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Nicolai Hartmann e sua Ontologia.

«A nossa época está em vésperas de uma nova metafísica, diferente, é certo, da antiga, de uma
metafísica que se tornou nossa e muito modesta e que renuncia à especulação, mas que, no
entanto, em virtude dos problemas que aborda, é uma metafísica autêntica». (Nicolai Hartmann)

A filosofia contemporânea anunciou a morte da metafísica. No entanto, três


dos maiores filósofos contemporâneos construíram sistemas metafísicos: Samuel
Alexander, Nicolai Hartmann e Alfred North Whitehead. No Brasil, é possível obter
uma licenciatura de Filosofia sem nunca se ter estudado o pensamento metafísico e
ontológico destes autores. Não admira que os nomes de outros filósofos ligados à
Filosofia do Ser sejam completamente desconhecidos: R. Le Senne, Louis Lavelle e
Paul Häberlin, entre tantos outros, foram rasurados ou sequer integraram algum dia
em nossos currículos nacionais de filosofia. Os cursos de filosofia são, pelo menos no
Brasil, mentiras institucionais. A palavra "metafísica" foi forjada por Andrónico de
Rodes, quando, ao colocar em ordem as obras de Aristóteles, deu esse título a uma
delas: «a obra que vem depois da física». A palavra "meta-física" - a obra que se
segue à física - adquiriu mais tarde outro sentido: o sentido de um "mais além" dos
domínios da física. E, em certos círculos intelectuais, uns obscuros, outros super-
iluminados, foi definida como tentativa de levar a um "mais além", mediante um salto
de imaginação que abandona todo o argumento controlável. Ora, a palavra
"metafísica" é utilizada pelos filósofos já referidos para designar a teoria do ente
enquanto ente, isto é, a teoria do ser, desenvolvida com meios racionais, sem, no
entanto os limitar aos procedimentos das ciências da natureza. Hartmann traça uma
distinção clara entre metafísica e ontologia: a ontologia trata da estrutura e da
essência do ser, enquanto a metafísica elucida proposições de existência, isto é,
juízos sobre a existência dos entes. Assim, de acordo com esta distinção, o problema
do conhecimento é um problema metafísico: o que está em causa no problema do
conhecimento é a pergunta pela existência do que é em si. Mas há uma outra
diferença entre ontologia e metafísica: além de investigar problemas singulares, a
metafísica procura esboçar uma visão total da realidade. A ressurreição da
metafísica de que fala Peter Wust (1921) mais não foi - no caso de Hartmann - do que
o renascimento da ontologia: a ideia diretriz da sua obra é a independência da
teoria do conhecimento em relação à ontologia. Em Platos Logik des Seins (Lógica
do Ser em Platão), Hartmann (1909), ainda sob a influência do neokantismo da
Escola de Marburgo, fundada por Hermann Cohen, afirma a prioridade do
conhecimento sobre o ser: «O ser não descansa em si mesmo; o pensamento é quem
o faz surgir» (Cohen). Abandona esta posição quando publica Grundzüge einer
Metaphysik der Erkenntnis (Fundamentos de uma Metafísica do Conhecimento) em
1921, onde defende a independência do objeto em relação ao sujeito. Hartmann rejeita
assim o ponto de vista idealista a favor de uma doutrina realista que marcou
profundamente o realismo hipotético de Konrad Lorenz, cuja convicção fundamental
é a de que «tudo isso que o nosso aparelho cognitivo - moldado no decurso da
evolução filogenética - nos comunica corresponde aos dados reais do mundo extra
subjetivo».

