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"Em verdade, pareceu a mim indigno cegar nosso espírito por meio de sua própria luz, a
filosofia. Então, eu dei a mim mesmo a tarefa de me aplicar ao exame das coisas, com
tanto mais ardor quanto eu menos suportava ser desviado, pelas sutilezas dos
inovadores, do maior bem da vida, a saber, a certeza da eternidade após a morte, e a
esperança que a bondade divina manifestar-se-á aos bons e aos inocentes." (tradução
minha)
No ano de 1669 foi publicado um opúsculo do filósofo, físico e matemático alemão G.W.
Leibniz (1646-1716) intitulado Profissão de fé da natureza contra os ateus, no qual o
pensador pretendia a um só tempo provar, com dois argumentos curtos e elegantes, a
existência de Deus e a imortalidade da alma. A primeira parte do opúsculo afirma que
não é possível dar a razão dos fenômenos corporais sem um princípio incorporal, isto é,
Deus e a segunda demonstra a imortalidade da alma em um sorites contínuo.
Leibniz inicia seu texto com uma introdução acerca dos progressos obtidos pela ciência
de seu tempo, aquela que pretendia explicar os fenômenos do mundo a partir somente
da figura e do movimento, ou seja, mecanicamente. Ocorre que essa pretensão
:
desaguou facilmente no ateísmo, pois muitos consideraram poder explicar toda a
realidade física sem nenhum recurso a um princípio divino derradeiro. A análise que
Leibniz empreende em seguida pretende mostrar que figura, grandeza e movimento não
podem ser deduzidas do conceito de corpo, necessitando para a sua existência a
realidade de uma causa incorpórea, Deus.
Se tais qualidades não podem ser deduzidas da mera definição de corpo, então é
necessário que haja uma razão para elas estarem nos corpos. "Pois a razão de toda a
maneira de ser deve ser deduzida seja da coisa mesma, seja de uma coisa extrínseca",
assim formula Leibniz o princípio da razão suficiente. Tudo aquilo que existe, possui sua
razão em si mesmo ou a recebe de outro, isto é, aquilo que existe deve ser explicado
pela própria coisa ou por algo externo a ela.
Note-se que Leibniz não utiliza o termo causa, pois a causa é um tipo de razão para a
existência de algo, mas nem toda a razão é causa. Por exemplo, a razão da existência do
filho é o pai, que é sua causa externa. Contudo, não é necessário assumir de antemão
que tudo tenha uma causa, embora tudo tenha uma razão que a explica. A razão do filho
é o pai, e a razão de Deus é sua própria natureza de Ser necessário.¹
O conceito de corpo só implica que o corpo possua alguma figura e alguma grandeza,
mas não define quais figuras (quadrado, redondo) nem quais grandezas (maior ou
menor). É mister haver uma razão para essas diferenciações dos corpos, caso contrário
seria necessário admitir que essas diferenciações vieram do nada. Do nada, nada sai. A
matéria não pode ser a razão dessas diferenças, já que é indiferente em si mesma à
forma ou à grandeza.
Leibniz aventa duas hipóteses: ou bem o corpo quadrado, por exemplo, foi desde a
eternidade quadrado ou tornou-se quadrado pelo choque com outros corpos. Mas se o
corpo quadrado é quadrado desde toda a eternidade, e essa forma não é deduzida da
natureza de corpo em geral, então nenhuma razão foi dada para que ele não fosse
esférico ou triangular. A eternidade, por si mesma, não é causa de nada.
A segunda opção seria da mudança da forma de um corpo pelo choque com outros
corpos. Nesse caso, se um corpo muda a forma de outro, por qual razão ele tinha essa
primeira forma? Se for pelo choque, então por qual razão ele tinha aquela forma? Por
exemplo, se um corpo triangular tornou-se quadrado pelo choque com algum outro corpo,
então a forma triangular também tem de ser explicada pelo choque com outro corpo. Se o
corpo era esférico antes de se tornar triangular, então a esfericidade também tem que ser
:
explicada pelo choque. E assim por diante, ad infinitum.
Se os corpos são movidos por outros corpos contíguos, então cada corpo é movido pelo
anterior, e este pelo anterior, e este pelo anterior, ad infinitum. Se cada corpo possui
movimento por causa do anterior, então nenhum corpo possui o movimento
propriamente, pois o recebe sempre de seu anterior. Uma cadeia infinita de causas nada
explica.
Ora, dado que não é possível deduzir do conceito de corpo as qualidades de figura, de
grandeza e de movimento, e que não é possível que tais qualidades não tenham uma
razão, e que as alternativas aventadas foram refutadas, é necessário assumir que há
uma causa incorpórea para essas qualidades. Essa causa incorpórea é a mesma para
todas as coisas, como demonstra a harmonia do movimento dos corpos. A razão pela
qual o ser incorporal escolhe estas e não aquelas figuras e grandezas, estes ou aqueles
movimentos, não se pode explicar a não ser por sua inteligência e por sua sabedoria,
pois as coisas são manifestamente belas. Esse reitor do mundo inteiro é Deus.
Do ser do qual alguma ação é o pensamento, alguma ação é uma coisa imediatamente
sensível sem imaginação de partes;
O pensamento, assevera Leibniz, é uma coisa sensível sem imaginação de partes. Eis
um ponto que necessita de comentário. Por experiência, sabemos que pensamos quando
pensamos. O pensamento, diz o filósofo, é justamente esse je ne sais quoi que sentimos
quando sentimos que pensamos. O pensar, portanto, é imediatamente acompanhado de
um "sentimento" de que estamos pensando, pouco importa o conteúdo do pensamento.
Esse sentir não tem partes, é completamente uno.
Isso do qual alguma ação é uma coisa imediatamente sensível sem imaginação de
partes, possui alguma ação que é uma coisa sem partes;
Cumpre comentar esta última premissa. Se a ação de pensar não tem imaginação de
partes, como ficou estabelecido nas duas primeiras premissas, então aquilo que pensa
possui uma ação que não possui partes. O ato de pensar é completamente uno, sem
partes. O que tem partes é o conteúdo do pensamento, como Titius. Se é assim, então
aquilo que pensa possui nele mesmo a capacidade de uma ação completamente una,
sem nenhuma parte. A atenção fixada no personagem histórico Marcus Titius é uma ação
completamente una e sem partes.
Prossegue Leibniz:
Isso do qual alguma ação é uma coisa sem partes, tem alguma ação que não é um
movimento;
A ação de pensar é una, não pode ser movimento, pois o movimento exige partes.
A dissolução só existe naquilo que tem partes. Dissolver é desfazer a união das partes de
um todo. Aquilo que não é móvel não tem partes. É, portanto, indissolúvel.
:
Isso que é indissolúvel é incorruptível.
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