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Director: Henri Dieuzeide

Chefe da redacção: Zaghloul Morsy

Adjunto: Alexandra Draxler

Perspectivas publica-se também:

e m Árabe: Mustaqbal al-Tarbiya (Unesco Publications Centre, I Talaat Harb


Street, Tahrir Square, Le Caire, Egypte)

e m Espanhol: Perspectivas, revista trimestral de educación (Santillana S . A . de


Ediciones, calle Elfo 32, Madrid-27, Espagne)

e m Francês : Perspectives, revue trimestrielle de l'éducation (Unesco)

c m Inglês: Prospects, quarterly review of education (Unesco)

© Unesco, 1976

© para a tradução portuguesa, Livros Horizonte, Lda., 1976

Tradução realizada sob a responsabilidade de Livros Horizonte

Livros Horizonte
R u a das Chagas, 17, l.°-Dto. — Lisboa — Portugal

Impresso em Portugal
1 4 NOV. 1979

revista trimestral d e e d u c a ç ã o Unesco


Vol. VII N.° 2 1977

Sumário A unidade biológica da humanidade : etologia humana, conceitos


e implicações Irenäus Eibl-Eibesfeldt 163
Problemas de teoria e de política da edução na Jugoslávia
Niksa Nikola Soljan 182

Posições/Controvérsias
A crise da planificação e os limites do auxílio externo
Manzoor Ahmed 191
O livro para crianças e os direitos do h o m e m Marc Soriano 199

Elementos para u m dossier:


Fins e meios de u m a educação contínua
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos 220
A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento
Lucille Mair 230
Escolar, extra-escolar e justiça social Yusuf O. Kassam 236
Educação dos trabalhadores e organizações populares rurais
V. S. Mathur 243
Aprender a viver melhor Hilary Perraton 247
A educação dos adultos na República Democrática Alemã
Gottfried Schneider 255
A educação dos adultos e m Ontário Ignacy Waniewicz 264
U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas»
Filippo M . De Sanctis 273
Desenvolver auditórios de massa para a rádio educativa: duas
abordagens Jonathan Gunter e James Theroux 281
Tendências e Casos
A influência da edição transnacional sobre o saber nos países
e m desenvolvimento Keith B. Smith 293

Notas e Comunicações
Revista de publicações. 304
O s artigos assinados exprimem a opinião dos seus autores e não necessa-
riamente a da Unesco ou da Redacção.
P o d e m ser reproduzidos, sob reserva da autorização do redactor-chefe.
A redacção gostaria de receber para publicação contribuições ou cartas
contendo opiniões fundamentadas, favoráveis ou não, sobre qualquer artigo
publicado e m Perspectivas ou sobre os temas abordados.
Toda a correspondência deve ser dirigida ao redactor-chefe, Perspectivas,
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Irenäus Eibl-Eibesfeldt

A unidade biológica da humanidade:


etologia humana, conceitos e implicações

Irenãus Eibl-Eibesfeldt C o m o todo o organismo vivo, o ser humano comporta-se de m o d o


(Áustria). previsível: é u m das premissas incontestadas de toda a ciência do com-
Biólogo, especialista
de biologia portamento. Todas as ciências humanas reconhecem que os seres
do comportamento humanos estão programados tendo e m vista acções específicas. M a s
e, em particular, não existe concordância quanto ao m o d o de intervenção da progra-
de etologia humana; mação. N o Ocidente pensa-se que os homens e as mulheres devem
estudou com
Konrad Lorenz e
adquirir todo o seu reportório de comportamentos, pois são, quando
Wilhelm von Marinelli. nascem, folhas e m branco que a educação preencherá. Esta teoria
Chefe de um grupo mesológica está na base da nossa prática educativa, segundo a qual a
de investigações criança é maleável quase até ao infinito, podendo u m a «boa» educação
no Instituto Max Planck
transformá-la n u m adulto adaptado a normas e conceitos precisos.
sobre filosofia
do comportamento, D e acordo com esta teoria, nada é inato e o comportamento é modelado
professor de zoologia na pelo meio. Os seres humanos são inteiramente condicionados e as nor-
Universidade de Munique. mas éticas que guiam a sua conduta são derivadas de funções. « B o m
Participou em é o que contribui para a sobrevivência de u m a cultura», declarou Skin-
numerosas expedições
de investigação. ner, u m dos defensores da doutrina mesológica. N ã o somos bons n e m
Autor de um grande maus, somos o simples produto da nossa educação. O relativismo cul-
número de artigos e tural é apenas u m a consequência desta teoria. N ã o existem normas
de obras científicas. imperativas para a humanidade.

As adaptações filogenéticas nos animais

Os etólogos emitiram dúvidas sobre esta teoria. A s investigações


empreendidas por Lorenz e Tinbergen, há mais de trinta anos, prova-
ram que os animais actuam de acordo com programas inatos. A apren-
dizagem completa estas estruturas de comportamento herdadas, m a s
eles estão dotados de programas de comportamento de base, sob a
forma de adaptações filogenéticas. Alguns modelos de comportamento
funcionam desde a eclosão ou do nascimento, como demonstra a atitude
do pato recém-nascido. Logo que nasce realiza u m certo número de
acções adaptativas. A n d a e nada, peneira a lama, unta as penas, para
mencionar apenas alguns exemplos. Mal sai da concha o tentilhão abre
o bico, reacção característica do desejo de alimento. Outros esquemas
de comportamento desenvolvem-se durante a ontogenèse sem neces-

163
Irenâus Eibl-Eibesfeldt

sidade de aprendizagem. O estudo do canto dos pássaros fornece-nos


alguns exemplos (Koniski. 1964, 1965a, b)1. Estes esquemas motores
constituem coordenações herdadas o u «inatas». Para ser mais preciso:
a rede de neurónios e as suas conexões c o m os órgãos receptores e
efectores desenvolvem-se o u amadurecem durante u m processo de auto-
diferenciação de acordo c o m as instruções codificadas pelos genes.
Muitas discussões se têm desenvolvido e m torno do conceito de
«inato». Alguns defendem que n e m a experiência mais rigorosa per-
mite excluir todas as eventuais fontes de aprendizagem. N o entanto,
o que devemos reter é que os esquemas de comportamento estão adapta-
dos a certas condições do meio. Sendo assim, devemos supor que a
adaptação se deve à aquisição de informações estruturadas e específicas
respeitantes às condições do meio durante afilogénese,por mutação e
selecção, o u durante a ontogenèse, por aprendizagem individual. N o
primeiro caso, se a informação é transmitida de geração e m geração,
p o d e m o s falar de adaptaçãofilogenéticae não cultural, e, se o indi-
víduo se adapta unicamente por meio de aprendizagem, falaremos de
adaptação individual.
Procedendo a experiências de privação, é possível, de resto, saber
se u m esquema de comportamento resulta, o u não, da adaptação filo-
genética. Para saber, por exemplo, se u m pássaro é ou não obrigado a
aprender o canto da espécie, podemos criá-lo e m estado de isolamento
n u m local insonorizado. Se emitir melodias conhecidas muito parti-
culares, fica provado que as informações relativas aos esquemas especí-
ficos devem ter sido codificadas nos genes (Lorenz, 1961, Eibl-Eibes-
feldt, 1975¿).
Numerosos estudos mostraram que as adaptaçõesfilogenéticasdeter-
m i n a m os comportamentos de diferentes m o d o s O s animais estão
equipados de mecanismos inatos, dão provas de aptidões inatas. Apre-
sentámos já alguns exemplos. A l é m disso, são capazes de responder de
imediato a certos estímulos, dando provas de adaptação, testemunhando
u m saber adquirido a priori.
U m a vez metamorfoseada, a rã não necessita, ao sair da água, de
aprender c o m o apanhar moscas c o m a língua. Ainda há pouco era u m
girino, rapando as algas d o fundo c o m a ajuda de maxilas especiais!
E , de repente, ei-la capaz de apanhar as suas presas c o m movimentos
repetidos da língua. Experiências efectuadas c o m objectos artificiais
mostraram que ela se lança sobre tudo o que se m o v e , incluindo folhas
e pedras de dimensões reduzidas, m a s que aprende rapidamente a evi-
tar os objectos perigosos. A reacção não selectiva inicial desempenha
u m papel preciso, pois habitualmente os únicos objectos móveis n o
meio e m que se encontra a rã são presas. A atitude inata para reagir
a simples estímulos — neste caso corpos que se deslocam — pressupõe
a existência de u m aparelho que «filtra» estímulos específicos, desen-
cadeando as correspondentes consequências de comportamento apenas
e m contacto c o m estes. Designou-se este dispositivo por mecanismo

1. Ver as referências bibliográficas no fim do artigo.

164
A unidade biológica da human. : etologia humana, conceitos e implicações

automático de desencadeamento ( M A D ) . N o s animais, muitas reac-


ções sociais são desencadeadas por estes mecanismos — aproximação da
fêmea, luta, reflexo de fuga, submissão, etc. N o caso da parada nupcial,
o parceiro apresenta normalmente sinais particulares, igualmente here-
ditários (manchas coloridas, modificações da plumagem, movimentos
expressivos, odor, vocalização, etc,), «em harmonia» c o m os M A D
do destinatário.
N u m certo número de animais a existência destes mecanismos foi
demonstrada experimentalmente. Durante o período de reprodução,
o carapau macho delimita u m determinado território, o ventre torna-se
vermelho e afugenta os rivais. Neste espaço de tempo, procura as fêmeas
cujo abdome se apresenta prateado e inchado. Perante u m objecto que
reproduza c o m exactidão u m carapau cujo ventre não esteja vermelho
n e m intumescido, ele não mostrará qualquer interesse. M a s , se lhe apre-
sentarmos u m objecto de cera, e m forma de salsicha, vermelho por
baixo, atacá-lo-á imediatamente, e se a parte inferior estiver tumefacta
e prateada, será cortejado. Este comportamento observa-se m e s m o e m
carapaus machos e m isolamento (Cullen, 1960; Tinbergen, 1951).
Reencontramos estes mecanismos automáticos de desencadeamento
nos macacos. Sackett (1966) criou macacos presos desde o nascimento
e m condições tais que se encontravam privados de companhia: não
eram capazes de olhar para fora da sua jaula n e m de se mirarem n u m
espelho. A sua experiência visual resultava de diapositivos projectados
na parede da jaula e representando jovens macacos, paisagens, figuras
geométricas, etc. O s macacos eram capazes de projectar os diapositivos
montados, por meio de u m a alavanca. Cada diapositivo era projec-
tado durante quinze segundos e a operação podia ser repetida durante
cinco minutos. A frequência da autoprojecção marcava a preferência
por determinada imagem.
Verificou-se que os animais gostavam de observar a imagem dos
seus congéneres. A frequência de projecção destes diapositivos aumentou
rapidamente; ao vê-los os animais emitiam gritos de contacto, aproxi-
mavam-se e chegavam a tentar brincar c o m as personagens represen-
tadas. O s outros diapositivos suscitavam apenas u m interesse passageiro
e a taxa de projecção mantinha-se fraca. Entre os diapositivos que m o s -
travam macacos, u m deles, representando u m adulto ameaçador, m a n -
teve u m a certa popularidade durante algum tempo.
M a s , quando a idade dos macacos atingiu os dois meses e meio, o
comportamento dos indivíduos modificou-se. Subitamente, perante a
imagem da «ameaça», começaram a retrair-se, a fechar-se e a emitir
gritos de medo, e a taxa de autoprojecção baixou rapidamente. C o m o
até então os animais tinham sido privados de toda a experiência social,
esta modificação reflectia necessariamente o desencadeamento de u m
mecanismo automático de reconhecimento das estruturas expressivas
É perfeitamente aceitável que tal aconteça aos dois meses e meio, pois
é nessa idade que os jovens entram normalmente e m contacto c o m os
outros membros do grupo — e torna-se, então, extremamente impor-
tante poder identificar u m a expressão ameaçadora.

165
Irenäus Eibl-Eibesfeldt

O s sinais — referimo-nos aos «desencadeadores» u m a vez que geram


comportamentos específicos no parceiro — não são apenas visuais.
A s diversas formas assumidas pelo coaxar das rãs, o s o m dos grilos e
o canto dos pássaros constituem outras tantas características que ser-
vem para reconhecer os congéneres. U m a m ã e galinha sabe perfeita-
mente que osfilhoscorrem perigo quando ouve os seus gritos de aflição.
Se colocarmos u m a campânula de vidro sobre u m pintainho de tal
m o d o que a m ã e o possa ver m a s não ouvir, os seus movimentos não
impedem que a m ã e se vá embora c o m o resto da ninhada. Por outro
lado, a m ã e galinha reagirá rapidamente se ouvir u m dos pintainhos
piar do outro lado de u m a paliçada. Acorre ao local e m que ele se
encontra e chama por ele sem, no entanto, o ver.
U m a perua prodigaliza cuidados maternais a todo o objecto cujo
chamamento se assemelhe aos dos seus peruzinhos. Se munirmos de
u m alto-falante emitindo os chamamentos apropriados u m toirão
empalhado cujo aspecto se assemelha muito pouco ao do peru, a perua
prontifica-se a chocá-lo. U m a perua surda mata osfilhosporque apenas
o seu pipilar é capaz de lhe despertar o comportamento maternal
(Schleidt, W . M . e outros, 1960).
O s animais também são motivados por mecanismosfisiológicosina-
tos que poderemos classificar de pulsões: não esperam passivamente
os estímulos. Diversos mecanismosfisiológicosincitam u m animal a
procurar, por meio de u m comportamento dito apetitivo, situações
estimulantes (Lehrman, 1955; Hinde, 1966; von Holst, 1935), Quando
os animais se acasalam, caçam, se alimentam, bebem e, pelo menos os
de certas espécies, revelam u m comportamento agressivo, estão, e m
parte a obedecer a estas pulsões.
Finalmente, a aprendizagem é determinada por adaptações filoge-
néticas, de tal m o d o que os animais aprendem o que contribui para a
sua sobrevivência e modificam o comportamento e m função da experiên-
cia. E m particular, observou-se que certos animais aprendem, e m perío-
dos sensitivos, a produzir certas reacções que, u m a vez fixadas, parecem
resistir à extinção, a ponto de, por vezes, se tornarem irreversíveis,
Este fenómeno foi designado por impressão (Lorenz, 1935; Hess, 1973;
Immelmann, 1966).
A aptidão para a aprendizagem, semelhante à «pulsão», é u m termo
descritivo e não implica, de m o d o nenhum, u m mecanismo unitário.
D e resto, o estudo do canto dos pássaros mostrou b e m que o m e s m o
resultado — neste caso o facto de u m pássaro aprender o canto de u m
congénere — pode ser obtido de várias maneiras (Koniski, 1964, 1965a,
b; Marler, 1959; Thorpe, 1961).
O s tentilhões, por exemplo, sabem o que devem imitar. Quando ouvem
várias gravações, preferem o canto da espécie. Por meio de u m esquema
inato — que Koniski designou por «padrão» — sabem reconhecer este
canto. N o tentilhão raiado a aprendizagem do canto apropriado faz-se
normalmente durante u m período e m que o animal é particularmente
sensível aos cantos. O que é memorizado nesse momento tem priori-
dade sobre as experiências ulteriores.

i66
A unidade biológica da h u m a n . : etologia humana, conceitos e implicações

C o m o a origemfilogenéticapode actualmente ser considerada u m a


realidade, é pertinente perguntar se, pelo menos o comportamento
humano, não estará eventualmente pré-programado, c o m o sucede c o m
os animais.
N o entanto, a simples sugestão de que o comportamento do h o m e m ,
especialmente e m sociedade, poderia, e m parte, estar pré-programado
por adaptaçõesfilogenéticassuscitou réplicas polémicas por parte dos
defensores da doutrina mesológica, que acusaram os biólogos de refor-
çar, c o m o seu «determinismo biológico», os princípios autoritários e
conservadores que justificam o statu quo e incitam ao fatalismo, u m a
vez que não é possível fazer nada para modificar as características inatas.
M a s os especialistas de etologia repetem que o h o m e m é capaz de con-
trolar, no plano cultural, todos os seus comportamentos, incluindo os
comportamentos inatos, e que deve ser educado. Antes de analisar as
incidências de u m a óptica mesológica rigorosa e m relação ao método
do biólogo, gostaríamos de examinar a prova, na qual se baseia a nossa
hipótese, de que o comportamento h u m a n o está e m parte pré-progra-
mado.

Estudos do comportamento nos bebés

O recém-nascido possui u m reportório de esquemas motores funcio-


nais. Assim, consegue m a m a r e procurar o seio por meio de movimentos
da cabeça. Além disso, certas experiências mostraram que os bebés
são capazes de responder a estímulos adaptando-se-lhes, sem qualquer
experiência prévia.
Se apresentarmos a lactentes de 2 a 11 semanas, presos a u m a cadeira,
silhuetas que aumentam de maneira simétrica, eles reagem c o m a apro-
ximação de u m a colisão. Desviam a cabeça, protegem-se levantando as
mãos e o pulso acelera-se. Reagem do m e s m o m o d o quando objectos
volumosos se deslocam, efectivamente, na sua direcção. Por outro lado,
se as silhuetas aumentarem de maneira assimétrica, c o m o se passassem
ao lado, nenhuma reacção deste género se verifica nos lactentes (Ball e
Tronick, 1971).
T . G . Bower (1971) comenta estas experiências do seguinte m o d o :
« A precocidade desta reacção é extraordinariamente surpreendente do
ponto de vista tradicional. Penso até que estas conclusões constituem
u m golpe fatal para as teorias tradicionais do desenvolvimento h u m a n o .
N a nossa cultura, é pouco provável que u m a criança de menos de 2
semanas tenha sentido no rosto u m a pancada provocada por u m
objecto e m movimento; por conseguinte, nenhum dos lactentes obser-
vados durante este estudo tinha aprendido a recear u m objecto que
se desloca e a pensar que ele possui qualidades tácteis. Podemos ape-
nas concluir que, no h o m e m , existe u m a unidade primitiva dos sen-
tidos, c o m variáveis visuais correspondendo a consequências tácteis
e esta unidade primitiva é inerente à estrutura do sistema nervoso
humano.»

167
Irenäus Eibl-Eibesfeldt

É evidente que nos encontramos na presença de provas bastante


impressionantes da existência de mecanismos inatos de tratamento de
dados, cujo significado teórico é considerável. Outros investigadores
observaram alguns lactentes «petrificados» à beira de u m a falésia, o
que mostra que o m e d o de cair é inato. Aos 2 meses a criança é capaz
de reconhecer formas invariáveis, perante diversas transformações.
Por exemplo, foi possível ensinar lactentes a manipular c o m a cabeça
comutadores eléctricos fixados n u m suporte onde encostam a cabeça,
obtendo como recompensa a presença de u m a pessoa que sorri. O sinal
de aprendizagem era u m cubo de 30 c m de aresta, apresentado a u m
metro de distância. Ora, os lactentes reagem raramente a u m cubo de
90 c m de aresta apresentado a três metros de distância, apesar da imagem
retiniana ter a m e s m a dimensão do que a projectada pelo cubo de
30 c m situado a u m metro (Bower, 1966). A s crianças também possuem
u m a aptidão inata para integrar impressões visuais e tácteis. Sabemos
que u m objecto que escondemos atrás de u m biombo aí permanece.
D e acordo c o m a teoria clássica, a criança toma consciência deste fenó-
m e n o passando a m ã o por trás do biombo. Bower (1971) realizou u m a
experiência durante a qual mediu as reacções de surpresa dos lacten-
tes (aceleração do pulso) quando eram submetidos a diferentes ilusões
de óptica. Projectou n u m écran objectos que eles tentavam alcançar.
N ã o conseguindo agarrar o «objecto», manifestavam-se surpreendidos
o que era testemunhado pelo ritmo do pulso. Por outro lado, quando
tinham efectivamente possibilidade de se apoderarem de qualquer coisa,
o pulso não registava nenhuma modificação. O lactente espera, por-
tanto, poder tocar no objecto que vê. U m a vez que já reage assim aos
2 meses podemos concluir pela existência de u m a disposição inata
tal que a impressão óptica prevê a impressão táctil.
«Estes resultados eram surpreendentes e interessantes. Mostravam
que pelo menos u m aspecto da interacção olho/mão é inerente ao sis-
tema nervoso» (Bower, p . 35), E m seguida, Bower considerou a pos-
sibilidade de processos mais complexos programados no sistema ner-
voso humano. N a presença de crianças muito pequenas, dissimulou
objectos atrás de u m biombo que, e m seguida, retirou após intervalos
mais ou menos longos. A s crianças não se mostravam perturbadas se
verificavam que o objecto lá continuava. Por outro lado, alarmavam-se
(como testemunhava a aceleração do pulso) quando o objecto tinha
desaparecido, desde que o intervalo entre o momento e m que se colo-
cava o biombo e aquele e m que se retirava não fosse muito longo.
«Até m e s m o as crianças muito novas parecem saber que o objecto conti-
nuava lá depois de ser dissimulado, mas, se a experiência se prolongar,
esquecem-no completamente. Atendendo à reduzida idade dos indiví-
duos e à novidade das condições do teste, é improvável que esta reac-
ção necessite de ser aprendida» (p. 35), E m outros testes, Bower des-
cobriu crianças de 8 semanas que prevêem o reaparecimento de objecto
desaparecidos acidentalmente atrás de u m biombo. Revelam emoção
se o objecto reaparece rapidamente ou se não reaparece nunca. N o
entanto, parece não haver diferença na reacção da criança se e m vez
de u m a bola aparecer u m cubo do outro lado do biombo. M a s são neces-

l68
A unidade biológica da h u m a n . : etologia humana, conceitos e implicações

sários movimentos b e m encadeados para que o olhar da criança possa


acompanhar. C o m o é evidente, a identidade do objecto tem de ser
aprendida.
A s experiências demonstram a existência no ser h u m a n o de meca-
nismos inatos de tratamento de dados, apresentando, portanto, u m a
grande importância teórica. Confirmam o ponto de vista de K . Lorenz,
segundo o qual mecanismos inatos de desencadeamento estão na base
de u m grande número das nossas estruturas de pensamento e atitudes.

O estudo das crianças deficientes

Grande parte dos nossos esquemas motores não estão presentes ao


nascer. Assim, a maior parte das nossas expressões faciais desenvol-
vem-se durante a ontogenèse. Estes esquemas motores serão o resul-
tado de u m a aprendizagem ou dá-se u m a maturação? O s estudos sobre
surdos e cegos de nascença fornecem u m a resposta a esta interrogação.
A s crianças surdas e cegas de nascença crescem na obscuridade e no
silêncio. N ã o ouvem n e m vêem o que as outras pessoas fazem; se o
conceito mesológico fosse verdadeiro, comportar-se-iam de m o d o dife-
rente das que recebem estes dados. Examinámos estas crianças, filmá-
m o s o seu comportamento e observámos que têm, e m geral, as mesmas
expressões faciais — sorriso, riso, choro, raiva, dentes cerrados, etc. —
e nas mesmas condições que as crianças normais. A s crianças surdas
e cegas sorriem quando a mãe brinca c o m elas, choram quando se
m a g o a m e agitam o punho quando se zangam, para nos limitarmos a
alguns exemplos. Poderíamos citar ainda o caso das crianças vítimas da
talidomida, nascidas surdas e cegas, que n e m sequer tiveram possibili-
dades de explorar o ambiente c o m o sentido do tacto, e que apresentam
reacções análogas.
Pode, contudo, verificarle u m a influência externa, quando, por
exemplo, a m ã e recompensa os sorrisos c o m carícias afectuosas ou
reconforta a criança que chora. Devemos contar c o m este reforço,
mas são necessários, à partida, esquemas identificáveis de expressão
facial. E m esquemas mais complicados de mímica, tais c o m o o compor-
tamento associado à raiva, é difícil ver o efeito de u m a acção fortuita.
O s surdos e os cegos de nascença também revelam certas reacções
sociais fundamentais entre as quais o medo de estranhos apresenta
u m interesse particular. Apesar destas crianças nunca terem sido mal-
tratadas por desconhecidos, distinguem pelo olfacto as pessoas fami-
liares e as outras. Estas últimas desencadeiam o reflexo de m e d o .
A criança esquiva-se e procura o contacto de u m a pessoa conhecida.
Mais tarde, o m e d o dos estranhos transforma-se e m rejeição activa.
Pode acontecer que a criança actue de maneira agressiva e repila a
pessoa e m questão antes de se esquivar. T a m b é m podemos observar
esta reacção e m crianças pertencentes a diferentes culturas. A tendência
do h o m e m para viver e m grupos exclusivos e para dar provas de suspei-
ção, ou até de hostilidade perante estranhos parece basear-se nesta
disposição inata.

169
Irenäus Eibl-Eibesfeldt

A informação tirada do estudo dos surdos e cegos de nascença apre-


senta u m grande interesse teórico, se b e m que limitado, tendo e m conta
que muitos dos nossos esquemas de comportamento e m sociedade são
desencadeados por estímulos auditivos e visuais. C o m o estas vias se
encontram bloqueadas no surdo e cego de nascença, necessitamos de
explorar outras vias para saber se esquemas de interacção social mais
complexos pertencem ao nosso programa de comportamento adqui-
rido pelafilogénese.Para tal, estudámos o caso de cegos de nascença
e procedemos a comparações entre culturas.
A o dirigirmo-nos a u m cego de nascença, podemos suscitar modos
de comportamento complexos, c o m o a timidez. Basta fazer u m elo-
gio a u m a jovem para que ela enrubesça, baixe a cabeça, se desvie
discretamente e, e m seguida, volte novamente a cabeça para o inter-
locutor, sorrindo. U m rapaz cego de nascença, ao sentir-se emba-
raçado, escondeu a cabeça entre as mãos.

A comparação entre culturas

ESQUEMAS MOTORES HOMÓLOGOS

A comparação transcultural baseia-se e m documentos filmados.


Ainda recentemente, a documentação etnológica referia-se essen-
cialmente a certos aspectos da cultura material e a manifestações
c o m o danças e cerimónias rituais Mostrou-se e m pormenor como
os autóctones tecem tapetes, fabricam cerâmica ou constroem u m a
cabana. M a s , para saber como as pessoas de diferentes culturas se
cumprimentam, transportam os filhos, namoram ou discutem, pro-
curava-se e m vão u m a colecção sistemática de documentos realizados
ao vivo.
Estabelecemos, portanto, u m programa de documentação transcul-
turalfilmandopessoas, sem o seu conhecimento, por meio de teleobjec-
tivas munidas de espelhos (para mais pormenores ver Eibl-Eibesfeldt
1973c, 1975o). N o decurso dos últimos dez anos concentrámos a nossa
atenção nas culturas ameaçadas de extinção rápida, que nada tinham
modificado no seu m o d o de vida original, escolhendo as que represen-
tavam modelos por diferentes etapas da evolução cultural. C o m inter-
valos regulares observámos os Bochimanes do Kalahari (!ko, G / W i ,
!Kung) que vivem da caça e da colheita, os Ianomani (Alto Orenoco)
que começam a praticar a horticultura, os Eipos, os Biami e outros
horticultores neolíticos da N o v a Guiné, os Himbas (Kaokoveld/Sudoeste
Africano) representando os pastores, os Balineses representando os orizi-
cultores e muitos outros grupos. Filmámos essencialmente cenas m o s -
trando manifestações espontâneas de interacção social. Todas são
acompanhadas por descrições que precisam o contexto (o que provo-
cou a cena, o que se lhe seguiu e o que, entretanto, aconteceu) para
permitir u m a análise comparativa ulterior. Evitámos, tanto quanto
possível, ser selectivos, filmando sempre que u m a interacção se produ-
zisse; por exemplo, quando as pessoas se deslocavam ou se dirigiam

170
A unidade biológica da human. : etologia humana, conceitos e implicações

umas para as outras, sem saber antecipadamente se se tratava de u m a


interacção de tipo amigável ou agressivo
O s estudos transculturais mostraram que u m grande número de
esquemas motores se situam no m e s m o contexto e m toda a parte.
É evidente que n e m todos podem ser considerados inatos. Experiências
semelhantes efectuadas n o início da vida da criança p o d e m gerar u m
comportamento análogo e m culturas diferentes. Se, por exemplo, o
movimento de cabeça que significa «não» vem do acto de voltar a
cabeça quando a criança recusa o seio depois de satisfeita, assim se
explica que, e m muitas culturas diferentes, este sinal de cabeça se tra-
duza por «não» T a m b é m devemos ter e m conta que as aptidões inatas
para a aprendizagem oferecem, talvez, u m meio de aprender e m con-
dições semelhantes n o seio de culturas diferentes. U m certo número de
factos, que examinaremos, comprovam a existência destas aptidões.
O facto de se encontrarem numerosas semelhanças nas diversas cul-
turas pode explicar-se por u m a identidade de funções. N ã o existem
muitas maneiras de se repelir u m adversário ou de lhe dar pontapés e,
por conseguinte, se encontramos semelhanças e m várias culturas, não
devemos aceitar automaticamente que existe u m património biológico
c o m u m , m e s m o que seja esse o caso. E u pensava, por exemplo, que
esconder o rosto quando nos sentimos embaraçados era u m gesto
aprendido. A criança esconde-se atrás das mãos e julga — c o m o não
pode ver — que também não é vista. Parecia plausível que as crianças
de outras culturas sentissem a m e s m a impressão, o que explicaria a
universalidade das reacções. Desde quefilmeio rapaz cego que tapava
o rosto, já não estou tão certo de que este gesto seja adquirido. Para
além destes casos duvidosos, existem muitos esquemas de comporta-
mento cuja forma particular não é ditada pela função. Por exemplo,
o sorriso exprime u m a intenção amigável, os gritos e o choro traduzem
desgosto, a troça u m a forma particular de agressão. Trata-se aparente-
mente de convençõesfilogenéticas,pois são transmitidas c o m poucas
modificações evidentes, contrariamente às convenções manifestamente
culturais que sofrem transformações rápidas, c o m o a linguagem. N a
N o v a Guiné existem várias centenas de línguas faladas: c o m efeito,
bastam algumas gerações para criar u m a nova língua. É a conformi-
dade de pormenores que surpreende o observador.
A elevação das sobrancelhas constitui u m exemplo particular de
comportamento transcultural que merece ser examinado. Observei
que, e m culturas muito diversas, as pessoas que se encontram se cumpri-
mentam do seguinte m o d o : levantam a cabeça por breves instantes,
elevam rapidamente as sobrancelhas, que se mantêm nesta posição
durante a sexta parte de u m segundo. Segue-se u m movimento de cabeça
acompanhado por u m sorriso que pode preceder a elevação das sobran-
celhas. Esta mímica reflecte surpresa —agradável, c o m o indica o
sorriso que a acompanha — e, portanto, u m a disposição favorável ao
contacto. E o que podemos observar quando as pessoas se cumpri-
mentam, tecem galanteios, afirmam a sua concordância, assim c o m o e m
outras situações que exprimem u m a disposição favorável ao contacto.
Outros fenómenos de «ritualização» surgem quando a elevação das

171
Irenãus Eibl-Eibesfeldt

sobrancelhas, associada a u m olhar ameaçador, traduz desprezo. Neste


caso, o interessado conserva as sobrancelhas elevadas durante o tempo
de duração do confronto.
A s diferenças de ordem cultural têm influência sobre a frequência
da elevação das sobrancelhas. O s Polinésios usam-na abundantemente.
T a m b é m cumprimentam deste m o d o os estranhos e acompanham
c o m este sinal u m puro e simples «sim». O s Japoneses, no entanto,
abstêm-se entre adultos, pois esta mímica passa por ser incorrecta.
Pode, contudo, ser utilizada c o m as crianças. Pela nossa parte, parece
que nos encontramos n u m a situação intermédia. Servimo-nos deste
sinal como galanteio, quando cumprimentamos os amigos mais ínti-
m o s e ainda quando testemunhamos a nossa concordância.
O esquema motor «elevação das sobrancelhas» é considerado pelos
biólogos como «inato». A elevação das sobrancelhas é regularmente
associada aos outros esquemas motores inatos tais como o sorriso, a
elevação da cabeça e provavelmente também o abanar da cabeça, e
apresenta-se-nos como u m elemento do programa dado.
Outro m o d o de comportamento que é u m sinal universal de afeição :
o beijo. E m todas as culturas que estudei até hoje, observei que as mães
apertam contra si e beijam as crianças, tanto entre os Papuas como entre
os aborígenes da Austrália, os Japoneses, os Balineses, os Bochimanes,
os Himbas, os Ianomani e muitos outros ainda. Segundo as culturas,
este gesto é mais ou menos utilizado na comunicação entre adultos.
E m algumas delas parece ser proibido, pelo menos e m público. T e m
origem na alimentação de boca a boca e está ligado a comportamentos
homólogos nos primatas não humanos.
Passemos agora a esquemas mais complexos. Já se afirmou que os
mamíferos têm modos de comportamento tão diversos que não é pos-
sível falar de esquemas imutáveis (Schenkel, 1947). Lorenz (1953) res-
pondeu a esta argumentação mostrando que, se combinarmos vários
elementos produtores de estímulos, e m graus diversos, desencadeamos
no cão movimentos instintivos de raiva e de medo que se traduzem
por diferentes mímicas. D o m e s m o m o d o , muitos jogos de fisionomia
do h o m e m , que parecem variados à primeira vista, podem ser reduzidos
a algumas «constantes» que se justapõem ou se sucedem alternada-
mente. Consideremos, por exemplo, o comportamento de u m a adoles-
cente tímida. Olha, baixa os olhos, desvia a cabeça, e m seguida eleva-a,
espreita pelo canto do olho ou olha de frente. T a m b é m pode, nesta m e s m a
situação, sorrir, mas de maneira crispada, serrando os maxilares, colo-
car a m ã o e m frente da boca para dissimular o sorriso, tentar escon-
der-se atrás de alguém ou de alguma coisa, ou agarrar-se e m busca de
protecção. Pode piscar os olhos amigavelmente mas baixando imediata-
mente o olhar para se furtar ao olhar do outro. Pode também olhá-lo,
esquivando-se por meio de u m leve movimento do busto. Pode ainda
manifestar u m a certa agressividade batendo c o m o pé, dando u m
encontrão n u m a amiga que se encontre ao lado, gritando ou metendo
os dedos na boca, roendo as unhas ou mordendo os lábios. E m suma,
é evidente que dois tipos de reacção são suscitados simultaneamente:
u m é u m sentimento de confiança, u m desejo de sociabilidade, e o outro

172
A unidade biológica da h u m a n . : etologia humana, conceitos e implicações

u m sentimento de hostilidade que gera u m a atitude agressiva e vontade


de fugir. Estas reacções coexistem ou sucedem-se; p o d e m combinar-se
de muitas maneiras e traduzir-se por todo u m conjunto de mímicas.
É , porém, muito fácil interpretar e classificar estes modos de c o m -
portamento m e s m o e m contextos culturais completamente diferentes.
O que está de acordo c o m as conclusões de E k m a n , Eriesen e Ellswerth
(1972) que apresentaram a indivíduos instruídos e a analfabetos foto-
grafias de mímicas tiradas ao vivo e gravações de sons vocais. O s indi-
víduos interrogados reconheceram quase sempre c o m grande exactidão
as expressões de outras culturas.