É muito difícil resumir em poucas palavras a ontologia de Nicolai Hartmann. O


meu primeiro contacto com a Ontologia de Hartmann (cinco volumes) foi mediado por
Konrad Lorenz, no decurso do meu primeiro ano de Medicina: o realismo hipotético
de Lorenz e a epistemologia evolutiva de Donald Campbell permitiram-me fazer uma
leitura neuro-lógica da teoria kantiana do ser, tal como a interpretou Heidegger na
sua obra Kant e o Problema da Metafísica. A ontologia completa de Hartmann
desenvolve-se em três partes: a primeira, Zur Grundlegung der Ontologie (1933),
estabelece os fundamentos desta ciência; a segunda, Möglichkeit und Wirklichkeit
(1938), ocupa-se da teoria da modalidade; e a terceira, Der Aufbau der realen Welt
(1940), a mais importante, ocupa-se da construção da própria ontologia. Esta
construção assume a forma de uma teoria geral das categorias, destinada a esboçar
o perfil da "fábrica do mundo real". (Os dois últimos volumes são dedicados à filosofia
da natureza.) Influenciado por Aristóteles, Kant e Hegel, bem como pela
fenomenologia, Hartmann elaborou uma filosofia do ser, para combater o predomínio
do positivismo, subjetivismo, mecanicismo e materialismo no campo de batalha
filosófica, cujos aspectos originais são os seguintes: a distinção entre o ser real e o ser
ideal, a teoria do resto ininteligível e a doutrina do espírito objetivo. Para Hartmann, as
questões fundamentais do campo de investigação filosófica são de natureza
ontológica: todo o pensamento teórico coloca a questão do ente enquanto ente. O
pensamento que pensa algo em vez do nada conjura já a questão do ser, cujo
transfundo metafísico não pode ser iludido pelas ciências da natureza. Hartmann
critica a metafísica antiga pelo seu duplo-desvio: pretender oferecer uma solução
definitiva para aquilo que não tem solução e, deste modo, construir sistemas fechados.
Metafísico significa irracional e a irracionalidade equivale a incognoscibilidade. É
certo que cada ser-em-si é cognoscível, mas isso não significa que não haja para nós
o incognoscível, de resto bem evidenciado nas contradições que surgem quando
tentamos resolver determinados problemas. O que importa no plano filosófico não são
os sistemas, mas os problemas. Supondo a unidade do mundo como algo dado, os
sistemas metafísicos antigos estabelecem a priori alguns princípios, a partir dos quais
edificam os seus sistemas do mundo mediante a dedução. O método adequado é
precisamente o inverso: a philosophia prima só pode ser philosophia ultima, porque a
ratio cognoscendi caminha em direção oposta à da ratio essendi. Com esta crítica da
metafísica antiga, Hartmann define a metafísica não como uma ciência, mas sim como
uma conexão de interrogações para as quais não há respostas, pelo menos
respostas definitivas, porque, ao longo da história da filosofia, os mesmos problemas
voltam a surgir de novo sem terem recebido uma solução: o trabalho mais importante
do filósofo é, pois, a colocação do problema, a qual pressupõe sempre uma mistura
peculiar de conhecido e de desconhecido numa atitude de busca permanente. Os
conceitos fundamentais da teoria do conhecimento de Hartmann são os de ser-em-si
