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Νεκροµαντεῖον

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Os contextos matéticos na "Sabedoria dos Princípios"


(capítulos XIII, XIV e XV)

"Como vimos, o ente, pertencente ao contexto alfa, é necessariamente simples, enquanto


que o pertencente ao contexto beta só poderá ser relativamente simples, ou apenas
composto. (...) Vemos, então, que os entes, pertencentes ao contexto beta são, na
realidade, synolon e portanto cada um é um holos, composto, por sua vez, de outros, o
que implica, necessariamente, uma oposição em suas estruturas, e nessas estruturas, do
que o compuseram , como no caso, hilético, que pode ser composto de estruturas."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 97

No início do capítulo XIII de seu Sabedoria dos Princípios, o filósofo Mário Ferreira dos
Santos retoma alguns temas de capítulos anteriores como a afirmação, negação e a
positividade. Um termo é afirmativo quando dá assentimento e negativo quando recusa
assentimento. Positivo é tudo aquilo que se dá, tudo aquilo que é. A negatividade é
ausência e, portanto, será o contrário da positividade. A presença é a afirmação de algo
que se dá.

A presença é sempre presença de alguma coisa, assim como a ausência é sempre


ausência de alguma coisa. Afirmar uma ausência é afirmar nada, pois o que está ausente
é nada. Quando se afirma que algo é, nega-se o que não é. A negação é a recusa da
presença de algo, não tem conteúdo, é uma referência a algo que não se põe, a algo que
não está presente. É justamente o recusado que dá sentido à negação. A afirmação é
ontologicamente anterior à negação, assim como a presença antecede a ausência
ontologicamente.
:
A presença não implica a ausência, mas a ausência implica a presença. "O cavalo está
no estábulo" é a afirmação de uma presença, e não implica qualquer referência à
ausência. Mas a negação dessa sentença é a negação da presença do cavalo no
estábulo. Logo, é necessariamente com referência a algo, o cavalo, que se faz a
negação. Qualquer atribuição é atribuição de um atributo a algo. Atribuir algo ao nada é
nada atribuir. A antecedência ontológica da positividade sobre a ausência, do ser sobre o
nada, é evidente pela própria estrutura da atribuição.

Por outro lado, o juízo "alguma coisa há" é absolutamente objetivo, transcendendo
qualquer subjetividade. Que há algo é evidente, objetivo e insofismável. Ainda que tudo
fosse ficção, como querem alguns, e a realidade toda fosse como um sonho, as ficções
seriam existentes elas mesmas enquanto ficções. De novo, o ser se impõe sobre o não-
ser.

No capítulo XIV, Mário Ferreira avança para o tema das determinações. O termo se
refere a algo que tem uma estrutura determinada. O limite é, simultaneamente, até onde
a coisas é o que ela é e o ponto depois do qual a coisa deixa de ser o que ela é. Quando
tomamos algo por algum de seus aspectos, nós a determinamos, embora isso em nada
altere os limites próprios da coisa. O limite é intrínseco à coisa e se refere a seu ser
inteiro, e a determinação é extrínseca, operada pela eleição de algum de seus aspectos.
Nossas determinações sobre o objeto não o limitam em nada, e não necessariamente
coincidem com os limites próprios do objeto.

Os entes limitados, portanto finitos, possuem duas estruturas fundamentais: a


hylética (ὕλη, a matéria) e a eidética (εἶδος, forma), como ensinara Aristóteles. Tais seres
são unidades complexas nas quais as partes materiais estão submetidas à ordem
intrínseca do todo. Para a Matese, a forma rege imanentemente a unidade de uma coisa,
e regula a disposição de suas partes. Para que algo seja o que ele é, é necessário que
certas condições estejam presentes. Se não estiverem, a coisa deixa de ser o que é. Mas
há também aspectos contingentes, acidentais, que, embora presentes, não são
necessários para que a coisa seja o que ela é.

O que há de absoluto nas coisas, diz Mário Ferreira, são os logoi, os nomoi que regem
tudo independentemente de sua especificidade. "Absoluto" é ab solutum, isto é, "aquilo
que está solto", que não depende das coisas tais como elas são, deste ou daquele modo.
Tais são os princípios primeiros e mais remotos de todas as coisas. Para que algo
determinado seja unidade, é preciso que siga o princípios da unidade que é
absolutamente universal e válido para todas as coisas.

Tudo o que possui ser, para ser ser, necessita ser uma unidade. O princípio é por onde a
coisa inicia no ser. Há princípios mais remotos e princípios mais próximos à coisa em
questão. Alguns são intrínsecos e outros extrínsecos. Se algo for composto, possuirá
uma unidade na qual as suas partes estarão subordinadas a um logos analogante, a uma
regra geral que afirma uma unidade tensional de aspectos heterogêneos.

Tudo o que não surge de si mesmo, que não tem em si mesmo seu princípio, depende de
:
outro para ser, uma princípio que a cause. Recorde-se aqui que toda causa é um
princípio, mas nem todo princípio é uma causa. O princípio extrínseco que ativamente dá
o ser a algo é a sua causa suficiente. A finalidade, para onde tende o ser, é outro
princípio extrínseco. Na coisa material, a matéria é também um de seus princípios.

