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"Sem uma substância eterna, não há verdades eternas. É possível derivar disso também
uma prova acerca de Deus: Ele é a raiz da possibilidade, sendo Seu espírito a própria
região das ideias ou verdades."
Essa unidade dominante não somente rege o mundo, ela o construiu e o fez, sendo
portanto superior a ele e, por assim dizer, exterior a ele, e, por conseguinte, é a razão
última de todas as coisas. A razão suficiente da existência dos seres em separado ou em
conjunto não se encontra neles mesmos. Suponhamos que sempre tenha havido o livro
dos Elementos de Euclides. Poderíamos explicar a existência do exemplar presente pela
:
cópia do exemplar anterior, e assim sucessivamente. Entretanto, por mais que recuemos
na cadeia dos livros copiados, não importa sua extensão, a cópia não seria suficiente
para explicar a existência dos livros, isto é, por qual razão há livros e por que livros assim
redigidos.
A fim de se compreenda melhor o que foi dito, Leibniz lança mão do primeiro princípio
inegável de que algo há em vez do nada. Isto é, há algo de existente no mundo e não o
nada completo. E se há algo existente, esse algo era possível. Tudo aquilo que é
possível possui pretensão à existência, ou seja, o possível exige uma essência que não
proíbe a sua existência, mas, ao contrário, a capacita para a existência, dá a ela o direito
à existência igual a todos os outros possíveis.
O mundo não é metafisicamente necessário, dado que podemos pensá-lo como não
existente sem implicar nenhuma contradição lógica. Por outro lado, o mundo é
fisicamente necessário no sentido de que a sua inexistência seria uma imperfeição ou um
absurdo moral. Leibniz distingue aqui dois tipos de necessidade, uma cuja negação
implica contradição lógica (princípio de não-contradição, por exemplo) e outra que possui
caráter hipotético, que não implica contradição se negada. Por exemplo, se X não existia
e passou a existir, X precisou necessariamente de uma causa (Y, digamos). Mas nada
exige que necessariamente Y tinha que causar X.
As essências e as verdades eternas não são ficções, adverte Leibniz. Elas existem, por
assim dizer, no mundo das ideias, em Deus mesmo, fonte das essências e das
existências das coisas. Como dito acima, a cadeia dos existentes não encontra em si
mesma a razão suficiente de sua existência, ela precisa buscá-la nas necessidades
metafísicas, e como só um existente pode dar origem a um existente, há que haver um
ser metafisicamente necessário, ou seja, um ser no qual essência e existência coincidem,
no qual tomam origem todos os possíveis e todas as verdades eternas.
Com efeito, tudo no mundo se faz de acordo com verdades eternas, matemáticas,
geométricas e metafísicas. Quando observada no detalhe, encontram-se na natureza
:
razões formais, leis metafísicas de causa, potência e ação operando mesmo sobre leis
geométricas da matéria. O mundo existente tanto quanto os possíveis têm sua origem e
fundamento em Deus, e como só se tornam reais aqueles possíveis que possuem
essências com maior quantidade de realidade ou perfeição, segue-se que este mundo
não é somente o mais perfeito fisicamente, mas também moralmente.
Leibniz afirma que este mundo é não só a máquina mais perfeita como é igualmente, na
medida em que é composta de espíritos, a melhor das repúblicas. Dirão certamente que
não é isso que a realidade observável manifesta com todas as suas desgraças e
sofrimentos. Leibniz responde que não se julga a obra inteira pela consideração de uma
de suas partes. Não conhecemos a realidade em sua inteireza e, portanto, não sabemos
como as coisas se encaixam, como a desordem em uma parte pode se conciliar com a
harmonia do todo.
Obviamente, a harmonia do todo não deve ser assegurada ao custo da miséria humana.
A justiça está presente, e significa que cada um receba felicidade proporcional à sua
virtude e seu zelo pelo bem comum, o qual chamamos de caridade ou amor de Deus.
Essa é a força e a potência da religião cristã. E não podemos nos espantar que os
espíritos humanos sejam objetos de tanta solicitude da parte de Deus, pois eles refletem
mais perfeitamente a imagem do Criador.
A relação entre os espíritos e Deus vai além da relação que há entre a máquina e seu
construtor. A sua relação é a do cidadão com o seu príncipe. Junte-se a isso o fato de
que os espíritos durarão tanto quanto o próprio universo, e que eles exprimem e
concentram neles mesmos de alguma forma o todo como partes totais. Por último, o
sofrimento dos bons concorre para o seu bem, para o seu aperfeiçoamento moral.
Em 1698, Leibniz publica o opúsculo De Ipsa Natura (Sobre a Natureza ela mesma),
onde discute a força inerente às coisas criadas e as suas ações. Embora não seja uma
intencionalmente uma sequência do De Rerum, que nunca foi publicado, a obra discute a
relação entre Deus e a máquina do mundo, bem como aprofunda a concepção do filósofo
sobre a essência daquilo que chamamos de Natureza. A ocasião para compor o opúsculo
foi dada pela polêmica em torno das teses do livro De Idolo Naturae, do astrônomo e
matemático alemão Johann Christophore Sturm.
