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O GRANDE ARQUITETO DO UNIVERSO

"A sabedoria está ligada à apreensão intelectual das coisas eternas;


o conhecimento à apreensão racional das coisas temporais"
Santo Agostinho (354-430)
Começo com a citação de Santo Agostinho porque ela contém integralmente a questão
maçônica quanto à verdade, que requer tanto conhecimento quanto sabedoria e lida com as
coisas temporais e eternas. A palavra chave é apreensão, a necessidade e a boa vontade
para a compreensão. Pode-se encontrar aí a base para a lamentável tendência à divisão no
seio de nossa Ordem, a tendência de privilegiar um aspecto da procura pela verdade, e
mais ou menos ignorar a outra. Em resumo, esta infeliz divisão entre aqueles que, numa
grande generalização, são chamados crentes e não-crentes, ou se preferir, numa
generalização ainda maior, divisão entre religião e ateísmo.
Como todos os membros sabem, assim espero, nossas Lojas são livres para trabalhar "À
Glória do Grande Arquiteto do Universo e/ou ao Progresso da Humanidade". O Supremo
Conselho, órgão dirigente de nossa Ordem, ao qual "é confiada a conservação dos
princípios da Ordem" (Constituição Internacional art. 15), usa os dois termos na cerimônia
de consagração ao 33° grau.
Parece que algumas Lojas que escolheram trabalhar apenas "ao Progresso da
Humanidade" o fazem porque elas têm a noção de que o termo "Grande Arquiteto do
Universo" está diretamente relacionado a Deus e, por consequência, indica uma tendência
religiosa a qual não estão prontos para aceitar. É claro que têm todo o direito disto, mas
deveriam ter maior tolerância e respeito por aqueles que pensam de maneira diversa.
A mesma atitude aplica-se ás Lojas que escolheram trabalhar à "Glória do Grande Arquiteto
do Universo". Por vezes tem-se a noção de que na Maçonaria não há espaço para os
não-crentes, e é fato sabido que há obediências maçônicas que praticam tal intolerância.
Sabemos que a Franco-Maçonaria é originada da tradição judaico-cristã da Europa
Ocidental, e que numerosos símbolos maçônicos estão diretamente relacionados com
várias partes da Bíblia, particularmente o Antigo Testamento. Também sabemos que,
originalmente, o termo Grande Arquiteto do Universo refere-se a Deus. Então, por que não
usar a palavra Deus simplesmente? Há mais de uma razão para isto.
Temos uma ilustração, em uma Bíblia de 1250, que mostra Deus como um homem
segurando um compasso. Há também a célebre pintura de William Blake com o mesmo
motivo. Isto não indica necessariamente um arquiteto, pode significar um geômetra. A
geometria tem um papel importante no simbolismo maçônico, originado talvez da antiga
crença de que os símbolos geométricos têm efeitos mágicos. A geometria é também a base
da arquitetura, e todos nós já vivenciamos que as belezas das proporções harmônicas e
perfeitas podem ser quase hipnóticas. Segundo uma antiga crença, tais proporções podem
invocar a presença de Deus.
Durante séculos, as Lojas Maçônicas foram um refúgio para o pensamento liberal, da tirania
de uma doutrina imposta. A ideia era unir homens de tendências diferentes em um fórum de
dialogo e compreensão mútua. Com o termo maçônico de Grande Arquiteto, o conceito de
Deus foi prontamente retirado do contexto de uma religião dogmática e deixado a uma
interpretação individual, o que, de certa maneira, é ao mesmo tempo extraordinária e
revolucionária, tendo em conta a maneira geral de pensar da época. A fase de abandono da
crença obrigatória em Deus não foi adiante, até a convenção do "Grande Oriente de
França", em 1877, que, como é bem conhecido, causou grande tumulto no mundo
maçônico. É interessante notar que por trás dessa proposta estava o irmão Frédéric
Desmons, que era um pastor protestante, e, pela votação desta mudança radical, os Irmãos
acreditaram que estavam retornando ao espírito liberal da Constituição de Anderson original
de 1723, antes de ser modificada em 1738.
Devido a toda esta antiga história, devemos nos perguntar o que hoje significa para nós
nosso trabalho em nossa Loja, nosso esforço de viver o espírito maçônico e os seus ideais.
"Le Droit Humain" não é nem pró nem contra a religião. Nós temos rituais onde não há
menção ao Grande Arquiteto do Universo, e temos rituais onde não apenas o termo é
empregado, mas também a palavra Deus é diretamente utilizada. Ao mesmo tempo o ritual
diz que na Loja tudo é simbólico. Isto significa que a palavra "Deus" também pode ser
considerada um símbolo e consequentemente está sujeita a livre interpretação.
