas que foi por Deus outorgada para que nós, junto
com Deus, continuemos todo o processo criativo. Esse é o aspecto muito
interessante e distintivo do Evangelho.
Temos toda a ideia de tecnologia. O que é tecnologia? É como nós podemos
viver de forma mais prática. Tecnologia é o ser humano usar a cachola dele
para criar coisas que facilitem a realidade com base em tudo o que Deus
criou. A tecnologia é a grande ação da Graça comum de Deus que nos faz
participantes desse processo constante de desenvolvimento que nós temos
no mundo e isso foi dado em Gênesis por esse Rei que criou todas as coisas.
A visão de que Deus é o Rei é a visão comum que esse contexto mais
amplo do AOP nos dá, porque é a visão justamente dentro da qual uma
pessoa exercia autoridade sobre todas as coisas. Os deuses faziam a
mesma coisa e o Deus de Israel vai fazer isso de uma forma diferente. Vai
compartilhar deliberadamente a Sua autoridade com o ser humano na
medida que, aí sim, o ser humano se transforma no grande sacerdote da
criação, porque o ser humano é que passa agora a intermediar todo o re-
lacionamento de todo cosmo com esse Deus criador de todas as coisas.

125
Esse aspecto dentro de Gênesis, dentro do relato das origens, é muito
sério, muito importante.

RB: Aí entramos naquela ideia, Paulo, do cosmo como o templo, o ser


humano como o sacerdote nesse templo. Eu acho isso muito fantástico.
Essa ideia de entender a criação como a edificação de um grande templo.

PW: Pois é, é um ponto muito crítico, no sentido de importante, na teolo-


gia bíblica do Antigo Testamento, porque em todo o Antigo Testamento o
templo é um lugar importante. Na antiguidade o templo é considerado o
lugar de interface entre o céu e a terra, é onde o céu e a terra se unem.
O Antigo Testamento vai usar o mesmo tipo de linguagem. Mas só que
nós enxergamos o templo apenas quando o templo é mencionado ex-
plicitamente no texto: o tabernáculo, o templo de Salomão, o templo de
Zorobabel, o templo de Herodes e aí acabou o templo. Mas, na verdade,
esses templos são representações de algo maior, representações micros-
cópicas daquilo que é, de forma macroscópica, em todo o universo.
O templo não pode conter a presença de Deus. A presença de Deus está
no universo. Os pés de Deus estão fincados nesta terra.
Quando Gênesis trabalha a ideia do Jardim, o Jardim é trabalhado como
ponto inicial do templo, é como se fosse o coração do templo, o santo
dos santos, o santíssimo lugar. Não é à toa que as cortinas do templo têm
querubins com espadas flamejantes, porque o santo dos santos é a ima-
gem do Jardim do Éden e Deus quer que a humanidade cresça, multipli-
que e se espalhe por toda terra levando a Glória de Deus, levando a pre-
sença de Deus, levando esse caráter visual de Deus que é o ser humano.
Por isso que o profeta no fim do Antigo Testamento fala que a expectati-
va era que a Glória de Deus encherá toda a terra como as águas cobrem
o mar. Como Deus faz isso? Deus faz isso por meio do ser humano, é
o ser humano que carrega a Glória de Deus para onde ele vai, fazendo
com que todo o mundo, por meio desse crescimento, efetivamente seja
o templo cósmico de Deus.
É por isso que, de acordo com Walton, por exemplo, o relato de Gênesis é de
sete dias de criação, porque sete dias remete a ideia da inauguração de um
templo no contexto pagão. Podemos usar essa ideia, ela não é perfeita, mas
nos ajuda a ver certos tipos de conexões que esse texto tem com o contexto

126
mais amplo lidando com ideias que não são meramente para discussões do
tipo: “Deus criou o carrapato, Deus criou o pernilongo para que?”, “Deus fez
o Adão com umbigo ou sem umbigo?”. Essas são discussões muito baixas
diante da realidade mais teológica, mais superior daquilo que é propósito
de Deus dentro da criação. Aqui é um ponto muito importante que vai ao
encontro com o que você perguntou sobre a questão do templo.
Bem, nós vimos como temos que ler, como temos que interpretar e agora
um desenvolvimento na questão do texto, numa seara mais exegética, é
nós vermos que estrutura nós temos em Gênesis, capítulo 1 e capítulo 2.
Ao meu ver Gênesis, capítulo 1 e capítulo 2 são relatos complementares que
lidam com a situação da criação com ênfases e com perspectivas diferentes.
Em Gênesis, capítulo 1 nós vemos muito a questão do Deus soberano e
a palavra que é utilizada é Elohim, que é o Deus soberano, o Deus forte.
Ele criando todas as coisas por ação deliberada, por vontade própria, por
iniciativa particular.
Já em Gênesis 2 nós temos um mundo já criado e como esse mundo, de
fato, é levado para frente por meio da participação em uma “joint ventu-
re”, em uma cooperação, entre o ser humano e Deus.
Quando nós temos a inclusão do ser humano dentro do propósito de
Deus é aquilo que nós temos como elemento mais rico do Antigo Tes-
tamento que é a questão da Aliança. Deus estabelece um tipo de Alian-
ça com o ser humano para que esse governo possa ser feito de forma
harmônica e é nesse sentido que Gênesis 2 utiliza a expressão Yahweh
Elohim – Senhor Deus. “O Senhor Deus fez isso, o Senhor Deus fez aqui-
lo.” O Yahweh (o tetragrama) expressa o grau pactual de Deus, ou seja, o
compromisso que Deus assume por iniciativa própria em ter um tipo de
compromisso, em ter um tipo de aliança com esse ser humano que foi
criado conforme à sua imagem e semelhança exatamente para governar
todas as coisas.
Ser criado à imagem e semelhança de Deus não significa que o ser huma-
no é parecido com Deus nos elementos físicos, cognitivos.
As pessoas falam que ser criado à imagem e semelhança de Deus é por
causa da nossa inteligência, porque os animais não têm inteligência. Os
animais tem um tipo de inteligência peculiar aos animais que está mais
para instinto, eles têm uma maneira de agir que é propriamente deles e
eles têm cérebro. O que nos faz realmente ser a imagem e semelhança
de Deus é a questão funcional. Qual é a função do ser humano na cria-
ção? Se Deus é criador e Rei e eu sou semelhante a Ele eu tenho que
desenvolver na criação a minha função de co-regência com Deus.

127
RB: Eu gosto do Hans Walter Wolff, ele usa o termo administradores de Deus.

PW: Eu gosto de co-regência, porque remete a ideia de reinar com Deus,


uma ideia mais medieval, mais chique. Co-regente com Deus, co-governa-
dor com Deus. E é exatamente essa função que, por Graça, Ele comparti-
lha conosco nos tornando, em função, semelhantes a Ele. Não é igualda-
de, mas é semelhança.
Guardadas as devidas proporções, nós fazemos aquilo que fazemos no
mundo como reflexo do próprio governo de Deus no meio de nós. Então
essa estrutura é muito importante. São dois capítulos que se comple-
mentam, um está ligado com o outro, um vai respondendo questões que
o outro capítulo levanta e vai nos jogar exatamente no ponto culminante
da criação que é o ser humano como representante de Deus na criação.
Vamos retomar essa ideia mais para frente.
Ampliando um pouquinho, nós falamos de Aliança, o Beale e o Kim, nesse
livro Deus mora entre nós, falam uma coisa muito interessante:
“... embora isso não pareça muita coisa em nossa língua, ‘Javé Deus’ (que
nas versões em português é Senhor Deus) é o nome pessoal de Deus
que significa uma relação íntima e de aliança, enquanto ‘Deus’ (Elohim) é
o Deus de poder que criou todas as coisas”.
Então nós temos aqui uma divina tensão que vai se estender por toda a
história da Bíblia. De um lado da balança nós temos a questão do Deus
Soberano (Transcendente) e do outro lado nós temos a questão do Deus
Pactual (Imanente).
Deus não é apenas um Deus transcendente, Ele se torna também ima-
nente, e é nessa imanência que nós podemos conhecer a Deus. Deus
compartilha com o ser humano a Sua prerrogativa única de governo, Ele
se faz presente de forma tangível, imanente para que, com o ser humano,
Ele tenha um tipo de relacionamento e esse padrão vai até nós hoje.
Com Adão nós tínhamos Deus se relacionando com o homem diariamen-
te na viração do dia, mas, depois da queda, Deus é o primeiro que vai so-
correr o homem na queda. Deus é o primeiro que vai dar a mão de apoio.
Deus é o primeiro que vai sacrificar um animal, porque o ser humano sai
vestido com pele de animal. Quem fez esse sacrifício? Foi generosidade,
foi Graça de Deus.
Essa tensão aqui é muito importante, faz parte da Aliança. Na maneira em

128
que nós nos relacionamos com Deus nós não podemos entender Deus
apenas no seu aspecto imanente, como se Deus fosse igual a nós, nós
precisamos ter a consciência de que Deus está acima de nós e, mesmo
estando acima de nós, se faz presente em nós. Por isso que o título do
livro é Deus mora entre nós, que recapitula essa ideia que Deus se faz
presente e faz da nossa realidade o Seu próprio tempo.
Agora, para ter aliança, tem que ter o ser humano, e qual a importância
do ser humano dentro da criação?
O Iain Provan diz uma coisa muito legal: “A importância dos seres huma-
nos em relação à criação não-humana, que está à disposição da humani-
dade, mas ainda não operante sem que a humanidade esteja lá.”
Enquanto a criação humana não estivesse pronta, a criação não humana
não estaria totalmente plenamente operante. É a presença do ser huma-
no que faz com que toda a existência não-humana, os animais, os ver-
mes, as bactérias, os vírus, as baratas, os pernilongos, tudo isso tem um
tipo de sentido na existência, porque é esse ser humano que é colocado
no meio do Jardim para ser o grande intermediário.
O ser humano, antes da queda, era o intermediário da criação com Deus.
Com a queda ele perdeu essa prerrogativa de ser intermediário e lá na
frente quem vai assumir esse papel é Jesus encarnado. Ele se torna o in-
termediário por excelência, o nosso segundo Adão.
Esse aspecto de intermediação é chamado de Sacerdócio no Antigo Tes-
tamento. O Bibo tem um livro chamado Sacerdócio de quase todos os
crentes, mas antes da queda o sacerdócio era amplo, geral e irrestrito,
todo ser humano era sacerdote de Deus. Com o pecado o negócio aze-
dou, mas isso é resgatado em Cristo e em Cristo nós fomos feitos Seu
povo peculiar, raça eleita, sacerdócio real.
O ser humano é importante por fazer esse aspecto de intermediação,
por cuidar da criação e por apresentar essa criação a Deus em adoração.
Por isso o ser humano tem que cuidar bem do meio em que ele vive,
porque é esse meio que ele vai levar a Deus em termos de adoração. Ele,
agora no sentido oposto, tem que cuidar bem porque agora ele tem um
mandato de Deus para cuidar bem de todas as coisas. Não é para acabar
com tudo, mas é para desenvolver, para que essa vida seja uma vida me-
lhor. Desenvolver a tecnologia, uma sementinha que dava fruto a outra
semente, agora dá dois três, têm produtividade, tem qualidade. Tudo isso
é Graça de Deus que começa lá atrás na criação onde o ser humano re-
cebeu essa incumbência que não foi cancelada com a Queda. É aí que eu
acho um aspecto importante.

129
RB: Aliás, são os descendentes de Caim que vão desenvolver cultura, ci-
dade... É graça sobre graça mesmo.

PW: Vemos aí como esse Deus é Gracioso, porque Ele poderia simples-
mente recolher a prerrogativa que Ele emprestou para o ser humano
com a sua queda, mas é uma das únicas coisas que Deus não recolhe.
Deus permanece lá agindo, mas para disciplinar esse coração agora pelo
pecado estragado, Deus entra em outro tipo de aliança que é uma alian-
ça redentiva que nós temos a partir do capítulo 12 de Gênesis quando
nós terminamos o grande prólogo que é o ser humano faz parte de uma
realidade muito maior da criação que é justamente uma realidade que
envolve a estrutura da criação.
Diz o texto em Gênesis 1:2 que a terra estava sem forma e vazia. Então,
na mentalidade cientificista, numa mentalidade mais liberalizante do tex-
to, considera-se 1, 2, 3, 4, 5 como coisas cronológicas, mas essa cronolo-
gia não bate com o sentido que realmente o texto está nos expondo aqui.
Nós temos luminares no dia 4, mas a luz vem no dia 1, então de onde vem
essa luz? Que luminares são esses?
As pessoas tentam fazer um malabarismo, mas não dá para fazer mui-
to malabarismo, mas se nós dividirmos a criação em um processo onde
aquilo que estava sem forma é formado e aquilo que estava vazio é pre-
enchido, entendemos.
Nós temos a luz, o firmamento, a terra seca, os céus e mares como uma gran-
de forma, um receptáculo que vai ser preenchido pelos elementos: luminares,
os habitantes, os peixes, as aves, os animais terrestres e a humanidade.
O ser humano foi o último a ser colocado na terra porque ele veio com
uma função diferenciada, para gerir todo esse aspecto da criação. O ser
humano é colocado como se fosse a cereja do bolo.

RB: A coroa da criação.

PW: A coroa da criação. Por isso vem essa expressão. Não é só porque o
ser humano é melhor em alguns aspectos, mas é porque a coroa remete

130
a governo. Deus empresta Sua coroa para o ser humano e para o ser
humano cuidar direitinho.
É a grande história do mordomo. Jesus conta a parábola do mordomo
porque essa é a realidade do ser humano. Todos os seres humanos são
mordomos que tem que cuidar de tudo o que Deus criou.
Se o ser humano tivesse sido colocado no primeiro dia talvez o ser huma-
no caísse na tentação de dizer: “Isso foi criado com minha ajuda.” Como
o ser humano foi colocado por último, o ser humano tem que abaixar a
bola e dizer: “Tudo o que Deus criou foi Deus que criou e eu vou cuidar.”
É muito interessante ver como o ser humano se encaixa nisso tudo. O ser
humano não é apenas algo que Deus criou para suprir um vazio. Não. É
algo que Deus criou para cuidar de todas as coisas.

RB: Na criação só o ser humano recebe um mandato de crescer, multipli-


car. Ainda que haja alguns trechos ali: “Produzam a água os seus peixes.”
No próprio relato da criação de Gênesis existe um espaço para a própria
criação criar. Ela se reproduz a partir daquilo que já foi estabelecido. O
ser humano que recebe esse mandato cultural de cultivar e guardar.

