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Assim sendo, nenhum dos termos e das expressões empregados para designar Deus
adequam-se a Ele como se adequam às coisas das quais Ele é o Princípio. Dionísio
inicia seu discurso já advertindo que, como regra, só devem utilizar-se aqueles termos e
nomes revelados pelas Sagradas Escrituras. Essa admissão dos nomes bíblicos deve se
dar de uma forma inefável, ultrapassando tanto as nossas capacidades racional-
calculativas quanto nossa capacidade intelectiva.
Ficino se refere ao fato de que para os platônicos o mundo do Ser é sempre o mundo da
multiplicidade. No momento em que um ser X se afirma na existência como X, ele já nega
:
todas as possibilidades de não-X (A, B, C, D...). Consequentemente, o Ser é o âmbito no
qual se instaura a limitação, pois ser X implica a limitação de não ser quaisquer das
possibilidades de não-X. Para um platônico, então, o Princípio não pode se encontrar na
dimensão do Ser, na multiplicidade e na limitação, mas sim naquilo que ultrapassa o
próprio Ser.
"Antes da Díada está o Uno. A Díada vem em segundo, e, tendo vindo do Uno, o Uno
impõe definição à ela, enquanto o Uno mesmo é indefinido", afirma Plotino. E acrescenta
que Parmênides não estava longe disso quando identificou o Ser ao Intelecto, e afirmou
que só há pensamento dentro da Esfera do Ser, que tudo contém e nada é externo à ela.
Platão, no Parmênides, fez a mesma coisa, quando distingue o Um, propriamente dito, do
um-muitos (o Ser). Aristóteles, embora ensinasse que o primeiro princípio era separado e
inteligível, ao afirmar que ele pensa a si mesmo, não pôde mais fazê-lo o primeiro
princípio de todas as coisas.
Ficino comenta que pela luz natural da razão humana podemos saber que Deus existe, o
que Ele não é, o que Ele cria e como é Sua governança do mundo, e, por fim, qual a
condição das coisas com relação a Ele. Mas pela razão natural é impossível saber a Sua
natureza. A razão natural é poder de conhecimento que todos os seres humanos
possuem por serem seres humanos. Dado que a nossa razão discursiva e o nosso
intelecto só alcançam as essências limitadas, elas não podem penetrar na vastidão
infinita do Princípio.
A única forma de ultrapassar tais limites é um tipo de "união divina" por meio de "um tipo
de luz que é mais que natural", afirma Ficino. É preciso compreender que essa união,
experimentada inclusive por Plotino quatro vezes em sua vida, implica no
desaparecimento de toda dualidade, mesmo aquela que há entre sujeito e objeto. Não à
toa, ao fim dessa unio mystica, nada ou quase nada pode ser dito por aquele que a
experienciou. Tudo permanece um mistério insondável tanto para o agraciado por essa
união quanto para aqueles que tentam compreender o que se passou com o místico.
:
Dionísio prossegue afirmando que, mesmo com todos os nomes revelados pelas Santas
Escrituras, a natureza divina permanece supraessencialmente inacessível. A luz do
Princípio se difunde e alcança as coisas de acordo com as suas respectivas
capacidades. Só Deus conhece Deus. As coisas O conhecem somente na medida de seu
próprio ser. A doutrina neoplatônica aqui exposta é a da famosa participação.
Participar é ter parte em algo. É receber parte de ou atuar de modo limitado em uma
realidade. Nunca há identidade entre o participante e o participado, isto é, o participante
sempre está no âmbito da parcialidade e da limitação. Se digo que Pedro e João são
dotados de Razão, não quero com isso afirmar que eles são idênticos à Razão. Pedro e
João possuem não a Razão de forma absoluta, mas somente de forma parcial. Ambos
possuem o mesmíssimo conjunto de características essenciais da Razão, só que sempre
em medida limitada.
Assim, a luz divina se manifesta igualmente em todos os seres sem que isso implique
que os seres sejam essa luz infinita. O seu próprio ser é uma limitação, um
"afunilamento" de uma realidade que, em si mesma, é infinita e sem limites. Ficino
expressa essa verdade dizendo que "o conhecimento de Deus em Si mesmo existe em
Deus acima das essências. Não obstante, o conhecimento de Deus nas coisas
subsequentes não transcende os limites da essência". Deus somente conhece Deus tal
como Ele é. Nós conhecemos Seus rastros no mundo. Vemos os raios de luz, não o
próprio Sol.
