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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE TEOLOGIA

MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º grau canónico)

ABÍLIO JOÃO CANADA SILVA


ANTÓNIO JOÃO CARNEIRO RODRIGUES

Discurso de Metafísica
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular de História da
Filosofia Moderna sob orientação de:

Prof. Doutor Carlos Morujão

Lisboa
2021
Introdução

Gottfried Wilhelm Leibniz foi um dos mais importantes lógicos, matemáticos e

filósofos do Iluminismo. Juntamente com René Descartes e Espinoza, foi um dos três

grandes defensores do racionalismo do século XVII. O trabalho de Leibniz antecipou a

lógica moderna e a filosofia analítica, mas a sua filosofia também assimila elementos da

tradição escolástica, nomeadamente que as conclusões são produzidas aplicando razões

aos primeiros princípios ou definições anteriores em vez de provas empíricas.

Ao longo deste trabalho procuraremos abordar a obra Discurso de Metafísica. O

Discurso da Metafísica é um breve tratado de Gottfried Leibniz escrito em 1686, no

qual desenvolve uma filosofia sobre a substância física, o movimento e a resistência dos

corpos, e o papel de Deus no universo. Nesta obra é importante denotar que Leibniz,

sendo luterano está a escrever a um católico e por isso procura um discurso mais

próximo do seu recetor, para que este o possa entender bem.


Leibniz inaugura o discurso da metafísica por afirmar a perfeição e bondade de

Deus. Leibniz não se limita simplesmente a afirmar isso, mas aprofunda o tema e

consegue estruturar o seu pensamento de forma a anular teorias e conceções erradas

acerca de Deus. Mas o que significa ser o Ser absolutamente perfeito? O autor responde

a esta questão dizendo que Deus reúne em si o absoluto das perfeições existentes na

natureza, sendo que nesta é possível observar várias perfeições. Cada uma destas

perfeições pertencem a Deus no seu mais alto grau. É a perfeição das perfeições.

Abordando a questão da perfeição, para esta o ser, é necessário que o seu objeto seja

suscetível ao último grau de aperfeiçoamento. Isto descarta a natureza dos números,

pois o maior número de todos implicaria uma contradição. Por outro lado, temos como

exemplo a omnipotência e a ciência. Estas duas podem chegar ao seu expoente máximo

e por isso são uma perfeição. Não contêm impossibilidade de o ser. Estas duas, em

Deus, não possuem limites. Assim sendo, Deus, possuindo a sabedoria suprema e

infinita, age sempre do modo mais perfeito, seja metafisicamente seja até moralmente.

Leibniz rebate algumas ideias que argumentavam que não existiriam regras de

bondade e natureza das coisas ou nas ideias que Deus delas tinha. Afirmavam que as

obras de Deus eram apenas boas pela razão formal de que foi Deus quem as fez. Esta

afirmação destrói o amor de Deus e toda a Sua glória. O autor argumenta que tudo o que

Deus faz, faz não apenas sendo levado pelo Seu desejo, mas com razões para o fazer.

Leibniz, salvaguardando assim a glória de Deus, afirma que é da Sua natureza divina
que a vontade seja guiada pela razão. Por isso a criação e obras de Deus não seriam boas

apenas porque Deus as fez, mas existe um princípio que as faz intrinsecamente boas, e

por isso Deus as fez, tendo em conta esse princípio. Assim, esta razão é anterior à

vontade e guia a vontade.

Abordando a relação de Deus com o mundo e refutando acusações que afirmam

que Deus não criou o melhor mundo possível, Leibniz defende a glória de Deus, usando

como argumento o de que se Deus, como vimos, é absolutamente perfeito e bom, só

pode fazer o que é mais perfeito. Toma ainda a Sagrada Escritura e afirma que a própria,

ao revelar que Deus é Bom, estabelece que o que Deus fez é o melhor e mais perfeito.

Critica os modernos escolásticos por se basearem no “pouquíssimo conhecimento que

se tem da harmonia geral do universo e das razões ocultas da conduta de Deus.”1

O autor afirma de que esta ideia de descontentamento com o mundo que existe é

semelhante à ideia dos súbditos descontentes que tendem a tornar-se rebeldes. Leibniz

compreende que o mundo é o melhor possível e que Deus tem um plano para ele, sendo

também necessária a nossa colaboração por questões de liberdade humana, que ele nos

concede.

