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"O que é de fato fora de questão é a quase universalidade das crenças em um Ser divino
celeste, criador do Universo e garantidor da fecundidade da terra (graças às chuvas que
ele dispensa). Tais seres são dotados de uma presciência e de uma sabedoria infinitas.
As leis morais e frequentemente os rituais do clã foram instaurados por eles durante sua
breve permanência sobre a terra."
O historiador das religiões romeno Mircea Eliade, no segundo capítulo de seu Traité
d'histoire des religions, trata da natureza dos deuses celestes e de suas funções dentro
de diversos contextos míticos. Os deuses celestes ou urânicos (ουρανός, Urano, Céu)
são comuns em diversas culturas, mas o fenômeno mais interessante é a existência de
um deus urânico supremo.
O deus supremo é o criador do mundo e das regras morais dos povos. É infinitamente
sábio e bom, sendo ao mesmo tempo onisciente. Não é preciso muita reflexão para
perceber o poder simbólico dos céus, para perceber sua transcendência, seu poder e sua
sacralidade. Os céus são inacessíveis, altíssimos, infinitos, imutáveis e aparecem como
uma dimensão totalmente estranha à limitada experiência terrestre do homem. Não à toa,
o celeste tornou-se símbolo da morada dos deuses e objeto de diversas místicas
:
ascensionais e jornadas iniciáticas.
Entretanto, é comum que esse deus supremo torne-se um Deus otiosus (deus ocioso),
isto é, uma divindade tão afastada das atividades humanas normais que sua existência é
quase esquecida e seu culto seja quase inexistente. Há exemplos desse fenômeno em
diversos povos, como os yorubás, que tem em Olorum o seu deus supremo-criador que
logo é substituído por um deus inferior, Obatala. O sentido do processo de abandono
cultual do deus supremo é a sua substituição por divindades inferiores, porém mais
dinâmicas e mais próximas das necessidades humanas imediatas.
É o que acontece com Dyaus Pitar, o "pai celeste", nos Vedas. Esse deus supremo pouco
é citado nas escrituras hindus e também é logo substituído cultualmente por deuses
inferiores como Varuna e Indra. Urano, o deus celeste grego, fecundador e ancestral dos
titãs e dos deuses olímpicos, é substituído por seus filhos e praticamente esquecido
cultualmente. Zeus é seu herdeiro mais evidente, sendo um deus celeste que ainda
preserva algumas das características do deus supremo, como a paternidade e a
fecundidade.
Talvez o exemplo mais saliente de deus supremo seja Yahweh entre os hebreus. Ele é o
deus supremo, absoluto, criador de tudo, manifestando-se por hierofanias celestes e
fenômenos atmosféricos. Sua soberania é absoluta tanto quanto o é seu poder. Nada o
constrange ou o limita, nem mesmo o respeito por suas próprias leis. É o supremo
ordenador da sociedade por meio de suas normas e leis reveladas a Moisés, sem jamais
ser tolhido por qualquer uma delas.
Outro ponto curioso é que em muitas religiões esses deuses urânicos supremos, embora
quase destituídos de culto, são lembrados em tempos de grandes catástrofes e perigos.
Os deuses inferiores, cultuados cotidianamente, parecem não ser capazes de salvar o
povo em momentos críticos, e a única solução parece ser invocar o esquecido deus
supremo, a fonte última de tudo, como a esperança derradeira de salvação.
Não é de se espantar que esse mesmo esquema s repita no monoteísmo hebreu. Todas
as vezes que os hebreus passavam por tempos seguros e cômodos, Yahweh era
esquecido e substituído por divindades inferiores como Baal e Astarote. Quando estavam
em perigo de aniquilamento seja por catástrofes naturais ou por ameaças externas, os
hebreus retornavam a Yahweh a fim de que este os salvasse de suas aflições.
Assim, a vida religiosa é preenchida por tempos e lugares sagrados que são ciclicamente
celebrados em grandes e pequenas festas e cerimônias. A ausência do sagrado, o
profano, marca uma existência diminuída, comum e sem real importância. A
secularização, sendo um abandono progressivo das crenças religiosas, lança o homem
em um mundo onde não há diferenças qualitativas entre os lugares, os tempos e os
objetos.
O tempo, por exemplo, não exibe mais períodos sagrados, todos os dias são
absolutamente homogêneos, e a simples sequência dos dias não aponta para qualquer
sentido transcendente. Desse modo, a vida humana é assombrada pelo terror da
História, isto é, o horror de uma vida que se constitui na sequência de dias sem nenhuma
diferença qualitativa, e que não admite qualquer horizonte que ultrapasse o imanente.
O homem moderno vive nesse mundo dessacralizado. Eliade observa que já na segunda
metade do século XIX Nietzsche proclama a morte de Deus. "Deus está morto", diz o
profeta Zaratustra. O antropólogo escocês Andrew Lang, alguns anos depois, torna
pública sua descoberta de uma crença primitiva em um deus supremo. Lang também
nota que o culto do Grande Deus é pobre e que sua participação na vida religiosa da
comunidade é modesta, resultando em um esquecimento quase absoluto e na sua
substituição por deuses inferiores.
Ora, observa Eliade, a conversão do Deus Supremo em um deus otiosus é também a sua
morte. Ele não é mais lembrado ou cultuado, e embora não haja mitos relatando a sua
morte, o esquecimento cultual equivale em termos práticos ao seu falecimento. A
proclamação de Nietzsche sobre a morte de Deus, portanto, faz parte de um fenômeno
extremamente antigo na história das religiões.
A diferença está no fato de que a "morte" do deus supremo em diversas culturas dá lugar
à ascensão de divindades menores mais próximas das necessidades imediatas do
homem, enquanto em Nietzsche a morte de Deus equivale à completa imanentização da
vida. Eliade recorda que o homem imanentizado vive na pura História, em um mundo
dessacralizado que não aponta para nenhum sentido transcendente.
Eliade não aprofunda suas reflexões nessa direção, mas seria possível, creio, a partir
mesmo de diversos momentos de sua obra, pensar que essa morte de Deus resultou sim
:
na sua substituição por divindades menores e mais próximas das necessidades
humanas. O próprio romeno ensina que os esquemas e os símbolos míticos perduram na
sociedade moderna transmutados em costumes, práticas e até mesmo em ideologias.
O esquema do justo sofredor que redimirá o mundo, por exemplo, reaparece nas utopias
socialistas e no marxismo na forma da pretendida ascensão do proletariado ao poder
propiciada pela necessidade do sentido imanente da História. A divinização da História,
creio, é um exemplo dessas divindades inferiores que substituem o Deus Supremo. Os
acontecimentos históricos têm um sentido (providência divina) que aponta para a
realização futura de um suposto paraíso terrestre (imanentização do escathon, diria Eric
Voegelin).
O que caracteriza os deuses inferiores que tomam o lugar da divindade celeste suprema
é a sua proximidade dos desejos, anseios e necessidades imediatas do homem. A
adoração do Estado como a suprema realização humana, como vista em regimes
totalitários socialistas e fascistas, remete à divindade que é tão próxima de seus devotos
que ela sabe exatamente o que eles necessitam em cada um dos mínimos aspectos de
suas vidas. E absolutamente todas as necessidades práticas e imediatas do homem
serão supridas em um Éden prometido pelo mesmo Deus Estado.
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