CONVENÇÕES CULTURAIS
E ESQUEMAS MOTORES INATOS

O s movimentos que acompanham o «sim» e o «não» são, por vezes,


desconcertantes. Todos sabemos que existem variantes culturais, m a s
abanar a cabeça para dizer «não» é certamente o gesto mais universal.
Fihnei-o, entre outras, e m várias tribos papuas, entre os índios Iano-
mani, os Bochimanes do deserto de Kalahari e os Himbas. Encontra-
mo-lo u m pouco por toda a parte, m a s não é, de m o d o n e n h u m , a única
maneira de exprimir u m a recusa. O s Gregos e muitos outros povos d o
Mediterrâneo e do Próximo Oriente dizem «não» atirando a cabeça para
trás, fechando os olhos, muitas vezes inclinando a cabeça para o lado e,
por vezes, levantando u m a m ã o , ou as duas, e m sinal de negação.
Observa-se a m e s m a mímica e m muitas outras culturas quando se
trata de exprimir contrariedade; assim, reagimos de maneira idêntica
quando nos sentimos chocados por qualquer afirmação e a rejeitamos
c o m u m a energia violentamente eivada de emoção. Este jogo de fisio-
nomia é, no entanto, muito raro para significar u m «não» puro e simples.
O s índios Aioreos do Paraguai têm u m m o d o muito próprio de dizer
«não». Franzem o nariz c o m o se sentissem algum odor nauseabundo,
fecham os olhos e, muitas vezes, fazem beiço. T a m b é m eles recorrem
raramente a esta mímica para dizer muito simplesmente «não», m a s é
verdade que, e m todo o m u n d o , u m odor desagradável incita as pes-
soas a franzir o nariz e a fechar os olhos. Trata-se, na verdade, de impedir
a passagem aos estímulos desagradáveis.
O s Eipos da N o v a Guiné têm duas mímicas para dizer «não». A b a -
nar a cabeça indica u m a recusa pura e simples, m a s , nas relações sociais,
a recusa traduz-se por u m a expressão de desaprovação. Fazer beiço
também é u m a mímica universal para responder a u m insulto e inter-
romper o contacto.
E m suma, é possível dizer «não» de muitas maneiras e podemos fazê-lo
a partir de jogos de fisionomia que exprimem já u m a recusa por se ins-
creverem no contexto de relações sociais, ou por traduzirem a vontade
de eliminar u m estímulo ou de rejeitar qualquer coisa1. Neste último caso,

1. A experiência fornecida por Darwin já não é confirmada pelos dados actuais.


O mecanismo motor de rejeição é muito comum entre os mamíferos e as aves.

173
Irenäus Eibl-Eibesfeldt

a quase total ausência de emoção permite exprimir u m «não» puro e


simples melhor do que o poderiam fazer outras mímicas susceptíveis
de ser consideradas ofensivas. Algumas culturas transformam-nas e m
modos de expressão convencionais. Trata-se, então, de modelos uni-
versais que adquirem u m sentido preciso depois de terem sido inte-
grados n u m a cultura.

ANALOGIAS NOS PRINCÍPIOS

U m a comparação transcultural permite verificar que muitos esque-


m a s de comportamento se assemelham, mas esta semelhança não é
tanto u m a questão de forma c o m o de princípio. Muitos deles fazem
parte do património hereditário do indivíduo, da sua bagagem filoge-
nética. C o m o já dissemos, os animais e os seres humanos são dotados
não só de u m sistema de coordenações motoras instintivas, como tam-
b é m de u m sistema de resposta a certos estímulos ou a certas situações,
que desempenha o papel de u m mecanismo de alarme e provoca com-
portamentos determinados. N ã o é necessário nenhum condicionamento
prévio, pois o animal possui, de certo m o d o , u m conhecimento inato
destes fenómenos. Encontramo-nos e m presença de u m «mecanismo
automático de desencandeamento».
Alguns dos nossos mecanismos de tratamento dos dados respondem
a sinais provenientes de outros indivíduos. O s lactentes, por exemplo,
apresentam u m certo número de particularidades que classificamos de
«adoráveis». Refiro-me essencialmente às particularidades físicas
c o m o o tamanho desmedido da cabeça e m relação ao resto do corpo,
as extremidades pequenas, a testa saliente n u m rosto minúsculo e
olhos enormes. A s faces parecem agir c o m o sinais. É muito fácil criar
personagens «adoráveis», basta exagerar alguns traços. É o que fazem os
caricaturistas (Walt Disney, por exemplo) que desenham animais
«adoráveis» fazendo u m a cabeça enorme e m relação ao corpo. Todos
os lactentes se assemelham e inspiram invariavelmente u m sentimento
de ternura que exclui a agressividade. N ã o nos devemos surpreender
com o facto de, e m muitos ritos de boas vindas, se apresentar u m a criança
para indicar que se possuem intenções pacíficas. Quando os índios
Ianomani são convidados para u m banquete levam consigo as mulhe-
res e as crianças. A o entrar na aldeia, os visitantes executam u m a dança
guerreira, organizam u m a parada brandindo arcos e flechas. Esta
demonstração de agressividade é neutralizada pela dança de u m a criança
que agita folhas de palmeira. Nas nossas civilizações, os visitantes de
categoria são saudados por tiros de canhão (ostentação de agressividade)
m a s , simultaneamente, u m a criança oferece-lhes flores.
T ê m sido descritas curiosas exibições fálicas e m numerosos primatas
não humanos para exprimir u m a ameaça. Quando u m grupo de macacos
vervets está ocupado a esgravatar o solo, vários machos mantêm-se de
guarda voltando-lhes as costas e exibindo os órgãos genitais.
C o m o é evidente o h o m e m não utiliza este processo de vigilância
mas fabrica imagens de que se serve c o m o espantalhos para proteger

174
A unidade biológica da human. : etologia humana, conceitos e implicações

os campos e as casas. Estes espantalhos têm u m a expressão ameaça-


dora e exibem o sexo. Encontramo-los e m todo o m u n d o , tal c o m o as
exibições fálicas são correntes e m encontros agressivos. Verificam-se,
porém, diferenças de pormenor. Existem imagens deste tipo na Europa,
na Ásia Tropical, na N o v a Guiné, na América do Sul, e m África, etc.,
e são frequentemente utilizadas como amuletos; especialmente no Japão,
onde se destinam a proteger o indivíduo.
E m situações de agressividade proferem-se ameaças fálicas directas.
Pode tratar-se de u m a ameaça de agressão sexual expressa verbalmente
ou c o m o auxílio de gestos. O s Eipos (tribo da Nova Guiné indonésica)
quando são surpreendidos, batem repetidas vezes c o m o polegar na
região púbica para atrair a atenção para a exibição fálica. Qualquer
pessoa que, n u m a situação inesperada, sinta receio, adopta u m a atitude
de rejeição. O s Eipos também pronunciam palavras sagradas que são,
e m geral, tabus. Fazemos o m e s m o quando invocamos os nomes dos
santos para exprimir espanto ou quando proferimos injúrias.
A ostentação dos ombros constitui outra interessante manifestação
de virilidade. O s índios Ianomani ornamentam-nos c o m plumas, os
Europeus e os Japoneses enchumaçam-nos, pois os ombros largos cor-
respondem aos cânones da beleza masculina. Verifica-se que a linha
pilosa que atravessa as costas do h o m e m desde o fundo até ao cimo,
contrariamente ao que se passa c o m os macacos, termina e m tufos
nos ombros dos indivíduos cujo sistema piloso é muito desenvolvido.
É fácil supor que estes tufos eram ainda maiores nos nossos antepassa-
dos, muito peludos, e que alargavam a silhueta. Trata-se certamente de
u m fenómeno de adaptação à posição de pé, pois não o encontramos nos
macacos superiores (Leyhausen e m Eibl-Eibesfeidt, 1975). Procurou-se
substituir u m a particularidade congénita depois dela ter desaparecido
quase completamente. T a m b é m a esteatopigia1 sublinha as ancas da
mulher, o que é considerado, e m certas raças u m ornamento sexual e
u m elemento de beleza. O facto da m o d a continuar a salientar esta
parte do corpo por meio de laços,fitas,cintos, etc,, faz-nos pensar que
esta particularidade se encontrava outrora muito mais espalhada.

ESTRIBILHOS VERBAIS

O vocabulário e a gramática utilizados pelas pessoas quando falam


são certamente u m produto da evolução cultural. Parece, contudo,
que as pessoas dizem, e m princípio, a m e s m a coisa n u m a situação dada.
C o m o este domínio tem sido pouco explorado, pretendo chamar a
atenção para ele. Quando as pessoas se cumprimentam trocam também
algumas palavras. C o m e ç a m por exprimir solicitude: « C o m o tem pas-
sado?» é u m a fórmula corrente. Existem outras fórmulas que traduzem
u m a dádiva simbólica, u m voto de felicidade (bom dia!). Segue-se,
e m geral, u m diálogo que não contém verdadeiramente informação
factual. U m indivíduo dirá: «Que belo tempo que está hoje!» e o inter-

1. Acumulação de tecido adiposo ao nível das nádegas (sobretudo nas mulheres).

175
Irenäus Eibl-Eibesfeldt

locutor responderá u m a banalidade c o m o : « M a s u m pouco de chuva


não faria mal à agricultura!», e o outio retorquirá: «Lá isso é verdade!»
N ã o é a informação trocada que tem importância. A m b o s sabem per-
feitamente que está b o m tempo. M a s deram o sinal de que a via da
comunicação está aberta e de que estão os dois de acordo. Deixar-se-ão
c o m outro voto, outra dádiva verbal.
O h o m e m traduz e m palavras a maior parte dos seus comporta-
mentos instintivos. A troca de presentes é u m costume universal, que
corresponde a mecanismos semelhantes nos animais e devemos con-
siderá-la u m a disposição inata. O h o m e m pode, contudo, dar u m pre-
sente sob forma de desejo ou de promessa verbal. Para manifestar u m a
preocupação, pode exprimi-la pela expressão do rosto, m a s também
pode utilizar palavras. Prefere recorrer a ameaças verbais do que c o m -
bater o adversário. Atendendo à importância do papel desempenhado
pelas «ritualizações» através da história, c o m o , por exemplo, a substi-
tuição de combates mortais por u m a cerimónias ritual, permitimo-nos
pensar que se tem exercido u m a pressão selectiva sobre a linguagem à
medida que esta tem evoluído.
Todos os indivíduos parecem pronunciar mais ou menos as mesmas
palavras quando se irritam, quando se dirigem a u m a ente querido
ou quando manifestam surpresa. Os termos afectuosos utilizados pelos
pais («meu pequenino», «meu passarinho») têm o efeito de estreitar os
laços que os u n e m aos filhos, enquanto a injúria aviltante («patife!
canalha!») exerce u m a função de afastamento, de distanciação, para
citar apenas alguns exemplos.

«Ritualização» cultural e biológica

A s «ritualizações» culturais e biológicas seguem a m e s m a via, u m a


vez que as pressões selectivas sobre a acção e a pré-adaptação que
fornece o ponto de partida são e m princípio as mesmas. O s sinais
— e a ritualização diz respeito à evolução dos sinais — devem ser bem
visíveis e transmitir o sentido sem ambiguidade ao indivíduo a quem se
dirigem. A s conexões motoras, no decorrer da sua transformação pro-
gressiva e m sinais, simplificam-se ao amplificarem-se (exageração das
mímicas). A demonstração é sublinhada pela repetição ritmada. O ritual
da aproximação amorosa que filmámos e já descrevemos (Eibl-Eibes-
feldt, 1974) fornece-nos u m b o m exemplo Por vezes, os movimentos
transformam-se e m gestos (ameaçadores, por exemplo). O s rituais
biológicos e culturais partem muitas vezes de pré-adaptações semelhantes.
Esquemas análogos desenvolvem-se, pois, independentemente uns dos
outros.
A maneira como as armas ou os meios naturais de defesa são apre-
sentados para significar que estamos animados de intenções pacíficas
é a m e s m a entre os homens e entre os animais. Algumas aves voltam
as costas ao adversário e olham para o céu para indicar que não têm
intenções belicosas. A s cerimónias de apresentação de armas para
desejar as boas vindas a u m visitante inspiram-se no m e s m o princípio.

176
A unidade biológica da h u m a n . : etologia humana, conceitos e implicações

Oferecer alimentação a u m amigo traduz u m desejo de aproximação


tanto entre os homens como entre os animais e constitui u m ritual que
se desenvolveu paralelamente ao da troca de presentes. Poderíamos citar
muitos outros exemplos (ver, a este respeito, Eibl-Eibesfeldt 1973a,
1975a). Existem leis derivadas de funções que regem estes desenvol-
vimentos.

Perspectivas abertas: a biologia e os homens

N o s parágrafos precedentes estudámos as adaptaçõesfilogenéticasno


comportamento h u m a n o , assunto que tem sido muito desprezado até
hoje. Ainda não sabemos ao certo e m que medida o nosso comporta-
mento social é programado, n e m como o é. M a s as adaptações filoge-
néticas parecem ter aberto a via à competição social e explicam a dis-
posição dócil de certos indivíduos, a intolerância perante os estranhos
e a agressividade, assim como as tendências altruístas e o desejo de
estabelecer contactos amigáveis, isto é, a nossa afectividade, no sentido
mais geral do termo.
Se estas hipóteses se verificarem, deveremos concluir que somos for-
çados a obedecer a todas as nossas pulsões instintivas? Q u e somos víti-
mas impotentes? H á q u e m pretenda que a etologia, pela importância
que atribui aos caracteres inatos, reforça doutrinas conservadoras c o m o
as que preconizam o imobilismo da sociedade. É verdade que a etologia
corre o risco de ser mal interpretada. M a s os etólogos, para se defen-
derem destes abusos, sublinharam por várias vezes que as adaptações
filogenéticas estão longe de ter razão de ser. Assim c o m o o nosso apên-
dice perdeu a sua utilidade e subsiste c o m o órgão supérfluo, também
muitas das nossas tendências instintivas são talvez «apêndices». Somos,
portanto, forçados a aceitar este lastro, este resíduo da evolução e,
como «criaturas naturalmente culturais» (Gehlen, 1940), somos certa-
mente capazes de o fazer. Enquanto os animais obedecem a pulsões
instintivas e apresentam comportamentos minuciosamente programa-
dos — o iguano, por exemplo, quando trava u m combate, evolui segundo
regras imutáveis —, o que não acontece c o m o h o m e m . Este está ani-
m a d o por pulsões e adapta-se a alguns esquemas de acção pré-deter-
minados, mas dispõe também de u m sistema de respostas não condi-
cionadas a certos estímulos. Além disso, certas regras morais parecem
basear-se e m adaptaçõesfilogenéticas,m a s o conjunto d o comporta-
mento humano não se encontra estritamente condicionado. É maleável,
m a s não infinitamente. O s condicionamentos culturais impõem limites
a esta maleabilidade. N o entanto, c o m o estes esquemas culturais variam
de local para local, os homens souberam adaptar-se rapidamente a diver-
sas situações mesológicas. A s pulsões agressivas o u sexuais de u m
Esquimó não necessitam de ser dominadas como as de u m Masai ou
u m citadino da nossa época. A l é m disso, podemos modificar os meca-
nismos culturais de contrôle do comportamento quando considerarmos
necessário, e é precisamente o que estamos a fazer. Actualmente, a opi-
nião segundo a qual a criança não deve receber nenhuma directiva ganha

Ï77
vn-i
Irenäus Eibl-Eibesfeldt

terreno. O s programadores desta ideia consideram que se deve deixar


o ser h u m a n o desenvolver sozinho. M a s , e m que base? A partir das suas
tendências naturais? Estas são essencialmente determinadas por meca-
nismos de pulsão. A pré-programação da evolução do h o m e m não é
suficiente para abrir a via a u m a vida social harmoniosa. Temos neces-
sidade de que nos transmitam mecanismos de controle culturais para nos
podermos adaptar à sociedade. Se nos colocarmos nesta óptica, os
defensores intransigentes dos métodos de educação não autoritários
não poderão escapar completamente à acusação de se dedicarem a
experiências muito levianamente. Parece paradoxal que os que atribuem
tamanha importância ao papel do ambiente na formação da personali-
dade humana não tenham e m conta as influências socioculturais no
estabelecimento de u m a linha de conduta.
C o m o é evidente, não devemos permitir a estagnação das «fórmulas»
culturais. É possível u m a modificação, mas o desenvolvimento cultural
deveria, c o m o a evolução biológica, processar-se por fases. O s ideólo-
gos que pretendem romper a todo o custo a tradição arriscam-se a
favorecer a sua destruição e não a sua evolução (ver também Lorenz,
1970).
É importante descobrir a natureza do h o m e m , afimde evitar que
a evolução cultural procure a sua via tacteando, pelo método das tenta-
tivas e erros. O conhecimento íntimo das relações de causa a efeito,
muito particularmente no que diz respeito aos factores de programação
do h o m e m , poderá revelar-se u m dos mais úteis na procura dos remédios
para a nossa existência visivelmente muito perturbada.
O s etólogos foram obrigados a enfrentar ataques por terem subli-
nhado os factores biológicos determinantes do comportamento. Insisto,
pois, no aspecto positivo de u m património c o m u m que nos fornece
a base de u m a compreensão mútua. Se assim não fosse, as culturas
comportar-se-iam como espécies diferentes e seria muito difícil superar
os obstáculos à comunicação delas resultantes. O etnocentrismo não
conheceria limites, moralmente falando. A humanidade continua a
considerar-se incluída n u m a única e m e s m a família apesar da diver-
sidade cultural, devido ao seu património biológico. N ã o é por os bió-
logos não verem, ou não apreciarem, a beleza da diversidade cultural
e racial, mas é para o poderem fazer plenamente, que devemos estimular
o sentimento de unidade na diversidade e servir-nos do nosso património
hereditário para desmontar o etnocentrismo.
Assim, parece-me difícil compreender porque é que os biólogos que
sublinham a importância do nosso patrimóniofilogenéticosão tão ata-
cados e c o m tanta virulência.
C h a m a m o s a atenção para o perigo que apresenta para a huma-
nidade u m dogmatismo mesológico demasiado rigoroso. Skinner,
c o m o já disse, considera que o comportamento do h o m e m é inteira-
mente condicionado pelo ambiente e que tudo, incluindo a moral,
é resultado de u m condicionamento. Segundo Skinner, as regras da
moral são deduzidas das funções e o b e m é o que contribui para a sobre-
vivência de u m a cultura. M a s , q u e m pretender que o b e m corresponde à
definição dada por u m a ideologia ou u m a cultura, dificilmente poderá

178
A unidade biológica da human. : etologia humana, conceitos e implicações

esperar que os outros considerem normais as motivações que o ani-


m a m . Sabemos que certas culturas elaboraram regras de conduta que
exercem u m a pressão impiedosa sobre outras culturas e que, por vezes,
originaram a sua extinção, o que parece provar a relatividade das regras
de conduta promulgadas pelos homens. M a s , observando bem, aperce-
bemo-nos de que estas normas culturais foram muitas vezes aplicadas a
normas biológicasfilogeneticamentedesenvolvidas, que são pertença
de todo o h o m e m e constituem o seu património c o m u m . O h o m e m
«biológico», e m toda a superfície do globo, parece experimentar u m a
viva repugnância e m matar ou maltratar u m dos seus semelhantes.
Está programado para reagir a certos sinais que desencadeiam piedade,
como a expressão ou os gritos de aflição de u m a criança. N o entanto,
acontece que mata. O h o m e m «cultural» passou as normas biológicas
pelofiltroda cultura e foi, assim, levado a desejar a morte dos inimigos
do seu grupo. E m sua opinião, só os homens do seu grupo são homens
verdadeiros, e situa-os e m destaque e m relação aos outros, que trata como
sub-homens.
Pode, portanto, matar, m a s , ao fazê-lo, encontra-se perante u m
conflito; na verdade, se certas normas foram efectivamente aplicadas
às normas biológicas, estas n e m por isso deixaram de existir, e conti-
n u a m a desempenhar o seu papel. O h o m e m não se emociona c o m a
morte à distância de u m dos seus semelhantes, durante o bombardea-
mento de u m a cidade, por exemplo. M a s experimenta u m sentimento
de culpabilidade quando a morte ocorre n u m confronto de h o m e m
para h o m e m . O próprio Freud tinha perfeitamente consciência deste
interessante facto. Tinha verificado que e m muitas culturas os guerreiros
que tivessem morto u m inimigo eram considerados impuros; deviam,
portanto, submeter-se a ritos de purificação nos quais viam a manifes-
tação de u m a m á consciência.
Nos últimos anos, os etólogos têm insistido e m sublinhar a unidade
biológica do h o m e m que se opõe à sua diversidade cultural e na qual
baseamos a nossa experiência n u m futuro melhor.
Tendo e m conta os trabalhos violentamente polémicos recente-
mente publicados (Montagu, 1968; Hollitscher, 1973; Tobach e outros,
1974; Allen e outros, 1976), insisto e m sublinhar que os educadores,
para quem o h o m e m é infinitamente maleável, correm o risco de ela-
borar programas de educação desumanos. A esperança do h o m e m reside
na educação e, por vezes, na repressão dos seus instintos. M a s , tendo
e m conta os caracteres inatos do h o m e m , é possível evitar submetê-lo
a frustrações inúteis.

179
Irenäus Eibl-Eibesfeldt

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I8I
Niksa Nikola Soljan

Problemas de teoria
e de política da educação
na Jugoslávia1

A reforma da educação e m curso pretende, no essencial, trasnformar Niksa Nikola Soljan


(Jugoslávia).
fundamentalmente as relações socioeconómicas e políticas na Jugos- Departamento da
lávia. A aplicação de u m sistema integrado de trabalho associado2 educação, Faculdade
é u m dos elementos que exercem u m a influência directa sobre as modi- de Filosofia,
ficações introduzidas na educação. N o entanto, existe u m a interacção, Universidade de Zagreb.
Autor de: A s bases
educação e trabalho associado, e a educação pode contribuir para a do ensino
edificação do sistema de trabalho associado, da qual constitui apenas programado;
u m a das partes. O ensino apoiado
Seria interessante estudar de m o d o aprofundado os aspectos sociais por ordenador;
O ensino
e ideológicos dos fundamentos teóricos da educação. Este estudo, programado e
essencialmente crítico, talvez contribuísse c o m novos elementos para o ensino apoiado
as ideias e m vigor neste domínio abrindo novas vias à reflexão sobre o por ordenador:
abordagem cibernética;
papel da educação na instauração de u m socialismo autogestionário Tecnologia da
na Jugoslávia3. educação e
O s problemas da educação não p o d e m continuar a pertencer uni- educação permanente.
camente ao domínio da pedagogia: a educação prende-se cada vez (ed.) em servo-croata.
mais c o m fenómenos sociais muito mais vastos. É por isso que é neces-

1. O presente artigo reproduz, completando-o, u m texto de introdução redigido


para a conferência que se realizou e m Zagreb, e m Junho de 1976, sob o título
«Problemas particulares da teoria da educação e do trabalho associado.»
2. A expressão «trabalho associado» é empregada e m servo-croata há alguns anos.
Designa a fase mais recente do desenvolvimento das relações socioeconómicas e
políticas ligadas à autogestão na Jugoslávia. «Trabalho associado: categoria
fundamental do regime socioeconómico da Jugoslávia, incluindo: a propriedade
colectiva dos meios de produção, o direito de trabalhar utilizando meios perten-
centes a todos, o direito dos trabalhadores gerirem integralmente a produção,
incluindo o direito de tomar decisões e m matéria de distribuição, o direito dos
trabalhadores se associarem para defender os seus interesses económicos comuns,
a integração directa dos meios de reprodução social, o direito inalienável à auto-
gestão.» (Prática e pensamento sociais: glossário, p. 7. Belgrado, 1974).
3. N a Jugoslávia, a política da educação está largamente descentralizada, sobretudo
desde 1973. N ã o existe actualmente nenhum organismo federal encarregado dos
problemas da educação. O poder de decisão pertence, nesta matéria, às diversas
repúblicas e regiões autónomas. N o entanto, ao nível destas últimas, a política
da educação resulta cada vez mais do trabalho associado e da própria população,
e cada vez menos do secretariado da instrução e dos serviços administrativos.
Apesar da política da educação estar muito descentralizada, alguns problemas
continuam a ser comuns ao conjunto do país.

182
Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia

sário abordar a teoria da educação sob vários aspectos:filosófico,socio-


lógico, antropológico, psicológico, sociopsicológico, económico, etc.
Procedendo deste m o d o , poderíamos, pensamos, superar u m estado de
crise que se explica, e m parte, pelo facto de considerarmos as questões
unicamente sob o aspecto pedagógico. A l é m disso, as transformações
sociais, económicas e políticas actuais afastam a educação do meio
fechado da pedagogia para a integrar no domínio do trabalho associado
e da sociedade e m geral.
Durante o período do após-guerra, a teoria da educação na Jugos-
lávia foi essencialmente marcada por abordagens normativas, prescri-
tivas e descritivas, baseadas e m valores morais. A teoria pedagógica,
apesar da herança incómoda da pedagogia burguesa, concentrava-se
e m problemas c o m o o conteúdo ideológico, a base de classe da educação,
o comunalismo, o formalismo na educação, etc.
Mais tarde, a partir de 1950, a teoria da educação conservou o seu
carácter normativo, paralelamente à introdução da autogestão na eco-
nomia e nos serviços colectivos. Contudo, atendendo a que as relações
de autogestão se desenvolveram a u m a cadência relativamente mais lenta
nas actividades sociais do que nas actividades económicas, a educação
e a instrução, nos anos cinquenta e sessenta, continuaram a ser acti-
vidades de carácter socialfinanciadaspelo orçamento ou por fundos de
proveniências diversas. A educação continuava a ser considerada n o
contexto das despesas sociais.
N o início dos anos sessenta aumentou o interesse pelo estudo experi-
mental e pelas aplicações práticas dos métodos novos, a fim de circuns-
crever c o m precisão os fenómenos e os processos próprios da educação.
A orientação para a investigação empírica, admissível n o seu princípio,
teve, então, tendência para assumir u m carácter de exclusividade cientí-
fica: admitia-se apenas aquilo que podia ser apresentado sob a forma
experimental e estatisticamente estabelecido c o m o possuidor de valor
científico. Simultaneamente, a forma substituiu o fundo: a perfeição
técnica e metodológica ocupou o lugar do objectivo e do valor peda-
gógico e social da investigação e do trabalho educativo.
C o m o a investigação experimental se aplica melhor aos processos
de formação e de ensino, a atenção dedicada a este processo deslocou
o seu centro de interesse, que deixou de ser a educação 1 . A educação,

1. Impõe-se u m a explicação para os leitores estranhos à Jugoslávia. E m servo-


-croata existem dois termos que designam o que o francês exprime pela palavra
educação: odgoj (em croata) ou vaspitanje (em servo) e obrazovanje. Estes dois
termos empregam-se, na maior parte das vezes, juntos. Para simplificar, digamos
que odgoj (ou vaspitanje) diz respeito essencialmente ao domínio dos valores, e
obrazovanje ao dos factos, do saber, dos conhecimentos práticos e técnicos.
N o entanto, o termo odgoj emprega-se simultaneamente n u m sentido mais res-
trito e n u m sentido mais lato, incluindo este último obrazovanje. Odgoj e obra-
zovanje não possuem equivalente e m francês. Contudo, a fim de estabelecer
u m a distinção entre estas duas palavras, na presente versão do nosso texto,
traduzimos odgoj por educação (em inglês: education) e obrazovanje por formação
(em inglês: training). Assinalamos ao leitor que esta tradução não é, certamente,
inteiramente satisfatória, m a s é a melhor aproximação possível atendendo às
diferenças de natureza e de emprego que existem nas duas línguas.