PW: Gênesis 1:26 e 27 concomitante à própria criação do ser humano:


“Façamos o ser humano à nossa imagem e à nossa semelhança.” que ele
domine sobre todas as coisas. A prerrogativa de domínio é exclusiva e
privativa ao ser humano, por ele ter essa função diferenciada.
Fazendo uma rápida digressão e a outros pontos importantes de Gênesis
no aspecto da criação nós temos os pronunciamentos reais que nos aju-
dam a entender como Deus age e como o ser humano também age. Olha
o que o Walter Brueggemann diz: “Javé causa a existência por pronun-
ciamentos. (E disse Deus: “Faça isso” e se fez isso) A imagem é de um so-
berano poderoso que proclama um decreto do seu trono ou emite uma
ordem e, ao mesmo tempo, em que são expressas, as coisas são feitas.”
Isso é expresso também na maneira que Deus nomeia as coisas, mas
Deus deu também ao ser humano a prerrogativa de nomear. Nesse sen-
tido, o ato do ser humano nomear é um ato de exercício de poder, de um
poder real, de domínio sobre todas as coisas.
Adão não estava lá inventando o nome dos animais porque ele não tinha

131
nada para fazer. Essa era uma forma de Deus demonstrar ao ser humano
que ele tem parte no processo junto com Ele. Então, essa questão dos
pronunciamentos, são importantes.
Sobre a questão do ser humano, mais especificamente, olha o que o John
Walton diz: “[Na perspectiva do AOP,] a criação das pessoas não foi ape-
nas uma decisão de última hora, quando os deuses precisam de trabalho
escravo para suprir as comodidades da vida (e.g., abrir sulcos de irriga-
ção). - Essa afirmação é a afirmação comum do Antigo Oriente Próximo.
- Na Bíblia, o cosmo foi criado e organizado para funcionar a serviço das
pessoas idealizadas por Deus como peça central da sua criação”.
Nós zoamos que o ser humano é ou não o centro da vontade de Deus.
Numa perspectiva criacional, as coisas foram criadas com a perspectiva
que o ser humano assumisse uma posição importante, que a criação, de
alguma maneira, servisse às necessidades dos seres humanos que foram
criados por Deus como peça importante da Sua própria criação.
O ser humano tem valor intrínseco como criatura de Deus e isso é colo-
cado às claras em Gênesis, temos que entender isso como a verdade e
isso tem que fazer com que a nossa vida, como criaturas e como ainda
portadores desse mandato divino da criação, seja desempenhada da me-
lhor maneira possível na sociedade, na nossa família, na nossa igreja e em
todos os lugares.
Aí que está o ponto que eu gostaria de já caminhar para o final. Como nós
falamos que Deus criou cada um de nós “A nossa imagem”, em Gênesis
1:26, essa palavra imagem (tzelem em hebraico) foi traduzida pela pala-
vra eikon no grego. Eikon é imagem, mas dessa palavra eikon nós temos
aqui em português a palavra ícone. Nós somos imagem de Deus, nós
somos ícone de Deus. Beale e Kim vão explicar o que é um ícone: “Um
ícone é uma pequena imagem que, quando clicada, abre os megabytes
do programa de computador que ela representa. (Lógico que isso daqui
já está datado, hoje não é mais megabyte, é gigabyte) Metaforicamente,
a humanidade é uma pequena imagem, dos terabytes da glória de Deus
na criação”.
Então, quando nós somos acionados, nós abrimos o programa que mos-
tra a glória de Deus em toda criação, nós somos essa imagem dentro des-
sa criação. O que mais me frustra nas discussões que nós temos sobre
criacionismo, sobre as várias vertentes, é que se discute muito o como
as coisas eventualmente foram criadas e muito pouco do papel do ser
humano dentro dessa criação, do papel de honra que o ser humano tem
dentro dessa criação.

132
RB: Nós ficamos discutindo os processos e não os propósitos e isso é
perda de foco. Discutir os processos é importante, vale a pena, tanto que
temos pelo menos quatro grandes linhas que discutem o criacionismo.
Agora, quando o propósito começa a ficar de lado, fica uma discussão
que não vai levar a lugar algum.
Aqui eu abro um parêntese: é por isso que nós, do Bibotalk, ficamos as-
sustados quando determinado grupo de cristãos nos acusam de nós nem
sermos crentes porque defendemos, por exemplo, a terra antiga. Há pes-
soas que acham que defender a terra antiga é um absurdo, porque, pelas
contas, a terra é jovem, tem seis mil anos.
Galera, não é tão simples assim e você dizer que determinado grupo cris-
tão é anátema, é amaldiçoado é se perder em processos e deixar o pro-
pósito de lado. Isso é bem complicado e é uma leitura extremamente
equivocada. Mas quem está falando isso é Rodrigo Bibo.

PW: Aqui podemos chegar na grande conclusão da nossa aula que Gêne-
sis é um livro, de fato, complexo, temos que ter uma leitura responsável
e, leitura responsável envolve não somente a questão da materialidade,
mas a questão muito mais ampla da teologia e, quando nós falamos te-
ologia, nós estamos falando de função, de funcionalidade. Quando nós
estamos falando de funcionalidade, nós estamos falando do trato, da
aliança que Deus tem com o ser humano para gerir esse mundo e para
que esse mundo não se imploda na sua maldade e continue até o fim em
um lugar razoável para vivermos.
Esse é um aspecto da graça comum, não é um aspecto só para crente,
o mandato é para todos, então todos têm que, de forma responsável,
ter consciência, pelo menos minimamente, do seu papel no mundo, para
que essa criação possa refletir na nossa perspectiva cada vez mais a gló-
ria de Deus.

RB: Muito bom! Paulo, quero te agradecer por aceitar o desafio de dar essa
aula para a EBT – Escola Bibotalk de Teologia. Muito obrigado por comparti-
lhar esse conhecimento. De verdade, foi uma riqueza de aula. Paulo, muito
obrigado por sua presença aqui. Deus continue te abençoando!

133
Gente, vocês viram ali nos slides do Paulo, vocês têm acesso a esses sli-
des como material complementar da aula. Tem John Walton que escre-
ve vários livros. Em português temos O mundo perdido de Adão e Eva,
temos O mundo perdido do dilúvio também que é maravilhoso, que ele
escreve com o Tremper Longman.
“Deus mora entre nós’’48, de G. K. Beale. Esse eu vou usar no meu livro,
porque tem muito a ver, porque o segundo livro que eu estou escreven-
do, a continuação de “O Deus que destrói sonhos’’, é justamente essa
ideia de que Deus destrói sonhos porque está construindo um povo. Vou
trabalhar essa ideia de nós como sacerdotes. Esse é um livro muito legal.
Tem a versão estendida dele da Vida Nova, mas esse da Loyola já é uma
versão bem resumidinha de todo aquele compêndio. Aqui ele vai falar do
templo, do mundo como templo de Deus. É bem legal.
Tem esse aqui também, “A origem – quatro visões cristãs sobre criação,
evolução e design inteligente’’, uma parceria da ABC2 com a Thomas Nel-
son Brasil, excelente esse livro, bem didático. É um tipo de literatura que
não temos no Brasil. O brasileiro não tem o hábito de fazer esse tipo
de discussão em que um apresenta um ponto e outros reagem ao seu
ponto. É muito legal esse tipo de escrita, porque você lê, por exemplo, o
criacionista da terra jovem escreve, as outras pessoas reagem ao texto
dele, aí você consegue ver o ponto de vista e os contrapontos. Esse tipo
de livro nos ajuda a entender bastante algumas coisas.
Então está aí um pouco de material para vocês poderem aprofundar esse
tema. Se você quer aprender grego e hebraico, depois que vocês acaba-
rem a EBT, vocês vão lá com o Paulo aprender grego e hebraico. É isso,
gente, até a próxima aula, se Deus quiser:

PW: Tchau pessoal!

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134
AULA 15
O DEUS PROVEDOR

Nessa aula falaremos sobre o Deus Provedor, esse Deus que mantém a Sua cria-
ção. Como falar sobre a provisão divina? Podemos falar que algumas acontecem, da
forma que acontecem? Será que conseguimos respostas? Por que o mundo é do jeito
que é? Por que coisas que não entendemos acontecem? Será que é providência divi-
na? Parece que nós usamos providência divina só quando nos faz bem, quando é do
nosso interesse, mas quando não é do nosso interesse, também é providência divina?
Quando as coisas vão muito mal, é providência divina? Faz parte da doutrina sobre Deus
falarmos sobre esse Deus Provedor. Abordaremos os aspectos da providência divina.

ASPECTOS DA PROVIDÊNCIA: PRESERVAÇÃO


Tudo o que existe pelo ato criativo de Deus se degradaria, dissolveria, voltaria
para o caos se Deus não sustentasse e preservasse. “Por intermédio da Palavra de
Deus foram feitos; por ela ganharam existência; e, por conseguinte, nela tudo subsiste”.
(Cl1.17) De fato, ele sustenta “todas as coisas por Sua palavra poderosa.” (Hb1.3)
É muito interessante essa ideia que Paulo fala em Colossenses de que “tudo
subsiste”, que tudo se encaixa em Deus. Nós entendemos, de forma geral, até é
chamado de Providência Geral, que há um cuidado geral de Deus em vários textos
nas Escrituras. Vemos que Deus cuida do mundo.
Nós já falamos isso em aulas anteriores, nós acreditamos que Deus está metido
com a sua criação. Ele não é um ser transcendente somente, mas é um Deus imanen-
te. E, na verdade, essa transcendência e essa imanência é a transparência, um Deus
que está envolvido com a Sua criação. Se Ele está envolvido, obviamente, Ele mantém
essa criação, Ele preserva essa criação. Deus tem um cuidado com a Sua criação e
tudo Nele, por meio de Sua palavra, vai se encaixando. Então, um aspecto importantís-
simo da Providência Divina é o Seu cuidado.
Aliás, a ideia de Providência vem de prever, Deus prevê as coisas e, como
nós já dissemos aqui nesse módulo, Ele não é pego de surpresa em nenhum
momento. Então, Deus, de alguma forma, já prevê as nossas ações. Creio que o
ser humano tem a liberdade, Deus criou o ser humano com a liberdade de agir.
Surge então uma grande pergunta : Como nós falamos de liberdade humana e
Providência Divina?

135
Bem, como nós já falamos, o fato é que essas coisas se misturam, aqui entra um
pouco do mistério que expliquei em aulas passadas: Deus criou o mundo com leis natu-
rais, mas Ele não abandonou esse mundo com as leis naturais, Ele se mete, inclusive nós
temos milagres que rompem com essas leis naturais, que até subvertem as leis naturais.
Por exemplo, Deus ressuscita mortos. É uma subversão de uma lei natural. A lei natural é
o ser humano morrer, mas Deus, quando tem um propósito específico, pode ressuscitar.
Vocês lembram da aula da criação? É importante vocês terem essa aula na mente
porque nós falamos que Deus confere propósito à Sua criação. E, para manter esse
propósito, muitas vezes, Ele vai interferir de forma miraculosa, rompendo uma lei na-
tural. A lei natural diz que o ser humano morre e Deus vai lá e ressuscita.
Deus faz muitas coisas para preservar a Sua criação, para manter os seus pro-
pósitos, como acontece, podemos especular. Voltaremos para algumas especulações,
pois, no fundo, caímos em uma linha Determinista, ou seja, Deus determinou todas
as coisas e, por isso, as coisas acontecem, exemplo: Alguns vão dizer que Deus deter-
minou a tragédia em Pernambuco, 132 mortes são computadas na conta de Deus.
Outros irão dizer que Deus permite que coisas aconteçam, em última análise, é uma
permissão de Deus, mas não foi Deus quem executou essa obra.
Então Deus criou o mundo com leis naturais e essa Providência é mais geral:
Deus preserva o mundo para o mundo não acabar, mas o mundo também tem o rit-
mo Dele. O ser humano vai degradando a natureza, ocupando lugares que não podem
ser ocupados, o ser humano vai tratando a natureza da forma que ele está tratando e,
desta assim, se torna responsável pelas tragédias naturais.
Deus pode usar as tragédias naturais para movimentar os Seus propósitos? Por
mais absurdo e até desumano que possa parecer, sim, Ele pode fazer. Nós não temos
uma resposta clara para isso. O fato é que Deus pode manipular as coisas para o Seu
propósito. Não quer dizer que Ele sempre o faça.
Eu sou da linha de que Deus tem uma providência mais geral, ainda que Ele pos-
sa ter uma providência mais específica para algumas coisas, porém eu defendo que a
liberdade humana sempre será preservada, ainda que Deus possa trabalhar de várias
maneiras para que essa escolha humana seja feita conforme a vontade Dele.
Defendo a ideia de que Deus, na Sua soberania, deu essa liberdade à criação, e,
por isso que, acreditar que o mundo toma decisões, que os seres humanos tomam
decisões, que os seres angelicais caídos tomam decisões, não é ferir a soberania divi-
na, porque Ele escolheu que o mundo fosse dessa maneira. Obviamente que Ele não
vai permitir que as coisas fujam completamente do Seu propósito, afinal, Ele escreveu
Gênesis e Ele escreveu também Apocalipse.

O QUE DEUS PRESERVA


Assim, Deus preservou generosamente o que havia criado. Mesmo quando o ho-
mem pecou e a terra foi amaldiçoada, de modo que Ele tivesse de suar e trabalhar
duro para cultivá-la, Deus ainda o supre. (Gên 3:17,18) Mesmo quando o mal alcançou
proporções tais que Deus enviou um dilúvio para exterminar todos os seres viventes,
exceto Noé, sua família e os grupos de dois ou sete animais. Deus depois declarou: “en-

136
quanto durar a terra, plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite jamais
cessarão.” (Gên 8.22) Tudo isso é uma demonstração da bondosa preservação de Deus.
Nós temos essa Preservação! Aliás, a história de Israel é o manifesto do cuida-
do de Deus. Deus preserva as ervas do campo, Deus alimenta os pardais. Em vários
momentos nas Escrituras, nós temos essa garantia de que Deus preserva o Seu povo.
Obviamente que essa preservação divina não isenta o ser humano de proble-
mas. Nós vemos Jesus passando dificuldades, os apóstolos passando dificuldades, o
povo de Israel também. Obviamente que parte dos problemas que passamos é culpa
nossa, outra parte é culpa do mundo, outra parte é culpa de Satanás, outra parte é o
próprio Deus mesmo querendo agir em nós. Então, situações difíceis fazem parte da
vida e a providência divina, não nos isenta dos males deste mundo. Ela nos dá essa
garantia de que Deus intervém para os Seus propósitos.
Creio que quando nós nos colocamos: “Eis-me aqui Senhor.” Quando nós nos
colocamos nas mãos do Senhor, vamos experimentar essa providência divina. Às ve-
zes, nos deparamos com histórias trágicas, irmãos e irmãs que têm histórias de vida
trágica, sofridas e, às vezes, eu me pergunto: “Senhor, onde está a providência divina
nessa história?” Eu não tenho a resposta para essa pergunta.