Segundo Leibniz, os dois problemas principais propostos por Sturm eram, primeiro, a
questão sobre a constituição da Natureza que costumamos atribuir às coisas, cujos
atributos, aos olhos de Sturm, têm algo de paganismo, e, segundo, se reside nas coisas
alguma força (ενέργεια), tese que Sturm nega. Leibniz concorda com a inexistência de
uma alma do mundo (Anima Mundi), embora considere que a natureza é uma obra de
Deus, uma máquina natural composta de uma infinidade de órgãos que exigem, para sua
criação e seu funcionamento, uma sabedoria e um poder igualmente infinitos.
Essa posição conduz à outra questão em voga no tempo de Leibniz. O filósofo natural
britânico Robert Boyle defendia que pela natureza de um corpo dever-se-ia entender o
seu mecanismo. Em outros termos, dentro do mecanicismo do século XVII, todos os
:
fenômenos da natureza deveriam ter explicações que recorressem apenas ao movimento
e ao contato entre porções de matéria. Grosso modo, diz Leibniz, essa explicação pode
ser aceita.
Não obstante, a origem mesma do mecanismo não pode ser derivada nem da matéria e
nem das leis matemáticas. O que Leibniz quer apontar aqui é que a matéria inerte, seja
ela pura extensão ou seja ela formada por corpúsculos, não se organiza
espontaneamente em padrões imutáveis, e as leis matemáticas, tomadas em si mesmas,
apenas descrevem tais padrões naquilo que neles há de quantitativo. Desse modo, será
metafisicamente impossível dispensar a ação e o governo de alguma inteligência
imaterial.
Nem tampouco seria possível pensar que o fundamento das leis naturais seja a
arbitrariedade. Ao contrário, Leibniz assevera, as leis que há no mundo foram impostas
por Deus a partir de razões de sabedoria e de ordem. Portanto, as causas finais não são
úteis somente no campo da ética e da teologia natural. Elas servem mesmo na física
para descobrir verdades ocultas da natureza. Nesse ponto, como em outros escritos,
Leibniz resgata o papel da teleologia no estudo da filosofia natural, algo abertamente
rejeitado por René Descartes:
"Nós não nos deteremos também para examinar os fins que Deus se propôs ao criar o
mundo, e nós rejeitaremos inteiramente na nossa filosofia a busca das causas finais (...)
mas O considerando como o autor de todas as coisas, vamos nos encarregar somente
de encontrar, pelo emprego da faculdade de raciocinar que foi posta em nós por Ele,
como aquelas das quais nos apercebemos por meio de nossos sentidos poderiam ter
sido produzidas." (Descartes, Principia Philosophiae, artigo 28)
Leibniz não critica o argumento de Descartes nesse texto sobre Sturm, mas não é difícil
perceber, cremos, que ele é claramente falacioso, pois as causas finais não se referem
necessariamente aos objetivos divinos ao criar o mundo. Na realidade, a teleologia pode
ser externa ou interna. O fim externo de algo se refere àquilo para o quê a coisa foi feita.
Por exemplo, o caso mais evidente é o do artefato, no qual o artífice impõe à matéria
uma forma que não pertencia originalmente à ela. Trata-se de uma causalidade transitiva,
isto é, há uma transição da forma ou da ideia na mente do artífice para a matéria que
será trabalhada.
Idêntica crítica já era feita por Sócrates, Platão e Aristóteles ao atomismo de Demócrito e
Leucipo, e permanece uma questão para todo o materialista desde então. O padrão no
qual a matéria se organiza, por definição, não é material. Uma porção de argila pode se
:
tornar um vaso ou um prato. Nada há na argila que determine uma ou outra dessas
formas. O próprio Descartes, que nada tinha de materialista, quando tenta explicar o
mundo material como uma máquina, necessita de Deus como construtor e mantenedor
do mecanismo.
Leibniz responde que Sturm está pedindo algo parecido com pentear os sons ou
entender as cores. Hobbes também estaria correto em dizer que tudo é material
persuadido que está de que só o que é corporal é explicado e representado pela
imaginação. Sturm deriva do fato de que, segundo ele, a força inerente aos seres não
pode ser explicada via imaginação, que essa força é uma essência desconhecida, e que,
ato contínuo, seria melhor admitir logo que é Deus a fonte de cada movimento das coisas
no mundo. Seria um ocasionalismo divino, isto é, a tese segundo a qual não há outra
ação causal no mundo que não seja Deus.
O ponto levantado por Leibniz é muito interessante na medida em que lança luz sobre um
defeito epistemológico comum a muitos pensadores modernos, notadamente aos
empiristas e aos materialistas. Como tais filósofos afirmam que o conhecimento inicia e
termina nos dados dos sentidos, a única forma na qual esses dados se reúnem na mente
é por meio da memória e da imaginação. Ocorre que a imaginação somente tem o poder
de compor e recompor, combinar e recombinar, o que os sentidos fornecem à ela.