185
Niksa Nikola Soljan

entendida no sentido mais amplo do que a formação, e estreitamente


ligada à socialização do h o m e m , viu-se, pois, progressivamente elimi-
nada da investigação durante os anos sessenta e, circunstância agra-
vante, a opinião segundo a qual a medida da educação — que conduz
à dedução e à especulação — é u m a operação difícil que não apresenta
as características de u m método científico.
C o m a orientação empírica da teoria da educação surgiram os
primeiros efeitos da revolução científica e técnica. O súbito aumento
da soma dos conhecimentos provocou o recuo dos limites dos progra-
mas escolares e trata-se, agora, de adquirir o maior número possível de
informações. Sob muitos aspectos, a formação substituiu a educação e
limitou-se à aquisição de u m a certa quantidade de conhecimentos. N a
filosofia da educação, actualmente reduzida àfilosofiada formação,
a quantidade é considerada o valor fundamental.
Simultaneamente, a teoria da formação e do ensino tentava explo-
rar os resultados de investigações recentes sobre a capacidade da m e m ó -
ria a curto ou a longo termo, a fim de aperfeiçoar ao máximo os ins-
trumentos de medida das informações armazenadas nos «bancos de
dados» (ou seja, o cérebro dos alunos). Para tal, passaram-se testes
«aferidos» e «não aferidos», utilizando a formação c o m o medida,
o que, na verdade, constituía nas nossas escolas, muitas vezes, u m a
simples preparação para as provas. O fim da educação e da formação
tornou-se, assim, o exame, e a únicafinalidadedos estudos a preparação
para o exame.
Nestas condições, a teoria da educação procurou soluções na apli-
cação dos conhecimentos científicos ao processo de educação. C o m e -
çou a considerar-se a educação, a formação, o ensino e a aprendizagem
c o m o processos que é possível dirigir, cujo controle e regulação p o d e m
ser assegurados. Assim, por u m lado, aplicou-se mais a cibernética
aos fenómenos e processos pedagógicos e, por outro lado, a tecnologia
da educação permitiu elaborar u m a tecnologia dos processos intelec-
tuais da educação baseada na ciência do comportamento.
Sob estas duas formas, tentou-se, de facto, aperfeiçoar as técnicas de
trabalho para, graças a u m a racionalização da transmissão, da recepção,
do tratamento e da armazenagem da informação, melhorar os resultados
da educação e da formação. M a s não nos afastámos nada do campo
da tecnologia ou da tecnocracia, cujos únicos objectivos são a produ-
tividade, a racionalização e o rendimento, c o m prejuízo para a educação
no sentido lato do termo. Por outro lado, ao aplicar sem discernimento
a tecnologia da educação, orientamo-nos para os princípios teóricos do
neobehaviourismo contemporâneo. Nestas condições, o processo de
educação tem por objectivo condicionar o jovem segundo métodos que
têm o seu fundamento teórico na «ciência do comportamento», Esta,
inspirada nos princípios da cibernética ou nos do neobehaviourismo,
eleva a prática do condicionamento no meio educativo ao nível de u m a
manipulação científica.
A orientação da teoria pedagógica para as questões de formação,
as investigações sobre os problemas de formação, a elaboração e a
aplicação de instrumentos de medida da aprendizagem, e o aumento

184
Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia

do rendimento da educação graças à tecnologia educativa, deu origem


a u m a mudança de atitude fundamental: foram as questões de forma-
ção, de ensino e de instrução que monopolizaram a atenção, e m detri-
mento dos problemas relativos à educação. C o m o consequência, atri-
buiu-se pouca importância aos problemas de educação sob o aspecto
teórico.
A democratização da educação teve, entre outras consequências,
o aumento súbito do número de alunos e estudantes, primeiramente no
ensino primário, depois no ensino secundário e, finalmente, no ensino
superior. O subsistema da educação dos adultos baseado na teoria da
andragogia constituiu-se independentemente. Cada u m destes subsiste-
mas adquiriu a sua própria estrutura, os seus objectivos e a sua filoso-
fia do comportamento.
O sistema escolar, estruturado c o m o acabamos de indicar, conti-
nuou a desenvolver-se e a funcionar da m e s m a maneira até aos nossos
dias. A sociedade evolui, pois, para u m a forma de sociedade educativa
de que a escola é o símbolo e cujo último objectivo é a aquisição d o
diploma que sanciona o nível e a extensão das capacidades, competência
ou conhecimentos diversos do indivíduo. Esta orientação para a escola,
para u m diploma, é muitas vezes motivada pelas vantagens reais que
daí resultam na vida extra-escolar: u m lugar na divisão social do tra-
balho, o rendimento que ele proporciona, u m certo nível de vida mate-
rial e u m a categoria nas diferentes configurações sociais. A educação
torna-se, assim, u m instrumento de produção social, u m valor que
justifica u m investimento.
Estas características acentuaram-se c o m a introdução de valores mer-
cantis no domínio da educação, e m particular no da educação de adultos
e ao nível dos altos estudos universitários. A educação começou a surgir
c o m o u m b e m que se possui e que pode ser comprado; u m domínio
cujo sentido decorre da categoria do «ter», e não do «ser» ou do «tor-
nar-se», para parafrasear P . Lengrand i. A educação decorre, portanto,
dos direitos do cidadão, é u m assunto pessoal, u m b e m que pode c o m -
prar-se e vender-se n o circuito da comunicação social.
N o rasto destafilosofiada educação, duas disciplinas adquiriram
u m desenvolvimento particular: a teoria da educação dos adultos
(andragogia) e a da pedagogia do trabalho industrial.
N ã o podemos afirmar, contudo, que a extensão alcançada por estas
disciplinas tenha contribuído para a avaliação do «valor mercantil»
da educação. Este resulta, pensamos, da realidade socioeconómica.
Mais u m a vez, foi desprezada a dimensão da educação, dimensão que
não pode, e m caso algum, estar ligada à oferta e à procura.
À crise da formação veio juntar-se a da educação. Procura-se sair da
primeira considerando a educação u m processo que se estende por
toda a vida. É , de resto, neste conceito de educação permanente que
assenta o novo conteúdo da educação e m todos os domínios. Entre-
tanto, salienta-se mais a formação, a informação e o saber do que a

1. P. L E N G R A N D , Introduction à l'éducation permanente, p. 60, Paris, U N E S C O , 1970.

185
Niksa Nikola Soljan

educação, estando aqueles aspectos ligados ao desenvolvimento rápido


das ciências e das técnicas. Ainda não nos conseguimos libertar do
modelo tenocrático da educação, cujo papel se limita, e m larga medida,
a seguir e a adaptar inovações n u m a sociedade baseada no crescimento
da produção e do consumo. Por muito permanente que seja, a educação
continua a ser essencialmente utilitária.
Esforçando-se por clarificar afilosofiada educação permanente, a
teoria pedagógica tem-se voltado também, nos últimos anos, para os
problemas da auto-educação.
Desenvolveram-se sérios esforços no sentido de apresentar u m a aná-
lise teórica dos métodos de auto-educação. T a m b é m neste caso pode-
mos afirmar que foi a auto-instrução, muito mais do que a auto-educação,
q u e m continuou a reter a atenção. M a s o futuro oferece ao h o m e m gran-
des possibilidades de formação permanente, possibilidades que só poderão
realizar-se se existirem igualmente para além dos estabelecimentos de
ensino de tipo clássico, para além das escolas.
N o s últimos anos a teoria da educação tem sido obrigada a enfren-
tar tarefas imensas: e m primeiro lugar, introduzir u m conteúdo novo
na educação, e para além dos programas escolares clássicos. A educação
já não pode ser concebida unicamente dentro do quadro da escola.
A educação extra-escolar e circum-escolar exerce actualmente u m a
influência tão importante c o m o a que se dispensa à escola, e este facto
não pode ser ignorado.
Transformar a sociedade n u m a sociedade educativa1 é u m objec-
tivo que não podemos deixar de subscrever. O que pressupõe, b e m enten-
dido, que a educação deixe de ser considerada u m b e m que se possui
e que surja c o m o u m valor ao qual se acede por u m processo de trans-
formação. Assim concebida, a educação transcende os limites de u m
simples instrumento destinado a aperfeiçoar os meios técnicos de acção
e de produção, ou a melhorar o funcionamento dos sistemas sociais.
A educação impõe-se c o m o u m valor e m si, não só porque preenche
esta função essencial, m a s sobretudo porque, ao participar, o h o m e m
pode desenvolver o potencial nele existente, dentro de limites determi-
nados pelas condições sociais e pelas suas próprias capacidades, fazendo
desaparecer, deste m o d o , a alienação do m u n d o prisioneiro das relações
socioeconómicas, do m u n d o das coisas e do m u n d o da cultura. A ques-
tão fundamental da teoria da educação não consiste, pois, e m saber o
que os homens p o d e m fazer, mas e m saber de que espécie de homens se
trata2. Até agora a teoria da educação preocupou-se mais c o m a pri-
meira questão, desprezando os aspectos qualitativos associados à
segunda: de que espécie de homens nos ocupamos?
Mantendo-se afastada do conteúdo fundamental da existência do
h o m e m —conteúdo que constitui o sentido da vida humana, a sua

1. T . H U S E N , The learning society, Londres, Methuen, 1974.


2. B . D U C H O D O L S K I analisou brilhantemente estes problemas n u m artigo intitulado
«Alguns problemasfilosóficosda educação permanente», e m N . N . S O L J A N
(dir. publ.), Permanente obrazovanje (Educação permanente), p . 23-57, Split,
Marko Marulió, 1976.

l86
Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia

orientação e os valores existenciais fundamentais — e baseando-se no


estado e no desenvolvimento da teoria pedagógica nos outros países,
a teoria da educação construiu o seu próprio sistema de pensamento e
de acção, que, muitas vezes, ficou muito aquém das tendências reais
da nossa sociedade. Consideramos que o tempo concedeu à educação
u m lugar inteiramente novo na sociedade. É totalmente ilusório pensar
que a educação, tal c o m o está, acaba por modificar as condições socio-
económicas. E m última análise, o inverso é que seria verdadeiro. N o
entanto, m e s m o nas condições presentes, a educação pode ajudar a
transformar a existência dos indivíduos e contribuir para o desapareci-
mento da alienação n o m u n d o do trabalho, das coisas e da cultura.
A s hipóteses de que é necessário partir para eliminar esta alienação
resultam do desenvolvimento ulterior das relações socioeconómicas e
políticas de autogestão, na Jugoslávia; da integração d o trabalho do
h o m e m n u m sistema unificado de trabalho associado. Paralelamente,
o papel da educação não se limita a contribuir para o desenvolvimento
das forças produtivas da sociedade e para o aumento do seu rendi-
mento global, m a s , contribuindo activamente para libertar o h o m e m
da sua alienação, a educação deve também transformar-se n u m valor
«independente», capaz de enriquecer o h o m e m durante toda a vida.
A nossa situação permite-nos socializar a função educativa integrando
os diversos aspectos da educação no conjunto do trabalho associado,
a fim de os ligar a todas as fases da sua evolução cultural.
O controle da educação pelo trabalho associado — do qual a educação
é parte integrante e não u m elemento estranho ao sistema, u m acrés-
cimo vindo do exterior — v e m realçar u m certo número de problemas
teóricos e práticos que ainda não tinham surgido na teoria n e m na prá-
tica da educação. É verdade que os clássicos do marxismo previram a
evolução da sociedade e da educação e m condições e m que as relações
socioeconómicas atingiram u m certo grau de desenvolvimento. A sua
análise e observações sobre o elo que une a educação e o m u n d o do
trabalho ainda nos são úteis actualmente, quando atribuímos u m con-
teúdo novo à articulação e à reforma dos horários e dos programas de
educação, de trabalho e de lazer. N o entanto, apesar de tudo, não se
fez o suficiente do ponto de vista da teoria marxista, para clarificar os
grandes problemas levantados pela articulação do trabalho e da edu-
cação ou, n u m sentido mais amplo, pela integração dos diversos aspec-
tos da educação no conjunto do sistema da produção e da reprodução
sociais.
Apesar dos esforços realizados, podemos afirmar que os problemas
fundamentais respeitantes à integração das diversas formas de activi-
dade da educação n u m sistema unificado de trabalho associado ainda
não foram resolvidos. A reforma da educação ou, mais exactamente,
a sua transformação radical, está ligada a factores de ordem socioeco-
nómica e política, porque, na Jugoslávia, não se trata unicamente de
reforma pedagógica. A ciência da educação encontrou-se, c o m o conse-
quência, perante tarefas consideráveis que ultrapassam objectivamente
os meios, muito modestos, de que dispõem os educadores, assim c o m o
as capacidades científicas muito insuficientes do país neste domínio.

187
Niksa Nikola Soljan

Assim, se pretendemos transformar a educação n u m a função social,


n o quadro conceptual de u m sistema unificado de trabalho associado,
os teóricos de u m grande n ú m e r o de especialidades relacionadas c o m
as ciências sociais d e v e m participar, tanto mais que os problemas e m
causa ultrapassam largamente as fronteiras d a teoria d a educação para
atingir afilosofia,a sociologia, a política, a economia e outras disciplinas.
M e s m o que os especialistas de fenómenos sociais mais vastos se tenham
interessado anteriormente pela educação n a medida e m que procuraram
transformá-los n u m sistema integrado de trabalho associado, é talvez
a primeira vez que a educação se apresenta c o m o u m assunto de estudo
para u m tão importante grupo de teóricos. Facto mais importante ainda :
estes fenómenos poderiam passar para a experiência d a vida quotidiana
do trabalho associado e m todos os domínios e a todos os níveis d o seu
funcionamento. A teoria d a educação poderia, assim, superar a dualidade
que existe entre u m a acção muitas vezes fechada e m si própria e os impe-
rativos d a realidade social. Se n ã o fizer este esforço, a ciência d a edu-
cação dará razão à sociedade que a critica cada vez mais por «subir a
u m a m o n t a n h a para parir u m rato» t e por se conservar, assim, afastada
das grandes correntes desta sociedade, c o m o u m espectador sentado
na eterna barreira d o aparelho administrativo.
Nestas condições, é interessante estudar a relação existente entre a
teoria e a reforma d a educação. É evidente que, n o passado, a teoria
da educação n ã o se interessou, pelo m e n o s n u m a medida apreciável,
pelos problemas de reforma. D e acordo c o m a ideia segundo a qual a
reforma decorre d o domínio administrativo, a teoria d a educação con-
tinuou s e m influência directa e real sobre a reforma. A l é m disso, as
reformas têm-se exercido sobre subsistemas escolares e, e m geral, t ê m
sido aplicadas separadamente. Tratava-se, neste caso, de reformas d a
escola.
N a Jugoslávia, a última reforma n ã o foi concebida unicamente
c o m o reforma d o sistema escolar, m a s c o m o reforma global integrada
n o desenvolvimento essencial das novas relações socioeconómicas de
autogestão. Quanto ao significado fundamental da instauração de rela-
ções novas n o quadro d o trabalho associado, é n o domínio de u m m u n d o
estranho ao h o m e m que a devemos procurar. É por isso que, por m e i o
da educação, p o d e m o s eliminar esta alienação, expulsando-a, e m pri-
meiro lugar, d o m u n d o d a produção. Este processo reside n o controle
do trabalho associado sobre a produção imediata d o rendimento social
global e sobre a distribuição primária e secundária. Afastada, até agora,
do contexto d a distribuição primária, a educação manteve-se t a m b é m
fora d o c a m p o de interesse d o trabalho associado e d a sua influência
principal. É aí que, e m grande parte, p o d e m o s encontrar a resposta
para este problema: até que ponto o trabalho associado assumiu o
domínio d a educação?
A t e n d e n d o a que as relações socioeconómicas alargadas se baseiam
nas relações de produção e de distribuição, a teoria d a educação expri-

1. L . E L V I N , «The place of educational research», Oxford review of education,


1975, vol. I, n.° 3, p. 193.

188
Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia

miu necessariamente estas relações durante as diversas fases da nossa


evolução socioeconómica e política. É nestas relações, condicionadas pela
história e nela baseadas, que devemos procurar as verdadeiras causas
das diferentes tendências de acção na teoria e na prática da educação.
É possível exercer u m a influência maior sobre todos os processos da
reflexão teórica relativa à educação e à prática pedagógica, actuando
sobre as relações socioeconómicas fundamentais que se instauraram no
quadro do trabalho associado e que estão muito afastadas do processo
educativo clássico. A partir destas relações é necessário elaborar u m a
teoria nova da educação na qual a educação seja considerada o pleno
desenvolvimento do h o m e m n u m universo de cultura humanista n o
sentido lato, tendente, na sua acção, a superar a alienação no m u n d o da
produção, no m u n d o das coisas e no m u n d o da cultura.
Estas relações fornecem simultaneamente a resposta às exigências
de modificações dos sistemas de educação existentes, e de u m a educação
que se conserva alheia ao sistema, resposta que estamos tentados a desig-
nar por reformas. Deste m o d o , a reforma não se limita a u m a simples
reforma escolar, adquirindo o sentido de u m a reforma social e da trans-
formação do ser social. Se entendermos por reforma u m a modificação
constante da qualidade das relações sociais, ela não poderá limitar-se
a certos elementos ou partes do sistema, n e m reduzir-se a prazos estritos.
Pelo contrário, deve ser essencialmente concebida c o m o u m a reforma
permanente da teoria e da prática da educação n o seu conjunto, tendo
a sua origem nas modificações qualitativas que se produzem no contexto
mais amplo das relações socioeconómicas.
Desta maneira de abordar os problemas pode deduzir-se o verdadeiro
sentido das investigações sobre educação que, devido à própria natureza
do assunto, devem ser interdisciplinares. Admite-se que a investigação
sobre a escola prosseguirá. N o entanto, esta tarefa liga-se fundamental-
mente a u m a procura das melhores soluções na prática e na teoria da
educação, considerando que formam u m a relação social completa.
É evidente que, neste caso, o sentido destas investigações é inseparável
das medidas de reforma e de u m a visão baseada no futuro. Trata-se de
procurar novas vias de desenvolvimento, de estudar e de examinar solu-
ções de recurso. Assim, as investigações sobre a teoria e a prática da
educação deveriam atribuir às modificações, que designamos por
reforma, u m carácter mais científico por meio de u m estudo empírico
e experimental. Deveriam ainda libertar a reforma das improvisações
voluntárias e de circunstância.
Neste ponto, os interesses do trabalho associado coincidem c o m os
dos investigadores, dos teóricos e dos práticos, vindos (ou não) do
m u n d o da educação, e c o m os esforços dos homens políticos que se
ocupam directamente dos problemas da educação, e que, c o m o se
compreende facilmente, estão cada vez mais vivamente interessados.

189
Posições/Controvérsias

Crise da planificação
e os limites d o auxílio externo
Manzoor A h m e d

Manzoor A h m e d Gostaria de comentar os debates a que deu origem nesta revista o


(Bangladesh).
Director adjunto
estudo sectorial do Banco Mundial sobre a educação; penso que a
dos estudos de estratégia discussão tem sido dominada até agora por u m a controvérsia fútil
da educação sobre a interpretação de dados quantitativos respeitantes ao ensino
no Conselho Internacional primário e à alfabetização — controvérsia que corre o risco de desviar
para o Desenvolvimento a nossa atenção de aspectos mais importantes do desenvolvimento da
da Educação (ICED),
Essex, Conn. educação.
(Estados Unidos E m minha opinião, Williams tem u m a concepção de educação pró-
da América). pria de u m m e m b r o da profissão docente: identifica-a à escola, o que
Ensinou no Instituto
of Education and
implica que o seu desenvolvimento depende sobretudo do da escolari-
Research da Universidade zação. O s autores do estudo do Banco Mundial partem de u m ponto
de Dacca. Autor de de vista mais geral, onde a instrução extra-escolar entra também no
Economics of sistema nacional de educação, m a s , c o m o seria de esperar, sentem difi-
non-formal education:
resources, costs and culdades e m definir até ao fim as implicações quanto às políticas e aos
benefits e co-autor programas.
de Education for
rural development:
case studies for
planners (com Não há motivo para satisfações
Philip Coombs),
Attacking rural M e s m o que consideremos apenas o aspecto quantitativo e abordemos
poverty: h o w
non-formal education
as estatísticas nacionais globais c o m o cepticismo que se impõe, é
can help. difícil ser menos pessimista do que o Banco e mais difícil ainda subs-
crever os alegres prognósticos de Williams. Q u e m estiver de certo m o d o
familiarizado c o m as estatísticas dos ministérios da educação sabe que
as elevadas taxas de desistência e reprovação e a inclusão dos alunos
«atrasados» podem falsear a interpretação da taxa de participação na
perspectiva das aquisições utilizáveis, que o sistema incita a exagerar
os efectivos assinalados no Gabinete Central de Estatística, que muitos
são os alunos que, m e s m o após quatro ou seis anos de escola primária,
são incapazes de 1er ou escrever (em geral, mais nas zonas rurais do que
nas cidades), e que u m a parte dos que terminaram os estudos primários
recaem rapidamente n u m analfabetismo total o u parcial. Acontece o

1. Ver e m Perspectives, vol. v, n.° 4, 1975 e vol. vi, n.° 2, 1976, os artigos de Peter
Williams, Duncan S. Ballantine e A . S. A b r a h a m .

I9I
Manzoor A h m e d

m e s m o c o m as estatísticas respeitantes à alfabetização. Durante a minha


recente estadia nas aldeias do Bangladesh pude observar que, apesar dos
números oficiais segundo os quais mais de 60 % das crianças frequen-
tam a escola primária e a taxa de alfabetização é de cerca de 20 % ,
apenas 10 % da população c o m mais de dez anos é capaz de 1er e escre-
ver de u m a maneira «útil». N ã o há razões para pensar que o Bangla-
desh constitua u m caso único sob este aspecto.
Diga-se de passagem que as objecções que Williams opõe firme-
mente ao facto de se excluírem os alunos atrasados para calcular as
taxas de inscrição não é sustentável. C o m efeito que sentido teria a
taxa de inscrição se comparássemos todos os alunos do primeiro grau,
independentemente da sua idade, n u m a base definida como a população
de determinado grupo etário? É evidente que o cálculo estatístico desta
taxa nada tem a ver c o m u m julgamento de valor sobre as inscrições
tardias ou sobre os desvios de limite de idade. O que podemos afirmar
é que, se u m sistema verdadeiramente maleável de educação de base
fosse aplicado no conjunto de u m país, a taxa de inscrição por grupo
etário não teria qualquer sentido, m a s esta situação não existe e m parte
nenhuma.

U m falso problema

Atribui-se, erradamente, u m a extrema importância aos efectivos glo-


bais— por que razão nos debruçamos tanto sobre as estatísticas?
O problema não é esse. A generalização do ensino primário e da alfa-
betização de adultos não produz o efeito de u m a varinha mágica sobre
a vida da maioria rural pobre dos países e m desenvolvimento que se
situam na parte inferior da escala (do P N B ou de u m índice composto
hipotético de bem-estar). O facto de quatro grandes países pobres
(Bangladesh, índia, Indonésia e Paquistão) registarem u m a taxa nomi-
nal de inscrição de 60 a 70 por cento nas escolas primárias e de, n o
entanto, pertencerem à categoria dos países mais pobres e m que o nível
de vida da maioria não difere muito do dos países cujas taxas de inscri-
ção no ensino primário e de alfabetização são muito mais baixas, deveria
abrir-nos os olhos. Estou intimamente convencido de que, nestes quatro
países, o nível de vida dos pequenos agricultores e dos operários agrí-
colas que constituem mais de metade da população não é mais elevado
do que e m países mais pequenos. A diferença notável de taxas de inscri-
ção nas escolas primárias e de alfabetização não modifica muito a
questão.
É evidente que já não tentamos descobrir u m a ligação directa entre
a taxa de inscrição e o nível de desenvolvimento e de bem-estar, mas
os antigos hábitos intelectuais não se perdem facilmente. Deveríamos,
no entanto, saber que o analfabetismo e a ausência de possibilidades
de educação de base fazem parte da síndrome da pobreza e do desen-
volvimento; é possível, c o m grande esforço e despesa, elevar a taxa de
inscrição, m a s este número n e m por isso terá u m valor prático. N a ver-

192
Crise da planificação e os limites do auxílio externo

dade, para que serve saber 1er e escrever, se não há nada para 1er e
muito pouco para escrever na vida de todos os dias?

U m desenvolvimento harmonioso

N a medida e m que reflectem a realidade, as estatísticas dos grandes


países pobres indicam principalmente que só u m esforço de desenvolvi-
mento socioeconómico harmonioso, que provocasse u m a modificação
qualitativa importante nas condições de vida da maioria e assegurasse
a todos u m mínimo de bem-estar, pode conferir u m sentido aos esforços
empreendidos e m matéria de educação. U m esforço de desenvolvimento
concertado e harmonioso nas frentes económica e social aumenta o
valor e a utilidade da educação. E m vez de nos dar a impressão de que
nos aproximamos a passos largos da educação universal, os progressos
quantitativos (e a sua utilidade limitada) obrigam-nos a interrogarmo-
-nos sobre os meios de harmonizar o desenvolvimento da educação
c o m outros aspectos do desenvolvimento e de aumentar a contribuição
da educação para o conjunto dos esforços tendentes a melhorar o nível
de vida.
É verdade que as estatísticas indicam também que u m amplo esforço
tendente a alargar as possibilidades de educação primária e de educação
de base pode ser justificado e apresenta hipóteses de sucesso, se fizer
parte de u m programa determinado que transforme deliberadamente
as estruturas da sociedade e se a educação for considerada u m instru-
mento essencial deste processo (como nos primeiros anos que se segui-
ram à revolução na União Soviética, na China, no Vietnam, e m C u b a e,
talvez, na República Unida da Tanzânia).
E m vez de perguntar se os quatro grandes países não socialistas da
Ásia consagram demasiada energia e recursos ao desenvolvimento da
educação (o que significa «demasiado»?), seria preferível procurar
saber porque é que, neste caso, o progresso quantitativo não parece
contribuir nada para o melhoramento das condições de vida. É , por-
tanto, necessário perguntar o que seria necessário fazer para tornar os
esforços realizados e m matéria de educação mais compensadores neste
aspecto e quais os ensinamentos que podemos tirar das situações e m
que a educação (assim c o m o outros esforços de desenvolvimento) teve
u m a maior incidência.
É de esperar que os progressos da educação se reflictam nas estatís-
ticas, m a s n e m todos os melhoramentos apontados pelas estatísticas
indicam que os objectivos e m matéria de educação e de desenvolvimento
tenham sido atingidos. Dizer que «o aumento dos efectivos apresenta
u m a importância vital, se pretendemos assegurar a igualdade de acesso
à educação» (artigo de Williams, p . 492), é o m e s m o que fazer u m a
petição de princípio.

193
Manzoor Ahmed

O desafio da planificação da educação

O estudo do Banco e os debates que suscitou não sublinharam a natu-


reza do desafio que nos lança actualmente a planificação da educação
— c o m o ultrapassar os limites da abordagem sectorial e centralizada
da planificação do desenvolvimento (incluindo o domínio da educação)
e como introduzir judiciosamente u m elemento de educação vivificante
e m processos de desenvolvimento regional integrado baseados nas
prioridades e nas necessidades essenciais da maioria da população.
Este desafio já v e m de longe: a comunidade internacional não ignora,
de m o d o nenhum, que é importante melhorar as condições de vida e
assegurar a sobrevivência de u m a grande parte da população dos paí-
ses mais pobres abordando os problemas tal c o m o se apresentam na
vida quotidiana e não e m função dos organigramas de u m a burocracia.
N o entanto, embora estejam conscientes deste imperativo, os organis-
m o s internacionais e os governos não estão à altura de promover u m
desenvolvimento regional integrado, baseado nos desejos do h o m e m .
O s mecanismos das instituições, a tradição administrativa, a formação
e a experiência do pessoal e a maneira como são efectuadas as opções e as
políticas e m matéria de desenvolvimento, tanto no seio dos governos
c o m o nos organismos internacionais, militam contra u m esforço tran-
sectorial concertado desta natureza.
Examinando o desenvolvimento de aptidões e m meio rural, o estudo
do Banco sublinha que «a educação» nas zonas rurais deveria estar inte-
grada e m outras actividades de desenvolvimento rural à escala nacional
e local» (p, 33). Indica igualmente que o Banco se propõe estimular
«a integração da educação de base e m outros programas de desenvolvi-
mento urbano ou rural» e favorecer «o melhoramento das capacidades
dos gestores, à escala local, por meio de reorganizações administrativas
e/ou actividades de formação» (p. 65 e 66). M a s como conseguir esta
integração? D e que reorganização administrativa se trata e como se
deve proceder? Que medidas pode tomar o Banco? Quais as eventuais
consequências para o funcionamento, a organização e as políticas do
Banco? N ã o é provável que u m estudo sectorial entre e m pormenores.
N o entanto, gostaríamos de encontrar u m a indicação sobre os eventuais
princípios de acção, e m especial na parte do estudo que trata dos pro-
blemas de gestão e de planificação (p. 52 a 58).
N o exame dos problemas de planificação, depois de ter reconhe-
cido os limites das abordagens baseadas n o rendimento, por u m lado,
nas necessidades de mão-de-obra, por outro, e de ter assinalado que o
Banco continuará a recorrer à análise da mão-de-obra e m certos casos,
os autores do estudo apresentam a «análise de grupo» c o m o u m novo
meio de abordar a planificação da educação. A análise de grupo e os
estudos de trajectória, injustamente afastados da avaliação e da plani-
ficação da educação, p o d e m certamente ser úteis, mas não contribuem
c o m nenhuma solução para os problemas cruciais que actualmente
encontramos neste domínio. Parece que, apesar da retórica que envolve,
a abordagem integrada do desenvolvimento e os sistemas de educação
permanente à escala nacional, o m o d o de definir os problemas de plani-

194
Crise da planificação e os limites do auxílio externo

ficação da educação e de considerar a metodologia a empregar conserva


ainda a marca da abordagem sectorial e da concepção estritamente
escolar do ensino.

Alguns pontos deixados na sombra

N ã o existe certamente nenhuma fórmula simples que permita resol-


ver o desafio da planificação da educação e do desenvolvimento.
Algumas questões merecem ser examinadas mais profundamente do
que no estudo sectorial:
Por que é que vários departamentos do Banco —desenvolvimento
rural e agricultura, população e saúde, indústria e educação— não
trabalham e m conjunto e m determinadas regiões rurais de certos paí-
ses pobres para realizar a promessa de M c N a m a r a no sentido de ajudar
prioritariamente os que vivem e m estado de «pobreza absoluta» e para
contribuir, nessa m e s m a ocasião, para o melhoramento dos conheci-
mentos adquiridos e dos métodos utilizados quanto aos problemas de
planificação, de organização e de gestão de u m desenvolvimento regio-
nal integrado descentralizado?
U m a colaboração análoga c o m instituições especializadas das Nações
Unidas e, eventualmente, c o m certos organismos bilaterais permitiria
realizar u m a abordagem integrada, descentralizada e comportando medi-
das educativas, concretizá-la por meio de programas respondendo às
aspirações e às necessidades essenciais dos habitantes de determinadas
regiões?
Q u e ensinamentos podemos tirar actualmente da participação do
Banco e m certos projectos de desenvolvimento regional, por exemplo
no Malawi (Lilongwe) e na Etiópia ( W A D U ) e que teria sido possível
fazer para aumentar o contributo do elemento educação para estes pro-
jectos?
Q u e modificações se i m p õ e m na organização, nas técnicas, no fun-
cionamento, no pessoal, na política do pessoal, nos mecanismos de
avaliação e estabelecimento de relações, etc., dos serviços de planificação
e de administração do desenvolvimento aos níveis nacional e regional,
se pretendemos incorporar os esforços de educação e m programas inte-
grados de desenvolvimento regional?
Q u e assistência p o d e m fornecer o Banco e outros organismos exte-
riores para promover as transformações necessárias nos países benefi-
ciários e que eco poderão encontrar nestes países?
Quais os obstáculos mais prováveis aos esforços externos tendentes
a modificar o fundo e a forma da planificação da educação nos países
beneficiários? Estarão o Banco e os outros organismos equipados para
os ultrapassar e, caso contrário, que devem fazer para o estar — trans-
formar as estruturas internas, formar novos peritos, modificar os m é -
todos de concepção e de avaliação dos projectos, elaborar novas formas
de colaboração c o m os outros organismos, etc.?
É interessante notar que, pouco depois da publicação do estudo
sectorial sobre a educação, o Departamento do desenvolvimento rural

x
95
Manzoor A h m e d

do Banco publicou, também, u m documento de política sectoriali.


