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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE TEOLOGIA

MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º grau canónico)

PEDRO CORREIA GUEDES GALHARDO DE FIGUEIREDO

Leibniz: a existência de Deus e a do mundo


Estudo sobre a obra De rerum originatione radicali

Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular de Teologia


Filosófica
Leccionada por:

Prof. Doutor Joaquim Teixeira


Profª. Doutora Maria Inês Bolinhas

Lisboa

1
2016

Índice

Introdução 3

Capítulo I: Do princípio da razão suficiente ou determinada 4

Capítulo II: Da essência à existência 5

Capítulo III: A perfeição moral 9

Conclusão 11

Bibliografia 12

Anexo 13

2
Introdução

Pretendemos neste trabalho aprofundar o sentido da essência e da existência partindo

desta obra de Gottfried Wilhelm Leibniz. Procuraremos alinhavar um discurso de índole

teorético, adaptado aos tempos hodiernos. Através da análise deste texto de 1697, escrito

antes da Monadologia de 1714, obra marcante pela forma como o autor expressa a sua

intelecção da realidade, enlevaremos o sentido metafísico e profundo, fazendo estremecer

aquilo que um escrito datado do século XVII pode hoje, em pleno século XXI, fazer com que

seja admirado e contemplado.

Denotamos nesta obra um vigor extremamente espiritual, na qual o autor se preocupa

em observar uma realidade metafísica, partindo do mundo material. “Leibniz precisa de

provar na filosofia a existência de Deus” 1. Neste opúsculo não é demonstrado o modificado

argumento ontológico de Santo Anselmo, que constituiu um fundamento capital de toda a

metafísica racionalista do século XVII. Para Leibniz, é preciso provar a possibilidade da

existência de Deus, e só então se garante a sua existência, em virtude da prova ontológica. 2

“Se Deus é possível, existe. E a essência divina é possível, porque, como não encerra

nenhuma negação, não pode ter nenhuma contradição; portanto, Deus existe”.3

Partindo da apresentação feita oralmente, em aula, cuja incidência individual se deu no

segundo capítulo desta exígua dissertação, adicionamos o primeiro e terceiro capítulos

discutidos em grupo. A saber: Do princípio da Razão Suficiente ou Determinada, passando

pela explanação da essência à existência, terminando na perfeição moral.

1
J. MARÍAS, História da Filosofia, Livraria Martins Fontes Editora Lda., São Paulo, 2004, 263.
2
Cf. Ibidem.
3
Ibidem.
3
Capítulo I: Do princípio da Razão Suficiente ou Determinada

O pensamento leibniziano exposto no De rerum originatione radicali inicia-se numa

referência ao “agregado de coisas finitas” 4, isto é, o mundo, partindo directamente para uma

progressão existencial que culmina na “unidade dominante”5. Esta unidade dominante é

entendida como uma unidade que governa, constrói e faz o mundo, sendo-lhe superior e a

razão última das coisas. “Uma razão suficiente para a existência não pode ser encontrada em

coisa alguma singular, nem no todo agregado e séries das coisas” 6. Elencando dois exemplos,

o autor propõe-nos uma explanação acerca da necessidade da razão suficiente como um livro

eternamente existente multiplicado de forma indefinida, sem ser possível encontrar em

qualquer das infinitas cópias deste livro a razão da sua existência e a de ser daquele modo e

não de outro qualquer, sendo apenas possível encontrá-la numa que seja, sem precedente, per

si, “a ordem da contingência (…) tem de estar numa substância, que, sendo um ser necessário,

tenha em si a razão de ser da sua existência” 7. “O que é verdade para os livros é-o também em

relação aos diferentes estados do mundo; para um estado subsequente há um modo copiado de

um antecedente”8.9

Desta forma, Leibniz sugere que até com um mundo eterno há a necessidade de uma

razão extra-mundana. Com efeito, há uma razão, mesmo sem causa, para as coisas eternas;

nas coisas que persistem a razão é a sua necessidade ou essência; e nas séries das coisas

mutáveis se se imagina a sua razão como a priori por ser eterna, será uma prevalência de

inclinações, isto é, de razões não necessitadas mas inclinadas. Estão, assim, as razões do

mundo “escondidas em algo extra-mundano”10, que será Deus.