:
A imaginação pode formar novas imagens cortando, adicionando, combinando partes de
muitas imagens, inventando imagens de seres que não existem na realidade extra
mentis. Em todas essas atividades, por mais importantes que sejam para o
conhecimento, nunca é ultrapassado o nível das imagens presas a conteúdos sensíveis e
singulares, este isso e este aquilo. Sendo assim, a imaginação não pode alcançar
verdades universais como as da matemática, da geometria, da lógica ou da metafísica,
dado que estas são universais, válidas para todos e não para este ou aquele.
Aquilo que Leibniz chama de força inerente ou natureza é justamente o padrão comum
(pleonasmo, admito) a todos os membros de uma determinada classe ou espécie, aquilo
que determina o que é o mínimo necessário para que X seja X e não Y. Isso não está sob
o alcance dos sentidos ou da imaginação. É o intelecto (intellectus, verbo intellegere, "ler
dentro")* que "penetra" nos dados recolhidos pelos sentidos e encontra neles um padrão
que os próprios sentidos não percebem. Não testemunhamos no mundo
somente "coleções de percepções sensíveis unidas regularmente", como querem os
empiristas modernos.
Testemunhamos no mundo entes, substâncias, seres reais que repetem aqui e agora, na
sua singularidade irrepetível, um determinado padrão que os ultrapassa em um número
indefinido de outros seres do mesmo tipo. É por isso que Leibniz, em seguida, questiona
como seria possível que as coisas pudessem durar qualquer tempo se os seus atributos,
que chamamos de natureza, não pudessem eles próprios durar de um momento que
fosse? A razão exige que o fiat divino tenha instalado nas coisas uma tendência de
produzir seus atos, tendência da qual fluem suas operações se nada se colocar como
obstáculo.
É comumente afirmado que o corpo é naturalmente inerte. Leibniz considera que isso é
verdade, se bem compreendido. Um corpo em repouso não se colocará a si mesmo em
movimento e nem será posto em movimento por outro sem opor alguma resistência.
Tampouco mudará espontaneamente sua direção ou sua velocidade. Nenhuma dessas
verdades pode ser deduzida somente das característica geométricas da matéria (res
extensa de Descartes). A matéria, portanto, não é indiferente ao movimento e ao repouso
como dizem comumente, mas é dotada de uma inércia natural.
Essa força passiva, a impenetrabilidade e alguma coisa de mais que Laibniz considera a
noção de matéria primeira ou massa, que é a mesma nos corpos e proporcional à sua
grandeza. Como há na matéria uma inércia natural ao movimento, assim também os
corpos e todas as substâncias possuem uma resistência natural à mudança. Por outro
lado, o mesmo corpo, posto em movimento por outro, tende a manter o élan recebido, e a
velocidade constante, resistindo à mudança.
Como essas atividades não podem ser deduzidas da massa, que é passiva, nem da
extensão (característica geométrica), resta admitir que há nos corpos uma entelequia
primeira** que age sempre. Nos seres vivos, esse princípio se chama alma, e nos outros
seres é a forma substancial. A verdadeira substância, unidade constituída de forma e de
matéria, é que Leibniz denomina como mônada. Sem essa unidade verdadeira os corpos
não seriam mais do que agregados.***
Tudo isso mostra, encerra Leibniz, que o ocasionalismo de Sturm e de outros, conduz
não ao engrandecimento da glória de Deus pela supressão de um suposto ídolo da
Natureza, ideia de origem pagã. Ao contrário, dilui as coisas criadas, torna-as meras
meras modificações de uma única substância divina, e, tal qual Spinoza, Sturm parece
fazer de Deus a verdadeira natureza das coisas. Aquilo que é desprovido de toda
potência ativa, de toda marca distintiva, de toda razão de subsistir, não pode ser
considerado uma substância.
É interessante como o mesmo ocasionalismo será reafirmado por George Berkeley doze
anos depois em seu Treatise. Entre os argumentos do bispo anglicano de Cloyne está
exatamente a noção de que o conceito de Natureza é de origem pagã e de que
verdadeiros cristãos deveriam admitir que todas as coisas provém de Deus, como afirma
:
explicitamente a Bíblia. O problema é que negar a natureza significa dissolver as
criaturas, pois se Deus é a única agência causal não há nada de substancial nas coisas,
nada que caracterize X como X.
...
Leia também:
...
*Em inglês, understanding, "estar por baixo", algo como estar no fundamento da coisa, no
que a sustenta.
*** Agregado tem aqui o sentido daquilo que está junto sem nenhum princípio unificante
real. Como várias folhas de árvore pode ser arrastadas pelo vento e juntas formarem um
monte sem que haja nenhuma unidade real por trás dessa união que é meramente
fortuita.
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