Este documento sublinha a importância do papel do ensino rural, que
«deve estar ao serviço dos grupos beneficiários determinados e responder
a necessidades reconhecidas», preconiza a integração do ensino rural
e m outras actividades de desenvolvimento e cita u m estudo que reco-
m e n d a a descentralização da planificação e da direcção «de tal m o d o que
as actividades pedagógicas possam ser efectivamente adaptadas às condi-
ções e às necessidades locais» (p. 60 e 61). Examinando a organização
e a planificação do desenvolvimento rural, os autores deste documento
apontam a necessidade de u m mecanismo eficaz de coordenação no seio
do governo central, da descentralização e da coordenação ao nível local
e da participação da colectividade «na selecção, concepção, preparação
e execução de programas de desenvolvimento rural» (p. 42). Estudam
a aplicação do «método do mínimo indispensável» assim c o m o do
método global na execução dos programas de desenvolvimento rural e
sublinham alguns dos perigos que comporta este tipo de desenvolvimento
local, e m particular a concentração desproporcionada e deficiente repar-
tição dos recursos e das competências e m zonas limitadas, assegurando
vantagens a u m grupo reduzido (p. 54). O conceito de desenvolvimento
rural está resumidamente explicado c o m o se segue:
« E m n e n h u m caso os objectivos operacionais do desenvolvimento
rural se limitam a u m único sector: trata-se, na verdade, de aumentar a
produtividade — e , por conseguinte, os rendimentos— dos grupos
indicativos e de assegurar a todos os mínimo e m matéria de alimentação,
de habitat, de educação e de saúde. A realização destes objectivos exige
que se coloquem mais bens e serviços à disposição da população pobre
dos campos, que se criem instituições e que se elaborem políticas que
permitam tirar plenamente partido de todos os serviços sociais e econó-
micos (p. 20)».
N o entanto, o programa de empréstimos a favor do desenvolvimento
rural, tal c o m o o documento estipula, baseado quase exclusivamente na
produção agrícola, não reflecte esta visão global do desenvolvimento
rural. Até m e s m o os projectos ditos de «novo estilo», que o departa-
mento lança actualmente, só diferem dos antigos projectos agrícolas
na medida e m que tentam conjugar diversos serviços e factores de pro-
dução agrícolas e atingir prioritariamente os pequenos exploradores.
O Departamento do desenvolvimento rural parece ter melhorado a
integração dos diferentes elementos do desenvolvimento agrícola, m a s
ainda hesita e m incorporar nos projectos outros aspectos do desenvol-
vimento rural. Assim, a inclusão de elementos sociais, de serviços fun-
damentais destinados aos mais desfavorecidos e a criação de estruturas
institucionais e de serviços locais de desenvolvimento rural integrado
são ainda u m a excepção m e s m o nos projectos de «novo estilo».
Estes comentários não se referem a todos os méritos do documento
de política sectorial respeitante ao desenvolvimento rural, que é inte-
ressante sob muitos aspectos, m a s que não satisfaz os leitores sedentos

1. Banco Mundial, «Desenvolvimento rural — politica sectorial», Washington


D. C , 1975.

196
Crise da planificação e os limites do auxílio externo

de nele encontrar sinais de iniciativas ousadas tendentes a integrar as


actividades e m curso a favor da educação e do desenvolvimento e m
geral n u m a planificação descentralizada adaptada às necessidades.
Constitui certamente u m a prova de que até m e s m o os organismos
internacionais exprimentam dificuldades e m promover o desenvolvi-
mento integrado, o facto de nenhum dos dois estudos mencionar as
incidências das políticas e das actividades de u m departamento sobre
o programa do outro, n e m u m a eventual colaboração interdepartamental
— c o m o se os dois departamentos e os documentos que têm respecti-
vamente publicado se cruzassem nas trevas, ambos indiferentes à pre-
sença do outro.

Os limites do auxílio externo

Muitos leitores pertencentes aos países que beneficiam dos emprés-


timos do Banco concordarão certamente c o m Williams, segundo o
qual o estudo do Banco pressupõe a existência de possibilidades de
acção que o Banco poderia explorar, se não se verificasse resistência
por parte desses países (Williams, p . 489).
Estaria de acordo c o m Williams (p. 503) ao pensar que os autores
do estudo subestimam o problema que consiste e m fazer aceitar a ideia
de u m a educação de base nos países de recursos reduzidos enquanto
existir u m sistema paralelo de escolas primárias. N o entanto, tenho a
impressão de que não se aperceberam da natureza fundamental do
conflito existente n u m sistema duplo. N o s países que possuem estrutu-
ras socioeconómicas fundamentalmente injustas e que se prestam à
exploração (a maior parte dos países de fracos recursos entram nesta
categoria), a existência de sistemas paralelos de educação de base e de
ensino primário institucionalizado corre o risco de favorecer o estabe-
lecimento e o reforço desta exploração. É possível elaborar várias estra-
tégias destinadas a aumentar as possibilidades de educação de base para
todos graças a u m sistema nacional unificado (mas não necessariamente
uniforme e centralizado) e conviria que o Banco Mundial e outros orga-
nismos externos estudassem o que poderiam fazer para ajudar os países
beneficiários a conceber e aplicar essas estratégias. U m a vez que as opções
e as decisões competem aos próprios países, o mínimo que os organis-
m o s externos poderiam fazer era absterem-se de ajudar a consolidar
e a legitimar, deliberadamente ou não, o dualismo social que os carac-
teriza.
Alguns aplaudirão também as reservas que Williams formula quanto
ao optimismo c o m o qual o Banco considera o aumento dos emprés-
timos a favor da educação de base e do ensino primário O s obstáculos
ao desenvolvimento da educação de base, e m particular se ela for inte-
grada nas actividades de desenvolvimento local, não se referem tanto à
falta de recursosfinanceirosc o m o ao facto dos objectivos e das priori-
dades de desenvolvimento não reflectirem as necessidades da maioria,
e das instituições e estruturas entravarem os esforços de desenvolvi-
mento integrado descentralizado. Devemos ainda evitar que o auxílio

!97
Manzoor A h m e d

extemo concedido à educação de base incite os países a adiar o momento


e m que deverão fazer opções determinantes e m matéria de educação,
atrase os esforços de mobilização dos recursos internos, favoreça estru-
turas de custos inaceitáveis a longo termo e reforce o dualismo exis-
tente na sociedade. N ã o se trata de fazer o processo do auxílio externo,
mas simplesmente de sublinhar os seus eventuais limites.
M a s os pontos que aqui evocamos não acompanham, de m o d o
nenhum, o principal argumento de Williams, isto é, que o problema da
educação de base e do ensino primário nos países pobres está quase
resolvido. T a m b é m m e é muito difícil compreender porque é que Wil-
liams ironiza assim — e creio que os responsáveis políticos e os plani-
ficadores dos países pobres estão, como eu, surpreendidos— c o m o
facto do Banco defender propostas destinadas, por exemplo, a desen-
volver aptidões de maneira selectiva e m função de imperativos especí-
ficos e urgentes, a definir de u m ponto de vista funcional os objectivos
e o conteúdo da educação de base como as «necessidades de instrução
minimal» e a dispensar a educação de base sob formas diferentes nos
diversos países, de acordo c o m as necessidades das pessoas que se dirigem
e c o m as imposições resultantes dos recursos disponíveis (Williams,
p. 502). Williams não pode ignorar que existe u m fenómeno designado
por limitação dos recursos, exigindo u m a planificação que requer opções
colectivas quanto ao que pode ser realizado e ao que não o pode. A s
teses de Illich a favor de u m a espécie de livre empreendimento no domínio
da educação trarão a marca de u m preconceito ocidental?
U m a observação para terminar: para retomar a metáfora de Wil-
liams, os peregrinos que sobem ao monte Olimpo para confessar os
seus pecados n e m por isso trazem aos seus semelhantes a boa palavra
e m matéria de educação. Esta analogia pitoresca atribui demasiada
importância ao auxílio externo e m prol do desenvolvimento da educação
nos países pobres, embora não fosse essa, certamente, a intenção de
Williams.

198
O livro para crianças
e os direitos do h o m e m
Marc Soriano

M a r c Soriano Grande esperança ou grande ilusão?


(França). Professor
de literatura francesa
contemporânea O livro representou u m verdadeiro salto qualitativo e m relação à inven-
na Universidade de ção da escrita o u até m e s m o e m relação às oficinas de copistas que,
Paris VII e de
Metodologia das no fim da Idade Média, aumentavam de maneira notável o número de
ciências sociais. manuscritos e m circulação
Especializou-se na A relativa fragilidade do suporte, que poderia ter desvalorizado a
investigação
interdisciplinar mensagem, contribui, pelo contrário, para a enriquecer. Reduzindo o
das ciências preço, ela permite u m a multiplicação e u m a dispersão teoricamente
humanas a partir infinitas do texto, o que o torna indestrutível. Simultaneamente, encon-
das literaturas tram-se instauradas melhores condições para u m a aprendizagem insti-
funcionais e da
pedagogia dos meios tucional das técnicas de «decifração» : alargamento das camadas sociais
audiovisuais e da abrangidas pela escolarização, utilização de manuais, emulação, etc.
leitura. Em particular, A partir daí generaliza-se a esperança de que o livro se torne u m ins-
autor de: O s contos de trumento privilegiado para inculcar no h o m e m a ideia dos seus direitos
Perrault, cultura
erudita e tradições e o desejo de os defender
populares; Guia É b e m verdade que o livro desempenhou, mais o u menos claramente,
da literatura
para a juventude. este papel. Primeiramente ao nível dos artistas, dos pensadores e, mais
geralmente, daqueles que designamos por «intelectuais». A o «massifi-
car» o seu público, o livro obrigou-o não só a procurar verdades admi-
tidas aqui e além, c o m o também a expô-las da maneira mais clara pos-
sível, a ter e m conta, na própria investigação, os centros de interese da
«maioria», isto é, a orientar-se para a universalidade e a objectividade.
A o nível d o público, a leitura permitiu novas relações que não exis-
tiam nas comunicações de via oral. A informação que contém a mensa-
g e m escrita, encontrando-se exposta e situada c o m precisão n u m espaço
(o do livro), torna-se referenciável e disponível a todo o m o m e n t o , o
que evita o recurso incessante à experiência ou à memória e representa
u m a apreciável economia de tempo. Deste m o d o imensos campos,
antigos e recentes, se abrem à reflexão e à investigação
O leitor dispõe ainda da possibilidade de reduzir ao seu ritmo, para
as compreender, as ideias que lhe são propostas, de interromper a lei-
tura para fantasiar o u reflectir, sem ceder à «magia» da palavra que
força a adesão no seu fluxo.

199
M a r c Soriano

O s leitores que atingiram o nível da leitura «corrente» têm também


acesso aos prazeres da «identificação». Apesar da sociedade que limita
as suas virtualidades, tornam-se tão inteligentes, tão aventureiros c o m o
o criador nos seus momentos de «inspiração».
Esta análise abstracta poderia justificar-se c o m numerosos exemplos
históricos. Limitar-nos-emos a duas observações que nos remetem para
investigações já clássicas, por exemplo as de Lucien Febvre e H.-J. M a r -
tin, sobre a difusão da imprensa ou as de E m m a n u e l L e R o y Ladurie
sobre a cultura e m meio camponês.
É muito provável que o protestantismo, sem a imprensa, tivesse con-
tinuado a ser u m a heresia semelhante a tantas outras. Graças ao livro
e à reflexão que ele permite, o pensamento de Luther o u de Calvino
sobre a graça e o destino propagou-se c o m o u m incêndio, tornou-se
revelador de oposições económicas, políticas e sociais.
Por intermédio do livro, constituiram-se também, entre o século xvii
e o século xviii, verdadeiros «viveiros» de pessoas informadas, de espe-
cialistas da reflexão. «Tradicionais» ou «anexados», segundo a termi-
nologia de Antonio Gramsci, estes «intelectuais», ao serviço de quadros
administrativos n o poder, transmitem, conscientemente o u não, ideias
novas ou, desenvolvendo as letras, as artes e as ciências, contribuem
de certo m o d o para a tomada de consciência das massas trabalhadoras.
É assim que, na Europa Ocidental, a conquista dos direitos do h o m e m
e, de u m m o d o geral, a democratização, surgem, no fim do século xviii
e mais nitidamente ainda no início do século xix, ligadas à alfabetização.
Esta grande esperança no livro nunca se exprimiu tão directamente
— ou tão ingenuamente — c o m o na literatura destinada à juventude.
Para nos limitarmos ao século xix, isto é, à época e m que se constitui,
na maior parte dos países da Europa Ocidental, u m a «literatura infantil»
específica, impõe-se rapidamente a ideia de que o estado de adulto não
é favoráveis à educação e que é preferível dirigir-se às crianças, mais
maleáveis.
Esta preocupação ideológica temperada c o m u m desejo de eficácia
encontra-se, mais ou menos explicitamente, na maior parte daqueles
que se vão interessar pelo livro para crianças, editores c o m o Hetzel o u
Hachette, o u ainda escritores c o m o Collodi e D e Amicis, Sophie Rosto-
pchine, condessa de Ségur, Hector Malot, Júlio Verne ou Selma Lager-
löff. Tanto nuns c o m o nos outros se distingue, e mfiligrana,o projecto
de u m texto ideal, livro de leitura romanceado sobre o qual se debru-
çariam crianças e pais e que serviria tanto de informação c o m o de pra-
zer, dando-lhes u m a ideia da sua terra, das suas tradições, dos seus direi-
tos e deveres.
Ora, esta esperança — a salvação pelo livro e pela alfabetização —
surge rapidamente c o m o u m a ilusão. A alfabetização progride, o livro
conquista importantes posições, sem que, entretanto, se reconheçam
melhor os direitos do h o m e m . Outro dado singular do problema:
novos meios de expressão e de difusão do pensamento se impõem, os

1. Les intellectuels et Vorganisation de culture, Einaudi, 1953; última tradução


francesa, Gramsci dans le texte, Paris, Editions sociales, 1975.

200
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

media audiovisuais, que informam c o m menos despesa, m a s que, parece,


alimentam a passividade do público. Ora, estes media parecem entrar
e m conflito c o m o livro e contribuem para u m a espécie de «desalfabe-
tização».
Daí a situação paradoxal que caracteriza este «após-guerra» : as leis
escolares votadas sob pressão dos trabalhadores abrangem camadas
cada vez mais amplas da população, m a s esta «exploração escolar»
não conduz ao aumento espectacular da leitura n e m a mais progressos
decisivos na difusão dos direitos do h o m e m .
Esta desilusão não poupa as instituições internacionais n e m , e m par-
ticular, a U N E S C O . O s peritos que ela agrupa são, sem dúvida, muito
cultos e b e m intencionados. M a s , dedicando tanta atenção aos problemas
da educação, da informação e do livro, surgem como generosos fanta-
sistas, atingidos pelo idealismo dos revolucionários de 1793 ou de 1848
e convencidos de que boas constituições e mais particularmente boas
leis escolares serão capazes de transformar a natureza humana.
Esta ilusão adquire u m aspecto particularmente paradoxal no sector
do livro para crianças. N a Europa Ocidental, por exemplo, a edição deste
tipo de livros proliferou. Artesanal no século xix, tornou-se u m a indús-
tria essencialmente regida pela lei do lucro maximal, intervindo o inte-
resse da criança apenas c o m o u m dado entre outros nos «estudos de mer-
cado» baseados essencialmente na exploração dos gostos existentes.
Resultado : u m mercado invadido por u m a produção de série, estereoti-
pada, que se apresenta como literatura de «puro divertimento» e cujo
valor educativo é medíocre ou sujeito a caução. Perante estes empreen-
dimentos tentaculares, constituiram-se outros, mais pequenos e muitas
vezes inspirados n u m a pedagogia de ponta ou e m preocupações ideoló-
gicas, políticas e confessionais. Produção interessante, muitas vezes de
nível elevado, mas que, exigindo esforço do público, beneficia de u m a
audiência limitada. Neste domínio, c o m o e m outros, o m a u sobrepõe-se
ao b o m . O s livros repetitivos, inteiramente baseados no «suspense»
e a ele reduzidos, aumentam a passividade do público e contribuem
para o orientar para meios audiovisuais que lhe proporcionam, não
esqueçamos, gratificações imediatas (o que não sucede c o m o livro que
exige, para transmitir o «prazer d o texto», u m a longa aprendizagem).
Simultaneamente, desenvolvem-se formas de expressão intermédias
a meio caminho entre a imagem e o texto, bandas desenhadas ou roman-
ces ilustrados. N ofinalde u m a evolução que se processa à nossa frente
a própria palavra livro m u d a de sentido. Pode significar, não o que
designou durante séculos, m a s o que traduz já para milhares de crianças
e de jovens : u m a série de imagens ligadas e organizadas e m sistemas,
enquadradas e centradas n u m a óptica cinematográfica, e m que o texto,
expressivo, s e m dúvida, m a s encerrado e m «balões», representa u m a
proporção muito reduzida da mensagem total.
M a s , sendo assim, que resta das grandes esperanças que os nossos
antepassados, e até os nossos pais, tinham colocado no livro e na alfa-
betização? Que pensar também dos esforços obstinados de certos indi-
víduos ou de determinadas organizações internacionais ou nacionais,
como o I B B Y , a Biblioteca Internacional de Munique, a de Liège ou

201
Marc Soriano

a de Clamart que se esforçam por unir editores, autores, ilustradores,


educadores, pais, etc., e procuram melhorar e defender a literatura
para a juventude? Ingenuidade ou álibi?
U m certo número de ciências humanas poderia ajudar-nos a sair
deste dilema. N a verdade, u m livro começa por ser u m texto e diz res-
peito, portanto, às ciências da linguagem: linguística, semiologia, semió-
tica. A sua mensagem situa-se também na história, na das ideias e tam-
b é m na das sociedades. Finalmente, u m livro é u m a obra de arte que fala
à razão, e também a esse inconsciente que a psicanálise procura explorar.
Texto, contexto, intenção. Necessitamos, pois, de voltar aos dados fun-
damentais do problema, mas corremos o perigo de cair e m generali-
dades. Para evitar este risco, proponho-me, nestas reflexões, centrar a
minha investigação sobre u m único eixo e sobre u m problema restrito
que m e obrigará a voltar ao concreto. Será possível, será viável, neste
ultimo quarto do século xx, confiar a u m livro (ou a u m a série de livros)
a tarefa de inculcar e m crianças «valores humanitários»? Este livro existe
ou será necessário escrevê-lo ? A que idade ou a que idades pode ou deve
destinar-se? É sempre o m e s m o , adapta-se a culturas diferentes, inde-
pendentemente dos desenvolvimentos desiguais dos diversos países ou
deverá ser diferente para corresponder a exigências diversas? C o m o
conceber a sua difusão? Deve ser confiada a u m a organização privada,
nacional ou internacional? Estes problemas, por muito vastos que sejam,
não são gratuitos n e m abstractos. O tipo de livros que estamos a tentar
descrever talvez já não exista, mas existiu. E m diversas épocas, e m diver-
sos países, publicaram-se obras que correspondiam muito exactamente às
necessidades das crianças a que se destinavam e que, simultaneamente
c o m o prazer, lhes proporcionavam u m a consciência mais clara dos
seus direitos e dos dos outros. Cuore de D e Amicis, por exemplo, talvez
tenha envelhecido, m a s representou, e m 1886, u m a excepcional e gene-
rosa abertura sobre o pensamento socialista. O m e s m o podemos dizer
de Huckleberry Finn, de M a r k Twain, que, ainda hoje, representa u m
esforço válido para escapar à óptica racista. O tipo de livro que procura-
m o s descrever existiu pois. Resta descobrir e m que condições estes livros,
ou outros do m e s m o tipo, seriam eficazes, u m a vez que o contexto
histórico parece ter mudado profundamente.

A clarificação das ciências humanas

M a s , e m primeiro lugar, o que é u m livro para a juventude? A semio-


logia permite-nos eliminar u m a série de pré-requisítos que poderiam
não ser aceites.
U m livro para a juventude é u m a mensagem, u m a comunicação histó-
rica entre u m adulto de u m a determinada sociedade e u m destinatário
criança, pertencente à m e s m a sociedade e que, de certo m e d o por defi-
nição, não dispõe ainda de conhecimento, da experiência do real e das
maturações afectivas que caracterizam a idade adulta.
Para que a comunicação se estabeleça, é necessário e, e m suma,
suficiente, que entre o locutor e o destinatário exista u m código c o m u m

202
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

e que este código se refira à realidade histórica. É , portanto, absoluta-


mente impossível abstrairmo-nos das situações concretas que regem
não só as descrição c o m o também a escuta. Esta análise evita-nos a
ilusão de pensar que inventámos o problema. N a realidade, o adulto
tentou necessariamente estabelecer u m a comunicação c o m as crianças
da sua sociedade ainda muito antes da invenção da imprensa ou da
escrita, para lhes transmitir a sua concepção dos deveres e dos direitos.
Antes de adquirir as formas que conhecemos, esta mensagem utilizou
outros circuitos de comunicação, por exemplo, o da tradição oral ou
o das danças e dos jogos. Esta nova mensagem que procuramos formu-
lar — u m livrofinalmenteeficaz — não deverá ser situada para além do
espaço e do tempo, u m a vez que as crianças a que se destina existem
n u m determinado tempo e espaço. Pelo contrário, será útil situá-la n u m a
tradição, o que a fará beneficiar da experiência desta tradição, valori-
zando simultaneamente o que contém de novo.
Destruímos, assim, a ilusão de u m livro único, que poderia ser ope-
ratório n u m determinado país e n u m a determinada época. A estrutura
do nosso corpo ou do nosso espírito é certamente universal, o que signi-
fica que, como Sartre afirma magistralmente, «qualquer h o m e m vale o
m e s m o que eu»; m a s , desde que nasci, nunca mais deixei de ser elabo-
rado e transformado pela minha história pessoal e pela do m e u país.
Assemelho-me a todos os homens, m a s , simultaneamente, transformo-
- m e n u m indivíduo que não se assemelha a nenhum outro, e pertenço
a u m grupo, mais ou menos extenso, que tem necessidades específicas.
A universalidade da nossa razão e a da nossa consciência, se algum dia
existirem, terão sido conquistadas.
N ã o nos devemos deixar induzir e m erro pelo caso, muito complexo,
dos «clássicos» que,finalmente,criam o seu público. São, e m geral,
obras fortemente enraizadas e m terrenos restritos (basta pensar, por
exemplo, nas relações entre Pinóquio e o folclore florentino) e, devido
a esta especificidade, provocam no jovem leitor o desejo de procurar as
suas próprias raízes ou de descobrir outras.
Outra conclusão que nos permite esta breve incursão nas ciências
da linguagem: o tipo de livros que procuramos, se existir, só pode
nascer e difundir-se no meio educativo a que a criança está habituada.
O s melhores artesãos deste tipo de livro devem ser procurados não n u m
meio artificial de «generais sem tropas» (teóricos da pedagogia, «peritos»
e m todos os géneros que encontram sempre as soluções que convêm
a todas as situações possíveis) mas entre os educadores, investigadores
e artistas dos vários países, pois são os únicos que conhecem realmente
as tradições nacionais e adivinham a força de persuasão que contêm.
A semiologia orienta-nos para a dimensão temporal da obra. A his-
tória e a sociologia permitem-nos evitar as esperanças exageradas e os
desesperos infundados. A análise atenta de determinados contextos
históricos ensina-nos a não minimizar, e também a não exagerar a
influência do livro. Está — e pode estar — ao serviço dos «direitos do
h o m e m » quando o poder real pertence a camadas especiais que não estão
interessadas e m que os homens exerçam os seus direitos?

203
Marc Soriano

Para evitar exemplos contemporâneos susceptíveis de tornar o debate


inutilmente apaixonado, é fácil mostrar que, na França da primeira
metade do século xix, o irressistível impulso popular para a cultura foi
rapidamente recuperado pelo liberalismo económico. A burguesia inte-
grou a alfabetização no seu programa político por duas razões essenciais :
por u m lado, a indústria utiliza máquinas cada vez mais complexas que
custam caro e que exigem, para serem rentáveis, u m pessoal qualificado;
por outro lado, tomar a iniciativa da escolarização significa t a m b é m
dominá-la e transformá-la e m estrutura de «reprodução»1. A burguesia
apercebeu-se de que u m certo tipo de cultura cuidadosamente «despoli-
tizada» e controlada constituía u m meio de evitar as «revoltas» sel-
vagens do Antigo Regime, dispensando-a, simultaneamente, de justi-
ficar a sua hegemonia económica e política. É este o sentido da lei
Falloux que, e m 1849, retoma as ideias «liberais» de Guizot e as reivin-
dicações escolares dos democratas e dos socialistas de 1848, m a s que
coloca o ensino, a todos os níveis, sob o duplo controle d o prefeito
(poder civil) e do bispo (poder religioso).
Esta análise é ainda válida nos nossos dias, quando a alfabetização
e a aculturação da escola estão sujeitas a u m a «aculturação paralela»,
veiculada pelos mass media. O s poderes antidemocráticos sentem-se
fortemente tentados a utilizar os meios audiovisuais, não para infor-
m a r efectivamente e despertar o sentido crítico e político das populações,
mas, pelo contrário, para «despolitizar» os problemas e para negar a
existência das ciências humanas, o que se traduz pelo estímulo da pas-
sividade do público, pela sua «desinformação» sistemática para manter
o statu quo.
É , portanto, impossível separar a influência do livro dos dados his-
tóricos que a c o m p a n h a m a sua produção e a sua difusão: hábitos de
leitura, estrutura das edições e das bibliotecas, leis escolares e escolari-
zação efectiva, natureza das relações de produção e d o Estado, etc.
Não podemos, pois, confiar no livro, n e m m e s m o na alfabetização,
para dar aos homens a consciência dos seus direitos e, sobretudo, a
vontade de os defender. A história mostra de maneira evidente que todo
o direito é a expressão de relações de força. Seria ingénuo e inútil espe-
rar que a força se incline perante o direito. O s nossos direitos só p o d e m
entrar na realidade quando apoiados pela força, a dos interessados,
precisamente. N ã o é correcto, portanto, apresentar a influência de u m
livro c o m o u m a impregnação lenta. É u m combate e m que as forças
«espirituais» aprendem a transformar-se e m forças materiais. A his-
tória ensina-nos que este combate n e m sempre é possível sob u m a forma
clara.
Não serve de nada falar púdicamente de «diversidade de dados
socioculturais» Quando se trata de problemas concretos c o m o os da
edição o u difusão de obras abordando o problema das «liberdades»,

1. Ver, sobre este ponto, Antonio G R A M S C I , op. cit., desenvolvido por Louis A L T H U S -
SER: « O S aparelhos ideológicos do Estado», em Positions, Paris, Editions sociales,
1976, e Pierre B O U R D I E U e Lean-Claude P A S S E R O N : Les héritiers, Paris, Éditions
de Minuit, 1964, e La reproduction, Paris, Editions de Minuit, 1970.

204
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

somos necessariamente levados a u m a classificação mais precisa e mais


operatória. A título de exemplo, segue-se a que utilizo nas minhas
próprias investigações e que é, b e m entendido, muito esquemática.
Distingo :
a. O s países socialistas. Estes países caracterizam-se por u m a alfa-
betização muito desenvolvida e por u m a promoção muito eficaz
do livro e das bibliotecas. N o entanto, estes resultados não devem
dissimular que certas tensões persistem. E m particular, alguns deles
praticam u m a política cultural autoritária que exclui, talvez m o m e n -
taneamente, u m a discussão totalmente aberta.
b. Os países «liberais». Esta noção de liberalismo deve ser entendida,
para começar, n o sentido económico e conduz à concentração das
empresas e à produção e m série já descrita. Outras características da
situação : ausência de u m a política cultural de conjunto, o que conduz
ao favorecimento dos media audiovisuais e m detrimento do livro;
promoção de u m a cultura estereotipada: distância sempre crescente
entre os autênticos artistas e o público: crise da leitura. O s não-
-leitores, os «maus leitores» e ainda, o que é igualmente grave, os
leitores de «qualquer coisa serve», atingem números alarmantes.
c. Os países e m infracção institucional e permanente relativamente à
Declaração Universal dos Direitos do H o m e m . Seria pueril imaginar
que os governos destes países favorecem a publicação ou a difusão
de livros que explicam aos homens os seus direitos, mas seria igual-
mente absurdo confundir estes governos, que serão afastados mais
cedo ou mais tarde c o m os povos que lhes estão submetidos e que
constituem u m terreno particularmente propício para u m a melhor
tomada de consciência dos direitos do h o m e m .
d. Os países e m desenvolvimento. A terminologia tradicional reserva
esta designação aos países que estiveram, durante muito tempo,
submetidos a u m a dominação estrangeira de tipo colonial e que aca-
b a m de aceder à independência. Reduzidos por muito tempo ao papel
de reservas de matérias-primas, estes países encontram-se na obrigação
absoluta de recuperar o seu atraso económico, o que pode dar ori-
g e m a orçamentos escolares reduzidos e a u m a alfabetização insu-
ficiente.
N o entanto, a pesada dominação que estes países sofreram deu origem,
e m geral, à conservação quase milagrosa das culturas tradicionais,
culturas há muito desaparecidas ou, na melhor das hipóteses, quase
moribundas nos países industrializados. Ainda b e m que assim é, não só
devido ao conteúdo de alto nível destas culturas, c o m o também, e,
sobretudo, por elas terem conseguido estabelecer u m a relação autên-
tica e activa entre os artistas e o público. Ora, a penetração dos «direitos
do h o m e m » é justamente função desta actividade do espírito que des-
perta u m certo tipo de arte, e que paralisa, ao contrário, u m a arte este-
reotipada, comercializada e de «puro divertimento». Tendo e m conta
as contradições d o m u n d o actual, estes países e m que a alfabetização
ainda não triunfou apresentam-se-me .— não sei se c o m razão — c o m o
ilhas de resistência contra u m certo tipo de «desinformação» demasiado
corrente. N ã o saber 1er, não ter vontade de 1er, p o d e m ser, e m certas

205
Marc Soriano

condições, u m a garantia contra u m a literatura inepta. Paradoxo, sem


dúvida, mas que já foi defendido por u m dos nossos mais eminentes
pedagogos J.-J. Rousseau —referindo-se à monótona profusão de
contos de fadas fabricados c o m todas as peças pela cultura erudita do
seu tempo — c o m excepção, é certo, para Robinson Crusoé que consi-
dera mais u m jogo do que u m livro, u m a espécie de «mecano» vital que
permite que a criança meça as suas forças e se confronte c o m o m u n d o
real.
Posição saudável, portanto, no plano teórico. Admito, porém, que
é insustentável a longo prazo. N ã o saber nada é certamente u m a grande
vantagem. M a s é preciso não abusar. A criança e o h o m e m , se preten-
d e m referenciar-se no m u n d o actual, têm interesse e m recusar u m certo
tipo de informação, mas para dar mais lugar a informações que desen-
volvem o espírito crítico e a criatividade, qualidades necessárias à
compreensão do m u n d o e m que vivem e sem as quais não o poderão
transformar.
Esta situação histórica apresenta outro interesse. Permite u m a defi-
nição menos geral, portanto melhor, destes famosos direitos e deveres
que se trata de inculcar nas crianças e nos homens. C o m o é evidente,
é necessário que eles sejam definidos por constituições de nações ou
por instituições internacionais como as Nações Unidas, pois tornar-se-ão,
assim, textos de referência, e, portanto, recursos contra despotismos,
mas não devemos concluir que se trata de dados metafísicos, de rei-
vindicações alheias à história de cada país e que não devem ser atri-
buídas a u m a élite ou a funcionários internacionais que p o d e m ter
perdido as suas raízes nacionais.
A história ensina-nos, pelo contrário, que existe u m a relação entre
a civilização e as civilizações, que os direitos do h o m e m constituem
u m a reivindicação que nos surge como u m fermento e m cada cultura
nacional, regional ou local. Consequência: apresentar estes direitos
c o m o u m contributo externo é não só u m erro histórico, como u m a
falta pedagógica e táctica. Estes direitos só entrarão nas consciências
e nos factos na medida e m que os países os apresentem como exigên-
cias internas da sua ou das suas próprias culturas, o que está de acordo
c o m a verdade e nos obriga a passar de u m a pedagogia directiva para
u m a pedagogia da participação e da atracção.
A psicologia e a psicanálise, nos seus desenvolvimentos mais recen-
tes, permitem u m a nova e capital modificação dos dados do problema.
Quando atribuímos ao livro o poder quase exclusivo de inculcar os
direitos do h o m e m , estamos implicitamente a avalizar u m certo número
de axiomas errados.
O primeiro diz respeito ao próprio processo da leitura. Alguns
homens, sem dúvida, sabem 1er, mas isso não significa necessariamente
que saibamos ensinar a 1er. C o m o mostraram os trabalhos de Miala-
ret, existem vários níveis de leitura e só passamos de u m para outro
através de u m a longa prática. Saber 1er não é enunciar letras ou síla-
bas, n e m sequer dominar os mecanismos de aprendizagem por meio de
u m a abordagem silenciosa, n e m passar de u m sentido a outro refe-
renciando-se por certas palavras através de u m a antecipação rápida

206
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

e criadora; e m suma, não se trata unicamente de 1er depressa e de nos


«identificarmos», trata-se sobretudo de saber mudar continuamente
de ritmo de leitura e de adoptar u m a atitude crítica a respeito do que
se lê.
Atribuir u m a importância exagerada à alfabetização e ao livro, no
nosso contexto histórico, é esquecer que o nosso ensino (devido às
fraquezas da nossa pedagogia e das forças que se opõem ao espírito
crítico) conduz à constituição de grupos de «maus leitores» ou de «não-
-leitores»; é também esquecer o fenómeno essencial da «analfabetiza-
ção de recuperação» segundo a expressão de Albert Meister. E este
fenómeno não diz respeito unicamente aos países e m desenvolvimento
e às nações pouco desenvolvidas no plano económico, onde as «línguas
maternas» têm tendência a entrar e m conflito c o m as «línguas de pro-
moção». Trata-se de u m a orientação mais geral. Sabemos, mais ou
menos, ensinar os mecanismos da leitura, m a s não o prazer do texto,
o que explica que perto de u m terço da «população escolar», depois
de ter passado dez anos de vida a aprender a 1er, passe o resto da sua
existência a desaprender.
Ora, se a prática da leitura não estiver integrada na personalidade
do leitor, não podemos confiar nela para difundir os direitos do h o m e m ,
pois esta difusão supõe u m comportamento activo por parte do des-
tinatário, quer se trate de crianças ou de adultos ainda mal albafeti-
zados. N u m contexto assim definido, remetermo-nos unicamente ao
livro é adoptar u m a atitude directiva e pouco eficaz, é renunciar à
utilização da criatividade do meio, desse meio que, c o m o recordei,
deseja c o m todas as suas forças a conquista dos seus direitos. É , e m
suma, ser obrigado a levantar u m peso enorme sem utilizar as alavancas
à disposição.
Outro erro: o recurso ao livro pressupõe que se restrinja o trabalho
de explicação sobre os direitos junto daqueles que estão e m idade de
aprender a 1er ou, no caso dos analfabetos adultos, que estão à altura
de dominar u m código e u m sistema de explicação baseado na razão.
Ora, a psicologia e a psicanálise contemporâneas ensinam-nos, pelo
contrário, que as nossas opções fundamentais (atitude do h o m e m
perante a mulher, da mulher perante o h o m e m , comportamento e m
relação «à raça» e, de maneira mais geral, e m relação «à diferença»)
se constituem antes dos cinco ou seis anos, idade considerada «nor-
mal» para a aprendizagem da leitura. A psicopatologia também nos
ensina que a maior parte das perturbações do comportamento ou das
grandes «neuroses» se elaboram na época do «complexo de Édipo»,
isto é, entre os dois anos e meio e os cinco anos, ou m e s m o antes,
durante a fase «oral».
Tudo se passa portanto c o m o se, por respeito pelo livro que não é
mais, historicamente, do que u m circuito de comunicação entre outros,
deixássemos constituirle e fortificar-se estas grandes doenças da civi-
lização c o m o , por exemplo, o racismo ou o antifeminismo para e m
seguida — e só e m seguida— nos remetermos ao livro e à razão1

1. Ver sobre este ponto B . B E T T E L H E I M , Psychanalyse des contes de fées, 1976.

207
Marc Soriano

para os combatermos. Ora, é sempre mais difícil reeducar do que


educar.
E m resumo : o livro continua a ser u m a das vias reais para alcançar
a tomada de consciência, m a s esta é mais facilmente descoberta por
aqueles que provêm de meios que beneficiam há muito da cultura
escrita e que dispõem, por assim dizer desde o berço, do equipamento
linguístico e cultural que facilita a leitura. M a s , entretanto, impuse-
ram-se outros media que contribuem c o m «gratificações» culturais
mais fáceis de obter. Nestas condições, a leitura que exige u m esforço
não desprezível de aprendizagem e u m a prática intensa pode surgir
como demasiado directiva, como exterior à consciência, enquanto os
direitos do h o m e m , para serem realmente assumidos pelos indivíduos,
devem apresentar-se-lhes como ponto de encontro da sua própria
cultura e da sua exigência íntima — o que são realmente. O problema
dos direitos do h o m e m deve, portanto, formular-se sempre que possí-
vel, n u m plano simultaneamente racional e irracional, c o m a colabo-
ração de todos os meios de expressão e de comunicação de que dispo-
m o s , utilizando a imaginação e a emulação de todos, crianças ou adul-
tos. Idade da leitura, portanto, m a s também da pré-leitura. Livro,
sim, mas também jogo, dança, música, pintura, modelagem, etc. O pres-
tígio de organizações internacionais como o I B B Y e as suas secções
nacionais, a U N E S C O ou as Nações Unidas não pode ser ignorado,
mas deve ser utilizado c o m prudência, como u m a marca susceptível
de valorizar o esforço individual no seu meio natural. Trata-se sempre
de criar c o m todos os elementos u m a obra funcional — u m a vez que
se deverá adaptar a u m a situação específica — e também de a inserir
n u m a tradição, o que conduzirá a u m a reavaliação ou a u m a redes-
coberta de obras existentes.