Se um ser possui uma natureza tal que tenha em si mesmo sua razão de ser, seja ele
princípio de si mesmo, ele será um ser a se. Aquele ser que recebe de outro,
causalmente, a razão de seu ser, é um ser ab alio. Deus, enquanto princípio primeiro de
tudo, é ser a se. Todas as outras coisas que recebem de outro o seu ser, serão seres ab
alio (de outro, aliud). Assim, há os logoi da aseidade e da abaliedade. Deus, sumamente
simples, possui o logos da aseidade e as coisas, unidades de aspectos heterogênenos,
relativamente simples, possuirão o logos da abaliedade.

Mário Ferreira começa a tocar aqui no importante tema dos contextos matéticos. O
contexto do absolutamente simples, ou seja, de Deus, o filósofo denomina-o contexto
alfa. O contexto dos entes relativamente simples, isto é, dos entes ab alio, denomina-o
contexto beta. O que está no contexto alfa é absolutamente simples, sem parte, sem
sucessão, fora do tempo, é eterno. O que está no contexto beta é somente relativamente
simples, possui partes, está na sucessão, no tempo, é temporal.

A unidade implica a um só tempo o princípio de não-contradição e o princípio de


identidade. A unidade implica que o uno é ele mesmo e não é outro que outro. Tudo o
que está no contexto beta é presidido pela lei da díada, pois a unidade dos seres
relativamente simples, seres compostos, rege aspectos heterogêneos. Dito de outro
modo, no contexto alfa há pura e absoluta unidade, sem nenhuma heterogeneidade, e
no contexto beta há unidade relativa, que rege aspectos heterogêneos em uma unidade.
Deus é absolutamente simples, pura unidade. A casa, por outro lado, é uma unidade de
aspectos heterogêneos, pois possui partes que são harmonizadas em um todo
(holos, ὅλος). É um synolon (συνολόν), pois é composto de uma parte eidética (o Eidos, a
Forma) e de uma parte hilética (a matéria).

O contexto alfa e o contexto beta são objetos tradicionais da Ontologia. Há ainda o


contexto gama, que trata do Nada absoluto, e o contexto delta, que trata do nada
relativo, a Meontologia (Meon, não-ser). Eis um ponto capital da filosofia de Mário
Ferreira dos Santos que merece algum comentário. Como temos visto desde o início
destas postagens, o filósofo brasileiro se esforça por alcançar os princípios mais
fundamentais de toda a realidade. Para tanto, a Matese abarca, mas ultrapassa, os
objetos tradicionais da Metafísica (ou Ontologia). Esta só pode tratar daquilo que é, ou
seja, do Ser. Mas a Meontologia trata também do não-ser relativo, aquilo que não é
somente de forma relativa.

Os fascinantes temas do Meon e da Meontologia já foram expostos pelo filósofo no


segundo volume da Filosofia Concreta. Mário Ferreira supõe aqui, na Sabedoria dos
Princípios, muito da discussão realizada naquela obra. Portanto, remetemos o leitor
àquela exposição para maiores esclarecimentos sobre os temas que ora serão expostos.
:
O ser, o ontos, que é infinitamente ontos é o objeto do contexto alfa. O ontos que é
limitado por alguma ausência é finito, e objeto do contexto beta, como visto acima. O ente
limitado é o que é e não é aquilo que não é. O que significa que o ser finito é uma mescla
de presença e de ausência. Está presente nele seu próprio ser, mas está ausente dele
todo e qualquer outro ser que não seja o dele. Ele afirma a si mesmo e nega qualquer
outro. Ele é o outro ser de um outro ser.

O contexto beta é marcado pela alteridade, pois a identidade de um ente implica a


negação de ser qualquer outro ente. Já no contexto alfa, a unidade não implica qualquer
alteridade. Assim, o contexto alfa é unidade simples, enquanto que o contexto beta é
díada, é sempre binário. Captamos aqui, assevera Mário Ferreira, o logos do logos, pois
o ser infinito será necessariamente regido pelo logos do contexto alfa, e o ser finito será
necessariamente regido pelos logoi do contexto beta.

É interessante notar que aqui se apresenta um tema platônico ou neoplatônico, a saber, o


de que o Uno é a realidade suprema que é seguida imediatamente pela Díada e, por
conseguinte, pela multiplicidade. Um exemplo claro desse esquema na tradição filosófica
neoplatônica é Plotino. Nas suas Enéadas, o Uno é a realidade última e, logo após, vem
a Díada que é composta pelo Ser (ou Nous), o cosmos noético (para maiores
esclarecimentos, vide: Νεκροµαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos, Eudorus de Alexandria
e Plotino: nota sobre a teologia do Uno (oleniski.blogspot.com)).