Em seguida crê que para agir em conformidade com a vontade divina não é suposto que

sejamos pacientes à força, mas que proactivamente procuremos realizá-la. Ou seja, não

ser quietista, mas procurar discernir a vontade de Deus e realizá-la. Se assim for,

1
Cfr. Gottfried Wilhelm Leibniz Freiherr von, Discurso de metafísica (Lisboa: Edições 70, 2000), n. 3.
estaremos a procurar o bem geral e tenderemos para o aperfeiçoamento, o absoluto da

possibilidade, em ato, de perfeição.

Ao criar o mundo, Deus, estabelece uma ordem para o mesmo. Exploraremos

agora o que o autor entende pelas regras de perfeição da conduta divina e os meios

usados para aí chegar. Leibniz dá alguns exemplos que transmitem o desejo de Deus em

relação à ordem das coisas, são eles: “Pode, pois, dizer-se que quem age perfeitamente

é semelhante a um excelente geómetra… a um bom arquiteto… a um bom pai de

família… a um hábil mecânico… a um sábio…” 2. Estes são o critério de perfeição com

o qual se rege a “conduta da providência no governo das coisas”, procurando executar o

mais perfeito e mais rico, utilizando os meios mais simples. Para o aperfeiçoamento

Leibniz apresenta o que a princípio pode parecer uma contradição, a simplicidade. Deus

utiliza meios simples para a perfeição. Esta simplicidade existe na relação com os meios

utilizados, enquanto que a riqueza ou abundância dizem respeito aos fins. Os dois

fatores devem estar em relação.

Em seguida o autor afirma que Deus nada faz fora de ordem. Assim garante que o que

consideramos por extraordinário é-o apenas na relação com alguma ordem particular

2
Cfr. Gottfried Wilhelm Leibniz Freiherr von, Discurso de metafísica (Lisboa: Edições 70, 2000), n. 5.
estabelecida entre criaturas. Deus rege-se com um princípio: Objetivos ricos, meios

simples. Por isso, para Deus, não há ações ordinárias ou extraordinárias, apenas para

nós que não compreendemos o todo da ordem divina.

Pode-se dizer que fosse qual fosse a maneira de Deus criar o mundo, fá-lo-ia sempre

com uma regra, uma ordem. Mas Deus escolheu o que é mais perfeito, ou seja, o que é

mais simples em hipóteses e, ao mesmo tempo, mais rico em fenómenos.

Surge uma outra questão, que consiste nos milagres realizados por Deus. Estes, não

naturais no sentido de serem um fenómeno independente da ordem da criação, estão

ainda assim de acordo com essa ordem. Do mesmo modo que para Deus não se

diferenciam ações ordinárias e extraordinárias, também não se distinguem milagres de

fenómenos naturais. Deus pode, por vezes, por uma razão superior à razão que o moveu

a servir-se das máximas subalternas, às quais apelidamos de “natureza das coisas”,

“criar” uma lei particular segundo a qual possa intervir, para nós extraordinariamente,

no mundo, gerando assim o que apelidamos de milagres.

Relativamente às ideias humanas, Leibniz afirma:


“É Deus quem nos deu e nos conserva as suas ideias e quem nos determina a

pensar nelas efetivamente, pelo seu concurso ordinário no tempo em que os nossos

sentidos estão dispostos de certo modo, segunda as leis que Ele estabeleceu.”3

Quer isto dizer que possuímos o pensamento que Deus nos dá e esse

pensamento é de igual forma sustentado por Deus. A harmonia das causas só é possível

considerando os harmonizados, por exemplo, de raio de luz e a refração. A explicação

dos ângulos de refração e os meios de incidência. Mesmo que sem os ângulos uns dos

outros, há uma proporção que se mantém entre cada ângulo e cada meio.

Leibniz defende que a natureza do corpo não se baseia simplesmente na extensão

(grandeza, figura e movimento), ao contrário de Descartes, sendo necessário dar-lhe um

princípio vital. A noção de grandeza, figura e movimento está relacionada com as

nossas perceções assim como outras qualidades (cor, calor, etc). Deve-se reconhecer na

natureza algo que tenha relação com as almas, ainda que não altere em nada os

fenómenos. Este “algo” é apelidado de forma substancial. Se esta não existisse, um

corpo nunca subsistiria mais do que um momento. O autor sublinha a diferença entre as

pessoas (almas inteligentes) e as coisas, ambas possuindo formas substanciais muito

diferentes. As almas inteligentes são as únicas que conhecem as suas ações, pois têm

memória e reflexão, o que faz com que só elas estejam sujeitas ao castigo ou à

recompensa.