4
G. LEIBNIZ, Sobre a origem última das coisas, Anexo, 13.
5
Ibidem, 13.
6
Ibidem, 13.
7
Ibidem, 13.
8
Ibidem, 13.
9
Este exemplo recorda-nos as 1ª e 2ª vias de Santo Tomás para a existência de Deus.
10
Ibidem, 13.
4
Capítulo II: Da Essência à Existência

De tudo o que afirmámos antes, decorre que as verdades temporais, contingentes ou

físicas, brotam das verdades externas, essenciais ou metafísicas. O primeiro argumento do

autor é apupado pelo raciocínio que o próprio faz da existência de algo em detrimento do

nada. Este raciocínio é simples: na possibilidade ou na própria essência há uma certa procura

pela existência, “uma força em direcção à existência” 11, “um grito para existir”12. Todas estas

são expressões que nos canalizam o olhar da seguinte forma: tudo o que é possível procura

uma existência. Se a existência surge por uma possibilidade, então isso significa que a

procurada existência é intrínseca a uma essência. O que existe devém sempre de uma

possibilidade que quanto mais pura é, mais perfeita se encontra. Este é o segundo argumento

do autor.

“Num mundo, a essência nela mesma empenha-se na existência” 13. Se todas as coisas

possíveis são aquelas cuja expressão reflecte uma essência ou realidade possível, isso

significa que “lutam de igual forma pela existência na proporção da sua quantidade de

essência ou realidade”14. Daqui entendemos a perfeição como uma quantidade de essência.

Quanto maior grau de perfeição, maior grau tem de essência. Utilizando uma imagem

ocorrida para ilustrarmos esta relação, imaginemos a prole de um cão de raça x procriando

com uma cadela de raça y. Esta prole não será pura de x, mas apenas participará da raça x em

percentagem inferior ao primeiro cão gerador. Assim, aquele com maior quantidade de raça x

[essência] será o maior detentor de porção de raça x [grau de perfeição]; imaginando o cão

perfeito como o cão puro de raça x. Observamos, assim que “Leibniz quer aduzir que

11
Ibidem, 14.
12
Ibidem, 14.
13
Ibidem, 14.
14
Ibidem, 14.
5
nenhuma razão (ou causa) extrínseca pode ser dada como prova para a existência de Deus; o

ser necessário é a própria razão suficiente”15.

Das infinitas possibilidades, segundo Leibniz, tem que acontecer a melhor pois é a

mais perfeita, logo a detentora de maior essência, e consequentemente a mais empenhada na

existência. Sabemos que quanto mais perfeito é algo, de maior essência é detentor, e de

quanta mais essência for portador, maior será o empenho na existência. Desta maneira, há um

princípio de determinação, razão suficiente para as coisas existirem, pois o detentor de mais

força para existir, existe, na medida em que participa da essência. Podemos entrever a

existência, aqui, de uma economia em que “o maior efeito deve ser produzido com o menor

gasto”16, efeito este que advém do princípio de determinação que “tem de ser procurado como

máximo e mínimo”. No entendimento leibniziano, o mínimo é a razão, a partir da qual é

permitido quantificar algo, até um máximo. Sem o mínimo não seria possível entrever um

máximo, nem defini-lo.

Sucintamente, esta economia pode-se explanar com a seguinte imagem do próprio

autor: o terreno no qual um edifício é para ser construído tão adequadamente quanto possível

corresponde ao tempo e lugar, num mundo, a sua receptividade ou capacidade 17. Estes

constituem um receptáculo deste “mínimo” – o princípio da determinação; a variedade das

formas do edifício que se situa neste terreno equivalerá ao aspecto da construção e ao número

dos seus quartos. Esta variedade de formas só se dá por haver um terreno no qual se constrói

um edifício, mínimo a partir do qual o autor cogita a possibilidade da construção de uma

existência a partir de um grau de essência, determinante da sua perfeição.

“Há uma regra definida que nos diz como o máximo de espaços é preenchido com

maior facilidade”18. De igual forma, Leibniz assume que o ser prevalece sobre o nada, ou

neste caso, o não-ser: “Que existe uma razão pela qual alguma coisa deve existir, ou que isso
15
F. COPLESTON, A History of Philosophy, vol. IV, image books, New York, 1994, 325. “Leibniz means that
no extrinsic reason (or cause) can be given for God’s existence: the necessary being is its own suficiente reason”.
16
G. LEIBNIZ, Sobre a origem última das coisas, Anexo.
17
Intuição a partir da qual Kant pode ter partido para estabelecer as condições a priori no seu devir filosófico.
18
Ibidem, 14.
6
é uma transição da possibilidade para a actualidade, então, mesmo que mais nada seja

determinado, existe”19.