O DEUS PRESENTE
A história de Israel, tendo como clímax o Cristo, é a prova cabal da presença de
Deus em meio a sua criação: Ele é Emanuel! A presença de Deus em Jesus Cristo é a
prova cabal, é a prova que nós precisamos para dizer: Deus tem a Sua providência,
Deus é conosco, Ele é o Emanuel. Inclusive o próprio Deus sofre as contingências des-
sa criação.
Certamente o Novo Testamento apresenta de modo mais vivo um quadro da
companhia divina. Melhor dizendo, um aspecto da providência divina é essa com-
panhia com a Sua criação. Ora, a própria encarnação é o milagre de Emanuel “Deus
conosco” – em carne humana. Ali havia a presença de Deus por meio de Cristo de
um modo muito mais intenso, direto e pessoal do que nunca na história humana
ou na história de Israel. Além disso, não era apenas Deus com as pessoas; era um
participar profundo na vida, existência, pecado, culpa e desespero delas chegando
até a cruz para obter a salvação humana. De fato, Deus em Cristo acompanhou suas
criaturas desoladas até as últimas profundezas da perdição para conseguir trazê-las
à luz da glória.
A providência divina é uma doutrina que não recorremos somente nos mo-
mentos de tristeza. Nós cremos que Deus provê o Seu povo. Ele é um Deus prove-
dor. Ele é um Deus que nos traz socorro em meio às angústias, mas a Doutrina da
Providência quer causar também em nó,s essa segurança de que esse Deus proveu
aquilo que era mais fundamental: a salvação, porque a maior desgraça do ser hu-
mano é o seu pecado e a distância que ele tem do criador, e Deus, na Sua eterna
providência, proveu a cruz.

137
O DEUS QUE DIRECIONA
Bem, isso quer dizer também que outro aspecto da providência divina é a dire-
ção: Isso significa, que Deus é o Senhor da História. Trata-se de uma história longa e
complexa: a maldade crescente da humanidade até o Dilúvio; um recomeço com Noé;
a dispersão da humanidade depois da torre de Babel; o chamado de Abraão; a servidão
no Egito; a formação de Israel para ser o povo especial de Deus; a dádiva da Lei e dos
mandamentos; o governo de juízes e reis; o exílio na Assíria e na Babilônia; a vinda do
Messias; sua vida, morte e ressurreição; a vitória sobre Satanás; o estabelecimento da
igreja; a proclamação do evangelho; a consumação final e o fim do mundo. Em tudo isso
há supervisão e direção de Deus para cumprir seus propósito. Para que tudo isso acon-
tecesse nós temos uma influência divina fortíssima na história. Alguns irão dizer que não
há influência nenhuma, que é Deus determinando e pronto. É uma visão mais calvinista.
Uma visão arminiana vai entender que Deus mantém a liberdade do ser humano
e influência. O Jack Cottrell em seu livro “A fé de uma vez por todas”49, vai citar o caso
de Amós, capítulo 4, a partir do versículo 6, onde Deus tentou (e ele não tem medo de
usar essa expressão) levar Israel ao arrependimento várias vezes, mudando aspectos
climáticos, até mesmo históricos, para levar o povo de Israel para Sua vontade e o
povo de Israel não foi, onde vem o cativeiro, vem a penalização de Deus. “Mas vocês
ainda não se voltaram para mim, declara o Senhor.” Portanto, Deus influencia por
meio de eventos históricos, climáticos e até mesmo emocionais e racionais, Ele vai
influenciando para o Seu devido propósito. Nem sempre dá certo.
Alguns irão dizer que isso é um absurdo, que isso está diminuindo Deus. Eu
concordo com Cottrell, pois acho que isso não diminui Deus, foi Ele quem criou essas
regras, Deus não foi pego de surpresa. Não eram humanóides que, de repente, come-
çaram a criar consciência e se rebelaram contra Deus. Deus criou a consciência. Deus
criou esse cenário onde está acontecendo o drama da vida, por isso, penso que não
fere a soberania divina.
Cottrell até diz o seguinte: “Quando lemos o abundante material bíblico sobre a
intervenção de Deus para fazer com que certas coisas aconteçam na história de Isra-
el, devemos resistir à tentação de generalizar esses casos e assumir que é assim que
Deus trabalha com todas as decisões de toda vontade humana. Esses casos mostram
o que Deus pode fazer e fez quando seus propósitos o exigiram.”
E sim, existem casos em que Deus influenciou a decisão humana de tal forma que
o ser humano não pôde voltar atrás, um argumento complicado, porque você não tem
mais a liberdade humana, por exemplo, se Deus endureceu o faraó de tal maneira que
ele não tinha outra opção a não ser manter Israel para que Deus mandasse as pragas,
castigasse o Egito e libertasse o povo. É nesse aspecto onde penso que quando Deus
quer alguma coisa, quando é um evento crucial para o Seu propósito maior, simples-
mente vai acontecer, ou seja, há coisas que Deus deixa acontecer, e vai orquestrando,

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138
vai controlando, outras Ele faz uma intervenção direta, de forma arbitrária, afinal, Ele é
Deus, outras Ele vai sugerindo caminhos que podem ou não serem seguidos.
Gosto dessa mescla, da providência divina com responsabilidade humana. Como
é que você entende isso? É um assunto complexo, não dá para bater o martelo. Po-
demos fechar esta seção estudando brevemente a intenção final de Deus na História.
Seu propósito jamais foi expresso de modo mais veemente que nas palavras de Paulo:
“[Deus] nos revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito
que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas ce-
lestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos”. (Ef 1.9,10)
Esse plano extraordinário inclui os detalhes variados e complexos da História,
todos os quais estão nas mãos “daquele que faz todas as coisas segundo o propósito
da sua vontade.” (Ef 1.11) Tudo, pois, move-se para o cumprimento glorioso em Jesus
Cristo e para a unidade de todas as coisas nele. À Deus a glória para sempre e sempre!
Amém!
Tudo vai confluir para o propósito de Deus. Até mesmo nas coisas mais tristes, de
alguma forma Deus vai arrancar propósito dali, vai movimentar para o Seu propósito
maior. Bem, essa foi uma introdução sobre a Providência Divina. Caminhamos para
assuntos densos, porque tem o problema do mal e precisamos falar sobre esse Deus
bom e a maldade no mundo.
Precisamos entender também que existe a questão do milagre. Digite aí no Goo-
gle Btcast Milagres50, ou procure na playlist do Spotify. Tem uma playlist no Spotify
muito legal com vários episódios que eu cito aqui nas aulas, inclusive, tem um episódio
sobre milagres para você entender o propósito dos milagres, afinal, os milagres são
ações divinas para cumprir o Seu propósito. É isso, gente, que Deus nos dê direção,
nos dê sabedoria, nos dê temor para que sigamos na Sua divina providência até a
consumação dos séculos.

50 Ouça aqui: https://bibotalk.com/podcast/milagres-btcast-414/

139
AULA 16
O PROBLEMA DO MAL

Rodrigo Bibo: E aí, pessoal! Tudo bem? Sejam muito bem vindos a mais uma
aula da EBT, a Escola Bibotalk de Teologia. Eu sou o seu host, Rodrigo Bibo, e
estou caminhando com vocês nesse módulo sobre Deus. Estamos chegan-
do ao fim e, obviamente, essa penúltima aula é sobre um dos grandes temas
da teologia, que envolve a pessoa de Deus, que é o problema do mal.
E, para a aula de hoje, eu quero convidar meu amigo Guilherme Nunes,
que já esteve conosco aqui e falou sobre Dispensacionalismo no módulo
Teologia Simples. Agora ele volta aqui neste módulo sobre Deus, para
tratarmos desse assunto, o problema do mal, que, para mim, é um dos
temas teológicos mais difíceis de lidarmos. Senhoras e senhores, rece-
bam Guilherme Nunes mais uma vez aqui na Escola Bibotalk de Teologia.
Obrigado, meu irmão, por aceitar esse convite!

Guilherme Nunes: O prazer é meu de estar mais uma vez aqui, pensei
que não seria mais convidado devido à minha última aula. Não sei se todo
mundo gostou.

RB: Cara, eu falei na introdução desta aula que você já esteve aqui falan-
do sobre Dispensacionalismo, mas você já esteve no módulo sobre Deus
também, falando sobre Trindade no Antigo Testamento. Excepcional!
Você já esteve duas vezes aqui na EBT. Eu só não te convido mais para
não ser folgado, mas você está aqui, você mora no meu coração, meu
irmão. Estamos juntos!
Guilherme Nunes que é pastor, professor de Teologia, atua no ministério
online, é parceiro da Escola de Teologia junto com o pastor Yago Martins,

140
um grande homem de Deus, enfim, se você quer aprender Teologia no
Instagram - eu sempre falo isso - você tem que seguir o Guilherme Nunes.
Comigo você tem umas brincadeiras lá no Instagram, de vez em quan-
do, um assunto sério. As perguntas que fazem para mim, quando fazem
para o Guilherme, ele responde assim: “Olha o tipo de pergunta que eu
recebo!” Ele não responde, lá é discussão de alto nível. Gui, por falar em
discussão de alto nível, nós estamos aqui hoje para falar desse tema que
é assim denominado: o problema do mal. Então, meu irmão, quero abrir
os microfones da EBT para começarmos a pensar nele juntos e queremos
ser conduzidos por você. Por gentileza, fique à vontade. Eu e os alunos da
EBT estamos ansiosos para te ouvir.

GN: Bem, esse tema, para mim, é um tema base, fundamental, porque a
maneira que você pensa sobre ele é a maneira que você vai pensar sobre
outras áreas da Teologia. É como se fosse um termômetro sobre a sua
forma de encarar Teologia. Vou explicar o porquê. Algumas pessoas en-
caram esse problema de uma maneira chata, elas simplesmente tentam
resolver a coisa matematicamente e se esquecem que o problema do
mal também é um problema emocional. As pessoas não sofrem somente
no intelecto com relação a ele, as pessoas sofrem na vida. Portanto, não
é um mero debate filosófico, é um debate real da realidade. Algumas pes-
soas simplesmente se esquecem disso e tratam desse assunto de uma
maneira muito seca. Bem, essa é a maneira que, geralmente, pessoas
assim tratam a Teologia como um todo. Esse é um tipo de assunto que vai
equilibrar, calibrar, a maneira como tratamos toda a Teologia.

RB: Muito legal essa tua introdução, Gui, porque nos faz pensar. Por
exemplo, para mim, o problema do mal é puramente emocional. É lógico
que existem explicações racionais, mas é a parte emocional que mais me
bate. É legal você fazer essa distinção. Porém, eu queria que você expli-
casse um pouquinho o porquê que isso é como uma chave sobre a qual
gira o pensamento teológico.

GN: Ele vai, basicamente, ser um assunto relacionado tanto a Deus quan-
to ao homem, tanto àquilo que mexe com a soberania divina quanto à

141
responsabilidade humana, com as bagunças que o homem faz no mundo
de Deus. Se você pegar esse assunto e pensar em toda a Teologia, toda
Teologia estará nele, qualquer assunto da Teologia vai caber dentro dele.
A Teodiceia é um grande pacote onde a sua Teologia é colocada à prova,
como você vai encarar um Deus soberano, o mal, os anjos, os anjos caí-
dos, tudo isso estará girando em torno da prática desse assunto.

RB: A pessoa de Deus, a obra de Deus, a pessoa do Filho, a obra do Filho,


de alguma forma, passam por essa questão, pela, assim chamada, Teodi-
ceia. Uma tentativa de defender Deus, a justiça de Deus.

GN: Eu gostaria de começar não pelo convencional, explicando o termo,


mas dando os resultados de uma pesquisa que eu fiz e, para fazer isso,
vou voltar para um outro assunto dentro do judaísmo. Para mim, esse
assunto, dentro do judaísmo, lança luz na maneira que entendemos o
problema do mal: quando eu olho para o delay ou o atraso escatológico
no apocalipsismo judaico. O que é isso?
Um grupo de judeus esperava que o mundo fosse mudado completa-
mente, que algo acontecesse em todo o mundo de Deus, que, no final,
Deus rompesse os céus e derrubasse os inimigos de Israel e fundasse um
novo reino. Dentro do judaísmo existia isso. Mas também existia o fato
de que aquelas promessas feitas pelos profetas estavam demorando a
serem cumpridas. É o que chamamos de delay ou atraso. Os judeus se
perguntavam onde estava a realização daquelas promessas. Como eles
lidavam com isso?
A minha tese inicial é que o apocalipsismo, que era esse grupo que espera-
va muito o momento do final, mas, ao mesmo tempo, experimentava esse
atraso escatológico, estava no tempo de Paulo, rondando com muita força,
estava no tempo de Jesus, rondando com muita força. Logo, quando a igreja
primitiva pensava em atraso escatológico de Jesus, ou aparente atraso, eles
tinham essa ideia também em mente. Mas o meu ponto vai ser o seguinte:
a Teodiceia é a versão moderna do atraso escatológico no tempo judaico.
Se entendermos a maneira como a igreja primitiva lidava com isso, vamos
ter um equilíbrio maior para ler a escritura à luz do mundo em que a igre-
ja vivia e do pensamento que rondava aquela época. Esse é o motivo pelo
qual eu vou começar fora do assunto.

142
RB: Nós temos podcasts em bibotalk.com sobre a apocalíptica judaica.
É muito a ideia da espera do Messias que vem solucionar o problema
do mal. O mundo estava um caos, eles estavam na mão dos inimigos,
precisavam de um salvador que viesse tirar a maldade do mundo e fazer
os justos governarem, ou ressuscitar.

GN: Perfeito. E essa ideia era tão forte na época do judaísmo do segundo
templo, aproximadamente 300 a.C. até 60 d.C., que eu tenho para mim
que, se estudarmos isso, entenderemos melhor os problemas moder-
nos do mal, porque estaremos voltando para a mentalidade mais bíblica
oriental para, depois, podermos lidar com um problema que é exclusiva-
mente ocidental. A forma lógica, filosófica que o debate entra não aconte-
ceu nos primeiros séculos. Isso não significa que não havia nenhum tipo
de problema do mal, havia sim, mas não nos termos de hoje.
Havia as promessas escatológicas dos profetas, inclusive dos profetas
menores - 4º Esdras, 2º, 3º e 4º Enoque, livros deuterocanônicos. O que
esses profetas profetizaram foi com ar iminente, de que aquilo iria acon-
tecer logo, de que o final da história estava logo ali, mas, passado muito
tempo, o que houve foi uma demora, um delay do cumprimento.
Mesmo com esse delay do cumprimento, os apocalipsistas continuavam
crendo na relevância e na validade dessas promessas. A tendência deles
era encorajar o seu povo a esperar algo iminente. O povo não via a reali-
zação dessas promessas, porém eles encorajavam o povo a esperar algo
iminente. Então, existia uma tensão entre atraso e iminência que gerava
um problema: se Deus era soberano, por que ele não realizava logo essas
promessas? Por que ele deixava o mal imperar, superar, muitas vezes, o
povo de Deus?
A tensão não era porque existia um Deus bom e o mal existia, era porque
existiam promessas de erradicação do mal e Deus não as realizava logo.
Essa era a pergunta dentro do judaísmo do segundo templo. Tensão que
nunca foi resolvida, ela foi sentida, mas nunca os guiou à dúvida. Essa
tensão, ao contrário, criou neles uma espécie de lamento correto.