O investimento do livro para crianças


pelos direitos do h o m e m : algumas orientações

Dir-me-ão que a minha reflexão é demasiado teórica. Necessito, por-


tanto, de abordar os problemas da criação real, no sector que escolhi
examinar, o da literatura para a juventude. Admitamos, portanto,
que o problema seja posto nestes termos por u m a instância interior
ou exterior, implícita ou explicitamente: «Basta de 'divertimentos
puros'. É altura de escrever u m livro, de criar u m a actividade de tipo
artístico que não se reduza ao 'prazer do texto', m a s que oriente a
criança para u m a tomada de consciência dos seus direitos e deveres,
que tenha e m conta a diversidade das condições culturais nos diver-
sos países.»
Responder a este problema implica clarificações prévias. Aquilo a
que chamamos infância é u m longo período que se estende desde o
nascimento até à adolescência. Comporta, de facto, várias «infâncias»

208
O livro para crianças e os direitos d o h o m e m

sucessivas caracterizadas por centros de interesse distintes e referen-


ciáveis e m relação a:
Pulsões, maturações, tomadas de consciência ou regressões tempo-
rárias ou perduráveis que se equilibram mais ou menos consciente-
mente na história de cada indivíduo;
«Desejos» adultos de u m a sociedade dada, geralmente reflectidos
nos sistemas educativos praticados pelos grupos sociais dominantes
ou e m determinado meio sociocultural;
Dados objectivos (estruturas da família ou dos estabelecimentos
educativos, imperativos sociais definindo o comportamento «normal»,
ideologias, e m suma, tudo o que Freud e m Le petit Hans designa por
«destino» da criança).
Esta perspectiva antropológica provocou progressivamente a «eclo-
são» da noção de idade. Aprendemos, então, a distinguir:
A idade do estado civil. Durante muito tempo só esta entrava e m
linha de conta. Actualmente, é utilizada apenas e m demografia;
A idade mental, certamente muito controversa, m a s que conserva
u m a certa utilidade na medida e m que as baterias de testes utilizadas
limitam as suas ambições à determinação de conhecimentos ou apti-
dões médias n u m a determinada idade;
A idade afectiva que corresponde às descobertas da psicanálise e
que entra e m linha de conta, n u m a dada civilização, c o m a maneira
como u m a criança equilibra as suas pulsões e m relação às censuras do
seu grupo e assume o seu sexo ;
A idade lúdica que se mede e m relação ao princípio do prazer e ao
poder de jogar, definindo a diferença de tónus nos jogos ou a dife-
rença destes jogos u m a capacidade ou u m a recusa de adaptação e,
portanto, u m a atitude de conjunto perante a vida.
Estas diversas idades coexistem e m cada indivíduo que pode, assim,
pertencer simultaneamente a grupos de idades diferentes, Empirica-
mente, distinguimos, apesar de tudo, as seguintes idades que, embora
imprecisas, são operatórias no domínio do livro que aqui nos inte-
ressa :
Desde o nascimento até aos três anos. A criança adquire a sua ima-
g e m global do corpo (estádio do espelho) e, dado essencial para o seu
futuro cultural, aprende a manipular e a apreciar a sua «língua m a -
terna», duplo condicionamento que lhe permite constituir correcta-
mente o que Winnicott designa por self e que, ensinando-lhe a situar-
le n u m m u n d o amigável, torna possíveis os pré-hábitos de leitura e o
apetite pela cultura.
Dos três aosr cinco ou seis anos. Idade fundamental também, a do
«complexo de Édipo», e m que a criança assume o seu sexo. É o período
e m que a criança, e m todo o caso, nas nossas civilizações ocidentais,
desiludida pelos adultos, se identifica facilmente c o m os animais.
Adora também os contos populares construídos e m torno de jovens
heróis que, e m desvantagem à partida, conseguem à força de astúcia
ou de bondade conquistar u m lugar ao Sol. Esquema político que
reflecte a condição e os sonhos do povo explorado durante séculos
ou milénios, e que a criança interpreta no plano pessoal.

209
M a r c Soriano

O periodo dos seis aos onze-doze anos. Fortemente sexualizada pelas


suas recusas, merece sempre, nas nossas civilizações, ser considerada
c o m o a d a «latência». A s fábulas e os contos persistem, m a s coexis-
tem c o m a procura d e modelos.
Dos dez aos treze anos. N o s nossos climas, é o período d a pré-
-puberdade. A diferença entre os sexos afirma-se e exterioriza-se e m
comportamentos diferentes. Deixou de se verificar e m relação ao livro
depois d a segunda guerra mundial. R a z ã o provável desta evolução:
a recusa, cada vez mais deliberada, pelas jovens leitoras d a i m a g e m
da mulher apresentada pelos livros tradicionais.
A partir dos treze anos. A adolescência propriamente dita, d o m i -
nada pelas maturações afectivas e sexuais e pelos problemas d a socie-
dade adulta (escolha d a profissão, opções políticas, etc.).
Consideremos as duas primeiras fases que acabo de descrever,
a m b a s caracterizadas por u m certo narcisismo'—inevitável, u m a vez
que a criança deve aceder à clara consciência d o seu corpo e d a sua
identidade. C o m o facilitar-lhe o acesso à « o r d e m d o simbólico» onde
se situarão mais tarde as noções de direito e de dever?
Nesta idade, explica Henri Wallon, «o m e d o mais assustador d a
criança refere-se à sua segurança. O que o alimenta é a i m a g e m das
forças m á s ; o que o p o d e apaziguar é a existência d e forças c o m p a s -
sivas e benfeitoras (...) Outra forma desta inquietação: a dos gigantes
e dos anões que são a m e d i d a respectiva d a sua fraqueza e da sua força;
a violência que sofre p o d e ser exercida sobre outros; é u m a c o m p e n -
sação tranquilizadora. M a s , habitualmente, o par grande-pequeno,
forte-fraco desdobra-se e dá-nos o par estúpido-esperto»1.

A CRIANÇA E A FERA

T e m a e estruturas narrativas: u m a criança foge para o bosque (ou


para a floresta, o u savana, o u para a beira d o m a r o u d o rio) apesar
dos pais. A í , vê aproximar-se u m a fera (escolhe-se o animal mais
c o m u m n o país considerado).
Neste ponto interrompe-se a narração, d e acordo c o m a técnica
usual d a «história s e m fim» e s o m o s nós (narrador e público) q u e
d e v e m o s imaginar a continuação. A forma proposta é, portanto, a
de u m conto por via oral. P o d e m o s , n o entanto, tentar dar a este pro-
jecto a forma d e u m espectáculo d e fantoches o u d e sombras chinesas
o u montá-lo sob a forma d e commedia delVarte desempenhado por
crianças.
A estrutura relativamente nova d a «história s e m fim» permite pôr
e m causa a «pedagogia d o m e d o » , isto é, a orientação mais discutí-
vel d o repertório tradicional, os «contos d e advertência» que a c a b a m
m a l e se destinam essencialmente às crianças.
Assim, n a versão mais conhecida de O Capuchinho Vermelho, o
lobo c o m e a m e n i n a e n o conto O lobo, a cabra e os cabritinhos, o lobo

1. H . W A L L O N , prefácio de Guide de littérature pour lajeunesse, Paris, Flammarion, 1975.

2IO
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

mata alguns cabritinhos antes de morrer ele próprio de morte trágica.


A o oferecer à criança u m fim desgraçado, os narradores do passado
referiam-se ao princípio —actualmente cada vez mais contestado —
do valor exemplar do castigo.
N a verdade, há muito que este princípio foi posto e m causa. Além
do final feliz de tipo erudito reunido pelos irmãos G r i m m , existe u m
outro — popular e tradicional — que o adaptador dos Contos da Caro-
chinha eliminou certamente por ser escatológico, o do «pretexto que
desobriga»: a criança surge c o m u m a necessidade urgente, o lobo acaba
por deixá-la ir embora, m a s prende-lhe o braço c o m u m fio de que
ela se desembaraça sem dificuldade. N a versão musical de Serge Pro-
kofief, Pedro e o lobo, o conto encontra-se enriquecido c o m duas inven-
ções que são augúrio dosfinaisfelizes susceptíveis de agradar a outros
narradores e a outros públicos infantis: animais utilizados para des-
crever e distinguir instrumentos de música, e também perspectiva «eco-
lógica» : o lobo é u m monstro cruel, m a s raro ; Pedro não aceita que o
matem, captura-o e leva-o, e m cortejo, ao jardim zoológico.
Este esquema poderia ser utilizado durante a «hora da história»,
que se pratica tanto e m França c o m o na América Latina, e m Cuba
ou nas repúblicas africanas. O «jogo» seria apresentado por u m pro-
fessor, ou por u m narrador tradicional que privilegiaria a versão autóc-
tone mais popular na sua área cultural. A novidade e m relação à tra-
dição situa-se na vontade de instaurar u m debate (outra possibilidade
no que respeita aos mais jovens : u m início de reflexão por intermédio
da mímica, do desenho, etc.) sobre a violência. Perguntas : O s monstros
ainda existem? Só existem entre os animais? Q u e atitude adoptar e m
relação à violência? Papel da artimanha, da organização, etc.? E os
pais? C o m o p o d e m , e devem, advertir os filhos de que a violência
existe? Papel da autoridade, da repressão, etc. Função do m e d o ?
É possível estabelecer u m a pedagogia baseada no m e d o ?
Outro interesse deste esquema: permite utilizar as ilustrações tra-
dicionais que p õ e m e m cena os animais ferozes de todos os continentes.
A título de exemplo, o centro de documentação da U N I C E F , e m
N o v a Iorque, põe à disposição de todos aqueles que o desejem u m a
documentação muito variada e de alta qualidade, imagens populares
e ainda u mficheirosobre a produção dos melhores artistas contem-
porâneos. Esta solução não exclui o recurso a artistas locais n e m a
participação das próprias crianças.
Esta «história sem fim» também pode ser motivo de organização
de u m a nova leitura — e de u m a leitura nova — de contos o u descri-
ções de artistas do passado que retomaram «à sua maneira» esta his-
tória, isto é, que «investiram» a sua sensibilidade neste tema.

«BEM COZIDO»

Trata-se de u m conto por via oral, m a s também pode adquirir a forma


de u m espectáculo de fantoches, de u m a representação teatral, de u m
filme ou de u m álbum. O grupo etário abrangido é o da pré-leitura e

211
Marc Soriano

do conto, mas este projecto também diz respeito às outras «infâncias»,


pois ocupa-se do problema da «diferença» (das raças, dos sexos, etc.).
Trata-se de u m conto «etiológico» do folclore dos Peles-Vermelhas
que explica, c o m u m certo humor, a origem das raças. Encontra-se
também e m colectâneas pertencentes a ecotipos diferentes.
O Espírito Criador propõe-se criar o h o m e m . Escolhe u m a argila
de excelente qualidade, amassa-a, atribui-lhe u m a forma, aquece o
forno, põe o h o m e m a cozer. M a s o Criador distraiu-se por u m m o -
mento ou o forno estava demasiado quente. Resultado: u m a criatura
demasiado cozida, o h o m e m negro. Nova tentativa, mas, escaldado,
por assim dizer, o Criador, cauteloso, abre o forno demasiado cedo.
Daí u m a criatura mal cozida: o h o m e m branco. Mais u m a tentativa,
também c o m desfecho prematuro: o h o m e m amarelo. O Espírito
Criador, irritado, insiste. N ã o se poupa a esforços. Finalmente, a
perfeição: o Pele-Vermelha.
Desta vez, o tema é apresentado integralmente pelo autor —nar-
rador o u escritor — m a s é seguido por u m debate que salienta o signi-
ficado humorístico, muito acessível até m e s m o a u m público de qua-
tro ou cinco anos (através da referência ao próprio corpo, à própria
pele). Este projecto conduz ainda a u m estudo, simplificado ou não,
sobre as diferenças étnicas (pigmentação da pele, relação entre clima
e biologia) ou sobre o contributo histórico das raças.
O debate a partir deste «conto acabado» pode orientar-se também
para a diferença dos sexos (Adão e Eva, contos etiológicos sobre a
origem do h o m e m e da mulher, mito do h o m e m «esférico» e m O ban-
quete de Platão) e para u m a análise do preconceito antifeminista (sexo
feminino «metido para dentro»; sexo masculino não c o m o «a mais»,
m a s «saído para fora»).
Se utilizarmos este tema na idade da «latência» e da «pré-puber-
dade», esta orientação pode desenvolver-se e m dossiers elaborados na
aula, e não só, e que p o d e m reunir os esforços já realizados pelas ins-
tâncias nacionais ou internacionais contra os preconceitos raciais, a
favor dos direitos das «minorias». N ã o nos devemos esquecer de obser-
var que entre estas «minorias» se encontram as crianças, c o m o con-
junto desprovido de direitos reais e também essa «minoria» que repre-
senta metade da humanidade: as mulheres.
A s estampas da América Setentrional, da Sibéria e dos países nór-
dicos fornecem abundantes ilustrações, mas é necessário que não nos
limitemos a esta actividade, pois os contos etiológicos, pela sua pró-
pria natureza, são capazes de servir de suporte à imaginação de crianças
muito diferentes.

CRIANÇAS PERDIDAS OU PAIS PRÓDIGOS?

Trata-se mais de u m conjunto de temas do que de u m assunto respei-


tante à relação entre a criança e a família, problema que surge na idade
do conto mas que se precisa essencialmente durante a latência e a pré-
-puberdade. Podemos, pois, considerar a forma do «conto acabado»

212
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

ou sem fim, do romance proposto por u m autor determinado ou do


«romance colectivo» a elaborar n o quadro de u m a classe ou de u m a
«peça radiofónica ou televisiva».
O s esquemas narrativos para este tipo de conto poderiam ser os
seguintes :
Pais que perdem osfilhosinvoluntariamente (guerra, tremor de terra,
catástrofe natural, etc,), ou voluntariamente: são demasiado pobres e
esperam que osfilhosse desembaracem melhor sozinhos; ou os filhos
são turbulentos ou «contestatarios» e os pais pretendem dar-lhes « u m a
lição»;
Filhos que perdem os pais porque estes morrem, ou após u m a fuga
motivada por m a u entendimento;
Pais que ajudam osfilhosc o m dificuldades, m a s , u m dia virá e m
que são os pais que sentem dificuldades e, então, osfilhosajudam-nos
por sua vez.
Este tema pertence a todos os reportónos tradicionais e foi adop-
tado pela literatura escrita, o que é explicável porque se refere ao lugar
que ocupamos n o círculo familiar ou na sociedade. É muito actual,
tanto mais que a estrutura da família está e m plena transformação.
O objectivo pretendido através desta orientação, consiste e m levar
a criança a situar melhor os seus direitos e deveres e m relação ao adulto
através de u m a história concreta que lhe apresenta situações de facto
que evocam a sua dependência objectiva, ou o tempo e m que se tor-
nará «pai do pai».
Podemos aproveitar a ocasião para reunir e reavaliar algumas das
obras que abordam o m e s m o tema, entre outras O pequeno polegar
(reescrito n u m a óptica diferente e m 1973 por F . R u y Vidal), Viagem
ao centro da Terra, A ilha misteriosa, Osfilhosdo capitão Grant, Dois
anos de férias, Os garotos de Timpelbach de Kaestner, etc.

MATEM-SE TODOS OS VELHOS

U m jovem rei, mal aconselhado, ordena que se condenem à morte


todos os velhos. O s súbditos, aterrorizados, hesitam. Alguns obede-
cem. Outros, mais numerosos, escondem os velhos pais.
Passam alguns meses e o rei, sob a influência do m e s m o conselheiro,
confisca todas as terras cultiváveis. Pretende alugá-las, por elevado
preço, a q u e m as queira cultivar. Existe, de facto, u m a lei muito antiga
que lhe permite esta confiscação, pois ele descende e m linha directa do
espírito das águas, venerado pelo povo. O s súbditos, desconcertados,
interrogam-se. Se obedecerem, ficarão arruinados e morrerão de fome.
Se recusarem, serão exterminados.
Felizmente, os velhos que não foram mortos encontram a solução.
O rei tem certamente o direito de reivindicar todas as terras cultiváveis
por descender do espírito das águas; m a s , neste caso, deve ser capaz
de andar sobre as ondas, c o m o ele.
Este conto — q u e pode transmitir-se oralmente, através do teatro,
do cinema, etc. — é muito popular e m várias civilizações africanas

213
Marc Soriano

(por exemplo, a versão do Niger, recolhida por Andrée Clair: Eau


ficelée etficellede fumée) e pode ser ilustrada c o m estampas tradicio-
nais se for apresentado c o m o texto. H á , no entanto, interesse e m esti-
mular crianças e artistas a conceber novas imagens e também (atra-
vés do «conto sem fim» ou do «romance e m colaboração») a imagi-
nar novas soluções. Trata-se, na verdade, de vários problemas cruciais,
entre outros, a atitude a ter perante ordens contrárias aos direitos do
h o m e m e também ao lugar que devem ocupar os velhos e os deficientes
n u m a sociedade. A nossa, e m vez de utilizar a competência e a sabe-
doria dos indivíduos idosos, considera-os «bocas inúteis», reduz-lhes
os rendimentos, encerra-os e m «morredoiros». Ora, acontece que a
maior parte das crianças sente u m a grande ternura pelas pessoas
idosas. O problema posto obriga a u m a reflexão sobre o equilíbrio de
toda a sociedade.

COMO FAZER MELHOR?

Trata-se de u m concurso entre estabelecimentos escolares ou entre


classes que reúnem crianças da m e s m a idade, concurso apoiado pela
imprensa escrita, a rádio e a televisão e que focaria o seguinte pro-
blema: c o m o melhorar o m u n d o , e, e m primeiro lugar, o dos estudos?
É u m problema de u m a melhor participação das crianças na gestão,
na disciplina e na própria elaboração dos estudos; dos «extractos»
de textos ou das leituras seguidas; maneira de apresentar a história
relações entre professores e meio familiar, etc.
Esta orientação é a única que se limita ao meio escolar. Compreen-
de-se facilmente porquê. Esta maneira de pôr e m causa o «meio» edu-
cativo ou social só é possível se não perturbar o processo educativo,
o que exige que seja continuamente organizada e dominada por u m
profissional da «dinâmica de grupos» e, portanto, pelo menos e m
princípio, por u m professor.
Esta orientação interessa mais especialmente à idade da latência,
da pré-puberdade e da adolescência. N ã o escondemos que não pode
ser aplicada e m nenhum país sem adaptações. N o entanto, é possível
apresentá-la sob u m aspecto mais restrito que a torna aceitável e m toda
a parte. O u , então, distanciá-la no tempo. Por exemplo, transformando-a
e m reconstituição da cruzada das crianças (fim da idade média). Quais
eram os objectivos deste grande feito? Seriam justos? Tinham alguma
possibilidade de sucesso? M e s m o limitada aos problemas de organi-
zação escolar, este empreendimento parece rentável, na medida e m que
se esforça por despertar o espírito crítico — e cívico •— dos jovens.

PÉRFIDA COMO AS ONDAS

U m príncipe teme as mulheres e a sua «perfídia». N o entanto, deixa-


-se convencer por insistência dos seus súbditos e pela doçura de u m a
jovem muito bela que, para o desposar, abandona a sua profissão.

214
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

M a s , depois do casamento, o seu h u m o r inquieto desperta. Experi-


menta-a, exige dela u m a obediência absoluta e chega a separá-la dos
filhos. Aqui, de acordo c o m a fórmula escolhida, o tema termina c o m
u m happy end ou c o m u m a catástrofe. O debate inicia-se sobre o que
poderia ou deveria fazer a jovem. Obedecer? E m caso afirmativo,
até que limite? Direitos da mulher? Das crianças?
Este tema, adaptado à idade do conto, e também à da pré-puber-
dade e da adolescência, pode utilizar técnicas abertas (conto sem fim)
ou fechadas (romance, novela, peça de teatro, folhetim, filme, etc.).
Transforma-se, sem grande dificuldade, no ponto de partida de «dos-
siers» sobre os direitos da mulher (os já adquiridos e os que falta con-
quistar), sobre as diferenças anatómicas, fisiológicas, psicológicas,
sociológicas (estudo antropológico da distribuição dos «papéis» na
sociedade). T a m b é m pode ser utilizado c o m o pretexto para u m a rea-
valiação crítica do reportório divertido ou erudito (contos populares
e m que a mulher tem todos os defeitos, misoginia mais camuflada de
Griselda e da literatura «erudita», etc.).

Impasses, erros de pontaria, acções eficazes

Interrompo aqui esta enumeração de assuntos propostos unicamente


a título indicativo. Permitiu-me expor concretamente u m certo número
de orientações, positivas e negativas, respeitantes ao papel que pode,
ou não pode, desempenhar o livro para crianças, na nossa época, para
u m aprofundamento da tomada de consciência dos direitos do h o m e m .
Para clarificar a minha exposição, terminarei recordando as orienta-
ções essenciais destas análises e insistindo nos impasses e erros que
convém evitar para que a acção seja eficaz.
Duas ilusões simétricas e igualmente desastrosas nos espreitam:
excesso ou falta de confiança n o livro para difusão dos direitos. N o s
dois casos se esquece que o direito é a expressão de u m a relação de
forças. A influência do livro é mediata. Só existe se o livro obtiver u m a
atitude activa por parte do leitor. Só a este preço a «tomada de consciên-
cia» se pode tornar u m a força material.
O livro é u m meio de expressão e de difusão do pensamento entre
outros. Depois de Gutenberg e durante séculos coexistiu c o m outros
media, c o m o , por exemplo, o circuito de via oral, o da transmissão de
estampas, etc. O sucesso da rádio, da televisão e dos outros mass media
não faz mais, e m suma, do que restabelecer esta coexistência ou, mais
exactamente, torná-la evidente. Pode opor-se ao livro: compete-nos a
nós provocar a colaboração do livro c o m os outros mass media. N u m
m u n d o dominado pela imagem, não temos interesse e m apresentar o
livro c o m o u m a realidade distinta dos outros «lazeres», enquanto somos
cada vez mais induzidos a compreender que a cultura é u m todo.
Multiplicar os esforços para a «defesa do livro» (jornada, semana ou
ano do livro, associação para defesa do livro para a juventude, etc.),
é admitir implicitamente que o livro é «culpável» ou que, e m todo o
caso, está condenado.

215
Marc Soriano

É muito mais útil estudar cientificamente as causas que afastam do


livro os leitores potenciais (preços demasiado elevados, insuficiência da
rede de bibliotecas, pedagogia da aprendizagem da leitura, etc.). Seria
também extremamente rentável criar sistematicamente u m reportório
destinado a toda a primeira infância e à idade da pré-leitura e, para tal,
estudar os centros de interesse e as elaborações psíquicas destes grupos
etários fundamentais, por exemplo, como se elabora aquilo que Lacan
designa por «ordem do simbólico» e c o m o evolui o que Winnicot chama
«objecto transicional», pedaço de tecido ou peça de roupa impregnada
de odor da m ã e e que acompanha a criança nos «rituais» do adorme-
cimento, u m a vez que o livro parece ser, no estado actual dos nossos
conhecimentos, o sucessor desse «objecto».
Erro imperdoável seria limitar a inculca dos valores «humanistas»
à idade da leitura corrente e do livro propriamente dito. C o m efeito,
os principais preconceitos e flagelos ideológicos (racismo, antifemi-
nismo, belicismo, passividade, desprezo pelos direitos do outro) estão
já solidamente enraizados na consciência e sobretudo no inconsciente
da criança dos oito aos doze anos. O verdadeiro combate deve, pois,
travar-se ao nível dos grupos etários dos 2-3 anos, e 3-6 anos, isto é,
deve estabelecer-se por u m circuito oral, m i m a d o , representado, car-
regado de imagens, intervindo o texto unicamente para consolidar aqui-
sições anteriores.
Trata-se de pôr e m causa a noção tradicional de autor, evolução
que, na nossa época, se inicia na prática. Alguns sectores da literatura
para a juventude, singularmente a corrente enciclopédica, m a s tam-
b é m as ficções ligadas aos problemas da actualidade, substituem o
autor por u m a equipa redactorial que inclui o «criador», o ilustrador,
o autor do diálogo, das maquetas, etc., escolhidos, por vezes, pela sua
competência, m a s , na maior parte das vezes, de m o d o arbitrário ou
na perspectiva de simples rentabilidade. É necessário atribuir ao autor
o seu estatuto de criador (ou o contrário) e rodeá-lo de u m a equipa
redactorial que inclua sistematicamente os «beneficiários» e os peritos
e m matéria de educação, isto é, as crianças e os educadores.
A s seis orientações precedentes esforçam-se todas, mais ou menos,
por suscitar a participação dos interessados, m a s não é por desejo
de inovar a todo o custo n e m por pretenderem u m a m o d a que se impo-
nha, a dos jogos. Esta tendência que os mass media exploram de m a -
neira por vezes demagógica é, na verdade, bastante saudável. D e u m a
maneira ainda confusa e, por vezes, desadaptada, os homens, as mulhe-
res, as crianças exigem a palavra. Estimular esta criatividade do público
é a única atitude rentável, pois permite utilizar a única energia que,
neste c a m p o , é realmente eficaz, a dos interessados.
C o m o tivemos ocasião de observar, estas seis orientações p õ e m no
m e s m o plano criação individual e adaptação ou nova leitura de obras
antigas. O que não significa que se minimiza o papel dos escritores,
n e m que se pretende que a elaboração de novas obras não é desejável;
não devemos concluir que tudo deve ser recriado inteiramente; seria u m
trabalho gigantesco, capaz de desmoralizar os mais corajosos. U m a
obra verdadeiramente nova é sempre o fim de u m a tradição e, ao

216
O livro para crianças e os direitos do h o m e m

m e s m o tempo, o começo de outra. É também por esta razão que este


tipo de obra não pode e não deve ser conduzida «do exterior», m a s
surgir no momento exacto entre os peritos, os artistas e os educadores
que se ocupam habitualmente das crianças, o que não exclui, de m o d o
nenhum, as evoluções e as revoluções, u m a vez que as críticas mais
pertinentes contra a pedagogia provêm actualmente dos próprios
educadores.

A s orientações sugeridas, baseadas na criatividade e na emulação,


e também na reavaliação do património existente, são simultanea-
mente as menos despropositadas, pois estão ligadas de perto aos dados
mais recentes das ciências humanas e as mais fáceis de aplicar. É ver-
dade que exigem que sejam revistas muitas estereotipias e precon-
ceitos, o que pode demorar algum tempo.
A prova do tempo será, de resto, decisiva. Se esta reflexão estiver
correcta, as tendências analisadas não deixarão de se precisar, de se
reforçar e de impor soluções do m e s m o género.