3
Cfr. Gottfried Wilhelm Leibniz Freiherr von, Discurso de metafísica (Lisboa: Edições 70, 2000), n. 28.
A essência (também chamada de noção completa ou natureza) de uma

determinada substância individual comporta tudo o que em todo o tempo lhe pode

acontecer. Para não se pensar que não existe liberdade humana, Leibniz explica a

diferença entre o certo e o necessário. A conexão entre determinado sujeito e predicado

é de duas espécies: uma é absolutamente necessária, pelo que o seu contrário é uma

contradição, e a sua dedução faz-se nas verdades eternas como as da geometria; a outra

é apenas necessária ex hypothesi e é, de certa forma, contingente em si mesma. Esta

conexão funda-se nos decretos livres de Deus e na continuidade do universo. O autor dá

um exemplo da 2ª espécie de conexão:

“Visto que Júlio César se tornará ditador (…) e suprimirá a liberdade (…), esta ação

está compreendida na sua noção, pois supomos que a natureza de tal noção perfeita de um

sujeito é tudo compreender, a fim de que o predicado nela esteja contido (…) Poderia dizer-

se que não é em virtude desta noção ou ideia que ele deve cometer esta ação, uma vez que

só lhe convém porque Deus sabe tudo. Mas insistir-se-á em que a sua natureza ou forma

corresponde a esta noção e, visto que Deus lhe impôs esta personagem, é-lhe necessário

(…) satisfazê-la.” 4

Tudo o que acontece em paralelo com estas antecipações é certo, mas não

necessário, pois não seria impossível que alguém fizesse o contrário, embora seja

impossível ex hypothesi. Se alguém fizesse uma demonstração complexa, provando a

conexão entre o sujeito (César) e o predicado (o seu feliz empreendimento), poderia


4
Cfr. Gottfried Wilhelm Leibniz Freiherr von, Discurso de metafísica (Lisboa: Edições 70, 2000), n. 34
revelar que a ditadura de César no futuro, tem origem na sua essência, podendo daqui

tirar mais conclusões, como por exemplo os motivos para ele ter atravessado

determinado rio em vez de não o ter atravessado, ter ganho a guerra em vez de a ter

perdido, etc. Os futuros contingentes são seguros, pois Deus os prevê, mas não são

propriamente necessários. Tal demonstração relativa à vida de César, não seria tão

absoluta como a dos números, mas iria supor a sequência das coisas que Deus

livremente escolheu, apoiada no primeiro decreto livre de Deus - fazer sempre o mais

perfeito - e no decreto seguinte – o Homem fará sempre o que lhe parecer melhor. Estes

decretos não afetam a liberdade humana, sendo possível a ocorrência do menos perfeito.

De um modo geral, Leibniz defende que todas as proposições contingentes têm

algum motivo para ser de uma maneira e não de outra. A conexão do sujeito e predicado

nestas proposições tem o seu fundamento na natureza de cada um, enquanto que as

verdades necessárias se fundam no princípio de contradição.

As substâncias criadas dependem de Deus: são continuamente conservadas e

produzidas por ele, da mesma maneira que nós produzimos os nossos pensamentos, por

uma espécie de emanação. Deus, sendo omnisciente, consegue observar o mundo de

todas as perspetivas possíveis. O resultado de cada observação sua é uma substância que

exprime o universo, caso Deus considere tornar o seu pensamento efetivo e produzir
essa substância. Deste modo, são infinitas as substâncias individuais que dependem de

Deus, as quais correspondem a cada ponto de vista de d’Ele.

As perceções ou expressões de todas as substâncias correspondem-se entre si,

mas não são perfeitamente semelhantes, apesar de cada um exprimir os mesmos

fenómenos: como várias pessoas que estão a assistir a um jogo de futebol no estádio

pensam estar a ver o mesmo, mas no fundo cada um tem a sua perspetiva. Deus, sendo o

único que vê todo o universo, é causa da correspondência dos seus fenómenos. Para que

haja conexão, faz com que o particular para um seja público para todos. Então, cada

substância particular não atua sobre outra, tendo em conta que o que acontece é uma

consequência da sua essência. Tudo o que nos possa vir a acontecer são apenas

consequências do nosso ser, são as nossas perceções e pensamentos, sendo que as

perceções e pensamentos futuros são consequências dos presentes.