Destarte, para não deixarmos escapar as expressões do autor, uma “matemática

divina”, ou uma “mecânica metafísica”20 são o princípio de Razão suficiente, entendidas como

uma orientação divina.

Observamos o autor alemão defender a sustentação do bem pelo máximo. Sendo o

máximo a perfeição como quantificação da essência, o bem existe nesta relação, enquanto se

dá esta economia. É esta própria determinação que não deixa as coisas serem mais do que

ontologicamente são.21 Sabemos empírica e cientificamente que um líquido posto noutro,

organiza-se para a forma mais espaçosa.22

O Mundo surge quando a máxima produção de possíveis toma lugar, provindo esta

necessidade física de uma necessidade metafísica. Tal é o grau desta constatação leibniziana,

podendo ser verosímil afirmar a inocuidade da física diante da metafísica. Sobriamente

dizemos que Deus pode existir sem o mundo, mas o mundo não pode existir sem Deus. A

existência do mundo sem Deus seria um absurdo moral, uma imperfeição.

Partindo destes dois pressupostos leibnizianos de que a possibilidade é o princípio da

essência, e a perfeição o da existência, patenteamos o círculo em que se torna este raciocínio:

Sem a possibilidade não pode ser; se não pode ser, não pode existir; se não pode existir, não é

perfeito e a perfeição é o princípio da existência.

O autor do mundo pode fazer tudo determinado, pois age sempre de acordo com a

sabedoria e a perfeição. É por a ignorância ser contraditória à sabedoria, que dela nasce a

indiferença, sendo-o em relação ao autor do mundo. Antes de procedermos à explanação da

prova do melhor mundo possível, de referir que Leibniz defende a possibilidade da existência

19
Ibidem, 14.
20
Ibidem, 14.
21
Podemos associar, a esta intuição, o princípio de incomunicabilidade ontológica.
22
Segundo o princípio de Le Chatelier, se for imposta uma alteração de concentrações ou de temperatura, num
sistema químico em equilíbrio, a composição do sistema deslocar-se-á no sentido de contrariar a alteração a que
foi sujeita, exemplo pensado e ilustrado em apresentação oral.
7
de outros mundos, por a metafísica ser independente da física, outros mundos são possíveis

mas inexistentes23.

Os mecanismos metafísico e físico não se comparam, devido à superioridade

metafísica. O metafísico não é ficcional, mas existe em Deus, fonte da essência e da

existência.

Em jeito de fenecimento, a razão última, a qual só pode ser encontrada numa fonte, da

qual tudo flui, na qual tudo é e foi produzido, é Deus. O surgimento do mundo dá-se aquando

da máxima produção de possíveis.

23
Já São Tomás, primeiramente, e postumamente Abelardo afirmam no séc. XII acerca deste devir, ainda que de
forma diferenciada.
8
Capítulo III: A perfeição moral

Se neste texto, o autor nos sugere a possibilidade de uma perfeição física, então nesta

última parte, conduz-nos até uma perfeição moral. Esta questão levar-nos-á à grande

problemática que lhe é grudada, o mal.

Deus age física e livremente, e n’Ele tem de existir simultaneamente a causa eficiente

e a final. Há assim razão da grandeza ou poder do mecanismo de Deus, mas também para a

bondade e sabedoria. Esta não é confundível com a perfeição metafísica. O mundo é o

fisicamente (ou metafisicamente) o mais perfeito pois as séries de coisas produzidas contém o

máximo de realidade possível sendo, por essa razão, o mundo moralmente mais perfeito por a

perfeição moral ser a perfeição física das coisas nas mentes. O Mundo é não só a maquina

mais admirável como a melhor comunidade, ao nível da mente.24

No mundo encontramos aquilo que é tantas vezes chamado de “oposto da perfeição” 25.

Pessoas inocentes mortas e torturadas, o caos nas cidades, tudo governado com o aparente

contraditório da suprema sabedoria. Para o filósofo, num exame mais profundo estabelece-se

o oposto. Diga-se: a priori, partindo destas considerações, esta é a maior perfeição possível de

todas as coisas, e das mentes. Esta maior perfeição é-a por ser governada pela razão última

das coisas. Irrazoável será julgar qualquer situação como causadora de sofrimento e de um

mundo não tão bom quanto poderia ser. Só possuindo todos os elementos do mundo, algo

humanamente impossível, se poderia recta e justamente julgar algo com justiça. Ora, partindo

de um olhar diminuído, isso não é plausível de ser executado.