"Tudo aquilo sobre o que falamos nas coisas depende inteiramente de Deus, e
igualmente Deus está presente como o mais profundo interior em todas as coisas (...)
Olhe para uma imagem, se houver, em um espelho. Ela (a imagem) depende de tal modo
da pessoa viva, que sua essência, poder, mudança, e repouso são a própria pessoa - a
pessoa viva que está olhando a si mesma no espelho. Muito mais, então, Deus, Ele
próprio, é a essência das coisas, a vida, o poder, o ato, a perseverança, a perfeição, a
reforma. E, nas almas, Ele é sua pureza, iluminação, perfeição e divindade."
A analogia de Ficino significa que a imagem no espelho não é a pessoa viva que olha a si
mesma pelo seu reflexo. A imagem (εἰκών, ícone) é uma representação, uma imitação da
pessoa que se posta diante do espelho. Ela depende de modo absoluto da pessoa da
qual é a imitação. Mas não há identidade entre ambas. A imagem participa, possui algo,
da pessoa real. Trata-se de semelhança, jamais de identidade. A pessoa é a essência da
imagem no sentido de que é a pessoa que transmite, sempre parcialmente, tudo aquilo
que sustenta a existência tênue e fugidia da imagem.
A representação não existe a não ser a partir do representado. Ela é uma figura limitada,
circunscrita e insubstancial do ente verdadeiro da qual é uma representação. A imagem
esculpida de Atena jamais será a deusa de glaucos olhos. Não haveria a escultura sem a
deusa que ela representa. Porém, a estátua é uma imagem da venerável deusa que imita
:
alguns de seus atributos, sem jamais igualar-se substancialmente àquela que saiu da
cabeça de Zeus completamente armada.
Ficino recorda que, por mais que Deus esteja no mais profundo das coisas, Ele é o
Princípio supraessencial, e que não há comensurabilidade entre Ele e as criaturas.
Dionísio afirma que Deus é o "princípio acima do princípio" por conta de Sua
supraessencialidade. Ele é a Vida de tudo aquilo que vive, o Ser de tudo aquilo que
existe, a Origem e a Causa de tudo que existe, existiu e vai existir. Deus é analogamente
a pessoa diante do espelho que é a fonte da tênue existência da imagem refletida.
"Tal é justamente o sentido desses símbolos: trata-se afastar aquilo que é santo do olhar
profanador dos tolos, e de apresentá-lo àqueles que buscam a santidade, que se
libertaram das representações infantis, e que adquiriram uma sabedoria suficiente para
entrar na consideração da simples Verdade."
Deus é "a Causa de todas as coisas, e, ainda assim, Ele mesmo não é nada, pois
transcende supraessencialmente todas elas", afirma o Areopagita. Não é justo celebrar a
Supraessência da Divindade como Razão, Poder, Mente, Vida ou Ser. Os escritos
sagrados afirmam que Deus possui a um só tempo muitos nomes e, ainda assim,
permanece sendo o Inominável. Os nomes que Ele recebe são os reflexos d'Ele nas
coisas. Na qualidade de Bem, Deus é a Causa, a Origem e o Fim de todas as coisas.
Em Deus, nenhuma das coisas residem na forma finita na qual existem aqui ou são
imaginadas aqui. O que é múltiplo nas coisas, em Deus é absoluta Unidade. Pela via da
excelência, Deus é todas as coisas em tudo. Pois Nele tudo é absoluto poder, o próprio
Deus ilimitado. Ficino usa uma fórmula próxima da coincidentia oppositorum empregada
por Nicolau de Cusa. Em Deus tudo é Deus. Nada disso implica qualquer identificação
substancial entre o Princípio e o principiado.
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Leia também:
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* Na Kabbalah, um dos símbolos da manifestação das coisas é o Pargod, o véu visível
por trás do qual se esconde o Ain Soph, a natureza imanifestada e imanifestável, indizível
e incompreensível de YHWH. No mundo muçulmano, o tema dos véus de Al'lah é
também frequente.
** Compare-se essa negação dos atributos divinos às doutrinas de Ibn Sina e de Moisés
ben Maimônides sobre o mesmo tema:
Νεκροµαντεῖον: Ibn Sina e a natureza de Deus (oleniski.blogspot.com)
Νεκροµαντεῖον: Maimônides, Torá e a negação dos atributos de Deus
(oleniski.blogspot.com)
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