RB: Gui, nós estamos falando de um grupo que também, até onde eu sei,
não é monolítico. Não é nesse período que surgem as diferentes classes ou

143
os diferentes grupos dentro do judaísmo? Os fariseus, os saduceus, a gale-
ra mais radical, os sicários? Isso não despertou uma variação em relação a
essa espera? Porque há a galera que lamenta, que constrói teologias, mas
também há a galera que queria tentar conseguir o reino de Deus por meio
da violência, da revolta. Eu entendo que são blocos até com perspectivas
escatológicas diferentes. Ou era mais ou menos comum?

GN: Bom, primeiro ponto: o apocalipsismo já era um tipo de seita no


meio dessas outras e todas as seitas, inclusive a apocalíptica. Eles tinham
o entendimento de que Deus iria invadir de forma escatológica o mundo
em um determinado momento. A diferença entre eles era a forma que
isso iria acontecer. Os fariseus tinham uma forma de pensar isso, os sa-
duceus tinham outra forma. Os sicários, por exemplo, tinham uma forma
mais pesada de como isso deveria acontecer.
Todos tinham o pensamento apocalíptico. O apocalipsismo era uma seita
que reagiu corretamente a esse atraso escatológico, enquanto as outras
seitas reagiram de forma errada a ele. Monolítico é um entendimento de
que haveria um mundo que seria invadido por Deus em determinado
momento, o que não era monolítico era a forma que isso iria acontecer.
Eles viviam nessa tensão, e ela nunca foi resolvida, sempre foi um pro-
blema. E era um problema porque ela não era para ser resolvida. Para
a reação apocalíptica ser correta, a tensão tinha que ser sentida, e não
resolvida. Então, vem a teologia do lamento.
A pergunta que temos que fazer agora é: como eles viviam com esse
lamento? O que trouxe a eles uma tensão correta? Quais foram os fa-
tores teológicos que causaram essa reação “correta”, porque eles não
abraçaram o Messias, mas viviam nessa tensão escatológica. Existem fa-
tores teológicos para a iminência, algo que vai acontecer logo ali, e exis-
tem fatores teológicos, também, para o atraso. Então, as duas coisas que
havia na mente deles para essa reação correta eram fatores teológicos
tanto para uma quanto para outra - e não necessariamente resolvidos.
Quando lemos o judaísmo do segundo templo, principalmente nas seitas
apocalípticas, vamos encontrar o texto a seguir como sendo clássico para
a discussão de todo o atraso escatológico de Deus: “Pois a visão aguarda
um tempo designado; ela fala do fim, e não falhará. Ainda que se demore,
espere-a; porque ela certamente virá e não se atrasará.” - Habacuque 2:3.
Esse é o texto chave que eles usavam para viver a tensão entre atraso e
iminência. Nós podemos tirar algumas conclusões dele:

144
1. O “atraso” é atribuído à onipotência soberana de Deus, ou seja, Deus
determinou um tempo;
2. Não existe “atraso” na escala de tempo de Deus. Existe um tempo de-
terminado. Eles já tinham isso em mente;
3. A outra coisa que eles tinham em mente é que o porquê disso tudo
permanecia de forma incompreensível ao homem, mas eles atribuíam
esse atraso à sabedoria divina.
Eles tinham de um lado a onipotência, controlando toda escala e tempo,
e eles também tinham a sabedoria, explicando, não para eles, mas para o
próprio Deus, os motivos desse atraso e os motivos do mal.

RB: Hoje em dia, quando nós falamos sobre o problema do mal, é muito
interessante que ele está muito ligado a questionar a existência de Deus.
Eles sofriam o mal, o mal existia naquele tempo também e, inclusive, eles,
como povo das promessas, experimentaram muitas dores, mas não ouvi-
mos falar de uma murmuração no sentido de dizer que Deus não existia.
Parece que a negação de Deus e o problema do mal são uma questão
mais moderna, não é? Já existia até uma compreensão de que Deus é so-
berano, de que ele sabe de todas as coisas e que vão suportar, pois tem
que ser assim.

GN: Perfeito. Há um estudo sobre ateísmo no judaísmo - principalmen-


te nas cavernas de Qumrán - que chega à conclusão de que não existe
evidência nenhuma, dentro do judaísmo, de descrença na existência de
Deus. O que existe é o comprometimento do caráter de Deus - Deus é
mal. São os judeus desconvertidos. O impacto da Babilônia foi questionar
a natureza de Deus, mas não a existência.
Bem, eu coloquei aqui um gráfico do resumo de como eles viam tudo.
Eles percebiam que viviam uma era do mal e esse mal não era só para
Israel, era um mal em todo o mundo, por isso, não adiantava uma er-
radicação do mal somente para Israel, mas havia uma necessidade de
erradicação cósmica, em todo o mundo. Eles atribuíam essa era a uma
era má e diziam que, nela, Deus é justo, porque no fim a justiça dele será
vindicada e Deus vai ser vindicado como justo no fim. No fim, isso vai ficar
claro. Essa era a ideia do apocalipsismo.

145
Para nós, a justiça de Deus não é vindicada somente no fim, ela é anteci-
pada na cruz. Então, a cruz é uma solução que nós temos para o proble-
ma do mal - entre mil aspas. O entendimento judaico é de que somente
no fim toda a injustiça será erradicada, a justiça de Deus será vindicada e
Deus será vindicado como justo. É basicamente esse o entendimento do
judaísmo, mas, especificamente, da seita apocalíptica.

RB: No cristianismo, a grosso modo, essa justiça de Deus invade a era do


mal. Esse escaton, esse fim, invade o meio e, a partir daí, também começa
a mudar, para chegar no fim proposto.

GN: Exatamente. Já está mudando, porque nós já estamos no fim, e o


reino de Deus vai fazer esse papel de chegar lá. É por isso que a literatu-
ra joanina epistolar vai falar de última hora e não de último tempo, pois
a última hora é como se nós estivéssemos a um passo do final, porque
aquilo que tinha que se realizar já está se realizando com muita força.
Então, nós estamos bem aí para o mal ser vindicado completamente. Isso
na visão cristã.
E qual a relação entre o problema do delay com o problema do mal?
Quando nós estamos falando do problema do mal, temos que levar em
conta que o cristão entende, como pressuposto, que Deus tem o contro-
le último de tudo. E eu digo último porque aqui é uma questão evangéli-
ca, ou seja, Deus é soberano de forma última e, para os cristãos, dentro
desse atraso, Deus permanecia justo e soberano. O atraso serve ao pro-
pósito soberano de Deus. E isso nos dá uma ideia do porquê o mal ainda
existe, ou porque há o mal e porque Deus não acaba com ele.
A tensão não é resolvida. O problema não é para ser resolvido, pois a ten-
são do atraso escatológico judaico vai ser sentida por nós também. Sentir
aqui é no sentido de existir - não é mero emocionalismo ou filosófico. Se
for meramente filosófico, é mal reagido, não reagimos com lamento, mas
com murmuração, com as mãos fechadas de ódio, de querer colocar a
culpa em Deus e não as mãos abertas de perguntar: “Por que?”. A ideia
é: Aguarde. Ele prometeu e Ele vai erradicar todo o mal que Ele disse que
iria erradicar.

146
RB: No caso, você está falando do judaísmo, dessa ideia apocalíptica que
tem também no Novo Testamento. O livro de Apocalipse tem essa pega-
da bem apocalíptica.

GN: E pensando, agora, na discussão moderna, tendo isso em mente,


precisamos definir o que é o mal. Nós temos um mal natural e um mal
moral. O mal natural é aquele das “catástrofes” - e aqui colocamos aspas
também, porque sabemos que o que causou as catástrofes foi a bagunça
de Adão, a bagunça da própria humanidade que causa as catástrofes na-
turais. O mal moral é o mal “civil”.

RB: Qual é o mal que Deus cria? Tem um texto em Isaías.

GN: Dentro do contexto, percebemos claramente que Deus, no Antigo


Testamento, sempre usou ações más como ferramenta para disciplina de
Israel. Muitas vezes, ele criou e gerou guerras para disciplinar o seu pró-
prio povo. É esse tipo de mal que Isaías tem em mente: uma disciplina de
Deus por meio de um povo mau. E Habacuque vai dizer: “Como pode um
Deus santo usar o povo assim?” E Deus diz: “Espera aí, fica no teu lugar,
que um dia eles receberão o que é deles!”.
O mal moral causou o mal natural e nós entendemos que é por causa da
queda de Adão. Existem dois tipos de problemas, o lógico e o emocional
do mal, como foi colocado. Quando entramos nas consequências do mal
moral, percebemos que ele afeta toda a humanidade e, em Romanos ca-
pítulo 8, ele afeta também a criação.
Para não ficarmos somente no limbo, eu gostaria de colocar aqui uma
coisa prática. Eu fui professor em escolas fora da teologia e, quando al-
guns pais cristãos chegavam para mim e perguntavam como poderiam
ensinar seus filhos o problema do mal, eu sempre dizia para eles que
a primeira coisa que tinham que ensinar era a existência do mal e não
querer resolvê-lo. Você tem que mostrar o que é o mal, o que é o peca-
do. E, então, como eu ensino para as crianças essa parte do problema
do mal ou, necessariamente, o pecado? Eu dividi três fases da pessoa
aqui que gostaria de usar, que alguém da área da Psicologia infantil

147
pode identificar com algum autor, mas eu não sou da área, então eu
usei essa divisão aqui:
Há aquela fase inicial, dos pequenininhos, era a fase que eu pegava para
ensinar música, que era musicalização de crianças que nem andavam.
Eu a chamo de fase do egoísmo, que é quando as crianças querem tudo
para elas. Essa fase é muito sensitiva, elas não entendem, mas precisam
sentir as consequências do seu mal, ainda que um mal pequeno. Quando
eu coloco sensitivo, não necessariamente significa uma palmada, pode in-
cluir, mas a ideia é de mostrar que nessa fase o mal já pode ser ensinado.
A segunda fase é um pouco mais adolescente. Na música, é a fase que
chamamos de criação de narrativas. Neste ponto, o pré-adolescente tem
uma imaginação muito grande e, por isso, nessa fase podemos usar um
tipo de literatura imaginativa para ensinar como o mal é terrível, como o
pecado é terrível.
Tem a fase em que a personalidade está se formando, aqui uma conversa
mais proposicional pode ajudar. Mas meu ponto é o mesmo. Se quere-
mos ter crianças que entendam a soberania de Deus,mas que não en-
trem em um tipo de crise com relação ao problema do mal, desde cedo,
precisamos colocar o pecado estampado para dizer o que é o pecado.
Eu lembro de quando era pequeno, que eu cantava musiquinhas que não
sabia o que eu estava cantando, porém tinham a ver com o mal e isso me
ensinou muito quando eu cresci. Me ensinou que o mal existe e é real e
não é algo que você usufrui, mas é algo que sofre com ele. Vamos, então,
para o problema lógico. Ele pode ser dividido em três partes:
1 – Deus é todo poderoso e todo sábio;
2 – Deus é todo bom;
3 – O mal existe.
Temos aqui a onipotência, a sabedoria e a bondade. Alguns afirmam que,
se 1 e 2 fossem verdadeiros, então o mal não existiria. Isso seria a con-
clusão lógica.

RB: Isso é antigo, Gui. Esse questionamento é de antes de Cristo, já na


Filosofia grega. O mal é uma verdade e, se Deus não acaba com o mal,
ele não é todo poderoso. E, se pode acabar e não acaba, então ele não
é bondoso. Parece que temos que diminuir Deus para caber o mal, pelo
menos nessa forma de pensar equivocada.

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GN: Existe o problema lógico e existe o problema emocional, que é quando,
no meio do sofrimento, perguntarmos: “Por que?” Queremos saber o porquê
de tudo o que está acontecendo. Vamos começar pelo problema lógico. Exis-
tem sete formas erradas de abordar o problema do mal que eu listei aqui:
A primeira é dizer que o mal não é real. Aliás, essa é uma filosofia mais
oriental, japonesa, mais para o lado do budismo, cuja ideia é que o mal só
é sensitivo. Você até vê, em alguns filmes japoneses de luta, que eles fa-
lam muito de não sentir a dor, de concentração, porque a ideia deles é de
que o mal não é real, é apenas uma sensação. Isso é uma forma errada
de abordar esse assunto, pois isso é negar a própria realidade e o caos
que habita. Parece mais uma teoria do avestruz, de colocar a cabeça na
areia. E, muitas vezes, essa teologia do avestruz é muito defendida pela
galera do coaching, mas de forma errada - eles acham que basta acordar
pela manhã e tudo vai ser resolvido.
A segunda forma é dizer que Deus não é todo poderoso, é limitar, de
alguma forma, a onipotência de Deus. Isso é perigoso. O Teísmo aberto
em seus extremos, por exemplo, fez esse desserviço de negar um tipo de
soberania, de onisciência, de presciência e de outros atributos de Deus.

RB: Pelo que eu entendi, é uma escolha que Deus fez. Deus se auto-limi-
tou, por isso que o teísta aberto diz que não está negando a soberania
de Deus, mas que Deus escolheu se limitar por amor à sua criação, o que
continua não fazendo o mínimo sentido.

GN: O terceiro ponto seria o livre-arbítrio, no sentido de dar ao homem


uma soberania tão forte que impede Deus de agir no próprio mundo dele
para erradicar o mal. Mas por que isso não resolve, mesmo que alguns de-
fendem o livre arbítrio? Porque podemos perguntar de onde veio o próprio
mal. Se Deus é todo bom, é o ser que iniciou tudo, isso não resolveria.
O item 3 pode ser mais controverso para alguns, mas aqui eu não estou
usando a palavra livre arbítrio no sentido do debate calvinista/arminiano,
mas no libertário completamente sem influência do mal. Aqui, é mais do
lado ateísta do que do lado das nossas discussões infindáveis.

149
RB: Gui, eu acho legal nos determos um pouco aqui, porque o ponto 3
é o principal ponto ao se falar do problema do mal nas discussões. Até
entre os alunos eu perguntei como resolvemos o problema do mal e a
maioria das respostas - inclusive é a que eu costumo dar - é de que Deus
não é culpado, por exemplo, por acontecer uma tragédia com uma crian-
ça, é o livre arbítrio da criação.
Até parte um pouquinho daquela ideia do Lewis de que existe o mundo
natural, com as suas leis naturais. Deus as criou e, mesmo na sua sobera-
nia, ele se auto-limita. Ele criou as leis, respeita as leis e a sua criação tem
liberdade para agir dentro dessas leis que ele criou. Ele criou a árvore
para dar frutos e o ser humano, com a sua manufatura, pode construir
casas, tacos de beisebol, que são feitos para praticar um esporte, mas
também podem ser usados para matar outro ser humano.
É um jeito errado, como você está apontando, no sentido de não dar uma
resposta completa. Como você vê o livre arbítrio na questão do problema
do mal? Ele não responde o problema, mas você acha que ele pode ser
um caminho para se falar em certo aspecto do problema do mal?

GN: Com certeza. Na sua fala, eu concordo, atribuindo, como calvinista, a


responsabilidade humana a tudo o que você falou. Quando eu coloco er-
rado aqui é tentar explicar o problema, ou seja, você coloca o livre arbítrio
para tentar dar uma solução e não resolve no final porque o problema é,
antes de tudo, acerca de Deus.