Esta incapacidade do julgamento humano perfeito sobre a razão dos acontecimentos

não faz o autor menosprezar a parte sobre o todo. Coarctar ou desestimar a parte integrante de

um todo seria vilipendiar a perfeição da harmonia do universo, algo situado fora das

possibilidades por, de facto, existir o melhor dos mundos possíveis.

24
Cf. Ibidem, 16.
25
Expressão posta em aspas.
9
A lei da justiça é a que dita como cada um toma parte na perfeição do universo em

busca do bem comum, garantido pela caridade e amor divinos. Podemos entrever, assim, que

a relação das mentes com Deus não é apenas a de máquinas com o seu fabricante, mas

também como cidadão do seu príncipe26.

O filósofo germânico explica, assim, as aflições dos homens como resultado de um

maior bem para estes, teológica e fisicamente. As aflições são um “bom” mal temporário,

visto serem caminhos mais rápidos para a ascensão.

26
Cf. Ibidem, 17.
10
Conclusão

Desfechamos a análise deste opúsculo verificando, em primeiro lugar, a preocupação

revelada por Leibniz acerca do princípio da razão suficiente, do qual parte todo o seu

pensamento, desde a formulação da existência do mundo, até ao porquê de existir desta forma.

“Leibniz demonstra que as verdades de facto são hipoteticamente necessárias, no sentido em

que um estado a posteriori do mundo é determinado por um estado a priori do mesmo”27.

Consequência desta formulação existencial é a unidade consignada pelo autor no sentido da

essência e da existência, que só pode acontecer em Deus. Entrevemos também aqui uma ponte

com a unidade, luta desferida pelo autor durante a sua vida muito concretamente nas igrejas

cristãs e passível de ser observada como uma marca característica do filósofo, até no seu

próprio pensamento.

O princípio da determinação está presente na prova da existência de Deus, do qual o

autor parte identicamente para uma aplicação ao nível da contingência, do mundo.

A reflexão na questão moral incide na perfeição física das coisas jornadeando até à

perfeição moral. Nesta jornada denotamos uma preocupação na exposição do problema do

mal, encarado como “uma semente lançada na terra [que] sofre antes de dar fruto” 28. O autor

faz-nos ir mais longe, olhando para o mal como um passo atrás que é dado de forma a permitir

um melhor salto para a frente. E que, portanto, o facto de as coisas que crescem mais

lentamente são também aquelas em que as impurezas saem com mais força, assim como dar

um passo atrás, para um melhor salto não sejam consideradas apenas como prazerosas ou

consoladoras, mas como a mais pura verdade. 29 Esta verdade é a felicidade, “e nada [há] mais

feliz e doce que a verdade”30.

27
F. COPLESTON, A History of Philosophy, vol. IV, image books, New York, 1994, 325. “Leibniz remarks that
truths of fact are hypothetically necessary, in the sense that a posterior state of the world is determined by a prior
state”.
28
G. LEIBNIZ, Sobre a origem última das coisas, Anexo, 17
29
Cf. Ibidem, 17.
30
Ibidem, 17.
11
Bibliografia

I – FONTE

LEIBNIZ, G. Sobre a origem última das coisas, [tradução por Bernardo Amarelo e Ricardo

Mendes] [em anexo].

II – OBRAS AUXILIARES

COPLESTON, F., A History of Philosophy, vol. IV, image books, New York, 1994.

MARÍAS, J., História da Filosofia, Livraria Martins Fontes Editora Lda., São Paulo, 2004.