217
Elementos para u m "dossier"

Fins e meios
de u m a educação contínua
A Unesco e o desenvolvimento
da educação dos adultos

Durante os últimos dez ou quinze anos, a edu- sociedades a um ritmo que se acelera constan-
cação dos adultos sofreu, num certo número temente, sem dedicar à educação dos adultos
de países, industrializados ou em desenvolvi- uma atenção profunda e contínua e sem a dotar
mento, um impulso considerável e notáveis dos recursos humanos e materiais necessários»
transformações que respondem a uma exigên- recomendou à UNESCO que pensasse na opor-
cia social e individual directamente ligada aos tunidade de empreender uma acção normativa
fenómenos económicos, tecnológicos, políticos respeitante ao desenvolvimento da educação
e culturais do nosso tempo. dos adultos. Como as opiniões expressas pela
Contudo, podemos considerar que, a des- Conferência de Tóquio foram partilhadas pelos
peito do reconhecimento formal da necessidade, órgãos de decisão da UNESCO, procedeu-se
ou até da urgência, de uma expansão substan- à elaboração de um projecto de recomenda-
cial da educação dos adultos, que constitui ção aos Estados membros, cujo texto deu ori-
uma das condições da aplicação efectiva do gem a uma ampla consulta e cuja versão final
conceito da educação permanente, a multipli- foi adoptada por unanimidade pela Conferência
cação das ocasiões oferecidas aos adultos para Geral durante a décima nona sessão realizada
se educarem, assim como a adaptação dos con- em Nairobi, em Outubro-Novembro de 1976.
teúdos e dos métodos utilizados às necessidades Esta recomendação constitui o primeiro ins-
e às aspirações dos adultos, e às particularida- trumento normativo internacional na matéria
des da sua aprendizagem, continuam, em nume- e a sua importância não deve, portanto, ser
rosos casos, a encontrar dificuldades tanto a subestimada. Não se trata, na ocorrência, de
nível dos que tomam as decisões como ao dos uma declaração solene, mas de um conjunto
potenciais «aprendizes». de disposições cuja aplicação é proposta pelos
Embora as três conferências internacionais Estados membros da Organização aos governos
sobre a educação dos adultos convocadas pela respectivos.
UNESCO (Elseneur, I960; Montreal, 1949 De resto, no próprio corpo do instrumento
e Tóquio, 1972) tenham, todas elas, marcado a Conferência Geral recomenda aos Estados
uma etapa na evolução do pensamento no membros que actuem:
domínio em questão, a última destas assem- «... adoptando sob a forma de lei nacional
bleias, largamente representativa, tanto do ou outra, e de acordo com a prática constitu-
ponto de vista geográfico como cultural, depoiscional de cada Estado, medidas destinadas a
de ter recordado «que os países, seja qual for aplicar os princípios formulados na ... reco-
o estádio de evolução em que se encontrem, mendação;
não poderão atingir os objectivos de desenvol- ... levando a recomendação ao conhecimento
vimento pretendidos nem assumir as mutações tanto das autoridades, serviços ou organismos
de toda a natureza que intervêm em todas as responsáveis da educação dos adultos, como de

220
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

diversas organizações exercendo uma actividade cer todas as formas de desenvolvimento da


educativa em prol dos adultos, e de organiza- personalidade.
ções sindicais, associações, empresas e outras Os processos educativos em que estão empe-
partes interessadas; nhados, durante a vida, sob qualquer forma,
... apresentando, em data e sob forma a as crianças, os jovens e os adultos de qualquer
determinar, relatórios respeitantes à conti- idade, devem ser considerados como um todo.»
nuação dada por eles à ... recomendação.» A recomendação compreende ainda nove
Apresentamos, em seguida, o texto integral capítulos sobre os objectivos e a estratégia;
das definições da educação dos adultos e da o conteúdo da educação dos adultos; a forma-
educação permanente tais como figuram no ção e o estatuto das pessoas que intervêm em
capítulo I da recomendação: matéria de educação dos adultos; as relações
«A expressão 'educação dos adultos' designa entre a educação dos adultos e a educação dos
o conjunto dos processos organizados da edu- jovens; as relações entre a educação dos adultos
cação, independentemente do conteúdo, do e o trabalho; a gestão, a administração, a
nivel e do método, quer sejam formais ou não coordenação e o financiamento da educação
dos adultos; a cooperação internacional.
formais, quer prolonguem ou substituam a edu-
cação inicial dispensada nos estabelecimentos Afim de facilitar a aplicação desta recomen-
escolares e universitários e sob forma de apren- dação, o programa da UNESCO para 1977-
dizagem profissional, graças aos quais pessoas -1978 prevê que «... seja concedido auxílio às
consideradas adultas pela sociedade de que autoridades e instituições nacionais, em espe-
fazem parte, desenvolvem as suas aptidões, cial às dos países em desenvolvimento, que quei-
enriquecem os seus conhecimentos, melhoram ram documentarse e proceder a consultas,
as suas qualificações técnicas ou profissionais estudos e investigações destinados a aplicar,
ou dão-lhes uma nova orientação e evoluem as nas condições particulares que lhes são pró-
prias, as disposições da recomendação citada».
suas atitudes ou o seu comportamento na dupla
O Secretariado da UNESCO prestará igual-
perspectiva de um desenvolvimento integral do
mente auxílio ... «às organizações não gover-
homem e de participação num desenvolvimento namentais nacionais ou internacionais que,
socioeconómico e cultural equilibrado e inde- nos seus domínios de competência respectivos,
pendente. se proponham estudar os meios de traduzir,
A educação dos adultos não pode, porém, de facto, certas disposições desta mesma
ser considerada unicamente em si própria; recomendação ou de precisar a maneira como
trata-se de um subconjunto integrado num se poderia aplicar a um grupo determinado da
projecto global de educação permanente. população adulta».
A expressão 'educação permanente' designa, Para sublinhar o alcance do instrumento nor-
por seu lado, um projecto global tendente a mativo internacional que acaba de ser adoptado,
reestruturar o sistema educativo existente e apareceu útil à redacção apresentar aos leitores
desenvolver todas as possibilidades formativas as grandes linhas da análise efectuada pelo
para além do sistema educativo. Secretariado da UNESCO da acção realizada
desde 1949, dos desenvolvimentos, e até per-
Nesse projecto, o homem é agente da sua
turbações surgidas desde então e do que falta
própria educação pela interacção permanente
empreender com o fim de assegurar à educação
entre as suas acções e a sua reflexão. dos adultos o estatuto e os recursos que tantas
A educação, em vez de se limitar ao período vezes lhe são ainda regateados, bem como o
de escolaridade, deve alargar-se às dimensões justo lugar que deve ocupar a partir de agora
da existência vivida, estender-se a todas as num sistema educativo moderno em que o
competências e a todos os domínios do saber, ensino formal e a educação dos adultos — espe-
poder adquirirse por diversos meios e favore- cíficos mas complementares— deverão inte-

221
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

grar-se na noção mais ampla e indefinidamente reunião muito mais representativa no plano
aberta que é a educação permanente1. mundial. Fizeram-se representar cinquenta e
u m países e quarenta e seis organizações inter-
nacionais enviaram observadores. O tema foi:
História « A educação dos adultos n u m m u n d o e m
transformação». Tinha-se tornado evidente
O s Estados fundadores da U N E S C O decla- que a vida iria passar a ser u m a longa e
raram no Acto constitutivo que « u m a vez constante adaptação a u m contexto material
que a dignidade do h o m e m exige a difusão da e social e m rápida evolução; o domínio desta
cultura e a educação de todos tendo e m vista a evolução afirmava-se, então, c o m o u m ele-
justiça, a liberdade e a paz, existem, para mento essencial da política de toda a nação
todas as nações, deveres sagrados a cumprir desejosa de se adaptar às transformações e
n u m espírito de assistência mútua». A edu- de melhorar a qualidade de vida. Retomando
cação dos adultos entra, pois, desde a sua ori- os termos d o relatório final, «a educação
g e m , nas responsabilidades da U N E S C O . (dos adultos) deverá, pois, ser reconhecida
Três conferências internacionais sobre a edu- por todos os povos c o m o u m elemento nor-
cação dos adultos marcaram etapas decisivas mal, por todos os governos c o m o u m ele-
na evolução das concepções relativas aos seus mento necessário do sistema de ensino de
fins e aplicações. qualquer país».
A segunda guerra mundial e as suas seque- Entre as propostas de estratégia constru-
las dominavam ainda todas as preocupações tiva, distinguimos a ajuda dos países ricos aos
e mais de metade dos vinte e cinco países par- mais pobres, a prioridade dada à alfabetização,
ticipantes na Conferência de Elseneur (1949) o acesso das mulheres a todos os tipos de
eram da Europa Ocidental. Esta conferência educação, a preparação para a participação
exprimiu a ideia de que a educação dos adul- cívica, a valoiização da acção das organiza-
tos deveria deixar de ser « u m empreendimento ções voluntárias, a formação sistemática dos
marginal ao serviço dos interesses pessoais professores de todos os níveis para a prática
de u m a minoria relativa»; c o m u m objectivo da educação dos adultos, a definição progres-
de reconstrução, a população de muitos países siva da profissão de educador de adultos e a
tinha necessidade de u m a educação compen- extensão das atribuições das escolas e das
sadora; manifestou-se, durante os debates, universidades à educação dos adultos. Assis-
u m a enorme necessidade de justiça social e timos essencialmente à afirmação da tese
de compreensão internacional; os debates segundo a qual a educação dos adultos deve
dedicaram pouca importância às ideias rela- ser considerada como parte integrante do
tivas à formação técnica ou profissional e aos conjunto do sistema de educação.
programas de alfabetização; m a s a educação A evolução, desde Montreal, tende a reco-
dos adultos passou a ter c o m o tarefa «satis- nhecer c o m o principal vocação da educação
fazer as necessidades e as aspirações do adulto dos adultos ajudar a compreender, dominar e,
na sua diversidade». se possível, orientar a transformação.
Graças ao impulso desta conferência, a
cooperação internacional adquiriu u m a exten-
são sem precedentes; organizaram-se muitas
reuniões regionais, assim c o m o programas 1. A s contribuições de Lucille Mair, Yusuf O . Kas-
sam, V . S. Mathur e Hilary Perraton, que leremos
experimentais, e m particular programas de mais adiante, foram primeiramente apresentadas
educação de base. A s organizações voluntá- na Conferência sobre a educação dos adultos e o
rias tomaram consciência do seu papel e desen- desenvolvimento organizado pelo Conselho Inter-
volveram a sua acção sobre o plano interna- nacional para a educação dos adultos e m cola-
boração c o m as autoridades tanzanianas (Dar es
cional. Salaam, 21-26 de Junho de 1976). Publicamo-las
A Conferência de Montreal (1960) foi u m a com a amável autorização dos organizadores.

222
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

Centenas de milhões de homens libertaram- Paralelamente, o aparecimento e o desen-


-se do sistema colonial e obtiveram a inde- volvimento do conceito de educação perma-
pendência; para eles, pôs-se, c o m u m a acui- nente conduzem, incluindo a educação dos
dade e u m a urgência sempre crescentes, o pro- adultos nos objectivos de planos nacionais de
blema da alfabetização, do desenvolvimento desenvolvimento, à procura de u m a coerência
rural, da formação dos quadros de todas as c o m a educação escolar. Sob este aspecto, a
ordens. Era inevitável que a sua tendência educação dos adultos não surge unicamente
principal consistisse e m reproduzir os m o - c o m o u m substituto do ensino escolar, m a s
delos escolares herdados da época colonial; c o m o u m elemento intrínseco de todo o sis-
no entanto, vimos surgir progressivamente tema educativo e que, sob diversas formas, se
acções reconhecendo a importância do aspecto destina a todos, obrigando, na fase inicial
funcional da educação dos adultos. Esta orien- da educação, a u m a preparação para aquisi-
tação beneficiou, e m 1965, e m Teerão, n o ções ulteriores de conhecimentos, habilidades
Congresso Mundial dos Ministros da Educa- e comportamentos, e a ser concebida nesta
ção sobre a eliminação do analfabetismo, de perspectiva. A s universidades criam departa-
u m impulso vigoroso. mentos especializados tanto na prática da
Embora a alfabetização funcional tenha educação dos adultos e formação do pessoal
sofrido críticas na medida e m que se lhe atri- de que necessita, c o m o nas investigações que
buía a intenção de se subordinar o adulto c o m elas se relacionam. A s organizações de
aos mecanismos económicos e à produção, educação popular, os sindicatos, os movi-
desprezando o elemento de participação e de mentos de juventude, os movimentos femi-
empenhamento social e cultural, a tendência ninos, na sua diversidade e autonomia, mul-
para orientar a alfabetização e m particular, tiplicam as acções não só no plano nacional
e a educação dos adultos e m geral, de m o d o a c o m o internacional. O s meios audiovisuais,
responderem às necessidades do desenvolvi- a imprensa, a televisão e sobretudo a rádio
mento económico, favorecendo o progresso tornam-se meios de cultura e de formação.
social, a participação na vida colectiva, b e m Organizam-se intercâmbios internacionais de
c o m o a transformação da sociedade e o ideias e experiências.
desenvolvimento da cultura, afirma-se cada Porém, nas vésperas da Conferência de
vez mais. Tóquio, somos ainda obrigados a verificar que,
Ninguém duvida, n e m nos países indus- apesar da generalização das intervenções
tralizados, n e m nos países e m desenvolvi- governamentais, a participação continua a
mento, da existência de u m a relação íntima ser modesta, submetida às flutuações orça-
entre o progresso social e económico e o nível mentais, por assim dizer, marginal. C o m raras
de instrução; torna-se evidente que u m a par- excepções, das quais algumas são notáveis,
ticipação mais intensa n o movimento dos nos países e m desenvolvimento, os esforços
conhecimentos, u m esforço mais sistemático realizados continuaram a destinar-se essen-
para unir a teoria à prática facilitam a solução cialmente a u m a élite já privilegiada pelo sis-
dos problemas provocados pela mutação tema escolar: finalmente, raros são os países
rápida dos modos de produção, o desemprego e m que foi possível estabelecer u m a política
e a migração da mão-de-obra; assim, assisti- estruturada, coerente e interdepartamental de
m o s à organização de formações durante o promoção da educação dos adultos.
emprego, ao desenvolvimento dos cursos noc- A Conferência de Tóquio 1 (1972) benefi-
turnos, do ensino por correspondência, das ciou da participação de noventa e dois Estados
legislações sobre o número de horas de que os membros, de três Estados não membros, de
trabalhadores poderão dispor durante o tempo cinco organizações intergovernamentais e de
de trabalho c o m ofimde obter u m a formação.
A educação dos adultos começa, pois, a
1. Ver o dossier de Perspectives, vol. II, n.° 3, 1972,
tornar-se u m a realidade. p. 350-393 ( N D L R ) .

223
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

trinta e sete organizações internacionais não as funções sociais e m que tem o direito de
governamentais intervir, de desenvolver todos os talentos que
Os debates que tiveram lugar na Conferên- recebeu da natureza, e de, assim, estabelecer
cia de Tóquio salientaram que a educação entre os cidadãos u m a igualdade de facto e
dos adultos podia ser considerada c o m o : tornar real a igualdade política reconhecida
U m instrumento de tomada de consciência, pela lei: deve ser este o principal objectivo
de socialização e de transformação social; de u m a instrução nacional; e, sob este ponto
ela tende a criar u m a sociedade consciente de vista, ela é, para o poder público, u m dever
dos valores de solidariedade; é mobilizadora, de justiça»1.
todos os homens p o d e m e devem auto-edu- M a s , precisamente porque se destina a adul-
car-se e educar os outros; tos que se encontram perante os grandes pro-
U m instrumento de desenvolvimento do blemas do m u n d o e m que vivem, a edução dos
h o m e m total, considerado na globalidade das adultos, mais do que qualquer outro empreen-
suas funções de trabalho, de lazer, de vida dimento educativo, deve ser concebida c o m o
cívica, de vida familiar; ele tende para o aper- u m a contribuição para a compreensão e solu-
feiçoamento das qualidades físicas, morais e ção destes problemas.
intelectuais; E m primeiro lugar, o da mundialização do
U m instrumento de preparação para a nosso destino. É errado pensar que as distân-
actividade produtiva e para a preparação na cias serão abolidas devido unicamente ao
gestão da empresa; desenvolvimento dos meios de transporte e
U m instrumento de luta contra as aliena- de comunicação. Além disso, o internacio-
ções económicas e culturais e elaboração de nalismo das aspirações e dos valores a que
u m a cultura nacional libertadora e autêntica. acedem certos grupos e colectividades, não
A Conferência de Tóquio, dispondo das impede que se aprofunde, segundo a lógica do
conclusões das conferências intergoverna- sistema actual das relações internacionais, o
mentais sobre as políticas culturais (Veneza, fosso económico e cultural que separa os paí-
1970; Helsínquia, 1972), considerou também ses pobres dos países ricos. E necessário que a
que a educação dos adultos abrangia simul- compreensão e a aceitação da diversidade dos
taneamente a educação permanente e o costumes e das culturas se tornem acessíveis
desenvolvimento cultural e que contribuía ao maior número de pessoas e conduzam,
para as transformar nos dois aspectos indivisí- tanto quanto possível, a u m a solidariedade
veis de u m m e s m o processo. activa a favor dos mais desprovidos.
A educação dos adultos é muitas vezes evo-
cada e m relação c o m a utilização dos tempos
livres. Ora, o problema dos tempos livres
Objectivos e estratégia apresenta-se hoje e m dia tanto aos países
industrializados c o m o aos países e m desen-
O s objectivos que parece desejável e possível volvimento. Para estes, trata-se muitas vezes
atribuir à educação dos adultos não diferem de tempos livres forçados, devido ao subem-
profundamente daqueles c o m que todo o prego. N o s países industrializados, os tempos
empreendimento educativo digno deste n o m e livres desenvolveram-se c o m o u m a realidade
se deveria ocupar. e c o m o u m a necessidade. A necessidade de
Assim, os objectivos consignados por C o n -
dorcet à instrução poderiam também tê-lo
sido à educação dos adultos: «Proporcionar
a todos os indivíduos da espécie h u m a n a os 1. A . C . C O N D O R C E T , Rapport et projet de décret sur
meios de poder satisfazer as suas necessidades Vorganisation générale de l'instruction publique,
apresentados à Assembleia Nacional, e m n o m e do
de assegurar a todos eles a facilidade de aper- Comité de Instrução Pública, a 20 e 21 de Abril
feiçar a sua indústria, de se tornar apto para de 1972.

224
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

tempos livres é expressa por algumas pessoas ciação dos adultos e m formação à determi-
c o m o u m a necessidade de evasão da vida nação dos objectivos e dos conteúdos das
«activa» e por outras como u m a necessidade acções e m que são chamados a participar, de
de encontrar, para além do trabalho e das u m elemento essencial de toda a estratégia
diversas obrigações, a possibilidade de se da educação dos adultos.
exprimir mais livremente. Porém, a concen- M a s , existe u m a estratégia única, ou há
tração do tempo de lazer (fins de semana, lugar para variantes? N ã o podemos certa-
férias pagas...) cria u m a superpopulação nas mente abstrair-nos do nível e do tipo de desen-
zonas próprias para os tempos livres. Muitas volvimento, das particularidades próprias dos
formas de lazer alimentam ou favorecem a diversos grupos que constituem as sociedades,
passividade dos indivíduos e a exploração n e m da importância e dos resultados dos sis-
comercial sistemática dos tempos livres con- temas educativos.
traria muitas vezes os objectivos da edu-
A natureza e a intensidade dos problemas
cação.
cuja compreensão e solução a educação dos
Trata-se de atribuir a sua verdadeira dimen- adultos deve procurar facilitar variam, de
são aos tempos livres: período privilegiado facto, profundamente quando se trata de u m
para fazer a experiência da autonomia, para país de desenvolvimento industrial avançado,
dar livre curso às intuições criadoras, para de u m a sociedade e m vias de industrialização,
exprimir outras solidariedades, além das que ou de u m a sociedade rural tradicional. Além
se enraízam no meio do trabalho. disso, as sociedades industriais não apresen-
M a s existem duas características do m u n d o tam fisionomias homogéneas: na maior parte
contemporâneo que atribuem à educação dos dos casos coabitam técnicas de produção que
adultos funções de u m a importância singular: vão desde a produção rural tradicional à elec-
e m primeiro lugar, a explosão dos conheci- trónica, passando pelo artesanato e a produ-
mentos, a evolução rápida das ciências e a ção e m cadeia. A cada situação correspondem
transformação acelerada das técnicas, e tam- necessidades e hierarquias de urgências dife-
b é m dos valores, obrigam permanentemente os rentes, que a educação do adultos deve esfor-
indivíduos não só a renovar os seus conhe- çar-se por acompanhar tão intimamente
cimentos, c o m o a considerá-los provisórios e quanto possível.
transformável o m u n d o que os rodeia; por
outro lado, ao m e s m o tempo que vive n u m Se tivermos e m conta os elementos que aca-
universo cada vez mais mundializado e glo- b e m de ser expostos, é evidente que não existe
bal, o indivíduo sente-se cada vez mais frag- u m a , m a s várias estratégias de educação de
mentado pela dispersão das suas responsabi- adultos.
idades e das suas diversas tarefas, pelas con- Sob este ponto de vista, seria inútil opor
tradições que comportam, pelo isolamento e m u m a estratégia dando prioridade às preocupa-
que o encerram a divisão estanque entre os ções económicas a u m a estratégia baseada
grupos, a falta de tempo, a incapacidade de e m preocupações culturais. É evidente que,
ter u m a visão de conjunto dos acontecimentos. seja qual for o contexto e m que seja obrigada
À educação dos adultos cabe a tarefa de os a desenvolver-se, a educação dos adultos,
ajudar a compensar e a superar estas limita- deveria fixar c o m o objectivo principal suscitar
ções, e a realizar a unidade da sua própria nos adultos, aspirações, atitudes e comporta-
personalidade. mentos independentes, que lhe permitam c o m -
À luz destes raros exemplos, é evidente que, preender e dominar a transformação e parti-
se pretendemos transformar a educação dos cipar no desenvolvimento e na mutação da
adultos n u m instrumento de solução para os sociedade. T a m b é m é evidente que este objec-
problemas colectivos, é necessário que toda tivo não pode adaptar-se a estruturas educa-
a sociedade aceite empenhar-se no processo tivas desligadas da vida, n e m a conteúdos
educativo. Trata-se, juntamente c o m a asso- estreitamente especializados.

225
vn-5
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

Estruturas ceiros enfrentados pelos diferentes interve-


nientes. Trata-se de formar gestores, forma-
É necessário que a educação dos adultos seja dores e formadores de formadores, e de desen-
dotada de estruturas maleáveis e descentra- volver a produção de material pedagógico.
lizadas, m a s coordenadas e b e m integradas T a m b é m é necessário proceder à planificação
no sistema educativo no seu conjunto. e à avaliação das acções empreendidas, reu-
Para tal, é conveniente recorrer, tanto nir documentação, coleccionar dados esta-
quanto possível, a todos os organismos e ins- tísticos, criar serviços de informação e de
tituições capazes de contribuir para o esforço orientação educativas destinados aos adultos,
de educação dos adultos: e m particular, as redes de contacto destinadas aos formadores
escolas e as universidades, os movimentos de e organismos interessados.
educação popular, os organismos sindicais, A acção educativa desenvolvida e m prol
cooperativos, femininos, religiosos, culturais dos adultos pelos organismos não governa-
e desportivos, as organizações de juventude mentais, e e m particular pelas associações e
e de divulgação científica, os meios de infor- agrupamentos voluntários, deveria ser favo-
mação de massa, as bibliotecas e museus, as recida e beneficiar de u m apoio sistemático
empresas e todas as pessoas competentes ou do Estado. C o m o fim de clarificar as obriga-
capazes de o vir a ser. ções respectivas dos diferentes parceiros, este
O contributo destes diversos intervenientes apoio poderia assumir a forma de u m a ajuda
pode traduzir-se pela organização e a apli- técnica e/ou financeira, e ser concedida por
cação de programas; pode consistir, de m a - meio de acordo ou convenção. M a s é essen-
neira mais limitada, e m fornecer educadores cial que os organismos que beneficiam de u m
ou animadores, material, conselhos de método apoio do Estado possam conservar a autono-
ou ainda locais e equipamentos. mia de que necessitam para levar a b o m termo
Quanto mais numerosos e variados forem a sua tarefa educativa. E m n e n h u m caso deverá
os intervenientes, mais se fará sentir a neces- ser posta e m causa a sua liberdade de opinião.
sidade de criar, a diversos níveis, estruturas N a maior parte dos países a escola pode
de concentração reunindo os representantes desempenhar, na expansão e na educação dos
das autoridades públicas e dos organismos e adultos, u m papel considerável. M a s este papel
instituições abrangidas pela educação dos passa pela abertura dos estabelecimentos esco-
adultos. Essas estruturas poderiam ser cha- lares para os problemas concretos da c o m u -
madas a assegurar a concertação e a indis- nidade e seu empenhamento na solução des-
pensável harmonização nos planos conceptual tes, pelo estabelecimento de contactos direc-
e operacional, assim c o m o a suscitar novas tos e regulares c o m as populações adultas e
actividades, e m particular as que se apresen- pela preparação dos professores para as parti-
tem c o m o necessárias a u m desenvolvimento cularidades das suas invenções nestes meios.
a longo termo dos programas de educação. O esforço a realizar pelos organismos de
A política de educação dos adultos não informação de massa, para que a sua vocação
pode, c o m efeito, limitar-se à mobilização dos para contribuir para a educação dos adultos
recursos educativos existentes, ou à criação, seja u m a realidade, não é fundamentalmente
e m função das necessidades sentidas c o m o diferente. N ã o se trata, para eles, de entrar
mais urgentes, de novas instituições encarre- e m contacto c o m o público, de procurar a sua
gadas de responder directamente a estas neces- participação, de renunciar a u m m o d o de
sidades. acção unilateral para que se instaure u m a
O desenvolvimento a longo termo da edu- dupla corrente de contacto entre emissor e
cação dos adultos pressupõe a realização de receptor.
u m certo número de investimentos. Trata-se, A fim de atingir este resultado, conviria
e m particular, de aprofundar os problemas certamente estabelecer entre os responsáveis
pedagógicos, sociológicos, económicos, finan- pelos mass media e m particular a rádio e a

226
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

televisão, e a educação dos adultos, mecanis- expressão características de cada pessoa e de


m o s de concertação apropriados. cada grupo, a partir das suas experiências de
vida e dos seus valores específicos.
D e u m m o d o geral, a recuperação e a rees-
Conteúdos truturação dos recursos e dos meios de que
dispõem, para se realizar e exprimir, os gru-
O s conteúdos da educação dos adultos deve- pos sociais desfavorecidos ou marginalizados
riam resultar directamente dos objectivos pros- deveriam ser considerados prioritários.
seguidos. Deveriam partilhar da sua diversi- Assim, apesar de u m a enorme multidão
dade. N e n h u m domínio parece, a priori, dever engrossar todos os anos a população urbana,
manter-se estranho à educação dos adultos. a grande maioria dos habitantes dos países
M a s o esforço deveria incontestavelmente e m desenvolvimento continua a viver e m
exercer-se onde as necessidades provocadas pequenas aldeias ou e m quintas isoladas;
pela mudança se revelam cada vez mais pre- alguns continuam a ser nómadas; assistimos
mentes, e deveria haver a preocupação essen- a u m empobrecimento constante da maior
cial de evitar toda a abordagem demasiado parte das zonas rurais, assim c o m o à sua des-
limitada; a transformação exige respostas truturação social e cultural. Trata-se de ajudar
rápidas, mas as interrogações que suscita são estas zonas a reencontrar u m equilíbrio, evi-
destinadas a renovar-se, e é necessário ultra- tando que tenham de enfrentar de m o d o d e m a -
passar as aparências. siado brutal o choque c o m o m u n d o moderno,
A formação deveria ter e m vista o apro- aproveitando o progresso técnico e social,
fundamento dos conhecimentos-utensílios, e de maneira que possam encontrar o domínio
não a acumulação de conhecimentos c o m pre- da sua transformação.
tensões enciclopédicas, deveria ainda assegu- Novas categorias de pessoas desfavorecidas
rar a manipulação mais facilitada e mais rigo- — pessoas inadaptadas socialmente, imigra-
rosa dos diversos métodos, instrumentos e dos, desempregados... — vieram progressi-
linguagens que permitem o desenvolvimento vamente juntar-se às categorias já existentes:
do sentido crítico e do espírito de análise e analfabetos, deficientes físicos e mentais.
de síntese. Importa estabelecer acções adaptadas às
A formação profissional deveria impedir necessidades de todos estes grupos.
as abordagens conjunturais restritas, procurar
a polivalência e abrir-se aos problemas res-
peitantes ao ambiente económico e social do Métodos
trabalho.
A formação socioeconómica-política deve- Sejam quais forem os conteúdos, o objectivo
ria preparar os cidadãos para u m a participa- final da educação dos adultos — o reconhe-
ção democrática na gestão, a todos os níveis, cimento, pelo adulto, c o m o apoio do meio,
dos assuntos sociais, e torná-los capazes de dos problemas que se lhe apresentam — deve-
desmascarar todas as práticas de doutrinação ria inspirar directamente os métodos aplicados.
e de propaganda. N a medida e m que os meios O objectivo prosseguido exclui toda a forma-
de comunicação de massa se apoderam cada ção cujos princípios, conteúdos ou métodos
vez mais da informação, os animadores deve- sejam impostos. O objectivo prosseguido
riam essencialmente procurar favorecer a exclui igualmente todo o método estereoti-
selecção, a abordagem crítica e, se necessário, pado, todo o método que organize a depen-
a correcção da informação. dência dos adultos e m formação, todo o m é -
A formação destinada ao desenvolvimento todo que introduza u m corte entre estes adul-
cultural não deveria limitar-se à difusão de u m tos e o seu meio, ou a sua vida quotidiana.
modelo constituído por certas categorias É necessário admitir que todo o adulto
sociais, m a s deveria favorecer as formas de e m formação possui u m a soma de experiên-

Z27
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

cias pessoais singulares, e se situa no cerne Outros problemas


de u m a rede de inter-relações que conferem
à sua situação u m carácter único.
Para além dos objectivos, das estruturas, dos
O problema da educação dos adultos con- conteúdos e dos métodos que contribuem para
siste essencialmente e m tornar educativas a definir, outros problemas respeitantes à edu-
estas experiências e esta situação. O que só cação dos adultos mereceriam ser objecto de
é possível proporcionando ao adulto os meios u m a regulamentação. Trata-se, e m particular,
de as aproveitar a título individual e colec- das relações entre educação dos adultos e
tivo. educação dos jovens; das relações entre edu-
Assim, é conveniente não desprezar, e m cação dos adultos e trabalho; da formação e
proveito de u m a única fase — a fase da apli- do estatuto das pessoas que intervêm e m m a -
cação — as outras fases igualmente funda- téria de educação de adultos; da cooperação
mentais que todo o programa de educação de internacional.
adultos deveria incluir, e, e m particular, as N o que respeita às relações entre educação
fases de definição dos objectivos e de ava- dos adultos e educação dos jovens, convém
liação da formação dispensada. salientar dois fenómenos complementares:
Entre as características de cada adulto e m por u m lado a influência que exerce a posse de
formação figuram a natureza e a importância u m a educação prévia sobre as possibilidades
das sujeições que pesam sobre ele. Assim, de acesso e de participação frutuosa na edu-
importa procurar e adoptar os meios mais cação dos adultos, por outro lado, as lições
apropriados para inserir a educação na vida que as formações iniciais poderiam retirar da
dos indivíduos, tendo e m conta o m o d o c o m o educação dos adultos e que militam a favor
partilham o tempo entre tempo livre e tempo de u m a reformulação e de u m a reordenação
de trabalho. E m vez de adaptar o indivíduo da educação dos jovens, tanto nas estruturas
aos horários de educação, são estes que devem c o m o nos métodos.
adaptar-se às necessidades do indivíduo. N o que diz respeito às relações entre edu-
Finalmente, deveria dedicar-se u m a espe- cação dos adultos e trabalho, é incontestável
cial atenção ao apoio pedagógico, assim c o m o que constituem apenas u m aspecto particular
aos equipamentos utilizados c o m o suporte dos problemas suscitados pelo desenvolvi-
das acções de educação dos adultos. O s adul- mento da educação dos adultos. M a s trata-se
tos deveriam, tanto quanto possível, estar de u m aspecto que se presta a u m a regula-
associados à escolha e, e m certos casos, à mentação, e sobre o qual se efectuaram já
elaboração do material pedagógico a utili- reflexões profundas n u m certo número de paí-
zar durante as acções e m que participam. ses, e também nas organizações internacionais.
N o que diz respeito aos equipamentos, con- Foi assim que a O I T adoptou, e m 1974, u m a
v é m utilizar, sempre que possível, as infra- convenção e u m a recomendação internacionais
-estruturas existentes no domínio educativo, sobre as férias de educação pagas. C o n v é m ,
científico, cultural, desportivo, social e dos portanto, enunciar os grandes princípios sus-
tempos livres. O emprego múltiplo dos equi- ceptíveis de guiar a política a aplicar neste
pamentos é u m factor de variação das activi- domínio.
dades realizadas, de libertação dos diversos N o que respeita ao pessoal, convém salien-
aspectos da vida, de luta contra a segregação tar que existe u m a qualificação de educador
entre grupos etários ou entre grupos sociais. de adultos, e que esta deve ser adquirida.
M a s a educação dos adultos adapta-se aos O problema do pessoal deve, portanto, ser
locais mais quotidianos; a oficina, o campo, posto e m termos de mobilização de recursos,
a via pública proporcionam, e m muitos casos, de preparação dos educadores de adultos
u m quadro tão satisfatório c o m o u m a sala para as responsabilidades que deverão assu-
de aula o u u m centro cultural. mir e de alternância entre estas responsabili-

228
A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

dades e outras actividades, profissionais ou u m a acção particular: o preço dos equipa-


não. mentos e do material educativo e, e m espe-
O s problemas de educação dos adultos são, cial, das técnicas e programas audiovisuais,
porém, suficientemente complexos para que constitui u m sério obstáculo à sua difusão:
seja progressivamente criado u m corpo de conviria, portanto, que a comunidade inter-
especialistas capazes de contribuir para a for- nacional unisse os seus esforços para encon-
mação dos formadores e para reflexões mais trar soluções racionais para este problema, e
fundamentais. Finalmente, a educação dos eliminar as regulamentações restritivas que
adultos não necessita apenas de educadores e estão na origem desta situação.
de animadores, m a s também de planificadores, Finalmente, interessa recordar que consti-
de administradores, de psicólogos, etc. tui tanto u m acto de justiça c o m o de b o m senso
N o que respeita à cooperação internacional, continuar a apoiar, de maneira eficaz, atra-
a sua utilidade no domínio da educação dos vés de acções desenvolvidas tanto no plano
adultos não carece de confirmação. Assim, bilateral c o m o por intermédio de organismos
conviria reforçar esta cooperação, e m espe- internacionais, os esforços educativos a favor
cial através de u m a consulta sobre problemas dos adultos, empreendidos pelos países e m
específicos de interesse c o m u m , fazendo bene- desenvolvimento e e m particular, por aqueles
ficiar os países que assim o desejarem do con- cuja proporção de adultos iletrados é mais ele-
tributo de competências externas, tendo e m vada. Importa, porém, que a assistência
vista a mobilização dos recursos humanos e externa não assuma a forma de u m a simples
materiais destinados à educação dos adultos, transferência das estruturas, programas, m é -
criando ou desenvolvendo as actividades dos todos e técnicas próprias dos provedores de
centros e serviços próprios à sua inserção assistência; a assistência externa consiste e m
n u m sistema internacional de documentação, suscitar e estimular o desenvolvimento endó-
de recolha e de tratamento de dados compa- geno nos países interessados pela criação de
ráveis, e apoiando a acção desenvolvida pelas instituições apropriadas e de estruturas coe-
associações regionais e internacionais que se rentes adaptadas às condições particulares
ocupam da educação dos adultos. destes países, assim c o m o pela formação de
M a s existe u m domínio e m que se exige pessoal especializado.