RB: Eu estava pensando, por exemplo, o mal no paraíso, na revolta ange-


lical, foi o livre arbítrio dos anjos que deu a opção de eles se rebelarem
contra Deus e fazerem a sua própria canção. É o livre arbítrio angelical
dos seres celestiais. Mas, ainda assim, o que despertou esse desejo? É
complicado!

GN: É. E Deus poderia ter eliminado esses anjos para não poder ter influ-
ência no mundo criado.

150
RB: Por isso, nesse sentido, ele é a causa última do mal, né?

GN: Isso. E, então, vamos entrar nos pontos mais densos, mas o meu
ponto de errado aqui é como explicação final, é como se fosse solução
para o problema. Tanto teólogos calvinistas quanto arminianos não usam
o livre arbítrio para resolver o problema - isso é bom colocarmos. O pro-
blema é sustentado, a tensão é mantida, mas esse é o campo em que
eles explicam as situações através do livre arbítrio.
O quarto ponto seria de que o mal é necessário para o amadurecimento.
Essa forma de abordar o problema do mal nós vemos muito na TV, quan-
do um ator ou um atleta fala que nós vamos sair melhor dessa pandemia
e o resultado é que saímos piores.

RB: É complicado! Eu entendi a sua perspectiva, porém eu imagino que


você não quer dizer que não há pedagogia no sofrimento. Se o pessoal
ouvir o nosso podcast sobre ressurreição, eles verão que você faz uma
aplicação pastoral e pessoal sobre a ressurreição lá e como isso te ajudou
e te ajuda a lidar com a diabetes, por exemplo. Você não está negando
que existe uma pedagogia no mal ou no sofrimento.
Agora, é inegável que é difícil dizer onde está o amadurecimento numa
criança de seis anos que é abusada. Ou onde está o amadurecimento em
Auschwitz51. Não existe. É por isso que, no caso, esse argumento não con-
segue lidar com o problema. Você pode dar sentido e significado ao seu
sofrimento. O Piper e o Keller falam sobre isso. Muitas pessoas, em Aus-
chwitz, mantiveram a sua fé em Deus, enquanto que outras perderam.
Acho que só esse dado é suficiente para dizer que o mal é necessário
para o amadurecimento, mas não dá conta do problema.

51 O Campo de Concentração de Aushwitz ficou conhecido por ser o local de extermínio dos judeus
praticado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

151
GN: Perfeito. E é bom lembrar que essa didática do mal é certa para cren-
tes, mas e para descrentes? Provérbios vai falar de certos sofrimentos
que vêm e a pessoa sai pior, ela não sai melhor. E tem muito crente que
até, em certo sentido, em alguns sofrimentos sai pior e o ponto de Tiago
é “cuidado com a tentação no sofrimento, porque ao invés de você ser
provado você passa a ser tentado e pode cair nessa tentação”.

RB: Pausa para o grego. Vamos aproveitar que temos um especialista em


grego aqui na nossa aula. Existe uma confusão muito grande, porque as
palavras tentação e provação no grego, se não me falha a memória, são
a mesma, e é o contexto e as circunstâncias que vão determinar - pois
Deus não tenta ninguém, mas Deus prova. Que confusão é essa?

GN: Perfeito. A palavra peirasmós realmente é traduzida como tentação e


como provação, e a tentação em Tiago é algo sempre vindo do interno, que
promove um mal moral. Pode até ser provocado por questões externas,
como tentação do diabo, mas, no final das contas, isso vem de dentro.
A provação é algo que vem de fora. O ponto é: quando Deus me prova,
Ele me prova de coisas que eu não tenho o controle. A provação de Deus
é como a refinaria. Deus não nos prova para tirar o melhor de nós, isso é
mentira. Deus nos prova para produzir algo de bom em nós. Nos comer-
ciais de refrigerante vemos muito isso: “O sofrimento vai tirar o melhor de
você!” Não! O cristão sabe que, na verdade, Deus nos prova para promo-
ver o bem, para gerar algo bom em nós.
A tentação vai precisar do contexto para determinar, porque algumas tra-
duções traduzem provação ou tentação, mas, em Tiago, no início do verso,
vemos a palavra sendo traduzida como provação corretamente e, no final
- pela NVI, pela NVT - nós vemos tentação também corretamente. Deus
não é tentado por ninguém, no entanto, naquele contexto, eu entendo
que Tiago usou a mesma palavra para conceitos diferentes para dizer o
seguinte: você que é sofredor, tome cuidado, porque em toda provação
existem portas de tentação e você vai precisar de sabedoria para não
entrar nessas portas durante sua provação, porque, senão, você passa a
ser tentado e não provado.
O quinto ponto é: Deus está acima da lei. Nesse sentido, Deus pode fazer
algo mal e, ainda assim, chamar esse algo mal de bom. Ele não tem pro-

152
blema nenhum com isso. Ele está fora de qualquer legislação, o que é um
problema em termos teológicos. Os alunos da EBT devem ter tido alguma
aula sobre a santidade e a bondade de Deus e percebido que Deus não
age fora daquilo que Ele é. Dizer que Deus está acima da lei e Ele pode
chamar o mal de bem é contra o próprio caráter de Deus que é bondoso,
santo, amoroso, portanto, a quinta forma também é errada.
A sexta forma é dizer que Deus é apenas a causa indireta do mal. Essa
é outra teologia do avestruz. Deus é soberano, é poderoso, é bondoso,
é sábio, então, ele não tem nada a ver com isso. Ele até tem uma causa
meio indireta, mas esse é um grande problema também.

RB: Esse se mistura um pouquinho com a causa três, né?

GN: Isso. De alguma forma, Deus em sua imanência age de forma indi-
reta, mas na sua transcendência de forma direta. Existe isso, porém não
resolve. O ponto é esse. O sétimo é que os cristãos não têm o direito de
questionar a Deus. Aqui você tira o direito do lamento.

RB: Você joga fora os profetas e os Salmos.

GN: Exatamente.Vamos para uma abordagem bíblica. Eu listei alguns


pontos para não prolongarmos muito:
1. COISAS RUINS NÃO ACONTECEM COM PESSOAS BOAS; COISAS
BOAS E RUINS ACONTECEM COM PESSOAS MÁS.
Dentro de uma teologia cristã, aqui é o ponto de partida: “Todos peca-
ram, todos estão destituídos da glória de Deus.” Existem alguns pontos
que alguns podem questionar aqui, mas o ponto geral é que coisas ruins
não acontecem com pessoas boas. Nós já ouvimos muito dizer: “O cara
era tão bom...”, mas precisamos trazer para a discussão o problema do
pecado, porque, se não, fugimos da cosmovisão bíblica.

153
RB: Esse é o ponto, pois pega na questão emocional, porque, de fato, olha-
mos um bebê, uma criança, e não vemos maldade. Entretanto, a doutrina do
pecado, da depravação total, nos deixa claro que ninguém nasce zero quilô-
metro e, por isso, a questão emocional atrapalha o nosso pensar sobre esse
problema. A questão aqui não é justificar, mas entendermos as premissas.
2. O PROBLEMA DO MAL É UM ARGUMENTO PARA DEUS, NÃO CON-
TRA ELE. Esse é um argumento do C. S. Lewis.
“O meu argumento contra Deus era de que o universo parece ser muito
cruel e injusto. Mas de onde tirei esta ideia de justo e de injusto? Ninguém
diz que uma linha é torta de não tiver uma ideia do que seja uma linha reta.
Com o que eu comparava este universo quando o chamava de injusto?
Se todo o panorama fosse mau e absurdo de A a Z, por que eu, que sou
necessariamente parte do panorama, reagi violentamente contra ele? Nós
nos sentimos molhados se cairmos na água, porque não somos animais
aquáticos. Eu poderia naturalmente desfazer-me da minha ideia de justiça
dizendo que não era nada mais do que uma ideia pessoal minha, mas, se
o fizesse, então o meu argumento contra Deus também de desfaria, pois o
argumento dependeria da afirmação de que o mundo é realmente injusto
e não simplesmente de que não agrada às minhas ideias pessoais.”
A ideia do Lewis é muito simples. Quando eu falo que o mal existe, eu
preciso comparar isso com outro padrão, que é o padrão do bem, e a
grande questão é: quem determinou o bem? Por isso que, no final das
contas, o problema do mal é um argumento para Deus, porque, na hora
que um ímpio levanta a questão da injustiça, ele está comparando com o
que? Com que padrão universal a justiça?

RB: Inclusive, há alguém que o Keller cita que saiu da igreja por conta dessa
questão do mal e, ao mesmo tempo, volta por conta dessa questão. Lewis
mesmo volta por causa disso, quando ele começa a se questionar a partir de
qual padrão ele está julgando. Existe um padrão para além de nós. No fundo,
acaba apontando para Deus e não para a negação de Deus. Muito bom.

GN: Perfeito.
3. DEUS NÃO É OBRIGADO A EXPLICAR O PROBLEMA DO MAL A
NINGUÉM.
E aqui é muito importante termos isso em mente. Eu posso questionar a
Deus, mas Deus não é obrigado a me responder. Isso não significa que

154
não tem resposta, significa que a resposta não está ao meu alcance. Se
eu perguntar na sala do nosso aluno se tem pulga na sala dele, se tem
uma formiga, ele pode dizer que não tem, porque eu não estou vendo.
Na verdade, não está acessível ao meu olho. O fato de você não saber ou
não ter a resolução do problema não significa que ele não existe e Deus
não tem essa obrigação soberana de explicar esse problema.
4. DEUS (NÃO NOSSO SENSO DE JUSTIÇA) É O PADRÃO PARA O QUE
ELE FAZ.
Aqui é uma parte em que dói. Deus é o padrão final. Ele é o “bom” da his-
tória. Ele é o sábio. É ele quem pode dizer no final que aquela ação e tudo
o que foi orquestrado foi bom, sábio, justo e assim por diante. Ainda que
dizer isso doa, essa é a verdade: Deus é o padrão para o que ele faz, não
nosso senso de justiça.
5. DEUS ORDENA E CAUSA O MAL, MAS ELE NÃO PODE SER CULPA-
DO POR ISSO.

RB: Nesse ponto eu tenho muita dificuldade, mas não sei dizer outra coi-
sa. Isso é muito complicado.

GN: A relação de Deus com a humanidade é bem complexa, pois ele


se relaciona de forma imanente e transcendente e essa relação é muito
tensa. De alguma forma, a forma imanente de Deus se relacionar parece
ser daquele Deus que, de fato, tem uma relação com seres humanos limi-
tados, então, ele chora com eles, ele sente com eles. Essa é a relação de
imanência que Deus tem com a humanidade.
Por outro lado, é complexo, porque Deus também se relaciona de forma
transcendente. Nessa transcendência, as suas vontades últimas não são
explicadas, porque Deus é um ser diferente de nós, um ser totalmente ou-
tro - Barth. Ele é totalmente outro porque se relaciona conosco também de
forma mais complexa do que nós pensamos. Deus pode ordenar e causar,
o que não significa que Deus o fez, que Deus originou o mal, mas que Ele
usa e pode usar como ferramenta, no entanto, Ele não pode ser culpado.
Vemos na Bíblia, no caso de Jó, Deus usando ou ordenando, porém, de al-
guma forma, a Bíblia preserva a santidade de Deus. Difícil o ponto cinco, é
um ponto em que a tensão deve ficar. O caso de Jó é uma Teodiceia viva.

155
Deus, em Habacuque, levanta a questão de ele usar o mal. A grande ques-
tão é que, obviamente, nós não estamos falando aqui que Deus está en-
volvido em pecados, mas que ele está ordenando e orquestrando todas
as coisas. Esse é um ponto difícil.

RB: Eu acho tão difícil, porque, na minha limitação, ele acaba sendo cul-
pado, por causa da forma com que ele orquestra. É a famosa tensão res-
ponsabilidade humana e soberania divina. São tensões que não conse-
guimos resolver.

GN: É bom pensar que Deus não faz o mal, o homem tem a responsabi-
lidade de fazê-lo.

RB: Deus permite e, se ele permite, é porque, de alguma forma, ele tem
motivos - aos quais nós não temos acesso. Tenso!

GN: E aí eu mantenho a tensão. Por muito tempo, eu lutei pessoalmente


contra essa tensão, principalmente em momentos de crise teológica e crise
emocional. Eu li muito sobre Teodiceia. Foi o assunto que eu mais li, princi-
palmente John Feinberg no livro “A origem do mal”. É um livro pesado. A es-
posa dele vive em estado vegetativo há muito tempo, ele cuida dela, ela tem
uma doença muito rara e ele fez um livro sobre o problema do mal, é um
dos livros mais filosóficos que eu já vi na minha vida. Nesse livro, no final, ele
diz que mantém a tensão, mas eu não vejo no final como filosofia, eu já vejo
como clamor de uma mente inquieta, já deixa de ser uma mente resolvida.
Quando eu digo que mantenho a tensão, eu não digo que mantenho a
tensão quieta, eu mantenho a tensão inquieto. Isso é tensão, porque, se
não, vira acomodação. Ninguém está acomodado com o problema do mal.
6. O PROBLEMA LÓGICO DO MAL (INCLUINDO A PROVIDÊNCIA) EN-
VOLVE MISTÉRIO.
Aqui, eu uso a palavra mistério com muito cuidado, pois, por exemplo, eu
não gosto de muitos calvinistas que usam esse mistério como se fosse

156
uma bala de prata para muita coisa. Jó vai nos provar que, nesse assun-
to, existe uma quantidade de mistério absurda. E essa quantidade de
mistério nos coloca no nosso lugar: “Fica aí no seu lugar e deixa Deus ser
Deus”. Eu sei que, com relação a outros aspectos da salvação, isso pode
ter discussões, mas, na questão do problema do mal, eu não consigo
olhar como algo que não envolva algum tipo de mistério. E esse mistério
me faz dizer que é o problema, tem solução, mas essa solução não é reve-
lada a mim, e isso é mistério. Esse mistério me coloca no meu lugar como
criatura e diz, especificamente, quem é o criador da história.