Para mim, pessoalmente, ser maçom requer ter uma mente aberta. Nossa Constituição
Internacional estipula que nosso propósito é a busca da Verdade, Verdade com letra
maiúscula, que entendo como a Verdade em si mesma, a Verdade suprema. Também há
uma declaração que indica que nós ainda não a encontramos. Eu não sou religioso, não
acredito em nenhuma organização religiosa, porém me interesso por religiões (insisto na
forma plural). Não creio que as religiões possam me aproximar da Verdade que procuro,
mas creio que as religiões podem me dizer muito sobre o pensamento humano, sobre como
o homem tem tentado compreender o que talvez não possa ser compreendido, e também
como os ideais sagrados foram desviados para controlar o pensamento e o comportamento
humanos.
O escritor grego Nicos Kazantzakis escreve em seu célebre romance "Zorba o Grego".
"Nas religiões que perderam sua centelha criativa, os deuses tornaram-se nada mais do que
motivos poéticos ou ornamentos para decorar a solidão humana – e suas paredes".
Consequentemente o conceito de Deus tem pouco significado. Hoje isto é percebido pelo
público em geral de modo convencional, pois as pessoas não estão particularmente
preocupadas com a religião. Assim, não precisamos ficar tão assustados com a palavra
Deus. No entanto, uma religião organizada (com a exceção, talvez, do Budismo), a meu ver,
tem dois problemas, que de certa forma é apenas um e o mesmo. Em uma religião
organizada, até certo ponto, tudo está decidido, tanto a definição de Deus e o modo de
servi-lo, como as regras do comportamento humano. De certa forma, o tempo e a evolução
ficam estáticos. Portanto devo concordar com Jiddu Krisnamurti quando diz que:
"A religião é o pensamento coagulado dos homens, e por isso eles constroem templos"
(Observer, 22 de abril de 1928)
Também concordo com ele quando declara que:
"A verdade é uma terra sem caminhos; vós não podeis vos aproximar por nenhum caminho;
por nenhuma religião, por nenhuma seita". (Discurso feito na Holanda, 03 de agosto de
1929).
Agora lembremo-nos, como maçons de mentes abertas que somos, que o conceito de Deus
ou, se desejarem, de um tipo de criador, é uma coisa, e religião é outra coisa. Uma religião
organizada não começa com o conceito de Deus, mas pela definição de Deus e pela
criação do credo - ou dogmas. Então, por um momento, consideremos alguns aspectos da
concepção de Deus. Tomo a liberdade para fazer uma livre referência ao livro "Mind of God"
(A Mente de Deus) de Paul Davis, professor de física e matemática da Universidade de
Adelaide, Austrália, que, em minha opinião, escreveu sobre a matéria com mais
sensibilidade que a maioria dos escritores contemporâneos. Ele afirma em seu prefácio que
não é adepto de nenhuma religião tradicional, mas, no entanto, nega que o universo advém
de um mero acidente sem nenhum propósito. Com uma espantosa engenhosidade, ele
mostra que deve haver uma explicação profunda. E conclui dizendo: "Se alguém quiser
chamar este nível mais profundo de Deus, isto é uma questão de gosto e definição".
Falamos do universo (e de nosso mundo) como se ele fosse racional, querendo dizer que
ele tem ordem, que não é um Caos, e que é regido por leis. Algumas delas já conhecemos,
outras ainda não compreendemos, ainda que algumas pessoas se dizem sabedoras de
todas as respostas. Uma das leis tem o nome de "Lei da Relação Causal". Uma vidraça se
quebra porque uma pedra é atirada nela. A pedra é atirada porque alguém a pegou por
alguma razão. A pedra não pára no vidro da janela, ela a atravessa, e no quarto bate em
alguma coisa, talvez em uma pessoa, que reage de uma certa maneira, e que pode afetar
outra pessoa, e assim por diante. Este é o significado fundamental da palavra karma, a lei
de causa e efeito.
Relaciona-se com a Lei da Relação Causal o conceito de determinismo, o qual implica que
a situação do mundo num instante dado é o bastante para conhecer sua situação num
instante futuro; ou seja, que tudo o que acontece no universo no futuro está determinado
pelo momento presente. De acordo com a Lei da Mecânica de Newton a posição e
velocidade dos planetas no sistema solar num dado momento pode determinar seus
movimentos no futuro. Isto quer dizer que todos os acontecimentos estão presos a uma
matriz de causa e efeito. Ilya Prigogine (em seu livro "The Rediscovery of Time" - A
Redescoberta do Tempo) diz que, sendo assim, Deus fica reduzido a um arquivista que vira
as páginas de um livro de história cósmica já escrito.
Diante de tudo isto, resta a questão de saber se o universo foi criado a partir do nada. A
doutrina judaico-cristã nos diz que o universo tem uma origem, um começo, e foi criado por
um Deus personificado e eterno, que está totalmente separado e independente de sua
criação. Assim, ele fica fora do tempo e fora da matéria, mantendo e sustentando a criação
continuamente. Aos olhos de Deus não há distinção entre a criação e a preservação. Este é
um Deus ativo, que se mantém envolvido diretamente com a marcha do mundo. Isto é
chamado teísmo.