Sabemos que algumas coisas que acontecem são consequências da natureza

humana, outras, porém, ultrapassam a nossa compreensão: os milagres e concursos

extraordinários. É através destes, que na visão do autor são sempre conformes à lei

universal da ordem geral, que Deus pode influenciar o Homem, ainda que este continue

a tomar as suas decisões livremente. A caraterística especial dos milagres de Deus é que

não podem ser previstos pelas substâncias criadas, daí a admiração com algo que escapa

ao “natural” para o ser humano. Aquilo a que chamamos de “ordinário”, “nossa


natureza”, é o limitado em nós, o que somos capazes de entender, que são apenas as

máximas mais gerais. Deste ponto de vista, o que excede as naturezas de todas as

substâncias criadas é o que chamamos de sobrenatural.

Leibniz, à semelhança dos filósofos do seu tempo, chegou a aceitar que Deus

conserva sempre a mesma quantidade de movimento no mundo, mas considerou um

erro o facto de Descartes e outros intelectuais acreditarem que a velocidade multiplicada

pela grandeza de determinado móvel, coaduna-se inteiramente com a força motriz 5. A

seu ver, é a força e não o movimento que se mantém constante no universo. Para

mostrar a diferença e tentar provar que Deus conserva sempre a mesma força, mas não a

mesma quantidade de movimento, dá um exemplo semelhante ao seguinte: Suponhamos

que é necessária tanta força para elevar um corpo A de 1kg a uma altura de 4 metros,

como elevar um corpo B de 4kg à altura de 1 metro. Estes corpos ao caírem das

respetivas alturas, adquirem a mesma força, a força necessária para elevar os seus

próprios corpos. Logo, a força dos dois corpos é igual. A velocidade adquirida pelo

corpo A, no entanto, não é igual à do corpo B, mas corresponde ao dobro da velocidade

adquirida pelo corpo B. Um corpo que cai de determinada altura, adquire a força para aí

voltar, a menos que haja obstáculos (como a resistência do ar). Por este motivo, um

pêndulo, por exemplo, não volta ao sítio donde desceu, por perder a força adquirida na

5
Cfr. Gottfried Wilhelm Leibniz Freiherr von, Discurso de metafísica (Lisboa: Edições 70, 2000), n. 46
sua descida, pelo que Leibniz conclui que se tratam de duas questões diferentes: a força

mantém-se igual, ao contrário da velocidade.

O filósofo considera que esta diferença é de alguma importância não só para

física e mecânica, a fim de encontrar as verdadeiras leis da natureza e regras do

movimento, mas também para a metafísica, para melhor entender os princípios. Para

ele, o movimento não é uma coisa inteiramente real e quando muitos corpos variam a

sua posição, não é possível indicar quem esteve em movimento ou em repouso, só pelo

facto de se ter verificado as mudanças. A força ou causa próxima destas mudanças é

algo de mais real. Por este motivo Leibniz considera que os princípios gerais da

natureza corpórea e da própria mecânica são mais metafísicos do que geométricos.


Conclusão

Em síntese, para Leibniz, o corpo tem um princípio vital que é a forma

substancial, sendo muito diferentes as formas substanciais das pessoas e das coisas. As

substâncias criadas são continuamente conservadas e produzidas por Deus. Algo muito

particular em Leibniz é a sua definição de necessário ex hypothesi, como foi visto,

algum acontecimento que podia até não acontecer, mas que partindo da essência da

pessoa, prevê-se que aconteça. A essência de uma substância particular leva a

acontecimentos "praticamente certos". O que pode parecer confuso é quando ele afirma

que não afeta a liberdade humana. De facto, não afeta, Deus sabe porque conhece as

essências de cada um. Exatamente por termos a nossa própria essência, vamos agir de

determinada forma. Outro ponto que pode ser confuso, é quando afirma que os milagres

(como entendemos) são sempre conformes à lei universal da ordem geral. O ordinário é

aquilo que entendemos, por isso, os concursos a que chamamos "extraordinários" é

quando ultrapassou os limites da nossa compreensão.

De um modo geral, é esta a visão Leibniziana em relação à natureza do corpo,

aos acontecimentos certos e necessários, e aos milagres.

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