229
Lucille M a i r

A educação dos adultos,


as mulheres e o desenvolvimento

A concepção d o desenvolvimento internacio- actualmente, que os privilegiados d o planeta


nal que estava e m curso desde ofimda segunda conheçam melhor as condições de existência
guerra mundial revelou-se impraticável n o dos deserdados d o que as conheciam n o pas-
m u n d o e m plena mutação dos anos setenta. sado, ainda há vinte anos. A recíproca tam-
C o m efeito, esta concepção salientava b é m é verdadeira.
explicitamente a noção de crescimento eco- É , portanto, c o m o conhecimento de todos
nómico baseada na experiência das nações que a diferença entre os níveis de vida dos
industrializadas n a economia de mercado. povos se acentua perigosamente de região para
O tipo de desenvolvimento e a estratégia região. Possuindo provas concretas da incrí-
adoptados por estes países pareciam ter sido vel existência vivida pela grande maioria dos
salutares e, na opinião dos promotores d o ï homens e das mulheres nos três continentes
e do n Decénios do desenvolvimento, o m e s m o do hemisfério Sul, apesar dos dois decénios de
caminho deveria poder conduzir os países «desenvolvimento», os responsáveis pela pla-
não industrializados ao sucesso. nificação nacional e internacional esforçam-se
D e resto, durante os dois últimos decénios, actualmente por modificar a orientação a fim
certas regiões «subdesenvolvidas» da Ásia, de que o ser h u m a n o se torne o verdadeiro
de África, da América Latina e das Caraíbas objectivo do desenvolvimento e se mantenha
registaram efectivamente, n o domínio econó- n o cerne de todas as novas formulações e d o
mico, progressos cuja medida nos é dada por conjunto das estratégias reexaminadas.
certos índices tais c o m o o rendimento por M a s , não é fácil realizar esta tarefa : de facto,
habitante, o rendimento nacional, a produção não p o d e m o s estar certos de que, nos domínios
industrial e outros ainda; estes critérios estão essenciais e m que se estabelecem decisões, o
de acordo c o m os princípios estabelecidos n o desejo de desenvolvimento esteja à altura da
quadro das estratégias internacionais d o miséria h u m a n a . A este respeito, os proces-
desenvolvimento. sos que se desenvolvem n o seio da Organi-
Raros são, n o entanto, os que clarificam de zação das Nações Unidas são significativos.
u m m o d o válido, a situação das camadas A necessidade de dispor rapidamente dos
mais numerosas da população d o globo: modelos de desenvolvimento que permitam
a sua extrema miséria é, n o entanto, b e m responder efectivamente às aspirações funda-
conhecida e está b e m patente. O s grandes mentais dos h o m e n s e das mulheres mostra-
meios de informação permitem, n a verdade, -nos que se torna cada vez mais urgente a
instauração de u m a nova ordem económica
mundial definida e m diversas assembleias e
Lucille Mair (Jamaica). Representante permanente órgãos das Nações Unidas. A comunidade
da Jamaica junto das Nações Unidas, Nova Iorque. internacional mobiliza, actualmente, muitas

230
A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

energias e competencias para negociar o seu da sua sociedade e da sua economia. Perante
estabelecimento através de u m a rede de orga- o resultado duvidoso da quarta e recente
nismos regionais e internacionais fazendo ou C N U C E D 1 , deveríamos marcar u m a pausa
não parte do sistema das Nações Unidas. e interrogarmo-nos sobre o facto da tomada
M a s a crise mundial actual está tão inextri- de consciência da dimensão humana do desen-
cavelmente ligada à crise da energia e a volvimento ser ou não suficiente para se tra-
outros fenómenos monetários e económicos duzir por decisões políticas.
particulares —recessão, inflação, desequilí- À medida que a dimensão h u m a n a da pla-
brios comerciais •— que estes problemas pas- nificação do desenvolvimento assume mais
saram para primeiro plano e que as negocia- importância, sucede o m e s m o c o m a dimensão
ções internacionais que se realizam e m Paris, política. N a verdade, a qualidade da vida deter-
Nairobi, N o v a Iorque e outros locais se debru- mina os objectivos, m a s é o processo político
çam essencialmente sobre os produtos de base, que define os meios e regula o ritmo do desen-
as barreiras comerciais, a dívida internacio- volvimento. Haverá sempre ocasião para efec-
nal, a indexação, as flutuações dos preços e tuar, de maneira explícita, opções políticas,
a transferência das técnicas, problemas cujas quer se trate de descobrir ou de adquirir os
incidências sobre u m a organização do m u n d o recursos necessários.
são fundamentais, devendo esta reorganização E , nesta fase, a crise confunde-se c o m u m
permitir a descoberta de novos recursos de problema de soberania.
desenvolvimento. N o entanto, é perfeitamente Este problema põe-se simultaneamente no
admissível que estas instâncias, cujos centros plano nacional e internacional. Diz respeito
de interesse são inevitavelmente de ordem a todos os membros da comunidade interna-
comercial e financeira, percam de vista as cional, incluindo aqueles cuja soberania se
pessoas abrangidas pelas questões económicas exerceu no passado muito para além das suas
e m discussão. A s decisões económicas e téc- fronteiras e aqueles que acabam de a adquirir.
nicas tomadas transformá-las-ão e m vítimas A maior parte dos recursos necessários ao
ou beneficiários, conforme sejam, ou não, desenvolvimento está ainda nas m ã o s daque-
ditadas por preocupações de ordem humana. les que n e m sempre sabem apreender a exten-
O verdadeiro significado destas negociações são das necessidades do m u n d o relativamente
é, na verdade, a existência presente e futura pouco desenvolvido. Estes recursos estão
de milhões de homens, mulheres e crianças igualmente na posse, de m o d o inquietante,
do m u n d o e m desenvolvimento. daqueles que ainda têm interesse na conser-
E tudo leva a crer actualmente que nos vação do subdesenvolvimento. A libertação
encontramos e m presença de u m a verdadeira destes recursos é, porém, a condição sine
crise de sensibilidade. Ninguém ignora, por qua non do desenvolvimento.
exemplo, que a crise da energia abalou pro- Além disso, compete ainda às nações mais
fundamente a segurança política e económica atingidas pelo problema do desenvolvimento
habitual das democracias industriais ociden- — as que acabam de aceder à independência —
tais. Salientando de m o d o espectacular a assumir plenamente a sua soberania. A «sín-
interdependência que caracteriza o m u n d o drome de dependência», legado do colonia-
contemporâneo, esta crise teve igualmente o lismo, é o corolário do subdesenvolvimento
efeito de incitar certos países a libertarem-se e o inimigo da soberania.
das suas obrigações e m matéria de desenvolvi- É evidente que esta síndrome restringe a
mento internacional. O seu empenhamento, aptidão das nações e m desenvolvimento, c o m o
que sempre se tinha revelado imbuído de maior grupo de Estados independentes, para
certas reservas, parece actualmente recuar e, porem e m causa nos seus próprios funda-
no seio de algumas instâncias regionais e
internacionais, a sua preocupação máxima
1. Conferência das Nações Unidas sobre o comércio
parece consistir e m evitar u m novo abalo e o desenvolvimento.

231
Lucille Mair

mentos, o princípio da economia mundial ainda que certos países e m desenvolvimento


aberta que se esforçam actualmente por refor- enveredem resolutamente por esta via. R e -
mar, para exercerem a sua vontade soberana ceiam também que, ao fazê-lo, os países desen-
quando se trata de abordar, no plano nacio- volvidos se sintam libertos das suas obriga-
nal e internacional, o problema crucial da ções perante o m u n d o . Criar integralmente,
repartição dos recursos, e para conceber ou quase, instituições regionais e internacio-
estruturas inteiramente novas tendo e m vista nais capazes de mostrar que o Terceiro M u n d o
o desenvolvimento. A maior parte dos paí- começa a encontrar os seus próprios recursos
ses e m desenvolvimento têm ainda progres- constitui u m a tarefa árdua.
sos decisivos a realizar no domínio da abs- À escala nacional a dificuldade não é menor.
tracção. M a s , a este nível, é talvez mais fácil recen-
A história de muitos dos territórios da sear os meios de acção : u m a população sensi-
região das Caraíbas tornou-os estranhamente bilizada por u m a imagem positiva de si pró-
vulneráveis sob este aspecto. Foram criados, pria, e que a faz considerar-se simultanea-
na origem, pelos países capitalistas da Europa mente c o m o instrumento e beneficiária do
Ocidental e m busca de plantações no N o v o desenvolvimento, transmite o seu dinamismo
M u n d o e que organizaram a exploração na a mecanismos eficazes de modificação.
base da monocultura orientada para a expor-
O processo de sensibilização é u m a fun-
tação, c o m u m a mão-de-obra utilizada à força.
ção essencial do processo político que se tra-
A independência política adquirida pelas
duz pelo exercício do poder e das responsa-
antigas colónias britânicas nos últimos dez
bilidades, pela repartição dos recursos e pela
anos não serviu sequer para modificar, de
tomada de decisões. O poder político que
imediato, e de maneira sensível, a dependência
fornece o impulso necessário a esta sensibi-
e a orientação para o exterior que lhes eram
lização deve ser considerado por todos não
inerentes. Foi assim que, durante os anos
c o m o u m a força independente, mas c o m o u m
sessenta, fizeram objecto de u m a aplicação
impulso colectivo tendente à concretização
sistemática dos modelos ocidentais de desen-
das aspirações do h o m e m . É necessário ter
volvimento, e m matéria de industrialização
e m conta que a vontade política tem apenas
e de importação de capitais, por exemplo.
u m a justificação, e que esta é de ordem
Assistiram também ao aparecimento dos sinais
moral.
clássicos da incapacidade destes modelos para
melhorar a existência dos povos da região, O problema que se põe é o seguinte: que
atingindo o desemprego, e m particular, e m faz u m a sociedade para comunicar ao povo
1972, cerca de 25 por cento da população as competências, a confiança e o dinamismo
e m certos territórios. de que necessita para exercer os seus direitos
políticos, apoderar-se dos seus recursos e
Para eliminar estas tendências é manifesta-
transformá-los no interesse nacional?
mente indispensável romper c o m o passado.
Seria capital, por exemplo, começar por pro- A função da educação torna-se essencial,
ceder a u m a nova avaliação da agricultura, considerando o termo educação na sua acep-
que foi o sector mais desprezado dos anos ção mais ampla de processo educativo neces-
sessenta e cuja produção decresceu e m valor sariamente comprometido.
relativo e m toda a região das Caraíbas, e, É evidente que, antes do acesso do Terceiro
e m certos locais, e m valor absoluto. M u n d o à independência, o ensino nunca era
A procura de novos meios e objectivos deve neutro. Visava indubitavelmente, embora, por
apoiar-se na capacidade dos Estados sobera- vezes, de m o d o subtil, o apoio ao regime
nos se libertarem de acordos económicos inter- colonial. O s novos Estados independentes
nacionais e m vigor, construindo a sua economia herdaram, e m geral, estes objectivos, que acei-
na base de u m a autonomia colectiva. A sobre- taram c o m o complemento dos modelos de
vivência do complexo de dependência impede desenvolvimento económico e m utilização.

232
A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

A s incidências são múltiplas. A combina- fornecerão o impulso e o material necessá-


ção de u m a rede de estruturas educativas de rios à reconstrução nacional, remodelarão
tipo clássico e de instituições de comunicação as estruturas educativas a fim de edificar u m
e de informação de carácter formal e não sistema adaptado assente n u m afilosofiaper-
formal constitui aquilo que poderemos desig- tinente do desenvolvimento, através do qual
nar por «indústria do cérebro», u m dos mais serão, por sua vez, remodelados.
subtis empreendimentos supranacionais de A s formas institucionais devem, pois, faci-
infiltração que, por n e m sempre ser c o m - litar a função múltipla de cidadão, de cons-
preendido c o m o tal, é talvez ainda mais trutor, de produtor e de estudante que estes
influente. N ã o ignoramos a aptidão dessa homens e mulheres terão de desempenhar.
«sociedade de submissão» (de que os sistemas É essencial que esta reconstrução das ins-
escolares do Terceiro M u n d o são muitas tituições seja conduzida c o m a participação
vezes asfiliaislocais) para erigir e m verdade de todos. Todas as camadas da sociedade,
a contra-verdade. Contribuiu para reforçar incluindo as menos evoluídas, sabem c o m o
o neo-colonialismo, o elitismo, o individua- desejam organizar a sua existência. A sua
lismo económico e os desequilíbrios socio- percepção pode ser limitada pelo meio e
económicos que daí resultam, para não falar pelas possibilidades que lhes são oferecidas.
do efeito desgastante sobre as culturas autóc- Ignorar esta realidade poderia comprome-
tones. ter seriamente a obra de reconstrução,
Esta infra-estrutura educativa, tal c o m o os enquanto, por outro lado, tê-la e m conta e
modelos de desenvolvimento que nela se utilizá-la permitiria aumentar o volume dos
apoiam, deve ser alterada, u m a vez que o recursos utilizáveis no processo de aprendi-
seu carácter e a sua vocação essencialmente zagem.
políticos tenham sido revelados e plenamente Sob este aspecto, devemos tirar alguns ensi-
compreendidos. namentos do exame crítico que a U N E S C O
E o problema mais difícil de resolver nesta acaba de fazer do seu programa experimental
tarefa de reoganização da educação é, s e m mundial de alfabetização. Salienta-se da ava-
dúvida, o dos adultos já condicionados, total- liação mais recente efectuada pela Organização
mente ou e m parte, para a aceitação de certos sobre os progressos realizados no domínio do
valores e certas ideias sobre a competência e ensino dispensado a adultos jovens n u m certo
a não-competência que são muitas vezes ina- número de países e m desenvolvimento, que
daptadas, ou até disfuncionais. Desaprender as formas autoritárias de ensino apresentam
para reaprender é sempre u m processo c o m - resultados menos satisfatórios de que as que
plexo. reconhecem explicitamente a experiência e a
O que importa é a substituição pela pro- intuição dos adultos c o m o ponto de partida
cura do interesse c o m u m do direito incon- válida para a aquisição dos conhecimentos.
dicional do indivíduo agir no quadro de u m a O mito do conservantismo obstinado do
economia de mercado onde reine a lei do «povo», e m particular no campo, é profundo.
maior lucro. O individualismo económico é o Afirma-se, por vezes, que essas pessoas são
núcleo irredutível da doutrina liberal oci- reticentes a toda a inovação. M a s essa afir-
dental que se formou n u m a outra época, mação não tem e m conta que as massas mise-
n u m outro local, e cuja validade para u m ráveis, tanto no meio rural c o m o no meio
terço do m u n d o e m efervescência deve ser urbano, são cada vez mais sensíveis ao que é
seriamente posta e m causa. verdadeiramente a qualidade da vida, e que,
Esta contestação deve ter origem essencial- por conseguinte, estão cada vez mais dispos-
mente nessa massa de homens e mulheres tas a participar n u m a experiência que lhes
que têm à sua disposição, segundo as normas porporcione os meios de escapar à sua triste
ocidentais, poucas ou nenhumas realizações condição.
técnicas ou intelectuais, mas que, no entanto, Mais difícil de transpor do que o conser-

233
Lucille Mair

vantismo popular é, talvez, o obstáculo repre- dos anos sessenta e setenta dizem respeito às
sentado pelo imobilismo de urna burocracia mulheres: este facto basta, só por si, para
que deveria, pelo contrario, pensar nas suas justificar u m a reavaliação e u m a reorientação
relações c o m a população e as instituições destes modelos.
n u m a perspectiva evolutiva, admitir a priori- Todos sabemos que muitas hipóteses de
dade de u m a sobre as outras, adquirir a m a - base emitidas pelos peritos do desenvolvimento
leabilidade que permite o aparecimento de marcaram a sua posição no que respeita às
estruturas criadas pelas necessidades expli- mulheres, pois as estereotipias de ocupações
citas da comunidade e reconhecer o valor de femininas e m que se baseavam não tinham,
muitas estruturas endógenas que constituem muitas vezes, qualquer relação c o m a reali-
precisamente a finalidade de u m projecto dade. A tendência para subestimar a contri-
desse tipo. buição real das mulheres para a economia
O Terceiro M u n d o está cheio de formas nacional e m tão elevado número de países
culturais autênticas que são testemunho da conduziu ao menosprezo das suas possibi-
imaginação de que os povos são capazes para lidades de participação n u m a economia m o -
superar as dificuldades quotidianas nos domí- derna e, por conseguinte, poucos instrumen-
nios da organização religiosa, agrícola, finan- tos do desenvolvimento foram orientados
ceira ou doméstica. Preservar e favorecer o para elas. Este estado de coisas teve c o m o con-
pleno desenvolvimento dos valores e sistemas sequência, e m particular, o enfraquecimento
tradicionais não significa retrocesso, m a s , da tese optimista do «carácter inevitável do
pelo contrário, proceder de m o d o que as progresso» que tinha sido amplamente espa-
novas orientações do desenvolvimento sejam lhada entre os planificadores dos anos cin-
humanistas, racionais e verdadeiramente dinâ- quenta. Foi o contrário que sucedeu c o m as
micas, apoiando-se no fundamento sólido de mulheres, das quais a maior parte desempe-
u m a aquisição antiga e familiar para se lan- nha u m papel menos importante na economia
çar n o inédito e n o desconhecido. actual do que nos sistemas económicos ante-
Alguns factos fazem-nos já pensar que as riores ao desenvolvimento. N a realidade, os
mulheres reagem favoravelmente quando se projectos c o m u m forte coeficiente de capital,
encontram no seio de u m grupo no qual, que vieram reforçar os programas de auto-
para além de qualquer imposição e quadro -assistência da América Latina e outras
rígido, vivem a experiência de relações de regiões e m desenvolvimento fizeram cair e m
interacção e confrontação da sua experiên- desuso as actividades femininas tradicionais
cia c o m as necessidades futuras, o que lhes sem oferecer às mulheres outras alternativas.
permite ir ao encontro de soluções criadoras. O produto nacional bruto global de muitos
Esta verificação é importante na perspectiva destes países aumentou por vezes, é certo,
de toda a concepção alargada do desenvolvi- m a s c o m prejuízo para importantes secto-
mento. N a verdade, é impossível orientarmo- res da população, muito particularmente as
-nos para as políticas inovadoras indispensá- mulheres.
veis neste fim de século sem ter e m conta o Actualmente, alguns dos indicadores mais
que este processo exigirá das mulheres, que graves de subdesenvolvimento e m matéria
constituem a maior parte da população adulta de educação, saúde e possibilidades económi-
do m u n d o e m desenvolvimento e que foram cas, aplicam-se principalmente às mulheres
sempre mantidas à margem desse desenvolvi- do m u n d o e m desenvolvimento. A incrível
mento. extensão dos fenómenos de mortalidade e de
A sua condição constitui simultaneamente subnutrição infantil e m todo o Terceiro
u m a justificação e u m catalizador da trans- M u n d o diz-nos tanto sobre a condição das
formação, pois algumas das provas mais fla- mulheres c o m o sobre a das crianças muito
grantes da incapacidade dos modelos oci- novas. A s mulheres representam a maior
dentais para resolver os problemas humanos percentagem de analfabetos. A sua taxa de

2
34
A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

desemprego de 23 ou 25 por cento encobre a maior parte dos educadores de adultos são
u m número ainda mais alarmante, ou seja, mulheres.
u m nível de desemprego feminino superior a É , contudo, necessário demonstrá-lo mais
30 por cento, isto é, duas vezes mais elevado u m a vez. E , neste contexto, merecem ser
do que o do desemprego masculino. É ainda assinaladas manifestações recentes e signifi-
mais inquietante verificar que poucas estra- cativas do papel que as mulheres desempe-
tégias do desenvolvimento, à escala nacional n h a m na dinâmica do progresso nacional.
ou internacional, se aperceberam verdadei- N o s últimos vinte anos o m u n d o tem sido
ramente do que representa este problema testemunha da notável mobilização de impor-
especificamente feminino no fenómeno do tantes contingentes de mulheres para os movi-
subdesenvolvimento. Talvez seja exacto afir- mentos de libertação da África, da Ásia e da
m a r que este problema é compreendido no América Latina, e m particular do Vietnam,
plano teórico, m a s esta tomada de consciên- de Cuba, de Angola, de Moçambique e da
cia demora a traduzir-se e m factos. E falta Guiné-Bissau. Nestas guerras populares, e m
ainda integrar a condição feminina e m toda que ninguém pode ser civil, as mulheres, com-
a análise e avaliação das políticas do desen- preendendo perfeitamente quais as forças
volvimento. políticas que estavam e m jogo, assumiram
Até m e s m o a Organização das Nações funções estratégicas nos domínios da edu-
Unidas, que contribuiu, mais do que qual- cação, da comunicação e da informação e
quer outra, para revelar ao m u n d o a exten- participaram na luta activa; familiarizaram-se
são inquietante do subdesenvolvimento das rapidamente c o m algumas das novas técnicas
mulheres, só agora começa a tê-lo e m conta indispensáveis a u m a vitória do povo e trans-
de maneira explícita no exame das estratégias mitiram-nas à medida que as iam adqui-
internacionais do desenvolvimento. rindo. Além disso, tiveram ocasião de alargar
N o entanto, toda a concepção alargada os seus horizontes de mulheres. Vieram, assim,
do desenvolvimento e m que critérios qualita- reforçar os recursos disponíveis para esta
tivos venham substituir os critérios quantita- tarefa difícil m a s excitante que representam
tivos pressupõe, c o m o é evidente, que as não só a libertação c o m o a reconstrução
mulheres lhe estejam associadas. nacionais.
É manifesto que as mulheres podem par- A mobilização deste dinamismo que pos-
ticipar de m o d o activo no desenvolvimento, suem as mulheres no estado latente poderia
e m particular no domínio da educação dos abrir vastas possibilidades de acção, na pers-
adultos, e m que as mulheres representam pectiva de u m alargamento dos conceitos e
u m a forte proporção tanto dos professores objectivos do desenvolvimento e certamente
c o m o dos alunos — na região das Caraíbas também da educação dos adultos.

2
35
Yusuf O . Kassam

Escolar, extra-escolar
e justiça social

A natureza as classes operárias e desfavorecidas, etc.


do ensino escolar N ã o há dúvidas de que o ensino de tipo clás-
sico funciona c o m o u m instrumento muito
A maior parte das noções e das práticas elaborado que permite rejeitar a justiça social
dominantes do ensino, e m geral, e as formas e perpetuar as desigualdades n o seio da
institucionais deste ensino, e m particular, sociedade.
são objecto de críticas cada vez mais vivas Talvez seja conveniente fazer u m a breve
tanto nos países industrializados c o m o nos análise da natureza e da extensão das desi-
países e m desenvolvimento. O s ataques con- gualdades sociais que resultam d o ensino
tra o ensino de tipo clássico assumem várias escolar, afimde ver c o m o e e m que medida
dimensões: na opinião dos seus adversários, u m sistema de ensino de tipo não clássico,
a escola dispensa aos jovens conhecimentos aplicado paralelamente a transformações igua-
e m grande parte inúteis e inadaptados às litárias globais da sociedade, pode contribuir
necessidades; favorece o espírito de rivali- para assegurar a justiça social ou, por outras
dade e prejudica a cooperação: conduz mui- palavras, para remediar a diferenciação social
tas pessoas a pôr no m e s m o plano educação criada pelo ensino escolar.
e escolaridade; destrói o desejo de aprender Carnoy rejeita a interpretação «colonizada»
das crianças e aliena-as da sociedade; está e falaciosa do papel da escola, segundo a qual
isolada da comunidade; sufoca a criatividade «nas sociedades e m que reina a injustiça, a
e o desenvolvimento do espírito de curiosi- iniquidade e o marasmo económico, a escola
dade: impõe muitos exames, etc. Estas crí- forneceu e continua a fornecer ao indivíduo
ticas, cuja lista não está, de m o d o nenhum, e à colectividade o meio de se libertar». D e
completa, dizem essencialmente respeito aos acordo c o m esta interpretação, o ensino de
aspectos pedagógicos do ensino escolar. M a s , tipo clássico compensa as desigualdades e as
entre as críticas formuladas, as que são, de insuficiências sociais, colocando, por meio
longe, mais graves e mais importantes, refe- de u m a selecção objectiva, os indivíduos
rem-se aos papéis interdependentes que a inteligentes nos postos elevados da hierarquia
escola desempenha ao perpetuar u m a hierar- social, política e económica 1 .
quia de poder e de privilégio na sociedade, Para analisar o papel da escola c o m o dis-
mantendo a supremacia da élite dominante, tribuidor dos papéis sociais, é necessário
estimulando a estratificação das classes e compreender os factores que determinam o
impondo u m a discriminação que contraria acesso ao sistema hierárquico do ensino clás-
sico e que influem sobre os resultados e o
sucesso obtido e m seguida n o seio deste
Yusuf O. Kassam (República Unida de Tanzânia).
Professor; Departamento da educação dos adultos 1. Martin C A R N O Y , Education as cultural imperialism,
da Universidade de Dar es Salaam. p . 2 e 3, N e w York, David M c K a y C°, Inc.; 1974.

236
Escolar, extra-escolar e justiça social

m e s m o sistema. N o s países e m que o ensino escola. A medida das aptidões e da inteligên-


elementar é gratuito e aberto a todos toda a cia foi institucionalizada sob a forma de
gente tem as mesmas possibilidades de lhe exames que se apresentam ostensivamente
ter acesso. N o s outros países, assistimos ao c o m o fazendo parte do processo de democra-
aparecimento de u m a estrutura de dispari- tização e de justiça social. Ora, o conteúdo
dades b e m definida. E , quando passamos aos dos exames (e dos testes de determinação do
ensinos secundário e superior — quer o ensino quociente intelectual) está adaptado às nor-
elementar seja, ou não, aberto a todos e gra- m a s e aos valores das classes já privilegiadas.
tuito — torna-se evidente que as possibili- N a maior parte dos países e m desenvolvi-
dades não são as mesmas para todos. É evi- mento de África, da Ásia e da América
dente, além disso, que o acesso ao sistema Latina, o papel do ensino escolar e m relação
de ensino pós-primário e os resultados que à justiça social assume u m a importância
nele são obtidos pela criança, são, e m grande ainda mais determinante. N u m a situação
parte, função da classe social a que ela per- caracterizada pela pobreza, por u m a taxa de
tence. É assim que as crianças das classes analfabetismo elevada, pela ausência de u m
operárias e desfavorecidas —devido a fac- ensino primário universal e por possibilida-
tores tais c o m o o meio geralmente pobre e m des muito limitadas e m matéria de ensino
que vivem, o estatuto profissional e o nível secundário e superior, a minoria que con-
de instrução pouco elevado dos pais, a m á segue «vencer» graças ao ensino de tipo clás-
alimentação e a insuficiência de cuidados sico constitui u m a élite muito reduzida e
sanitários, a ausência de livros de leitura e m muito privilegiada cujos rendimentos pro-
casa— se encontram já e m desvantagem à fissionais são várias vezes superiores ao ren-
partida e não obtêm, por conseguinte, bons dimento por habitante do país. Por outras
resultados na escola. Assim, as crianças que palavras, cava-se u m imenso fosso educa-
conseguem aceder ao ensino superior per- tivo e económico entre u m a pequena élite
tencem às classes privilegiadas, e c o m o o afortunada e a grande massa da população
ensino superior é a chave de u m rendimento que praticamente não beneficiou das possibi-
elevado, do poder e dos privilégios, o sistema lidades do sistema escolar. Entretanto, outra
no seu conjunto reforça o statu quo das desi- disparidade surge entre as regiões urbanas
gualdades sociais, económicas e políticas. relativamente privilegiadas e as regiões rurais
Acontece, porém, que u m a ínfima proporção e m que vive a maior parte da população.
dos desfavorecidos consegue passar através E m b o r a muitos dos países que acabam de
da «peneira». Citando de novo Carnoy: aceder à independência tenham tentado ins-
«... nas sociedades capitalistas, a escola per- taurar u m a melhor justiça social e económica,
mite efectivamente que u m a pequena per- « u m enorme fosso separa frequentemente a
centagem do proletariado urbano e u m a frac- ideologia igualitária da dura realidade» 2.J
ção ainda mais reduzida do proletariado rural
Ninguém duvida de que, depois do acesso
melhore a sua condição; pode também sus-
à independência, os países do Terceiro M u n d o
citar a discordância e o aparecimento de u m
desenvolveram o ensino de tipo escolar de
pensamento original, capaz de constituir u m a
u m a maneira impressionante, no que diz res-
força intelectual importante a favor de u m a
peito tanto aos efectivos c o m o às possibili-
reforma da sociedade. N o entanto, não se
dades de acesso. N o entanto, muitos sinais
trata do objecto principal n e m das caracte-
mostram que a elevação da taxa média de
rísticas funcionais dos sistemas escolares;
escolarização não é sinónimo de melhor igual-
trata-se de subprodutos da escola...»1.
Diversos eufemismos — c o m o o mérito, 1. Martin C A R N O Y , op. cit., p. 13.
as capacidades intelectuais e as aptidões — 2. Philip FOSTER, «Access to schooling», e m D o n
Adams (dir. publ.), Education in national develop-
foram utilizados para dissimular o papel de ment, p. 13, London, Routledge and Regan Paul,
selecção social profundamente injusta da 1971.