12
Anexo:

Sobre a origem última das coisas

Além do mundo ou agregado de coisas finitas, há uma certa unidade dominante, não
apenas como a alma é dominante em mim, ou melhor, como o eu é dominante no meu corpo,
mas também num sentido muito mais nobre. Com efeito, a unidade dominante do universo
não apenas governa o mundo, como o constrói e faz; e isso é superior ao mundo e, por assim
dizer, extra-mundano, sendo assim a razão última das coisas. Pois uma razão suficiente para a
existência não pode ser encontrada em coisa alguma singular, nem no todo agregado e séries
das coisas. Imaginemos que o livro dos elementos de geometria sempre existiu: um [novo] é
sempre cópia de outro [anterior]; é evidente que, mesmo que se justifique o livro presente
com o anterior, do qual foi copiado, jamais iremos chegar a uma razão completa, por mais
livros anteriores que nós consideremos, desde que queiramos verdadeiramente saber o porquê
da existência desde sempre daqueles livros, o motivo de existirem e de terem sido escritos
desta maneira.
O que é verdade para os livros é-o também em relação aos diferentes estados do
mundo; para um estado subsequente há um modo copiado de um antecedente (ainda que de
acordo com certas leis de mudança). E assim, por mais estados a que se recue, nunca se irá
encontrar neles uma razão completa sobre o porquê de haver algum mundo em vez de
nenhum, e o motivo de ser assim como é. Ainda assim, mesmo que se imagine um mundo
eterno, porque ainda se continua a supor apenas uma sequência de estados, e porque não se
encontra uma razão suficiente em qualquer um deles, e, de facto, independentemente da
quantidade de estados se consideram, como não se irá fazer progresso no sentido de a
encontrar, é evidente que a razão deve ser procurada noutro lugar.
Com efeito, nas coisas eternas, mesmo que não haja causa, nós nunca podemos
esquecer que há uma razão, que nas coisas que persistem é a sua necessidade ou essência, mas
nas séries das coisas mutáveis, se se imagina isto como a priori por ser eterno, será uma
prevalência de inclinações, como será depois mais claro, razões não necessitadas (por uma
necessidade absoluta ou metafísica, onde o contrário implica a contradição), mas inclinadas.
Daqui decorre a evidência de que nem sequer supondo a eternidade do mundo nós podemos
escapar à última e extra-mundana razão das coisas, isto é, Deus. Portanto, as razões do mundo
encontram-se escondidas em algo extra-mundano, diferente da sequência de estados, ou das
séries das coisas, o agregado das quais constitui o mundo. Deste modo temos de passar de
uma necessidade física ou hipotética, a qual determina os estados posteriores do mundo a
partir dos anteriores, para algo que é de necessidade absoluta ou metafísica, na qual a razão
não pode ser dada. O mundo presente é física ou hipoteticamente necessário, mas não
absoluta ou metafisicamente. Isto é, assumindo que o mundo esteve sempre num ou noutro
estado, ele continuará a assumir esses estados no futuro.
Com efeito, em última análise deve haver algo que seja metafisicamente necessário, e
não há razão para algo existir excepto de algo que existe, por isso, deve existir algum ser
metafisicamente necessário, isto é, cuja essência seja a existência, e que é diferente da
pluralidade dos seres, isto é, do mundo, o qual, como já garantimos e demonstrámos, não é de
necessidade metafísica.

13
Mas, em ordem a explicitar um pouco mais como as verdades temporais, contingentes
ou físicas brotam das que são eternas ou essenciais ou metafísicas, nós temos de compreender
que, pelo facto de algo existir em vez de nada, isto acontece nas coisas possíveis, isto é, na
possibilidade ou na própria essência, uma certa demanda pela existência, ou, dizendo de outro
modo, uma força em direcção à existência, ou, se me é possível dizê-lo, um grito para existir;
e, mais ainda, num mundo, a essência nela mesma empenha-se na existência.
Daqui segue-se que todas as coisas possíveis, isto é, as coisas que expressam uma
essência ou realidade possível, lutam de igual forma pela existência na proporção da sua
quantidade de essência ou realidade, ou ao degrau de perfeição que cada coisa contém; deste
modo, a perfeição não é senão a quantidade de essência. Daqui se segue que é claramente
compreensível que fora das infinitas combinações de possíveis, e de possíveis séries, existe
algo através do qual uma maior quantidade de essência ou possibilidade é trazida à existência.
Há sempre nas coisas um princípio de determinação que tem ser procurado como máximo e
mínimo; nomeadamente que o maior efeito deve ser produzido com o menor gasto, por assim
dizer.
E assim o tempo, o lugar, ou, num mundo, a sua receptividade ou capacidade, podem
ser considerados como as expensas ou o terreno no qual um edifício é para ser construído tão
adequadamente quanto possível, enquanto a variedade das formas corresponde ao aspecto da
construção e ao número e elegância dos seus quartos.
E a situação é tal que em certos jogos onde todos os espaços no tabuleiro são para ser
preenchidos de acordo com determinadas regras, e onde, a menos que se utilize algum talento,
se irá por fim ser excluído de uns espaços e forçado a deixar mais vazios do que se pode ou
desejou ter.
Mas há uma regra definida que nos diz como o máximo de espaços é preenchido com
maior facilidade. Por isso, se supúnhamos que se tinha tomado a decisão de construir um
triângulo, sem considerar quaisquer outros princípios de determinação, segue-se que é
produzido um triângulo equilátero; e assumindo que uma jogada é para ser realizada de um
ponto para outro, embora nada mais determine o caminho entre eles, será escolhida a via mais
fácil ou mais curta.
Igualmente, uma vez assumido que o ser prevalece sobre o não-ser, isto é, que existe
uma razão pela qual alguma coisa deve existir em vez de nada, ou que isso é para uma
transição da possibilidade para a actualidade, então, mesmo que mais nada seja determinado,
existe, tanto quanto possível de acordo com a capacidade do tempo e do espaço (ou da ordem
da possível existência); mais simplesmente, é como telhas que são dispostas de modo que
ocupem, tanto quanto possível a área dada.
Destas considerações é extraordinariamente evidente como uma certa matemática
divina ou mecânica metafísica é empregada na mais radical origem das coisas, e como a
determinação do máximo sustenta o bem, como, de todos os ângulos, o ângulo correcto é o
determinado na geometria, assim como um líquido posto noutro se organiza para a forma mais
espaçosa, nomeadamente a esférica; mas especialmente como na própria mecânica, onde
muitos corpos pesados embatem uns contra os outros de modo que o movimento finalmente
emerge e pelo qual ocorre a maior descida no todo.
Com efeito, como todas as possibilidades tentam arduamente com igual direito pela
existência na proporção da sua realidade, assim todas as coisas pesadas procuram descer com
igual direito proporcionalmente ao seu peso, e como no último caso o movimento surge, o que