e de transcendência. Do ponto de vista fenomenológico, o conhecimento é uma
relação entre o sujeito e o objeto: sujeito e objeto, separados um do outro nesta
relação, pertencem à essência do conhecimento. Mas esta relação é também uma
correlação, no sentido em que o sujeito só é sujeito para um objeto e o objeto só é
objeto para um sujeito. Esta correlação não é reversível, porque ser sujeito é algo
completamente distinto de ser objeto: a função do sujeito consiste em apreender o
objeto, a do objeto em ser apreendido pelo sujeito. Para apreender o objeto, o sujeito
precisa sair da sua própria esfera e de invadir a esfera do objeto, de modo a recolher
as suas propriedades. O sujeito não arrasta o objeto para dentro da sua esfera, como
é evidente: ele retém apenas uma imagem do objeto, que permanece transcendente
relativamente ao sujeito. Esta imagem é objetiva, na medida em que leva em si os
traços do objeto. A transferência das propriedades do objeto para o sujeito implica o
predomínio do objeto sobre o sujeito: o objeto em si mesmo - o ente - existe
independentemente do sujeito cognoscente e é anterior a ele, o que significa que,
segundo Hartmann, a essência do conhecimento consiste não na produção de um
objeto, mas na sua apreensão. A ideia de verdade implica uma relação de
coincidência ou concordância entre o objeto em si e a imagem apreendida pelo
sujeito. Hartmann define o conhecimento como um ato transcendente. Um ato
transcendente não é apenas aquele ato que se desempenha na consciência, como por
exemplo, pensar, representar ou recordar, mas também o enlaçamento da consciência
com aquilo que subsiste independentemente dela, precisamente o ser-em-si que
existe independentemente da consciência e que não é somente ser-para-nós. O
conhecimento tem a vantagem de ser o único ato transcendente puramente captador:
a relação do sujeito com o objeto é receptiva, no sentido em que o sujeito - isto é, a
imagem do objeto apreendida pelo sujeito - é determinado pelo objeto. Ao destacar a
conduta receptiva do sujeito perante o objeto, Hartmann não está a negar
a espontaneidade do sujeito no conhecimento: o que ele afirma é que esta
espontaneidade - não sendo uma atividade orientada para o objeto - se esgota
na síntese da imagem do objeto. O sujeito é receptivo perante o objeto e ativo perante
a imagem do objeto. A identidade suposta pela ideia de verdade como concordância
entre a imagem e o objeto não pode ser total, porque subsiste aquilo a que Hartmann
chama o transobjetivo ou, como lhe chamo, o excesso de objeto: a parte do objeto
que não foi transferida para a imagem, mas que é, todavia, cognoscível. Há, portanto,
uma "fronteira de objeção" que separa o objeto conhecido do transobjetivo: o esforço
do sujeito consiste em fazer recuar o mais possível este limite provisório imposto ao
seu conhecimento. Porém, além desta fronteira de objeção, há um outro limite, o limite
do transinteligível, constituído por tudo o que escapa à investigação racional. Atrás
da fronteira da objecção ergue-se uma outra fronteira, desta vez definitiva e
intransponível: a "fronteira da cognoscibilidade", «atrás da qual se abriga o
irracional». Hartmann converte assim a fenomenologia em saber do não-saber.