De tudo o que foi tratado, é possível derivar alguns adágios matéticos absolutamente
evidentes. Por exemplo: Quando um termo não se identifica com outro, é porque há entre
ambos uma diferença. Isso significa que o que difere um ente de outro ente é a ausência
em um de algum atributo ou acidente que está presente no outro. Tal princípio não é
outro que o princípio da indiscernibilidade dos idênticos ou da identidade dos
indiscerníveis, formulado por Leibniz (embora Mário não cite Leibniz ou formule o
princípio desse modo).

Cumpre tecer alguns comentários. Tudo aquilo que é indiscernível de outro, é idêntico.
Só é possível discernir aquilo que tem alguma diferença com relação a outro. Por
exemplo, imagine-se duas bolas de ferro de mesmo tamanho, mesma massa, mesmo
peso, postadas uma ao lado da outra. O que as distingue? Sabemos que são duas bolas,
mas se elas são iguais em tudo, não diríamos que são idênticas? Na linguagem do senso
comum, podemos dizer que são idênticas. Mas, na linguagem filosófica, mais sutil e mais
rigorosa, as bolas não podem ser idênticas, caso contrário seriam uma e a mesma bola.

Embora coincidindo no material, no tamanho, na massa, na forma esférica e no peso,


algo necessariamente as distingue, posto que são duas bolas. Mas o quê? Elas se
distinguem, primeiramente, por serem feitas com porções diferentes de ferro. Enquanto
ferro, são idênticas, mas o pedaço de ferro que foi utilizado para fabricar uma das bolas
não pode ter sido utilizado para fabricar a outra. Cada uma foi fabricada com porções
diferentes de ferro, não obstante tenham o mesmo peso e mesma massa.

Consequentemente, esta porção está neste lugar do espaço e aquela porção está em
:
outro. Elas diferem nas porções utilizadas para fabricá-las e no espaço que ocupam. Se
tiverem sido fabricadas em tempos diferentes, haverá anterioridade temporal entre as
duas, isto é, outra diferença que exclui necessariamente a identidade entre elas. A
porção que está nesta bola está ausente da outra bola e vice-versa.

Retornando à questão dos contextos, os contextos alfa e beta constituem a Ontologia ou


Metafísica. Os contextos gama e delta são objetos da Meontologia. Se o Ser é o objeto
da Ontologia, o Não-Ser será o objeto da Meontologia. Mas como o Não-Ser pode ser
objeto de algum saber? Há que se distinguir dois sentidos de Não-Ser: o Não-Ser
absoluto e o Não-Ser relativo. O Não-Ser absoluto é o Nada, a absoluta ausência de
qualquer ser em qualquer sentido. É o que Mário Ferreira prefere denominar Nihilum.
Este é a absoluta ausência, o esvaziamento de toda e qualquer presença, a negação
completa.

Ora, se o Nada tivesse antecedido o Ser, ele teria existido, o que já é absurdo. Se o Nada
fosse anterior ao Ser, o Ser não seria possível, pois possibilidade é algo real. Se o Nada
exclui tudo, então exclui também a possibilidade. Sendo assim, se o Nada antecedesse o
Ser, o Ser não teria sido possível, já que o Nada exclui até a possibilidade de algo vir a
existir. E se o Nada viesse a existir em algum momento, ele seria existência, e não a
negação absoluta da existência, o que é contraditório e, portanto, absurdo.

O Nada relativo, ao contrário, é absolutamente possível, pois refere-se somente à falta de


uma determinada positividade em um ente qualquer. Não implica a negação de todo Ser,
mas somente a negação de uma positividade a um ente qualquer. "O cavalo não está no
estábulo" é um exemplo de não-ser relativo, pois a sentença nega que o cavalo esteja no
estábulo, isto é, nega uma positividade possível, mas não realizada naquele momento.

Não obstante, aquilo que não se realiza, que não está presente como positividade foi
uma possibilidade não realizada. Qual é o âmbito da possibilidade? O Meon, objeto do
contexto delta. O potencial e o possível estão contidos no real, naquilo que já é. Tudo o
que pode ser feito, tudo o que tem potência de existir, pode ou não vir a existir, mas, se
vier a existir, só existirá porque antes era possível. E só existirá por agência de algo que
já existe. Então, a capacidade para algo antecede ônticamente a ação que faz surgir
esse algo. O cavalo só pode estar no estábulo se antes for capaz de estar no estábulo.

O Meon, portanto, é o Não-Ser relativo, a ausência de algo em algum ser. É objeto do


contexto delta. O Nada absoluto, que é impossível, é objeto do contexto gama. Temos,
então, uma simetria. O Ser absoluto é o objeto do contexto alfa, e o ser relativo é o objeto
do contexto beta. O Não-Ser absoluto é objeto do contexto gama, e o não-ser relativo é
objeto do contexto delta. Temos dois absolutos, Ser e Nada, seguidos de dois relativos,
ser relativo e não-ser relativo. O Ser é necessário, o ser relativo já é, o Nada é impossível
e o não-ser relativo é possível.

...

Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":


:
http://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-suarez-e-ciencia-na-sabedoria.html

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

Immanuel Rosenkreuz às 16:40

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