RB: Deus não responde para Jó quando ele pergunta: “Cara, onde tu estavas?”.
7. DEUS USA O MAL PARA UM BEM MAIOR.
E aqui está Romanos, que fala que “todas as coisas para o bem”. Deus
está orquestrando algo para toda a Sua criação. Aqui tem muito de Jona-
than Edwards, é uma perspectiva bíblica. Deus está usando o mal.
RB: Tem o caso de José. Eu estava lendo o Keller e ele cita José. Foi mal,
os irmãos dele arquitetaram tudo aquilo, então, há uma responsabilidade
humana muito clara na história dele, mas tudo o que aconteceu com José,
no fundo, foi bom para o povo, em certa medida. Depois deu ruim, mas
naquele momento foi bom.
8. NÃO HOUVE PROBLEMA DO MAL ANTES DA QUEDA NEM HAVERÁ
UM NO ESTADO ETERNO.
Aqui, meu ponto é que, antes da queda, o homem era claramente muito
responsável por tudo aquilo que ele estava fazendo. É a questão do livre
arbítrio, ele tinha escolhas mais livres, porque ele não tinha ainda expe-
rimentado o mal. Não havia problema. A solução era simples: o homem
pode causar o problema, está aí a resposta. Hoje, depois da queda, tudo
se torna mais complexo. Antes, também se torna mais complexo, mas é
que antes da queda havia uma solução - e é onde entra um papel de um
livre arbítrio mais claro, mais livre, mais pontual para Adão.
9. DEUS USA O MAL NATURAL PARA ILUSTRAR QUÃO TERRÍVEL O
MAL MORAL REALMENTE É E A RESPOSTA CORRETA É O ARREPEN-
DIMENTO.
No texto de Lucas, ele fala das catástrofes que haviam acontecido e logo
depois ele fala daqueles soldados, daquelas pessoas que foram mortas
por Pilatos. Ele faz uma relação entre aquilo que é natural e aquilo que
é moral. Ele fala: “Se vocês não se arrependerem, isso também vai cair

157
sobre vocês.” Ele está usando, de alguma forma, algo natural que estava
acontecendo para dar exemplo do mal moral. O C. S. Lewis tem um livro
clássico sobre o assunto - “O problema do sofrimento” - no qual ele vai
falar aquela frase clássica sobre o assunto: “O mal é o megafone de Deus
para um mundo surdo.” E isso vai envolver não só o mal natural, mas todo
o tipo de mal. É como se fosse um tipo de megafone de Deus.
RB: Galera, a Thomas Nelson lançou “O problema da dor”52, conhecido
como “O problema do sofrimento”. Ela colocou como “O problema da dor”.
10. O PROBLEMA MAIS SIGNIFICATIVO DO MAL É A CRUZ.
Na cruz, nós temos realmente o bom e o bem, nós temos o homem sábio,
nós temos o homem sem pecado, nós temos o justo, nós temos aquele
que não merecia nada. E lá está o problema mais significativo: por que,
como homem, Deus morreu por pecadores como nós? Então, por mais
que o problema do mal viva em tensão, o cristão tem uma tensão maior,
uma tensão mais significativa. Se ele não mantiver essas duas tensões,
ele entra em uma crise difícil de enfrentar. O meu conselho para os alu-
nos de teologia é nunca esquecerem que, ao lado da tensão do problema
do mal, existe o problema da cruz. Deus morreu. Jesus morreu por peca-
dores como nós.
Vamos entrar, agora, no problema emocional, que, para mim, é o proble-
ma primordial, como discutimos no início, pois percebe-se que, no pro-
blema lógico, não temos solução. O meu conselho foi seguir o que o Apo-
calipsismo ensinava que era a tensão, e sentir essa tensão é necessário
para termos o equilíbrio para enfrentarmos os problemas reais.
Para mim, o problema primordial é o emocional, e eu tenho algumas coi-
sas para falar desse problema emocional que são: não diga e não faça
certas coisas e diga e faça certas coisas.
Algumas pessoas pensam que se pode comparar o sofrimento. O que
existe de crente pecando no sofrimento dos outros não é brincadeira! Jó
é um paradigma. Os amigos de Jó se tornam um paradigma fácil. Algumas
pessoas gostam de fazer guerras de sofrimento.
RB: É como você chegar em um velório e dizer para alguém que perdeu
um parente para o Covid: “Eu sei a dor que você está sentindo. Você per-
deu só a sua mãe, eu perdi meu pai, minha mãe e meu irmão.”.

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158
GN: A Bíblia nos ensina a dizer algumas coisas, é importante proteger
nossos irmãos ou lutar para proteger nossos irmãos no luto, porque no
luto não existe pausa de pecado. No luto, não existe pausa de diabo.
Então, temos que estar ali com nossos irmãos, protegendo-os no luto,
orando, chorando com eles, guiando o luto deles em oração, em com-
panheirismo, em presença. Tudo isso é uma maneira de enfrentarmos
o problema emocional do mal. Agora, o que dizer, o que falar, isso vai
depender de muita sabedoria e das circunstâncias, porque, às vezes, o
silêncio vai dizer o que é necessário. Então, cuidado para não dizer ou
fazer certas coisas. Diga e faça o que tem que ser feito: presença.
Pregar em velórios é sempre uma tensão para um pastor. Há pouco tem-
po, eu fiz dois velórios em uma semana, foram de parentes de irmãos de
nossa igreja. Os dois perderam as mães. A diferença era que uma mãe
era crente e a outra não era.
No velório da descrente, era nítida a dor do irmão quando eu o abracei.
Ele me perguntou se eu iria falar alguma coisa e eu disse que sim. Na-
quele momento, eu lembrei para eles o quanto Deus tinha sido gracioso
de ter os permitido viver tanto tempo com a mãe deles e desfrutarem de
momentos maravilhosos. Então, eu olhei para os que estavam lá e disse:
“Deus quer uma alegria muito maior para vocês.” E eu preguei o evange-
lho para eles. Eu entendi que aquele não era o momento para falar que,
se eles não se arrependessem, iriam para o inferno.
No velório da crente, louvaram hinos, foi uma alegria, um negócio estra-
nho, mas eu já estive em velórios de crentes que foram muito dolorosos.
Porém, nesse eu pude falar da esperança do cristão.
Então, é difícil determinar o que falar em um problema emocional. O meu
conselho é aprender, primeiramente, a ficar calado e saber que o calor
da presença às vezes é muito mais importante do que o discurso da fala.

RB: O meu amigo é pastor de uma paróquia em que um casal perdeu


os três filhos eletrocutados. Foi um caso que repercutiu no Brasil inteiro.
Essa mãe perguntou mesmo: “Por que Deus permitiu que isso aconte-
cesse, que meus três filhos morreram eletrocutados?” Ali não era hora de
discutir Teodiceia ou discutir as questões lógicas, era hora de chorar jun-
to mesmo. Tanto que meu amigo não conseguiu fazer o culto fúnebre, ele
teve que chamar um pastor sinodal para fazer, porque ele é pai também.
Você vê que a fé do casal ficou abalada. Essa é a hora de respeitar a dor.

159
Claro que ele teve que fazer uma pequena intervenção teológica de leve,
pois, como virou um caso nacional, outras religiões vieram para cima.
Existe uma determinada religião brasileira que promete o contato com os
mortos e, como o casal estava muito abalado, começaram a dizer que po-
deriam fazer contato com os filhos deles. Então, o pastor teve que fazer
uma pequena intervenção um tempo depois. Ele deu uma racionalizada
para que eles não se perdessem, mas, ainda assim, você tem que enten-
der a dor. É complicado. Eu achei muito legal o que você disse, eu nunca
havia parado para pensar, mesmo no momento de crise e de dor, o peca-
do e o diabo não ficam sossegados. É cruel dizer isso, mas é verdadeiro.

GN: Verdade. Um segundo livro muito importante que eu li sobre o pro-


blema do sofrimento foi do C. S. Lewis: “Anatomia de uma dor – um luto
em observação”53, que foi um livro pós problema do mal.

RB: Esse livro é um em que o C. S. Lewis dá quase uma derrapada, né?


Não foi nesse que ele refletiu sobre a morte da Joy, esposa dele? Mas me
conta desse livro que você leu.

GN: Em uma parte, ele diz que Deus fechou a porta na cara dele, ele la-
menta. O que me chama a atenção naquele livro é o poder do lamento.
Foi um lamento muito profundo, um lamento real, digno de ser escrito,
mas tem um momento que ele fala: “Eu sempre pensei que a minha fé
era um castelo, que era forte, mas eu descobri que, na verdade, a minha
fé era um castelo de cartas e a única forma de saber disto foi o Senhor
derrubando esse castelo.”
Naquele momento, ele começou a entender a dor dele. Quem tem luto
não entende toda dor, a dor geral. Quem tem luto enfrenta a dor do la-
mento como Lewis, que, no final do livro, quase pede perdão a Deus por
algumas falas. Ele entendeu a dor dele que às vezes vai ser inexplicável
para todos.

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160
Quando minha esposa estava perdendo o nosso bebê, ela ficou em silên-
cio, chorava muito, mas depois ela disse para mim que havia encontrado
uma paz muito grande. Eu não estava em paz. Eu me perguntei por que
eu não estava com aquela paz. E será que se ela me explicasse o que
aconteceu com ela eu teria a mesma paz? Não, porque a experiência dela
de consolo foi dela. Portanto, temos que entender que nem sempre o
consolo vai ser transferível, ainda que alguns sejam. Deus me consolou,
eu consolo os outros, mas, às vezes, na dor, o consolo é só para aquilo, é
específico, para aquele que entendeu a sua dor, o seu luto. Terminando,
então, para mim, o problema do mal é um exercício:
1. UM EXERCÍCIO DE REVERÊNCIA, porque eu reconheço que Deus sabe
de todas as coisas, ainda que eu não saiba. Ele é soberano.
2. UM EXERCÍCIO DE CONFIANÇA, porque eu reconheço que ele cuida de
mim em todos os processos e está cuidando de tudo.
3. UM EXERCÍCIO DE HUMILDADE, de reconhecer que eu não vou conhe-
cer tudo, eu não sei de tudo e tem coisas que nunca irei entender.
Aqui, eu quero deixar uma reflexão em Jó. Jó fez várias perguntas a Deus du-
rante o seu sofrimento, mas uma das que mais se repetem no seu livro é:
“Eu quero ter um contato contigo. Eu quero conversar contigo. Eu quero uma
audiência com o Senhor.” Ele faz isso mais ou menos uma sete vezes, usa até
um verbo bem específico para falar isso, porém, quando ele tem uma oportu-
nidade da audiência dele, ele diz: “Ponho a minha mão na boca e fico calado.”
E, às vezes, as pessoas dizem pra mim: “Pastor, será que lá no céu vamos
ter todas as respostas?”. Eu sempre digo que, para mim, nós não vamos
nem mais querer saber das perguntas, porque, quando chegarmos lá,
nossas perguntas não vão mais ter sentido diante de quem Deus é.

RB: Em “O grande divórcio”, de C. S. Lewis54 explica essa ideia. Queira


ou não, a resposta de Deus para o mal foi a cruz, o nosso Deus sofre. O
nosso Deus experimentou o mal e nós temos essa esperança, que para
muitos é história da carochinha por promessas futuras enquanto a dor
é aqui, real e agora. Para essa dor, nós não temos nenhuma resposta
pronta. Nós acreditamos na ressurreição que é o carimbo de Deus que
venceu a morte, venceu toda a dor.

54 Disponível para compra: https://amzn.to/3gcvFiw

161
Perguntam o que essa esperança futura resolve agora. Talvez uma pes-
soa que sofreu uma grande tragédia viva com trauma para o resto da
vida, tendo que se tratar, experimentando o amor dos irmãos da igreja,
isso pode melhorar. Mas talvez ela continue com um fantasma dentro
dela para o resto da vida. Agora, eu gosto da forma como o Lewis respon-
de isso, dizendo que, quando nós estivermos no céu, a alegria de estar
no céu - que é quando você diz que as perguntas irão sumir - vai agir de
forma retroativa no sentido de que a pessoa não vai ter essa sensação
de que sua vida foi marcada por dor, sofrimento. Ela não vai se esquecer
disso, porém, a alegria de estar na presença do criador, no novo céu e
nova terra, vai ser tão grande que vai agir de forma retroativa. A sensação
que teremos na eternidade é de que nós sempre estivemos na eternida-
de e, da mesma forma, a maldade também. O Lewis brinca com os três
destinos. Existe o purgatório e quem estiver no inferno vai ter a sensação
de que a vida sempre foi um inferno. Acho muito legal quando o Lewis
explica que a eternidade vai agir de forma retroativa, isso realmente é um
consolo.

GN: Eu vou terminar, então, com o livro de poesia do Carson. Nesse livro
ele diz o seguinte: “Senhor Deus dos exércitos! Na adoração ao redor do
seu trono, as perguntas que uma vez foram nosso clamor dão lugar a
uma reverência silenciosa somente.”
É o silêncio doxológico, o silêncio que adora, o silêncio da reverência, da
confiança, da humildade. É o silêncio de Jó que põe a mão na boca. Aqui,
termino essa aula sobre o problema do mal.

RB: Muito bom. Gui, muito obrigado por compartilhar conosco um pouco
dessa questão. Quero que você nos indique alguma coisa para podermos
pensar um pouco sobre o tema.
Eu indico “Caminhando com Deus em meio a dor e o sofrimento”55 do Tim
Keller. É um livro com tons pastorais e teológicos, filosóficos. Inclusive, o
Keller ainda dá uma instrução de como ler o livro. Até podemos pular a

55 Disponível para compra: https://amzn.to/3EOjjY5

162
parte mais teórica e ir para uma parte mais pastoral. Em síntese, Keller vai
dizer que Jesus é a resposta de Deus para o mal.
No livro “Fé na era do ceticismo”56, tem um capítulo sobre o problema do
mal que é mais curto. Tem “O mal e a justiça de Deus”57 de N. T. Wright
também, da Editora Ultimato.

GN: Eu adicionaria, do C. S. Lewis, “O problema da dor” e o “A anatomia de


um luto”, da Thomas Nelson.

RB: Mas é o seguinte, um disclaimer aqui. Não são fáceis de ler. “O pro-
blema do sofrimento”, que agora ganhou o nome “Anatomia da dor”, eu
cheguei ao meio com a cabeça já fritando. O do luto eu nunca li, eu não
sei se é um pouquinho mais fácil ou é também filosófico pesado.

GN: Ele é um livro excelente. Eu vou indicar algo bem específico aqui, na
Sistemática de Robert D. Culver58 - uma sistemática que eu sempre estou
indicando - tem um capítulo sobre a Teodiceia em que ele junta as pergun-
tas de alguns alunos dele, isso eu acho que paga o livro, o livro é gigante.

RB: É bem grande mesmo. A El Shaddai me mandou por indicação sua.


O capítulo da Teodiceia tem questões bem pastorais também. Aliás,
gente, toda Teologia Sistemática vai abordar esse tema. Se você quiser
comprar essa do Culver, é da Shedd Publicações, é show de bola. Mas, nas
Sistemáticas que eu já indiquei aqui no curso, tem um capítulo sobre o
problema do mal, porque, de fato, é um tema moderno, antigo, é um tema
que diz respeito à teologia e à trindade. Muito bom, Gui. Obrigado mano,
por mais esse tempo juntos aqui, por compartilhar esse conhecimento.