A ontologia de Hartmann - que estuda a parte cognoscível do ser - assenta


numa observação fundamental: o ser aparece com duas dimensões, a dimensão das
quatro esferas do ser, que se distinguem claramente entre si, e a dimensão dos
níveis do ser, que correspondem a cada uma das esferas. Hartmann distingue duas
esferas primárias do ser, a do ser real e a do ser ideal, e duas esferas secundárias, a
esfera do conhecimento e a esfera lógica. A esfera do conhecimento e o modo real
do ser relacionam-se de modo tão íntimo como a esfera lógica e o modo ideal do ser.
O ser ideal é tão em-si como o ser real, e, tal como este último, pode ser conhecido,
sendo o conhecimento a apreensão ou a captação de algo que é em-si. As espécies
mais conhecidas do ser ideal são o reino das essências, o reino dos valores e o
reino do ser matemático. Embora apareça como estrutura fundamental no real, o
mundo das essências não se esgota nesta circunstância, porque há conteúdos do ser
ideal que não estão realizados ou efetivados, como por exemplo os espaços com
mais de três dimensões. Além disso, há ser real não submetido às leis do ser ideal: o
alógico, o contrário ao valor e o realmente contraditório. Todo o ser ideal é geral,
dando-se em formas, leis e relações. E, quando comparado com o ser real, ele é
inferior, ao contrário do que defende Platão. O ser ideal não se identifica com o
racional, porque, no seu âmbito, há - como já vimos - o irracional. O facto do
transinteligível subtrair-se aos preconceitos idealistas atesta a falsidade do próprio
idealismo. À esfera do ser real correspondem quatro níveis ou estratos do ser:
matéria, vida, consciência e espírito. À esfera do conhecimento ou gnosiológica
correspondem, de modo quase paralelo, a percepção, a intuição, o conhecer e o
saber. E à esfera lógica correspondem os níveis do conceito, juízo e raciocínio.
Estes níveis do ser são determinados pelas categorias ou princípios do estrato
correspondente. Hartmann distingue dois tipos de categorias: as categorias modais e
as categorias fundamentais, que, não constituindo um sistema como sucede nas
filosofias de Kant e de Alexander, se apresentam soltas num quadro de antíteses do
ser. (Hartmann vai buscar à Metafísica e à Física de Aristóteles o termo aporética
para designar o conjunto dos problemas insolúveis: «Ela - a aporética - examina e
sonda o dado, verifica as contradições que nele estão contidas e dá-lhes o vigor do
paradoxo que está ligado a todo o antagonismo na realidade».) Dos doze pares
conceptuais analisados por Hartmann destacamos os pares antitéticos forma-matéria,
interior-exterior, determinação-dependência e qualidade-quantidade. A sua exposição
das categorias culmina na formulação de numerosas leis categoriais, as mais
importantes das quais são a lei da força (o inferior é mais forte do que o superior) e a
sua antítese, a lei da liberdade (o estrato superior é autónomo, porque é mais rico em
determinações específicas do que o estrato inferior). É certo que cada um dos estratos
superiores se eleva sobre um estrato inferior, mas as suas relações não são sempre
as mesmas. Assim, por exemplo, o estrato orgânico constitui uma "super-formação" do
corpóreo-espacial da matéria, sobre o qual se elevam, por sua vez, os níveis da
consciência e do espírito como "supra construções" relativamente - e cada vez mais -
independentes da vida, no sentido de não se reproduzirem neles todas as categorias
do estrato imediatamente inferior. A teoria dos integrões de François Jacob tem
afinidades com a ontologia diferencial de Hartmann. O aspecto mais original da
teoria dos modos de ser de Hartmann reside na afirmação de que a análise modal
das quatro esferas do ser conduz a resultados diversos. Há, em cada esfera, modos
diferentes do ser, modos esses que se dividem em absolutos (realidade e irrealidade)
e relações (possibilidade, impossibilidade e necessidade). A contingência é um modo
negativo, contrário à necessidade, e a necessidade absoluta é também contingência
absoluta. A possibilidade ocupa um lugar de destaque na análise modal. Para
Hartmann, no ser só é possível aquilo cujas condições são todas elas reais, donde
resulta que tudo o que é possível é, ao mesmo tempo, real e necessário, e tudo o que
é negativamente possível é irreal e impossível. No entanto, os modos não são
idênticos, porque a implicação não é identidade. A distinção entre possibilidade
positiva e possibilidade negativa repousa na lei atual da possibilidade disjuntiva, a
qual possui validez no ser real, em oposição ao ser lógico. Os momentos do ser são
determinados pelo par essência-existência: o ser-assim (Sosein), o que algo é, e o
ser-aí (Dasein), que algo é, os quais aparecem como diferentes nas duas esferas
primárias do ser. O ser-aí e o ser-assim ideais só podem ser conhecidos a priori, ao
passo que o ser-aí real só pode ser a posteriori. Não sendo possível equiparar o ser-
assim ao ser ideal e o ser-aí ao ser real, não pode haver nenhuma distinção absoluta
entre estes dois momentos do ser, cuja diferença só subsiste em relação à totalidade
do universo e do ente singular.