Em muitas mitologias, o cosmos é criado do caos primordial (cosmos significa literalmente
"ordem" e "beleza"), o que quer dizer que a matéria é preexistente e é ordenada por um ato
criador sobrenatural. Isto se assemelha com a doutrina Gnóstica Cristã, que considera a
matéria impura.
O conceito deísta, ao contrário do teísmo, vê um criador que começa o universo, mas que
não toma parte nos seus problemas subsequentes. De certa forma, o símbolo maçônico do
Grande Arquiteto do Universo pode ser considerado como tendo uma característica deísta.
Da mesma forma que o arquiteto planeja, mas ele mesmo não constrói, um criador deísta
deixa sua própria criação construir-se e desenvolver-se por si mesma. Para mim, existe
uma analogia com o nosso simbolismo da pedra que cortamos, polimos e nos tornamos.
Assim, somos ao mesmo tempo construtores e o material da construção, erguendo o
Templo da Humanidade, planejado por um arquiteto desconhecido por nós.
Temos também o panteísmo, que não faz separação entre Deus e o universo físico. Isto
significa dizer que Deus está completamente identificado com a natureza, que tudo é parte
de Deus e Deus é parte de tudo. Numa etapa posterior está o panteísmo, que vê tudo como
parte de Deus, e que usa a metáfora de que o universo é o corpo de Deus e o espírito de
Deus a sua essência.
Passemos agora do conceito de um Deus personificado para um que podemos chamar de
percepção mística, que indica uma conexão com todas as coisas e requer uma viagem
interior através de emoções e pensamentos para um lugar tranquilo, onde se pode
encontrar o centro mais profundo da própria existência, e assim, conectar-se com a
essência da vida. Em tal estágio, a questão de Deus toma-se irrelevante, e, como sabemos,
numa religião como o Budismo não há uma concepção de Deus.
Finalmente, alguns cientistas propuseram a teoria de um Deus que evolui dentro do
universo, onde a vida inteligente "torna-se gradualmente mais evoluída e espalha-se através
do cosmos, ganhando controle cada vez maior e em maiores proporções, até que a
manipulação da matéria e energia seja tão perfeita que esta inteligência seja indistinta da
própria natureza" (The Mind of God – A Mente de Deus).
Espero que agora esteja evidente que uma pessoa com a mente aberta não tire conclusões
simplistas quando ouvir ou ler a palavra Deus. Deus não é uma propriedade da Igreja
Católica Romana nem de qualquer outra instituição. Ninguém tem o direito de definir Deus e
ninguém sabe se existe tal entidade. Nem a existência ou a não existência de Deus pode
ser afirmada. Pode-se escolher acreditar ou não. Mas é muito irrelevante o que nós
acreditamos. Somente é relevante aquilo que é. Como não sabemos o que é realmente,
nossa procura pela Verdade continua. Não deixemos que nossos preconceitos limitem as
possibilidades de nossa busca. Temos espaço para ambos, para os que creem e para os
que não creem. Na língua inglesa há uma distinção entre crença e fé. De acordo com o
teólogo alemão Paul Tillich:
"A fé é um modo de ser que concerne apenas ao próprio".
Isto é o que realmente importa na Franco-Maçonaria - ser concernente apenas ao próprio -
manter-se atento e alerta e continuar a questionar. Pessoalmente, a questão fundamental
não é realmente sobre Deus, apesar de se poder dizer assim, - ou pelo menos não sobre
um Deus personificado. A palavra Deus não me ofende de modo algum. A questão deve
antes se relacionar com a energia, energia como a essência da matéria. O filósofo grego
Heráclito disse em um de seus Fragmentos que foram conservados:
"Todas as coisas se transformam em fogo, e o fogo, exaurido, retorna sobre todas as
coisas".
E Einstein concordou. Para ele tudo se transforma num fluxo de energia, em relatividade.
Foi-nos dito que o universo começou com a Grande Explosão (Big Bang), porém, nunca foi
explicado de onde veio a energia aplicada para gerar esta gigantesca explosão. A grande
pergunta deve ser sobre esta poderosa fonte de energia.
Termino estas reflexões citando a frase de conclusão do célebre livro "Uma Breve História
do Tempo" do famoso astrônomo Stephen Hawking:
"Se descobrirmos uma teoria completa, seu grande princípio deve ser entendido em suas
grandes linhas por todos nós, e não apenas por uns poucos cientistas. Então devemos
todos, filósofos, cientistas e pessoas comuns, sermos capazes de tomar parte na discussão:
por que nós existimos? Por que o universo existe? Se encontrarmos a resposta para estas
perguntas, será o grande triunfo da razão humana – e então iremos verdadeiramente
conhecer a Mente de Deus".
Njördur P. Njardvik
Grão-Mestre de Honra da Ordem Maçônica
Mista Internacional"Le Droit Humain"
Trabalho apresentado na Loja Le Passeurs de Gue N°1669,
Or. De Lyon, 2002
Publicado no Bulletin lnternational du "Le Droit Humain",
2º semestre 2002 - nº 22

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