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163
Para você que assistiu a essa aula, o slide que o Gui apresentou está
disponível aqui, como material complementar, para você baixar, e tem os
livros também para você poder se aprofundar.
Se você tem o The Pilgrim, que é um App de audiobooks, o “Caminhando
com Deus em meio à dor e ao sofrimento” tem lá, tanto em e-book quan-
to em áudio livro. Eu escutei o e-book, muito legal.
Aliás, essa é a vantagem do The Pilgrim, tem muito e-book lá. E quando
você estiver vendo essa aula talvez já tenha a versão para computador.
Nós também disponibilizamos para vocês, junto com essa aula, um PDF,
ou seja, um livro, um e-book gratuito sobre o problema do mal. Ou seja,
já está incluso para você que paga esse curso. Tem Jonas Madureira, Igor
Miguel, Alexandre Miglioranza, eu e não lembro mais quem. Nós pega-
mos dois podcasts do Bibotalk.com, transcrevemos, adicionamos algu-
mas coisas e estamos disponibilizando diagramado, revisado, adaptado
para texto, trinta e poucas páginas para você poder pensar um pouco
mais sobre esse tema que é a Teodiceia, ou o problema do mal. Aproveita
que faz parte, você tem direito a isso. No e-book nós falamos da questão
do lamento. É a fé que transforma a murmuração em lamento.
Galera, o Guilherme e o Yago têm um curso de grego e hebraico. Se você
quer aprender grego do Novo Testamento, procure o Guilherme na rede
social dele para ver quando abrem as inscrições para a próxima turma. É
isso, Gui, obrigado pelo teu tempo.

GN: Pode contar comigo sempre!

RB: Galera, estamos juntos aqui na EBT e vamos para a última aula do
módulo sobre Deus!

164
AULA 17
DEUS É PAI

Muito bem, sejam bem vindos à última aula do módulo Deus, aqui na EBT, Es-
cola Bibotalk de Teologia. Eu sou Rodrigo Bibo e a última aula é sobre a paternidade
divina. Nós já exploramos um pouco esse tema sobre a paternidade de Deus, quando
falamos se Deus é uma pessoa do sexo masculino. Eu abordei um pouco sobre a pa-
ternidade divina. Volte na “Aula 03”, onde afirmo que Deus não tem um sexo, Deus não
é feminino nem masculino, Deus é divino, Deus é Deus.
Agora, é interessante falarmos sobre a paternidade divina, é assim que a Bíblia
Sagrada apresenta Deus, principalmente no Novo Testamento. Enquanto Deus é cha-
mado de Pai, provavelmente por volta de quinze vezes no Antigo Testamento, Ele é
chamado mais de duzentas e poucas vezes de Pai no Novo Testamento.
Então, isso é inegável, Deus é apresentado como Pai na Bíblia Sagrada. Uma das
características divinas, um dos aspectos do ser de Deus é a Sua paternidade. Isso está li-
gado, inclusive, com a doutrina da Trindade, Deus é Pai porque tem um Filho que é igual
em essência. Essa característica de que Deus é Pai, Ele é um ser Trino, e a característica
do Pai é ser Pai, porque tem um Filho. O Filho e o Pai subsistem desde a eternidade. Ob-
viamente que o Pai gera o Filho na eternidade. Como se explica isso ninguém sabe, mas
é assim que a tradição cristã entende. O Pai gera o Filho, por isso que Ele é Pai.
O Evangelho de João vai bater muito nessa tecla, então a Bíblia apresenta Deus
como Pai. Apesar de Deus ter características maternas: “Ele é a galinha que acolhe Israel,
tem o consolo da mãe”. Existem aspectos maternos na pessoa de Deus, pelo menos, uns
três ou quatro exemplos na Bíblia Sagrada, em que Deus tem aspectos maternos, mas
somente como Pai, que Ele é apresentado de forma exaustiva. Como eu falei, quinze
vezes no Antigo Testamento e mais de duzentas e trinta vezes no Novo Testamento.
Uma curiosidade ou um aspecto interessante da doutrina da paternidade divina,
de Deus como Pai, é que, segundo o Alan Myatt, na sua Teologia Sistemática59, você
não encontra esse aspecto da paternidade divina da figura, do criador, do soberano
de Deus como Pai em outras religiões. É um aspecto muito distintivo da fé judaico-cris-
tã essa ideia de um Deus pessoal que é Pai.

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165
Você tem em outras religiões até as divindades, só que são divindades finitas,
que podem morrer, de certa forma. Você encontra divindades que até possuem um
filho, como, por exemplo Zeus, que desce na terra e gera Hercules. Temos essa ca-
racterística de divindades que fazem filhos, algo diferente do que nós temos na Bíblia
Sagrada.
A Bíblia Sagrada tem uma série de aspectos distintivos, como podemos ver na
aula sobre Deus Criador com o grande Paulo Won. Enquanto o ser humano é apenas
escravo dos deuses nas outras cosmogonias, na Bíblia Sagrada ele é um parceiro de
Deus. Ele é criação, só que, ele é criação colocada em um lugar de destaque, ele é a
coroa dessa criação. Só ele é imago dei, só ele é imagem e semelhança de Deus, per-
cebemos em Gênesis, com o primeiro casal, uma relação ativa da humanidade com
Deus, uma relação de afetividade.
No Antigo Testamento, percebam, é um distintivo da fé judaico-cristã essa ideia
de Deus como um Pai, e é legal esse termo Pai mesmo, essa ideia de Deus como Pai,
porque passa bem essa concepção de uma proximidade, de uma intimidade, de um
cuidado, de uma repreensão, tanto que no Antigo Testamento essa ideia de Deus
como Pai, está muito ligada à eleição do povo, ou seja, quem é filho de Deus no Antigo
Testamento? É o povo.
No Antigo Testamento essa pessoalidade para um indivíduo não é latente. As
vezes em que Deus é tratado como Pai diz respeito a Deus como Pai do povo, então é
uma paternidade muito ligada à eleição do povo de Israel.
No Antigo Testamento, Deus aparece como Pai, aproximadamente quinze vezes
e, tirando Provérbios e outra passagem que não recordo, geralmente está ligado à
relação de Deus com o povo, o Deus criador, que é o Deus libertador. Deus vai mani-
festando uma série de características Suas para o povo de Israel. O povo de Israel vai
conhecendo várias facetas de Deus, ao longo da sua história, conforme a revelação vai
acontecendo.
Yahweh é o povo desse Pai, inclusive, segundo diz Alan Myatt, nós temos a pri-
meira menção explícita da paternidade de Deus em relação à eleição de Israel, em
Êxodo 4:22 e 23: “Dirás a faraó, assim diz o Senhor, Israel é meu filho, meu primogê-
nito.” E aqui essa ideia da primogenitura. É algo muito forte. Ser o primogênito indica
esse contato, é algo muito importante para a família, principalmente se for homem,
porque dá continuidade à família. Então, quando Deus diz que Israel é filho, é primogê-
nito, dá um ar de realmente ser especial. Tanto que uma das pragas que Deus manda
para o Egito é a praga da morte dos primogênitos: “O lugar do filho primogênito não
pode ser subestimado na cultura do Antigo Oriente Médio, ele seria o herdeiro de
tudo o que era de seu pai, todas as bênçãos e bens seriam do primogênito.” É um
lugar de privilégio, então Israel tem essa noção de que é primogênito do Deus criador
e isso é uma consciência que gera uma identidade muito interessante que já vai sendo
desenvolvida em todo o Antigo Testamento e isso é excepcional.
Nós temos outras passagens como em Deuteronômio, por exemplo, “Mais tarde
em seu cântico (o cântico de Moisés) ele disse ao povo de Israel: Não, Ele é teu Pai
que te adquiriu, te fez e te estabeleceu.” Vemos em várias passagens já do pentateu-
co, essa ideia de propriedade, ou seja, ele é um povo que é propriedade exclusiva de

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Deus, e também é primogênito. Ao mesmo tempo em que ele tem tudo o que o Pai
tem, ele também é uma propriedade do próprio Pai. A paternidade de Deus no Antigo
Testamento está ligada à aliança que Ele tem com esse povo. Oséias vai dizer muito
claro “Vós sois filhos de Deus.”
Resumindo, o aspecto da paternidade divina no Antigo Testamento está muito
ligado à questão da pluralidade, ou seja, do povo. No Novo Testamento obviamente
isso fica muito mais claro, estou usando essa Sistemática do Alan Myatt e do Flanklin
Ferreira. Essa Sistemática é muito conhecida como sendo do Franklin Ferreira aqui no
Brasil, mas ela é sobremaneira, a maior parte dela é escrita por Alan Myatt, um ameri-
cano que mora no Brasil, um crânio, inteligentíssimo, professor da FABAPAR.

Camila: Qual a diferença entre pesquisador e teólogo?

Bibo: Tecnicamente todos nós somos teólogos. O Franklin Ferreira não


desenvolve nenhuma teologia, ele é um pesquisador, ele traz dados. O
Alan Myatt já tem mais reflexões próprias, até porque ele é teólogo há
mais tempo, é mais velho, já tem mais chão, tem mais estrada. É nesse
sentido. Tecnicamente nem o Alan Myatt é um teólogo, porque eu não
lembro se ele criou alguma teologia, porque há essa disputa na Academia
que teólogo é quem criou uma teologia. Por exemplo, o Pannenberg é
um teólogo, porque fez uma associação de fé e história, mas, a grosso
modo, todos nós somos teólogos. Mas o Alan Myatt traz muitas reflexões,
dialoga com as fontes e, a partir disso, constrói um pensamento. Franklin
Ferreira é um pesquisador da história da igreja, basicamente isso, e é
alguém que está em desenvolvimento. Ele teve mudança de teologia re-
cente, aliás, eu quero acompanhar mais ou menos de perto como será o
livro dele sobre o Amor a Sião porque ele está destoando do “my stream”
reformado. Agora o Franklin Ferreira tem posições bem diferentes do Au-
gustus Nicodemus no que tange a Igreja e Israel, por exemplo.
Voltando para a paternidade divina no Novo Testamento. Em todos os
evangelhos fica latente que Jesus Cristo se entendia como o Filho do Pai,
Ele se entendia como alguém que era um com o Pai.
A paternidade divina vai ficar muito clara no evangelho de João. Vamos
ler aqui na versão A Mensagem: “Antes de tudo, havia a Palavra, a Palavra
presente em Deus, Deus presente na palavra. A palavra era Deus. Desde
o princípio à disposição de Deus. Tudo foi criado por meio Dele; nada -
nada mesmo! - veio a existir sem Ele. O que veio à existência foi a Vida, e
a Vida era Luz pela qual se devia viver. A Luz da Vida brilhou nas trevas;

167
as trevas nada puderam fazer contra a Luz.” No versículo 14: “A palavra
tornou-se carne e sangue, e veio viver perto de nós. Nós vimos a Sua
Glória com nossos olhos, uma glória única: o Filho é como o Pai, sempre
generoso, autêntico do início ao fim. João apontou para Ele e disse: Esse é
o Messias! O Messias que eu afirmei que viria depois de mim, mas de fato
é superior a mim.” Aí depois: “Todos sempre vivemos sua generosidade
recebendo dádivas uma após outra.” E por aí ele vai. “Ninguém jamais viu
a Deus...”
O evangelho de João deixa bem claro que Jesus é a Palavra, e a Palavra
estava com o Pai e a Palavra é o Pai, ou seja, tem uma relação com o Pai
e é uma relação contínua. A construção grega de João, capítulo 1 aponta
para uma relação contínua, não é uma coisa estática ou que aconteceu.
É muito clara essa ideia de Jesus que é Deus, mas é diferente de Deus.
Então nós temos uma questão trinitária aqui. Aliás, tem um livro sobre a
trindade do Andreas Kostenberger, “O Pai, Filho e Espírito – a Trindade e
o evangelho de João”, que fala muito sobre essa relação Pai e Filho.
No evangelho de João 41 vezes Jesus é chamado de Filho. Às vezes Jesus
é chamado de filho de José também e também é filho de Maria, o Filho
é unigênito, Ele é igual ao Pai, é um Filho sem igual. Interessante que o
evangelho de João deixa claro, pelo menos a partir de uma tradição e de
uma compreensão mais tradicional, que Jesus Cristo é o filho sem igual
do Pai, por meio de quem nós somos adotados e no evangelho de João
essa adoção acontece por meio de Cristo, se mantém através da obedi-
ência a esse Cristo, então, no evangelho de João, segundo uma compre-
ensão mais tradicional nem todos são filhos de Deus, mas aqueles que
estão em Cristo e obedecem aos Seus mandamentos.
Isso é até meio contracultural, pois nós vivemos em uma sociedade em
que todos querem ser filhos de Deus, em que todos se consideram fi-
lhos de Deus. Mas não. As obras das pessoas revelam quem elas são
filhas. Isso é muito forte no evangelho de João, porque para os fariseus
e mestres que enganam, por exemplo o ladrão que vem matar roubar
e destruir é a liderança que enganava o povo, então eles são filhos do
diabo. Inclusive João curte essa ideia de filhos do diabo, de deixar bem
claro mesmo “Quem pratica o pecado é filho do diabo” ele vai dizer na sua
primeira carta (1ª João 3:8). “Quem vive na prática do pecado é do diabo.”
“O diabo é o pai da mentira.”
Um cara me perguntou agora na caixinha do Instagram: “Bibo, sou ad-
vogado e, às vezes, preciso mentir para proteger o meu cliente. Isso é
pecado?” Então é! Interessante que no evangelho de João, em todos os
evangelhos vemos essa relação de Jesus com o Pai, o Pai santifica o Filho,

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o Pai envia o Filho, o Filho veio dar a vida pelas ovelhas em obediência ao
Pai, é o Pai que acrescenta as ovelhas ao Filho, enfim, temos uma série
de textos que vão deixar muito clara essa relação estreita e que nós par-
ticipamos dessa relação como filhos adotados por meio de Jesus Cristo.
Eu quero enfatizar a frase que o Alan Myatt e Franklin Ferreira colocam
“As obras das pessoas revelam quem é o seu Pai.” E isso, gente, é muito
forte porque isso chama ao discipulado. “Eu sou filho de Deus.” Então aja
como tal. E isso nos pega no calcanhar às vezes porque eu manifesto de
quem eu sou filho por meio de minhas obras. É por isso que em João 15
vai se bater tanto nessa tecla: “Quem me ama, obedece aos Meus man-
damentos.”
Nas epístolas vamos ver isso muito claro: paternidade divina, senhorio
de Deus, inclusive eles citam aqui: “A paternidade de Deus como senho-
rio: A Elaboração constante de pater (que significa pai) ao vincular isso a
theòs (ou seja Deus Pai), deixa nítido que a paternidade de Deus significa
soberania. A vontade do Pai que determina todas as coisas do trabalho
da salvação, mostra que Ele reina. No testemunho dos apóstolos as de-
clarações relativas ao domínio divino são combinadas com essa palavra.
A eleição feita pelo Pai é o Seu predomínio sobre a comunidade. A ação
de Graça sempre por todas as coisas é tornada possível pelo poder Dele
que controla e governa todas as coisas.”
Vamos ler Romanos 8:12 que ajuda a pensarmos em quem é Filho de
Deus.
Tem uma questão missiológica ali, eu lembro muito de Paulo Junior Bor-
ges, ele chama todo mundo de irmão, a prostituta é irmã, traficante é
irmão, o agiota é irmão e eu já o questionei sobre isso, porque, segundo
a Bíblia e o entendimento mais tradicional, só é irmão quem obedece ao
Pai, aí ele fala que quando chama um incrédulo de irmão ele já chama no
sentido escatológico, ou seja, ele vai evangelizar, ele já considera da fa-
mília no sentido escatológico. Essa pessoa não está ainda nessa posição,
mas eu já a considero em nome de Jesus. É bacana, é bonito, não sei se
eu concordo. Obviamente que se eu estou conversando com alguém no
evangelismo e a pessoa diz que é filha de Deus, eu não vou ficar discu-
tindo com ela e dizer que ela é filha do diabo, eu vou considerá-la como
minha irmã, mas eu vou trabalhar para que essa pessoa realmente viva
como filha.
Romanos 8:14 é um texto bastante emblemático. Eu vou ler a partir do
12, porque testifica bem essa ideia de que é filho de Deus é quem obe-
dece ao Pai: “Portanto, irmãos, vocês não têm de fazer o que a natureza
humana lhes pede, porque, se viverem de acordo com as exigências dela,