14
consiste na maior descida possível das coisas pesadas, assim no caso anterior um mundo surge
quando a máxima produção de possíveis toma lugar.
E, deste modo, nós temos agora uma necessidade física proveniente de uma
necessidade metafísica, ainda que o mundo não seja metafisicamente necessário, no que o seu
contrário implicaria uma contradição ou um absurdo lógico, é contudo fisicamente necessário,
isto é, de tal modo determinado que o seu contrário implicaria imperfeição ou um absurdo
moral.
Precisamente como a possibilidade é o princípio da essência, assim a perfeição ou o
degrau da essência (através do qual o maior número de coisas é co-possível) é o princípio da
existência. Daqui é também evidente como estas podem ser livres do autor do mundo, mesmo
que ele faça tudo determinado: porque ele age de acordo com o princípio da sabedoria ou da
perfeição. A indiferença, obviamente, surge da ignorância, e quanto mais sábio é alguém,
mais é determinado para o que é mais perfeito.
Mas (pode dizer-se), esta comparação entre um certo mecanismo metafísico
determinista e o mecanismo físico dos corpos pesados, ainda que pareça interessante, é ainda
tão fraco como se a tentativa dos corpos pesados realmente existisse, mas possibilidades ou
essências anteriores ou por trás da existência são imaginárias ou fictícias, e, deste modo,
nenhuma razão para a existência pode ser inquirida nelas.
Eu respondo que nem essas essências, nem as chamadas verdades eternas sobre elas,
são ficcionais, mas que existem numa certa região das ideias, por assim dizer, em Deus
mesmo, a fonte de toda a essência e existência das outras coisas. A própria existência das
actuais séries de coisas indica-nos que parece não termos falado inutilmente.
Como uma razão não é encontrada nas séries, como mostrámos acima, mas deve ser
procurada nas necessidades metafísicas ou das verdades eternas, e as coisas existentes não
poderiam existir excepto se provindas de coisas existentes, como notámos já, devem as
verdades eternas ter existência num sujeito absoluta ou metafisicamente necessário, que é
Deus, através do qual essas verdades, que de outro modo seriam imaginárias, são realizadas,
para utilizar uma palavra bárbara mas perceptível.
Mas nós também descobrimos que tudo acontece no mundo de acordo com as leis das
verdades eternas, e não apenas geométricas mas também leis metafísicas, isto é, não apenas
segundo necessidades materiais mas também segundo noções formais; e não apenas nessa
verdade em geral, que considera essa razão que nós agora explicámos para que o mundo
exista em vez não existir, e porque existe este e não outro qualquer (que é tirado das
emergentes possibilidades para a existência), mas também quando descemos a casos
particulares, vemos o maravilhoso caminho no qual as leis metafísicas da causa, poder e acção
são estruturantes de toda a natureza, e que elas prevalecem sobre as puras leis geométricas da
matéria, como eu descobri, para meu grande assombro, quando me apercebi das leis do
movimento; ainda assim, elas prevalecem numa tal extensão que eu fui finalmente forçado a
abandonar a lei da composição geométrica dos esforços, que defendi na minha juventude
(quando era mais materialista), como expliquei mais adequadamente noutro lugar.
Temos agora portanto a razão última para a realidade das essências e das existências
numa unidade, que é por necessidade maior, superior, e anterior ao mundo, não existindo
apenas coisas que compõem o mundo, mas também as coisas possíveis têm a sua realidade.
Mas devido à interligação de todas estas coisas umas com as outras, esta razão última só pode
ser encontrada numa única fonte. Mais ainda, é evidente que desta fonte as coisas existentes