Para substituir o dualismo kantiano do fenómeno e da coisa-em-si, Hartmann


estratifica o mundo real em quatro camadas constituídas pelo inorgânico, o orgânico,
o psíquico e o espiritual. Os dois primeiros estratos diferem dos dois últimos: a vida
assenta na matéria e o espírito tem necessidade da psique para se desenvolver num
organismo vivo. Mas há um fosso entre a matéria e a vida, por um lado, e entre a
psique e o espírito, por outro lado, porque os dois últimos não contêm nem processo
vital nem elementos materiais. Os estratos inferiores são os mais fortes, mas, devido
ao seu novum, os estratos superiores gozam de uma autonomia e de uma liberdade
maiores, o que permite a realização de valores mais elevados. Na ontologia de
Hartmann, o espírito é apenas um estrato do real. Como vimos, o ser espiritual
encontra-se separado do ser anímico, sobre o qual se eleva: o nível de consciência
que corresponde ao ser anímico abrange também os animais, não sendo aí que reside
a novidade categorial do homem. O estrato espiritual constitui um estrato fechado do
ser e articula-se em três formas do ser: o espírito pessoal, o espírito objetivo e o
espírito objetivado. As duas primeiras formas do ser espiritual são espírito vivo, ao
passo que a terceira forma é, de certo modo, espírito morto. O espírito é real e
individual, e a sua existência é temporal. A temporalidade do espírito é, portanto, a do
mundo. No entanto, o espírito possui categorias e traços próprios: o espírito que está
em processo, é, ele próprio, processo. Não sendo substância, o espírito tem que se
identificar consigo mesmo. Não sendo espaço, o espírito está vinculado ao espaço e
encontra-se no mundo real, do qual depende, embora esta sua dependência seja a de
um ser que domina as potências que manipula. O espírito individual caracteriza-se
pela consciência espiritual, sendo o único sujeito propriamente dito: a sua
consciência é excêntrica e, por isso mesmo, consciência do objeto. O espírito
inscreve-se na "atualidade" da conexão da vida e, como polo da diversidade destas
conexões, constitui a pessoa: a personalidade é o carácter categorial fundamental do
espírito individual, cujo traço primeiro reside na sua capacidade de auto-constituir-se
ou de auto-realizar-se de modo espontâneo. O outro traço específico do espírito
individual é a transcendência dos seus atos: a pessoa humana está em situação, tal
como o animal, mas, graças à sua consciência do objeto, pode modificar o meio
através da ação e transcender-se nos seus atos, de modo a viver por cima de si e a
referir-se a algo superior. O espírito individual é, por essência, expansivo e livre. Uma
propriedade fundamental da vida espiritual é a desprendibilidade dos conteúdos -
objetos intencionais - em relação à pessoa. Tudo aquilo que de uma pessoa se
objetivou numa expressão já não pode ser retido por ela: os produtos objetivados
viajam de pessoa para pessoa, e este é - seguramente - o fenómeno fundamental do
espírito objetivo. Todos estes conteúdos objetivos - direito, moral, linguagem, fé,
religião, saber, arte - constituem o campo do espírito histórico: a historicidade
mostra que eles não se esgotam em puros conteúdos, na medida em que estão
sujeitos ao viver, devir e morrer, traços estes que constituem uma esfera particular do
ser. O espírito objetivo não se identifica com nenhum dos indivíduos que formam uma
coletividade nem tampouco com a sua soma. Hartmann distancia-se de Hegel quando
afirma que o espírito objetivo não é uma substância ou mesmo um universal. Dando-
se no seio de uma coletividade, o espírito objetivo - único, individual, histórico e
autónomo - é toda a vida espiritual na sua totalidade real e efetiva tal como se
desenvolve através dessa coletividade humana. A relação entre espírito objetivo e
espírito individual é uma relação de reciprocidade: o indivíduo cresce dentro do
espírito objetivo e o espírito objetivo é vivo nos e através dos indivíduos. De acordo
com a lei da tradição, o espírito objetivo não se herda; ele transmite-se, e o seu
conteúdo não se esgota em nenhuma das suas representações. Em virtude disso, o
espírito objetivo desfruta de uma mobilidade própria: a sua consciência não está nele
próprio, já que ele não é uma consciência plural ou uma pessoa plural, nem tão-
pouco um espírito inconsciente ou supraconsciente, mas nas pessoas individuais
que vivem em comunidade. Ora, dado o carácter inadequado da consciência dessas
pessoas, o espírito objetivo é sempre um espírito incompleto, que, numa comunidade
hierarquizada, tende a ser representado pela consciência representadora do
indivíduo que a dirige. O espírito individual e o espírito objetivo exteriorizam-se e
objetivam-se, de modo a constituir o espírito objetivado. O estudo do espírito
objetivado coloca problemas extraordinariamente difíceis, que Hartmann tenta
solucionar quando aborda temas como a estética, a história, a ciência e outros
campos da cultura, os quais permitem elucidar o modo como o espírito objetivado se
desprende do espírito vivo. Aqui direi apenas que, lá onde aparece o espírito
objetivado, o espírito cultural, temos sempre duas camadas: a formação real
sensível, como camada sustentadora, e o conteúdo espiritual. (A sociologia em
profundidade de Georges Gurvitch é também herdeira do pensamento filosófico de
Hartmann!)

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