169
morrerão. Se, contudo, pelo poder do espírito, fizerem morrer as obras
do corpo, viverão, porque todos que são guiados pelo espírito de Deus
são filhos de Deus.” Então percebam que aqui há de novo uma condição:
quem é filho de Deus vai ser guiado pelo Espírito de Deus. “Pois vocês
não receberam um espírito que os torne de novo escravos medrosos,
mas o Espírito de Deus que os adotou como próprios filhos. Agora nós
chamamos Aba Pai, pois o Seu Espírito confirma ao nosso espírito que
somos filhos de Deus. Se somos Seus filhos, então somos Seus herdeiros
e, portanto, co-herdeiros com Cristo. Se, de fato, participarmos de Seu
sofrimento participaremos também de Sua Glória.” E participar do sofri-
mento de Cristo é o testemunho. Participar do sofrimento de Cristo é,
“Assim como o mundo me perseguiu, vão perseguir vocês.” Participar do
sofrimento de Cristo é participar dessa obra que Cristo veio fazer que foi
glorificar o Pai, ou seja, cumprir a Sua missão, anunciar a chegada do rei-
no de Deus. O momento de maior glória de Jesus foi o momento em que
Ele está indo para a cruz e diz: “Pai, glorifica agora o Teu nome.” “Quem
quiser vir após mim, tome sua cruz e siga-me.” Isso significa ser filho de
Deus.
“E foram ter com ele sua mãe e seus irmãos, e não podiam aproximar-se
dele, por causa da multidão. E foi-lhe dito: Estão lá fora tua mãe e teus
irmãos, que querem ver-te.
Mas, respondendo ele, disse-lhes: Minha mãe e meus irmãos são aqueles
que ouvem a palavra de Deus e a executam.” (Lucas 8:19-21). Perfeito
Jacob!
Então percebemos que têm vários momentos no Novo Testamento, e
isso reflete também a teologia do Antigo Testamento: é filho de Deus
quem pertence ao Seu povo. E aqui independente se você é calvinista,
se é arminiano, Luterano, enfim, não importa, pertence ao povo de Deus
quem é eleito. Eleito é aquele que está em Cristo. Não importa se eu
cheguei a Cristo por minha fé no sentido de uma livre agência, se eu fui
eleito, pincelado a dedo, o fato é que eu pertenço ao povo eleito e eu
sei que eu pertenço a esse povo eleito porque eu obedeço aos manda-
mentos, porque eu tenho uma convicção interna de que eu sou filho de
Deus, o Espírito testifica com o meu espírito que eu sou filho de Deus.
Essa testificação vai me levar para a comunidade, essa testificação vai me
levar a uma vida de devoção, essa testificação vai me levar a uma vida de
obediência.
Tem outro aspecto interessante da paternidade divina que essa testifi-
cação, e é aí que pega para a galera que quer ser filha de Deus, mas
quer viver de qualquer forma, quem é filho de Deus é disciplinado por

170
Deus. Hebreus 12:6,7 vai deixar bem claro que Deus disciplina aqueles
que Ele ama, “Porque o Senhor açoita a todo filho a quem recebe”. A pa-
lavra açoitar aqui, obviamente, remete a escravidão, a uma parada muito
complicada, mas o termo grego mastígio, segundo Alan Myatt, é castigar
com o propósito de corrigir. Então, sim, Deus disciplina, Ele castiga quem
Ele ama.
Mike Tyson falou uma frase muito legal, que eu não sei se é dele, que é
assim “Quando Deus quer te punir Ele te dá tudo.” Eu lembrei de Jaime
Kemp, nos seus clássicos retiros e seminários para jovens falando sobre
namoro, noivado, sexo e casamento, é incrível, ginásio cheio, 1.500 jovens
por quatro horas ali grudado naquele homem e ele falou em uma dessas
palestras algo que me marcou muito e eu levei para a vida: “Quer tornar o
seu filho um delinquente? Dê tudo o que ele quer.” E isso é muito verda-
de em relação a Deus. “Repreendo e disciplino aqueles que eu amo, por
isso seja diligente e arrependa-se”. Apocalipse 3:19 (Jesus falando para
Laodicéia).
Esse ponto aqui é muito importante, disciplina não é punição pelos peca-
dos no sentido de expiação. Você fez um pecado, daí acontece uma coisa
muito ruim na sua vida e você pensa que é Deus pesando a Sua mão,
Deus te disciplinando, porque você fez coisa errada. E nós temos até um
alívio quando tem aquela disciplina achando que estamos expiando os
nossos pecados. Não é assim que funciona,. A punição é uma correção
para acertarmos o caminho. A salvação não se perde assim. Deus não
está nos punindo o tempo todo conforme o pecado que praticamos. É
claro que pecados têm consequência, nós plantamos e colhemos, mas a
disciplina para um filho de Deus faz parte do amor de Deus. E, obviamen-
te, que a disciplina também faz parte daquele que não é filho de Deus,
Deus os disciplina e tem a disciplina eterna que é a perdição. “O amor do
Pai para com seus filhos adotados exige que Ele faça tudo para promo-
ver o crescimento espiritual.” Na Bíblia fica muito claro que nós temos o
Espírito Santo que nos leva a Cristo, que nos adota, que nos entrega esse
Pai maravilhoso.
Lutero vai falar que Jesus Cristo é o espelho do coração paterno de Deus.
É muito importante nós termos essa consciência de que Deus é nosso
Pai, inclusive o J. I. Packer diz “Se quisermos julgar até que ponto uma pes-
soa entendeu o que é o cristianismo, descubra que valor ela dá ao fato
de ser filha de Deus, de ter a Deus como Pai. Se esse pensamento não
dominar e controlar as suas ações, oração, adoração e toda a sua atitude
perante a vida, isso quer dizer que não entendeu bem o cristianismo.”
(Sistemática do Myatt, página 244). E aí ele vai dizer que o nome de Deus

171
no Novo Testamento é Pai e isso é maravilhoso porque temos no Antigo
Testamento Deus tendo um monte de nome. No Novo Testamento só
tem Pai. Então Pai é o nome de Deus no Novo Testamento.
Uma coisa interessante e com isso eu encerro: Deus cuida, então, em vários
momentos essa paternidade divina vai mostrar um cuidado do Pai, esse
cuidado que se manifesta no zelo, na provisão, no milagre, na correção, na
disciplina, em tudo o amor Dele para conosco, e isso é fundamental.
É interessante que das 245 vezes que Deus é tratado como Pai no Novo
Testamento, 17 vezes estão no Sermão da Montanha. Isso significa o nível
de intimidade de relação com Deus que é marcada pela obediência aos
Seus mandamentos e isso é maravilhoso.
Então nós somos adotados por Deus em Jesus Cristo, Ele que é o Filho
Unigênito, Ele é o Filho igual ao Pai, só Ele é igual ao Pai, mas, por meio
da Sua obra, nós fazemos parte dessa família, somos filhos adotados por
esse Pai maravilhoso.
Jesus Cristo veio ao mundo revelar principalmente o Pai. Essa deve ser a
marca da igreja. Antes de nós condenarmos e jogarmos gente no inferno,
a marca da igreja deveria ser essa: “Eu vim revelar o Pai.” Se Cristo veio
revelar o Pai e nós continuamos a missão de Cristo, tirando o fato expia-
tório, obviamente, porque nós não expiamos ninguém, nós não cobrimos
o pecado de ninguém, mas nós somos convidados a amar e o amor sim
cobre multidão de pecados. Isso é maravilhoso.
Vou abrir os microfones para alguém fazer alguma observação.
Para você que está vendo, essa aula gravada, vai ter agora interação entre
os alunos, fique à vontade para continuar, fique à vontade para parar, tá
bom. O conteúdo que eu tinha para passar eu acabei de passar, mas eu
quero ouvir os alunos:

Marco: Nós escutamos sempre falarem que Deus é mãe, mas, nas
sociedades mais antigas, o pai tinha uma posição muito importante. Eu
me lembro de um texto que eu li sobre a Grécia o ato de você matar o seu
pai era muito mais grave do que você matar a sua mãe.

Bibo: Sim, é porque a mulher não era nem gente direito na cultura do
Antigo Oriente, era até elencada como propriedade do marido. Inclusi-

172
ve nos dez mandamentos, no último mandamento a mulher está junto
como propriedade, ainda que tem toda uma dignidade da mulher já no
Antigo Testamento.

Marco: Meu ponto aqui é que o pessoal acha estranho a questão da


paternidade, de Deus ser Pai, mas é por conta do contexto do pai ser
mesmo mais importante naquelas sociedades do que é hoje.

Bibo: Sim, obviamente, isso tinha que ser assim porque se Jesus vem
dizer que Deus é mãe isso não faria sentido, ainda que a mãe seja mega-
-importante. No próprio Antigo Testamento a mãe desenvolve um papel
importantíssimo na educação, no cuidado junto com o pai. A mãe ensina
os filhos, a mãe também trabalha. Esse papo de que a mãe tem que ficar
em casa cuidando dos filhos e da casa não é bíblico, é da década de cin-
quenta. No Antigo Testamento a mulher trabalhava junto com o homem
no sustento da casa. Todo mundo fazia tudo. Só que, de fato, a sociedade
era patriarcal, não no sentido feminista do termo, ainda que é muito lindo
que em muitos momentos no Antigo Testamento temos aspectos mater-
nos sendo citados.
No Novo Testamento toda hora Jesus está falando do Pai. É Ele e o Pai.
Ainda que Deus não seja do sexo masculino, porque Deus é Espírito, é
inegável que essa qualidade de Deus como Pai está evidente na escritura.
Deus não é mãe, mas Deus é chamado de Pai. Isso não torna Deus no
sexo masculino. Precisamos ter essa clareza.

Camila: Sempre é muito difícil para mim essa questão da paternidade


de Deus porque, como seres humanos, nós somos muito de associar,
associação para aprender as coisas, para absorver algumas questões e,
como eu não tive pai, quando eu ouvia que Deus é pai eu me perguntava
o que isso significava. Eu tive muita crise com isso por muito tempo. Acho
que o crente que não tem pai ou não tem um bom padrasto geralmente
tem uma paranoia com isso. E aí o Bibo falou sobre obediência e eu lem-
brei de um aconselhamento que eu recebi uma vez. A pessoa falou uma
coisa muito interessante. Ela disse que nós, por sermos seres afetivos,

173
temos muita necessidade de sentimentalizar algumas relações. Quando
olhamos para Deus e falamos que Deus é Pai, nós esperamos algo afetivo
nesse sentido. Não que não possamos ter algo afetivo no seu coração, a
questão não é essa, a questão é que esperamos isso majoritariamente.
Só que quando falamos de Deus Pai falamos no sentido que o Bibo falou
da obediência e aí precisamos fazer isso de maneira pragmática, de ma-
neira mecânica, obedecer a Deus porque temos que obedecer a Deus,
porque Deus diz que temos que fazer x, y, z coisas, então isso nos torna
filhos de Deus e não o fato de nos sentirmos afetivamente filho ou parte,
amado, aquela coisa relacional que temos dentro da família. Isso para
mim foi bem libertador. Eu nunca vou ter uma referência de pai. Hoje eu
tenho um padrasto que é bacana, mas eu nunca vou ter essa construção
afetiva e relacional da obediência. E eu precisava encontrar uma saída
para não fazer essa transferência da minha vida espiritual, então esse é
um caminho interessante para pensarmos também porque geralmente
nós limitamos muito essa questão sentimental, afetiva e queremos sentir
as coisas, quando, na verdade, nós só precisamos fazer.

Bibo: É um pouco inevitável também. Eu não tive um pai presente, e


uma das minhas linguagens do amor é a palavra de afirmação. De vez
em quando eu gosto de ouvir isso para ver se eu estou no caminho
certo: “Cara, legal! Você fez muito bem!” O fato de eu não ter essa figura
masculina que legitimava, e eu vejo como é importante isso, a minha vida
na vida da Milena. Até a Xanda me dá uns toques, porque eu não falo
as coisas que estou sentindo ou que eu achei legal «Falar ali, a Milena
precisa ouvir que você achou legal, que você viu o desenho.” E não é à toa,
porque a menina vem perguntar se eu vi o que ela fez. Então eu preciso
estar mais atento para ser esse pai mais presente, de elogiar “Filha, lindo!
Você dançou muito bem”. Eu não tive isso e a primeira vez que eu ouvi
isso do Paulo Júnior que, olhando nos meus olhos, ele falou um monte de
elogios eu chorei como criança pequena. Aquilo foi bem uma sessão de
terapia mesmo. Deus acabou me dando pais na igreja. Isso me ajudou.
Agora, obviamente que o fato de eu ter tido pais, ou seja, figura masculina
mais velha na igreja, não tapou o buraco de uma adolescência inteira,
de uma infância inteira sem a figura de um pai. Eu também tive muita
dificuldade de me associar, só que depois eu entendi que Deus era meu
pai independente do que eu sentia, eu era filho Dele e era amado por Ele
por causa de Jesus Cristo e ponto final.

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Jacob: Eu acho interessante esse relacionamento que é feito de Deus
como Pai, mas, mesmo vindo de um ambiente de igreja, eu cresci ouvindo
que todos são filhos de Deus. Quando me caiu a ficha o motivo disso, as
pessoas confundem sermos criaturas feitas por Deus, como Deus nos
fez, então Ele é nosso Pai. Mas, fazendo uma analogia, se você costumar
fazer um boneco, o boneco não será seu filho. Você pode até adotá-lo e
tratá-lo como filho, mas é um boneco. Todos somos criaturas feitas por
Deus, mas não necessariamente somos filhos de Deus. Então as obras
definem quem realmente é filho de Deus, obvio que vem por meio da fé.
O ser humano precisa enxergar algo palpável. Fazemos essa analogia de
Deus como pai para tentar nos assemelhar e podermos ter esse relacio-
namento, essa necessidade de a divindade estar presente.

Bibo: Isso é meio chocante e se torna meio exclusivista também. O fato


de dizermos que só é filho de Deus quem está em Cristo e estar em Cristo
implica em obediência e mudança de vida, torna a parada meio exclu-
sivista e é mesmo. Não dá para fugir muito disso. É isso. Galera, muito
obrigado. Vamos voltar a fazer zoom!

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