15
estão continuamente a fluir, são produzidas e foram produzidas ainda que não seja claro o
motivo de um estado do mundo mais que outro, o de ontem mais do que o de hoje, devem
fluir desta fonte.
É ainda evidente como Deus age não só física mas também livremente, e tem de
existir n’Ele não apenas a causa eficiente mas simultaneamente a final, e, com efeito, temos
n’Ele a razão não apenas da grandeza ou poder do mecanismo agora estabelecido no universo,
mas também para a bondade ou sabedoria que nele estão estabelecidas.
E para que não se pense que a perfeição moral ou bondade são aqui confundidas com a
perfeição metafísica ou grandeza, e garantindo o último enquanto se nega o anterior, deve
apontar-se isto que se segue do que disse, não apenas que o mundo é o fisicamente mais
perfeito, ou se se prefere, metafisicamente, isto é, que essas séries de coisas que foram
produzidas contêm tanta realidade quanto possível, mas também que o mundo tem de ser o
moralmente mais perfeito, porque a perfeição moral é de facto perfeição física nas mentes.
Por este motivo, o mundo não só é a máquina mais admirável, mas também que ao nível a que
aparece na mente é a melhor comunidade, através da qual é conferida às mentes tanta
felicidade ou alegria quanto possível, e é nisto que consiste a perfeição física.
Mas, pode dizer-se, no mundo encontramos o oposto disto, desde o pior que muitas
vezes acontece ao melhor, animais e pessoas inocentes que são mortas e desfeitas,
inclusivamente com tortura, e finalmente o mundo, se olharmos para o governo da raça
humana, parece um caos confuso em vez de algo ordenado pela suprema sabedoria. Assim,
parece à primeira vista, eu admito: mas num exame mais profundo o oposto é estabelecido. É
evidente a priori, partindo destas considerações, que eu trouxe à luz, que esta é de facto a
maior perfeição possível de todas as coisas, e também das mentes.
E de facto é irrazoável, como afirmam os jurisconsultos, julgar, a menos que toda a lei
seja examinada. Nós conhecemos uma pequena parte da eternidade que se estende para o
infinito, pelo que a memória de várias centenas de anos que a história nos colocou nas mãos é
curta. E de tão poucas experiências fazemos precipitadamente um julgamento sobre o
imensurável e o eterno, como o homem nascido e criado na prisão, ou se se preferir, nas
minas subterrâneas de sal de Sarmatia, poderá pensar que não haverá no mundo outra luz para
além da escassa luz das suas tochas, que quase não é suficiente para iluminar os seus passos.
Olha para uma imagem bela, depois cobre-a totalmente, deixando uma pequena parte
descoberta. O que será evidente nela, não interessando quão perto tu olhas para ela, senão
uma certa confusão caótica de cores, sem selecção, sem arte; de facto, quanto mais se olhar
para isso mais caótico parecerá. E logo que a cobertura seja removida, ver-se-á a toda a
pintura de uma posição apropriada, e aí observar-se-á que o que parecia irreflectidamente
pincelado na lona era na verdade rematado com grande mestria pelo autor do trabalho. O que
os olhos discernem num quadro discernem os ouvidos na música. De facto, os distintos
mestres da composição misturam frequentemente dissonâncias com consonâncias de modo
que um ouvinte seja espicaçado e desinquietado, como se estando ansioso pelo final, ficasse
muito mais alegre quando tudo é por fim restituído à ordem. É muito como o nosso retirar
prazer de pequenos perigos, ou em experiências de infortúnio, vindo o nosso deleite do
sentimento do nosso próprio poder ou felicidade ou do acto de os mostrar. Ou é como quando
nos deliciamos com o espectáculo do homem que anda sobre a corda ou a dança com espadas
devido ao medo que eles inspiram, e nós rimo-nos quando levantamos as crianças ao ar como
se as fossemos atirar para algum lado; foi por esta razão que um macaco carregou Christian,

16
rei da Dinamarca, quando ele era ainda uma criança envolta firmemente em roupas, para o
alto de um telhado, e depois, quando todos estavam ansiosos, o macaco – como se estivesse a
sorrir – pô-lo ileso no seu berço. Pelo mesmo princípio é insípido comer constantemente
coisas doces; coisas amargas, picantes e azedas devem ser misturadas nelas para lhes salientar
o sabor. Aquele que não provou os amargos não deseja o doce, nem o apreciará
verdadeiramente. Esta é a lei da fruição, o prazer não vem de um curso uniforme, por isto
produz desgosto e faz-nos aborrecidos, não alegres.
Mas o que dissemos aqui, sobre uma parte poder ser perturbada sem destruir o todo da
harmonia, não deve ser compreendido no sentido de que não são tidas em conta as partes, ou
que é suficiente, por assim dizer, que o mundo é perfeito como um todo ainda que a raça
humana o tenha desfigurado, e que no universo não há preocupação com a justiça ou não
somos guardados, como alguns supõem, que julgam erradamente sobre a totalidade das
coisas.
Assim, temos de nos dar conta que tal como na comunidade mais bem constituída o
cuidado é tomado de tal modo que o maior bem possível é oferecido aos indivíduos, da
mesma maneira também o universo seria insuficientemente perfeito a menos que se leve em
conta os indivíduos assim como a sua consistência em preservar a harmonia do universo.
No que a isto se refere não pode ser estabelecida melhor medida que a própria lei da
justiça, a qual dita que cada um deve tomar parte na perfeição do universo e da sua própria
felicidade na proporção da sua própria virtude e no quão longe está disposto a ir na busca do
bem comum. Isto é garantido por aquilo a que chamamos caridade e amor divinos, nos quais a
força e o poder da religião cristã apenas consistem, de acordo com os teólogos sábios.
Nem deve parecer notável que deva haver tanta consideração pelas mentes no
universo, dado mostrarem a mais próxima semelhança com a imagem do supremo autor, e a
sua relação com Ele não é apenas a de máquinas com o seu fabricante (como é com outras
coisas) mas também como cidadão do seu príncipe. E elas resistem tanto quanto o próprio
universo, e num certo sentido expressam o todo e concentram-no nelas, podendo-se assim
dizer que as mentes são partes totais.
Mas olhando as aflições dos homens, especialmente dos homens bons, temos de ter a
certeza de que elas resultam no maior bem desses homens, e isto é verdade não só
teologicamente, mas também fisicamente, como uma semente lançada na terra sofre antes de
dar fruto. No geral pode dizer-se que as aflições são um mal temporário, mas que de facto são
boas, dado serem caminhos mais rápidos para a perfeição. Assim como na física, os líquidos
que fermentam lentamente também crescem lentamente, mas aqueles nos quais há um grande
distúrbio crescem mais rapidamente deitando fora as impurezas com maior força. Isto é o que
se pode chamar dar um passo atrás para dar um salto para a frente mais fortemente (um passo
atrás, para um melhor salto). Portanto, estas coisas têm de ser consideradas não apenas como
prazerosas ou consoladoras mas também a mais pura verdade. Eu penso que nada há de mais
verdadeiro que a felicidade, e nada mais feliz e doce que a verdade.
Mais ainda, tem de ser reconhecido que há um perpétuo e mais livre progresso de todo
o universo em direcção à consumação na beleza e perfeição universais das obras de Deus,
estando sempre em avanço para um maior cultivo. Assim como agora grande parte da nossa
terra já recebeu cultivo e irá receber mais e mais. Embora seja verdade que uma certa parte
por vezes cresce de novo selvagem, ou é novamente destruída ou oprimida, isto porém deverá
ser compreendido do mesmo modo como interpretámos as aflições um pouco mais anteriores,

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nomeadamente que esta destruição e opressão é útil para atingir algo maior, isto de um modo
em que ganhamos a partir das nossas perdas.
Quanto há objecção que pode ser feita: que se isto fosse assim o mundo seria já um
paraíso, a resposta está à mão: ainda que muitas substâncias tenham já atingido grande
perfeição, todavia tendo em conta a divisibilidade do contínuo para o infinito, permanecem
sempre no abismo das coisas partes que ainda estão adormecidas, as quais são para ser
despertadas e conduzidas para coisas maiores e melhores, e num mundo, para um melhor
cultivo. Com efeito, o progresso nunca acaba.

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