237
Yusuf O . Kassam

dade de oportunidades. Foi assim que Fos- as pessoas exerceriam actividades diferentes,
ter, baseando-se no estudo de u m certo número m a s estas actividades não lhes confeririam
de países asiáticos e ao Sul do Sara concluiu poder sobre a vida do outro. Cada u m agiria
que u m alargamento quantitativo espectacular por conta do outro, e m virtude de u m acordo
das possibilidades de acesso à educação não comum4.»
conduz «a nenhuma modificação sensível da
distribuição relativa das oportunidades entre
Que pode fazer
os grupos regionais ou étnicos ou entre as
categorias socioeconómicas das populações o ensino extra-escolar?
nacionais1. N u m outro estudo recente sobre
E m substituição d o ensino escolar, propôs-se
u m grande número de países da Europa Oci-
muitas vezes o ensino de tipo não clássico
dental, os Estados Unidos e alguns países
c o m o u m meio de atingir u m a maior justiça
africanos, A . Le Gall rejeita «a ideia dema-
social. N o m o m e n t o e m que muitos países
siado simples de que a democratização dos
e m desenvolvimento estão seriamente empe-
ensinos secundário e superior está assegu-
nhados nessa luta longa e difícil que pretende
rada desde que se abram as portas ao maior
transformar o tipo de sociedade forjada pelos
número possível de alunos2.»
colonizadores e destruir os mitos sociais e eco-
Muitas críticas preconizaram a reforma nómicos herdados da dominação imperialista
radical do sistema escolar, enquanto outras ocidental, parece-nos útil examinar c o m o ,
propuseram a abolição completa deste sis- e e m que medida, o ensino extra-escolar pode
tema e o recurso a «soluções de substituição». remediar a injustiça social que é perpetuada
Porém, torna-se cada vez mais evidente que pelo ensino de tipo clássico.
o ensino não pode conduzir a nenhuma trans-
formação a favor da justiça social se a socie- A E D U C A Ç Ã O D E MASSA
dade n o seu conjunto se caracterizar essen-
cialmente por u m a organização desigual e N o s países e m desenvolvimento, e m que o
injusta das relações sociais na produção e n o ensino escolar serve u m a ínfima fracção da
poder político. C o m o afirmaram Chañan e população, o reforço massivo do ensino extra-
Gilchrist, «a escola não é a origem dos males -escolar pode oferecer toda u m a série de pos-
sociais, n e m o reflexofieldos males que decor- sibilidades a u m número muito maior de pes-
rem da sociedade n o seu conjunto3.» soas e contribuir, assim, para tapar o fosso
Por conseguinte, é imperioso modificar a que separa a massa da élite. O primeiro objec-
estrutura socioeconómica da sociedade antes tivo do ensino estra-escolar consiste e m «ofe-
de empreender a reforma do seu sistema edu- recer à massa dos agricultores, dos operários
cativo. Carnoy defende que «a solução de subs- e dos pequenos empresários, assim c o m o
tituição não é a 'escola aberta' c o m o propôs àqueles que nunca entraram n u m a sala de
Silbermann, n e m métodos de ensino ou pro- aula — e que talvez nunca cheguem a entrar —
gramas que apresentem, de m o d o mais eficaz, u m a quantidade de técnicas e de conheci-
conhecimentos colonizadores. Estas reformas mentos úteis que poderão aplicar sem demora
são concebidas para acentuar a legitimação
de u m a estrutura social piramidal e das rela-
ções hierárquicas na produção. O novo tipo de
ensino deveria, pelo contrário, procurar criar 1. Ibid., p. 22.
ou reforçar u m a sociedade não hierárquica, 2. A . L E G A L L , «Differentiation et démocratisation
au second degré et dans l'enseignement supérieur»,
na qual a propriedade não conferiria direitos em: A . L E G A L L e outros, Problèmes actuels de la
sobre as pessoas e na qual — teoricamente — démocratisation des enseignements secondaire
ninguém teria o direito de dominar o vizinho. supérieur, p. 21, Paris, Unesco, 1973.
N ã o seria u m a sociedade 'igualitária', no sen- 3. G . C H A Ñ A N e L . GILCHRIST What school is for,
p. 13, London Methuen and C°, Ltd., 1974.
tido de semelhança entre todos os m e m b r o s ; 4. Martin C A R N O Y , op. cit., p. 366.

238
Escolar, extra-escolar e justiça social

ao seu próprio desenvolvimento e ao da sua ração, da manipulação e das outras injustiças


nação 1 .» E m seguida, o ensino extra-escolar sociais. Quando as pessoas não parecem nada
pode assegurar a educação permanente e interessadas nas possibilidades educativas que
substituir a escola ao fornecer a todos aqueles lhes são oferecidas, deveria competir ao ensino
que terminam o ensino primário ou secundá- extra-escolar e à educação dos adultos e m -
rio, assim c o m o aos que abandonaram a escola penhá-las naquilo que Paulo Freire designa
a meio dos estudos, u m a formação que lhes por «tomada de consciência crítica da sua
permita encontrar u m emprego produtivo realidade», e, para retomar a expressão de
ou que os ajude a encontrar u m a actividade Nyerere, «sacudi-las para que não aceitem
profissional independente. Finalmente, o en- resignadamente o género de vida que conhe-
sino extra-escolar pode contribuir para aumen- ceram durante séculos4». E m outros casos,
tar as aptidões e a competência daqueles que quando todo u m conjunto de factores impe-
já possuem u m emprego 2 . d e m o operário, por exemplo, de utilizar as
C o m o já foi dito, o ensino extra-escolar possibilidades que lhe são oferecidas e m
deveria destinar-se e m primeiro lugar à grande matéria de educação, deveriam tomar-se
maioria daqueles que praticamente não bene- medidas regulamentares, c o m o foi feito na
ficiaram do ensino escolar. Além disso, c o m o República Unida da Tanzânia, para lhe per-
vimos no caso do ensino de tipo escolar, não mitir dedicar, no quadro do seu horário de
é o desenvolvimento quantitativo global do trabalho, u m certo número de horas à sua edu-
ensino extra-escolar que pode necessaria- cação.
mente repartir mais equitativamente as opor-
tunidades de acesso à educação. C o m o se afir-
m o u na III Conferência Internacional sobre AS DISPARIDADES C I D A D E - C A M P O
a Educação dos Adultos (Tóquio, 1972), o A s profundas disparidades de toda a espécie
aumento do número de participantes nos pro- que existem entre a cidade e o c a m p o devem-
gramas de educação de adultos «não conduz -se, e m grande parte, à natureza do ensino
necessariamente à democratização, apesar de escolar e à estrutura do emprego. A o fazer
se ter reconhecido plenamente que a d e m o - incidir o essencial dos programas sobre a
cratização se encontra favorecida pela difusão massa da população rural, o ensino extra-
das técnicas de base, incluindo a alfabetização. -escolar contribui para atenuar estas profun-
O s que beneficiam da extensão da educação das disparidades. A o ter e m vista o desenvol-
dos adultos são, muitas vezes, já privilegia- vimento rural, o ensino extra-escolar não deve-
dos: aos que já têm alguma coisa, dá-se mais. ria limitar-se à alfabetização e ao ensino pro-
E m muitos países, recusa-se o acesso à educa- fissional, agrícola ou outro. N o interesse da
ção a grande número de adultos, ou, então, justiça social, a educação, o melhoramento da
estes não utilizam as possibilidades que lhes habitação, de saúde, da nutrição, da assis-
são oferecidas. Assim, u m a extensão pura- tência infantil, da economia doméstica, assim
mente quantitativa pode acentuar ainda, e não
reduzir, as desigualdades sociais3.»
1. Philips H . C O O M B S , The World educational crisis,
E m vez de oferecer u m tipo de ensino p. 138, (A crise mundial da educação), N e w York
«extra-muros» que, e m geral, só é dispen- Oxford, University Press 1968.
sado nas zonas urbanas e se destina aos que 2. Ver também James R . SHEFFIELD e Victor P. D I E -
já frequentaram a escola, deveria dar-se prio- J O M A O H Non-formal education in African deve-
lopment, N e w York African-American Institute,
ridade a u m a «educação de massa» conce- 1972.
bida para melhorar as condições de vida da 3. U N E S C O Rapportfinalde III' Conférence inter-
maioria da população. O s programas de national sur l'éducation des adultes, p. 13, Paris,
educação de massa prevêem geralmente a alfa- UNESCO, 1972.
4. Julius K . N Y E R E R E , «Adult education year»,
betização ou a alfabetização funcional, que Freedom and development, Dar es Salaam, Oxford
permite que o indivíduo se liberte da explo- University Press, 1973.

239
Yusuf O . Kassam

c o m o de outros domínios conexos que p o d e m primeiramente, trabalhar durante u m certo


contribuir imediatamente, e praticamente, número de anos, dar provas da sua competên-
para a elevação do nível de vida das popu- cia n o trabalho e de outras aptidões e obter
lações rurais, devem fazer parte de todo o recomendações dos empresários e das sec-
programa do ensino extra-escolar. ções do T A N U para que o seu pedido de
admissão na Universidade seja tomado e m
consideração. Trata-se de u m a reforma revo-
O EMPREGO E O DIPLOMA
lucionária que constitui u m a medida salutar
Todas estas tentativas que pretendem asse- tendente a reduzir a importância atribuída
gurar u m a maior justiça social através do aos diplomas do ensino de tipo clássico. Por
reforço e da diversificação do ensino extra- outras palavras, o facto de ser bem sucedido
-escolar p o d e m ser frustrantes para o benefi- e m exames que sancionam estudos de tipo
ciário quando se trata de obter u m emprego clássico já não é considerado o único critério
remunerado, pois os critérios e m matéria de selecção para ingresso no ensino superior.
assentam principalmente nos títulos que san-
cionam os estudos de tipo clássico. Enquanto A PARTICIPAÇÃO
se atribuir esta importância ao diploma, o DA P O P U L A Ç Ã O
ensino extra-escolar não poderá igualar sen- N O PROCESSO EDUCATIVO
sivelmente as oportunidades de acesso ao
emprego. Além do mais, c o m o mostraram O ensino de tipo não clássico pode promover
certos estudos, embora seja certo que aqueles a justiça social ainda e m outros aspectos.
que efectuarem estudos superiores p o d e m O ensino escolar caracteriza-se geralmente
obter empregos melhor remunerados, os pela sua rigidez no que respeita aos progra-
resultados profissionais e a produtividade mas, aos métodos, à duração dos estudos e à
não são necessariamente função do tipo mais sua distribuição no tempo, assim como por
ou menos clássico dos estudos seguidos1. u m m o d o de aprendizagem essencialmente
Para certas qualificações exigidas pela indús- académico. Facto igualmente característico,
tria, a formação durante o tempo de emprego, os alunos não p o d e m ter qualquer actuação
por exemplo, é, no conjunto, muito mais efi- sobre o tipo de ensino que lhes é dispensado
caz e conduz a melhores resultados e a u m a ou sobre a sua organização. O ensino extra-
maior produtividade. -escolar, que é, e m princípio, mais diversifi-
cado e que deve adaptar-se c o m maleabili-
dade às necessidades, tal c o m o são determi-
A SUPRESSÃO nadas pelos próprios interessados, pode, por-
D O CARÁCTER HIERÁRQUICO tanto, contribuir para assegurar u m a maior
D O ENSINO ESCOLAR justiça social. O s alunos dos programas de
ensino extra-escolar participam relativamente
A o m e s m o tempo que se torna necessário
mais nas tomadas de decisão respeitantes ao
reforçar o prestígio do ensino extra-escolar
processo educativo. Este processo está ligado
e reorientar, c o m o consequência, os critérios
ao princípio mais geral que consiste e m asse-
do emprego, urge modificar o carácter hierár-
gurar a justiça social atribuindo à população
quico e piramidal do ensino escolar. U m dos
o poder de decidir dos problemas que lhe
meios de impedir que o sistema escolar per-
petue as desigualdades sociais consiste e m
eliminar a sua estrutura hierárquica supri- 1. Ver de Ivar B O R G , Education and jobs: The great
mindo a passagem «automática» de u m nível training robbery, N e w York, Praeger, 1970.
dado ao nível imediatamente superior. N a 2. Esta medida foi tomada numa das resoluções,
República Unida da Tanzânia, por exemplo, mais conhecidas pelo nome de «Resoluções de
Musoma», que o Comité executivo nacional do
os diplomados d o ensino secundário já não T A N U adoptou em Musoma (República Unida
acedem directamente à Universidade2: devem, da Tanzânia), em Novembro de 1974.

240
Escolar, extra-escolar e justiça social

dizem respeito; sob este aspecto, na óptica ocupam da educação dos adultos, assim c o m o
da análise histórica do colonialismo e do pessoas competentes e b e m informadas que
capitalismo, os principios directores enun- habitem na região e organizar os cursos neces-
ciados pelo T A N U estipulam que «para aque- sários. Além disso, o ensino dos adultos e das
les que sofreram a sujeição e a opressão, a outras pessoas que não frequentam a escola
exploração e a humilhação do colonialismo faz actualmente parte integrante das atribui-
e do capitalismo, 'desenvolvimento' é sinó- ções do professor. Para permitir que a escola
nimo de 'libertação'. Tudo o que lhes pro- primária leve a b o m termo os programas de
porcione meios de desempenhar u m maior educação dos adultos, concede-se-lhe u m
papel na tomada de decisões que os atinjam pequeno subsídio suplementar para equipa-
directamente e no m o d o de orientar a sua mento e material, m a s espera-se primeira-
existencia, é u m acto de desenvolvimento, mente que utilize ao máximo os recursos de
m e s m o quando não lhes assegura melhor que já dispõe.
saúde ou melhor alimentação1.» Para preparar os professores para esta nova
tarefa, todos os estabelecimentos de ensino
AS ESCOLAS PRIMARIAS, pedagógico do país inscreveram nos seus pro-
CENTROS D E E D U C A Ç Ã O D O S A D U L T O S gramas cursos sobre a metodologia da edu-
cação dos adultos. O u antes, todos os futuros
Para assegurar o melhor possível a justiça professores são actualmente preparados para
social, podemos também integrar, de u m a ensinar crianças e adultos, e os estágios prá-
certa maneira e n u m a certa medida, o ensino ticos dão-lhes a possibilidade de se familia-
extra-escolar no ensino escolar. Assim, os rizar tanto c o m o ensino primário c o m o c o m
imensos recursos — professores, material edu- a educação de adultos.
cativo, equipamentos e locais — que são nor-
malmente atribuídos ao ensino escolar e m
benefício da minoria, podem também ser
os CENTROS
utilizados para permitir que as massas tirem
D E E D U C A Ç Ã O COMUNITÁRIA
proveito das possibilidades de ensino extra-
escolar. Para tal, é possível — foi o que suce- N a República Unida da Tanzânia, a utili-
deu na República Unida da Tanzânia — fazer zação das escolas primárias c o m o centros
que todas as escolas primárias sejam simul- de educação dos adultos venceu u m a nova
taneamente centros de educação de adultos. etapa c o m a criação daquilo que designa-
« O princípio geral consiste e m fazer da remos por «centros de educação comunitária».
escola primária o principal centro responsá- Segundo o plano estabelecido pelo governo,
vel pela organização da educação dos adultos. trata-se de integrar o ensino escolar e o ensino
A escola tornar-se-á, então, u m centro edu- extra-escolar, por u m lado, e de integrar mais
cativo comunitário, e m que o ensino primário estreitamente a escola primária na comuni-
representa apenas u m a das funções. Assim dade, por outro lado. Este novo plano ins-
concebida, a escola será cada vez mais u m pira-se na experiência de aldeia de Ujamaa
centro de convergência para o conjunto das de Kwamsisi, na região de Tanga, onde u m
necessidades educativas da comunidade, e projecto piloto consistindo na integração
deixará de ser essa instituição, de certo m o d o das actividades da escola primária nas da
isolada, destinada à educação das crianças2.»
O director da escola primária está encar-
regado do conjunto das actividades do cen- 1. T A N U , TANU guidelines 1971, Dar es Salaam,
tro e m matéria de educação dos adultos: Government Printer, 1971.
deve determinar as necessidades da colecti- 2. United Republic of Tanzania, Tanzania second five
vidade, recrutar monitores competentes diri- year plan for economic and social development
gindo-se aos diversos organismos que se (1969-1974;, vol. ï, pp. 157 e 158, Dar es Salaam,
Government Printer, 1969.

241
vn-6
Yusuf O . Kassam

aldeia forneceu resultados animadores. E m sos. N a República Unida da Tanzânia foi


Kwamsisi, o ensino de tipo tradicional e aca- criado, para este efeito, u m conjunto com-
démico é substituído por u m a preparação plexo de comités a todos os níveis adminis-
prática e pertinente para a vida da aldeia. trativos dependente do Ministério da Edu-
O s próprios alunos são associados à prepara- cação Nacional. A nível nacional, o Comité
ção e à execução das actividades de auto- nacional para a educação dos adultos, que
-assistência da aldeia, e os camponeses, que é u m subcomité do Conselho nacional con-
seguem na escola primária diversos cursos sultivo sobre a educação, inclui membros dos
que lhe são especialmente destinados, podem seguintes organismos : T A N U , N U T A (União
igualmente formular a sua opinião sobre o nacional dos operários do Tanganica); U W T
conteúdo do ensino dispensado aos filhos. (Organização das mulheres da Tanzânia);
N u m a primeira fase, prevê-se a constru- T A P A (Associação dos pais do Tanganica);
ção de 32 centros de educação comunitária T Y L (Liga dos jovens do T A N U ) ; C U T
das aldeias Ujamaa e e m quatro regiões (União cooperativa do Tanganica); Instituto
diferentes. Dois destes centros estão a ser da educação dos adultos assim c o m o outros
terminados no distrito de D o d o m a . ministérios e organizações que se ocupam
Além das sete classes do primário, o centro da educação dos adultos, e organismos volun-
de educação comunitária contém igualmente tários. O s comités que se ocupam da educação
oficinas de marcenaria, de pedreiro, de cana- dos adultos à escala da região, do distrito
lizador, latoaria e artesanato. T a m b é m se e da circunscrição, são subcomités dos comi-
dispensa formação e m agricultura, indústria tés de desenvolvimento às escalas correspon-
familiar, pequena indústria e economia domés- dentes. O comité regional para a educação
tica. U m dispensário, u m centro de assistência dos adultos tem por presidente o secretário
infantil, u m a biblioteca e u m recinto para pro- regional do T A N U , e por secretário o coor-
jecção defilmese outras actividades culturais denador regional para a educação dos adultos.
farão parte integrante do centro de educação O comité é composto por altos funcionários
comunitária. dos principais ministérios que se ocupam da
O s diversos serviços educativos e outros educação dos adultos — agricultura, saúde,
serviços sociais serão postos à disposição dos cooperativas, etc. — de representantes da
alunos inscritos na escola primária, dos ado- U W T , da N U T A , da T A P A , assim como
lescentes e dos adultos de toda a comunidade. das associações de missionários e de outras
O abastecimento dos serviços educativos será associações voluntárias. T a m b é m o Comité
feito c o m u m a grande maleabilidade, de m o d o de distrito para a educação dos adultos tem
a enfrentar as necessidades e os problemas como presidente o secretário de distrito do
particulares de cada aldeia. T A N U , e como secretário o responsável pela
educação dos adultos no distrito. O comité
para a educação dos adultos à escala da
circunscrição, que é presidido pelo presidente
ORGANISMOS DE COORDENAÇÃO da secção do T A N U , reúne os directores dos
estabelecimentos de ensino escolar das escolas
E m muitos países, o ensino extra-escolar primárias, das escolas secundárias, dos cen-
comporta toda u m a série de programas dife- tros de ensino pedagógico, etc., assim como
rentes a cargo de u m a gama muito diversifi- os directores das outras instituições que por-
cada de organismos e instituições —gover- ventura existam na circunscrição, como os
namentais e não governamentais— e de campos de serviço nacional, as prisões, as
organismos voluntários. Para aumentar ao fábricas, etc. Finalmente, todas as escolas,
máximo o seu impacto e a sua eficácia e m colégios e outros estabelecimentos devem ter
matéria de educação de massa, é necessário os seus próprios comités de educação dos
criar u m a espécie de estrutura para mobilizar adultos até ao nível dos comités de classe.
e coordenar os seus esforços e os seus recur-

242
V. S. Mathur

Educação dos trabalhadores


e organizações populares rurais

Para avaliar correctamente o lugar que a Miséria e desenvolvimento


educação dos trabalhadores, e m particular, dos meios rurais
e o ensino e m geral ocupam no desenvolvi-
mento rural dos países e m desenvolvimento, Qual é a situação económica e social nos
é necessário ter e m conta o contexto socioeco- países e m desenvolvimento? A miséria e as
nómico rural, assim c o m o os objectivos a atin- extremas carências e m que a maior parte do
gir, e admitir a necessidade de estimular a proletariado rural e do proletariado urbano
criação de estabelecimentos e de organismos vive e trabalha são demasiado conhecidas
que este desenvolvimento exige. É , portanto, para que se torne necessário evocá-las. N ã o
essencial examinar a acção já empreendida há certamente nada de mais surpreendente
no domínio do desenvolvimento económico do que os gráficos dos organismos das Nações
e avaliar os resultados obtidos, a fim de dis- Unidas respeitantes à miséria, ao desemprego,
tinguir os problemas que constituem u m ao subemprego, à subalimentação, às eleva-
obstáculo ao progresso, ou até m e s m o de das taxas de doença e mortalidade, ao anal-
sugerir possíveis orientações. O s educado- bafetismo, à mediocridade do habitat e do
res poderiam, assim, esclarecer-se sobre o ambiente, para só citar alguns. A despeito
papel que o ensino é capaz de desempenhar dos sérios esforços que os governos têm feito
no desenvolvimento. nos dois últimos decénios para incentivar o
E m todos os países e m desenvolvimento, desenvolvimento económico e social e ape-
a imensa maioria dos trabalhadores vive e sar da prioridade que concedem actualmente
trabalha no campo e é o campo que fornece à difusão do ensino, os resultados obtidos
a maior parte dos recursos nacionais, de tal estão longe de ser satisfatórios.
m o d o que toda a reforma económica ope- O s dirigentes do m u n d o inteiro têm subli-
rada neste sector terá necessariamente u m a nhado que a paz e a estabilidade internacio-
considerável incidência sobre a evolução eco- nais dependem da justiça social e que, se
nómica e social do conjunto do país. ignorarmos os imperativos da nossa época e
continuarmos a tolerar e a favorecer a injus-
tiça, pagaremos muito caro esta ignorância
sob a forma de estagnação económica e
social e de instabilidade política. D e qual-
quer m o d o , ainda não conseguimos, até agora,
resolver estes problemas. Mais u m a vez se
verifica que urge proceder a u m reexame pro-
V. S. Mathur (índia). Secretário regional asiático da
fundo das políticas económicas, sociais e
Confederação internacional dos sindicatos livres. educativas.

243
V . S. Mathur

O s países e m desenvolvimento, embora difi- sivas) contribuiu certamente para aumentar a


r a m uns dos outros sob muitos aspectos, produção agrícola, m a s os recursos da téc-
apresentam vários traços comuns. E m geral, nica ainda não foram todos explorados. O s
a miséria e o desemprego são mais agudos no peritos pretendem que a tecnologia é neutra,
campo. D e m o d o quase permanente, os desem- m a s estes métodos, tal c o m o os créditos, são
pregados desamparados afluem do campo às acessíveis sobretudo aos agricultores ricos.
cidades, onde acentuam a miséria e o desem- Sendo assim, a disparidade dos rendimentos
prego e agravam ainda mais as condições acentuou-se, o que agravou a condição do
sociais já lamentáveis. Parece haver u m a proletariado rural. C o m o os agricultores
ligação não só entre a miséria e o desemprego, abastados têm sempre tendência para aumen-
c o m o também entre as suas manifestações nas tar as suas explorações, utilizando, para as
cidades e nos campos, pois o êxodo rural cultivar, máquinas e utensílios aperfeiçoados,
complica ainda mais os problemas urbanos. as possibilidades de emprego no campo
É , portanto, evidente que, para obter resul- diminuíram mais ainda.
tados tangíveis deveremos começar por con- O s esforços feitos para transformar a estru-
centrar os nossos esforços sobre os proble- tura económica e social, nas zonas rurais,
m a s da miséria e do desemprego nos meios unicamente através da legislação, não obti-
rurais. veram u m sucesso total. Além disso, existe
A imensa maioria dos habitantes do campo menos interesse pelo simples desenvolvimento
trabalha na agricultura, nas agro-indústrias económico e mais pela transformação social
de transformação ou outras, ou no comércio que, e m especial, tem por corolário u m a maior
ligado à agricultura. A lentidão dos progres- participação do povo no desenvolvimento
sos realizados no sector agrícola pode atri- económico e social. Trata-se de u m motivo
buir-se a u m regime rural retrógrado e a de regozijo mas não nos devemos deter nesta
técnicas ultrapassadas, embora, ultimamente, via sem ter e m conta as incidências lógicas
os governos se tenham mostrado muito acti- que esta transformação pode ter: para que
vos sob este aspecto. C o m efeito, assistimos a participação seja efectiva, realista e cons-
a u m a vaga de reformas agrárias nos dife- trutiva, deve passar pelo canal das organiza-
rentes países do m u n d o e m desenvolvimento. ções populares. E , mais u m a vez, se preten-
Quanto à tecnologia, melhoramentos sensí- demos assegurar ao povo u m a parte justa das
veis deram origem à revolução verde —justa- vantagens do crescimento, necessitamos de
mente assim qualificada — que abre imensas u m mecanismo que permita fazê-lo. A era
perspectivas. N o entanto, apesar do caminho tecnológica moderna pretende que os sindi-
percorrido nestes dois domínios que são a catos e as organizações populares sejam os
reforma agrária e a tecnologia, a situação do únicos instrumentos eficazes de u m a justiça
proletariado rural não melhorou de m o d o distributiva.
nenhum. Foi precisamente nesta óptica que a Orga-
Quanto ao progresso das técnicas agrí- nização regional asiática da Confederação
colas, podemos afirmar que esta revolução internacional dos sindicatos livres decidiu
verde tornou possíveis três fenómenos apre- favorecer a criação de organismos para o pro-
ciáveis: o aumento, muito necessário, da pro- letariado rural. N o quadro do projecto apli-
dução agrícola e das ofertas de emprego nas cado e m Khazipur, e m Uttar Pradesh, na
zonas rurais e u m a repartição mais equita- índia, foi criada u m a organização popular
tiva dos rendimentos. Porém, ainda nada rural que tem essencialmente dois objectivos:
de substancial foi realizado na matéria. fazer pressão e desenvolver. C o m efeito, por
A revolução verde (melhoramento das varie- u m lado, esta organização procura exercer
dades de sementes, melhor utilização de adu- as pressões necessárias para fazer adoptar
bos e outros factores de produção, desen- reformas agrárias e outras medidas socioeco-
volvimento da irrigação e culturas mais inten- nómicas progressistas, procurando, e m se-

244
Educação dos trabalhadores e organizações populares rurais

guida, que elas sejam efectivamente aplica- sempre os problemas dos trabalhadores e as
das e, por outro lado, desempenha u m papel instituições mais importantes sob este aspecto
muito activo e m matéria de desenvolvimento são muitas vezes as organizações de traba-
cooperativo e fornece, assim, instrumentos lhadores ou as que foram criadas por sua
de produção agrícola, meios de irrigação ou iniciativa o u c o m a sua colaboração. É evi-
outros serviços secundários a pequenos agri- dente que participar n o funcionamento de
cultores marginais para melhorar a eficácia u m a organização é já u m a forma de educação.
e a produtividade da agricultura. Além disso, a organização de trabalhadores
A organização ocupa-se igualmente da que, mais do que qualquer outra, compreende
criação de empregos para as pessoas despro- as necessidades dos seus membros e goza da
vidas de terras, de fornecer u m a formação sua confiança, está muitas vezes mais ins-
aos artífices, de lhes proporcionar matérias- trumentada para lhes organizar programas
-primas e de lhes oferecer outras formas de de estudos. N o entanto, as suas actividades
auxílio que os colocarão e m condições de são muitas vezes refreadas pela falta de
exercer, de m o d o rentável, os respectivos ofí- recursos, sobretudo financeiros. Pode ser
cios. Além disso, encarrega-se de u m certo extremamente útil coordenar as acções desen-
número de actividades económicas tendentes volvidas e m matéria de educação pelas orga-
a melhorar os magros recursos das famílias nizações populares rurais e pela colectividade.
rurais desfavorecidas por meio de projectos São três os principais aspectos da educação
de criação de gado ou de aves de capoeira ou que interessam à organização. C o m o é evi-
ainda da produção de leite. M a s , e m qualquer dente, esta ocupa-se da educação geral dos
dos casos, trata-se sobretudo de ajudar as seus membros que é assegurada, no essencial,
populações pobres das regiões rurais a ava- pelos estabelecimentos encarregados da edu-
liar melhor os seus problemas e as medidas cação dos adultos. Compete-lhe ainda, mui-
a tomar para os resolver e também de lhes tas vezes, ajudar os seus aderentes a enrique-
ensinar a defender e fazer valer os seus inte- cer os conhecimentos de que necessitam para
resses unindo os seus esforços. É necessário exercer as responsabilidades e a profissão
que possam reencontrar a confiança e m si correspondente aos seus objectivos e à sua
próprias e acreditar na virtude de u m a acção função económica. Finalmente, a organização
c o m u m para introduzir as modificações dese- deve, por u m lado, ajudar os seus membros
jáveis para a vida rural. O factor essencial, a compreender melhor os seus objectivos e o
n u m empreendimento deste tipo, é, por- seu papel e, por outro lado, guindá-los à
tanto, a educação sob as suas diferentes for- altura de participar eficazmente no seu fun-
m a s , consistindo o objectivo pretendido cionamento aos diferentes níveis hierárquicos.
e m preparar o proletariado rural para rea- São as organizações interessadas que p o d e m
lizar as transformações sociais desejadas — preparar melhor os seus membros para diri-
tarefa que está muito longe de ser fácil. gir os sindicatos e as organizações de traba-
lhadores rurais e participar de maneira cons-
ciente e reflectida no seu funcionamento, m a s
há lugar, no entanto, para u m a ampla cola-
Educação dos trabalhadores boração c o m outros organismos e m matéria
de educação geral dos adultos e de formação
profissional. Por exemplo, as escolas rurais
A educação dos trabalhadores adquire u m p o d e m ser utilmente requisitadas. Torna-se
sentido diferente segundo os países. N a A m é - imediatamente rentável investir na educação
rica do Norte é quase sinónimo de formação geral dos adultos, pois esta determina u m a
sindical: na Europa, parece ter u m sentido abordagem mais construtiva da produção e
mais amplo e incluir ainda a educação geral da produtividade e u m a participação pro-
dos trabalhadores adultos, assim c o m o a for- funda nos esforços de desenvolvimento; m a s
mação profissional. Contudo, salientam-se

245
V . S. Mathur

é conveniente não esquecer a educação das do espaço, n e m de qualquer outra condição


crianças. de admissão e, por conseguinte, o ensino
E m todos os países se tem realizado urna deveria ser dispensado e m momentos propí-
obra apreciável e m matéria de cultura, de cios aos beneficiários que seriam livres de
educação e de formação por ministérios dife- começar, de interromper e de retomar os
rentes do da educação, por exemplo o minis- cursos quando julgassem conveniente.
tério da saúde ou da agricultura, sem esque- A idade não deveria constituir u m obstá-
cer a rádio, a televisão e os outros meios de culo à formação; os adultos têm u m a experiên-
informação. Se todos os recursos consagra- cia da vida que, e m certa medida, lhes per-
dos à educação, à informação e à cultura fos- mite compreender os problemas que lhes
sem reunidos e as actividades abrangidas interessam a si próprios e à sociedade no seu
por estes domínios fossem eficazmente coor- conjunto. Importa oferecer-lhes a possibili-
denadas e integradas, poder-se-ia, talvez, fazer dade de completar os seus conhecimentos sem
muito mais e obter resultados nitidamente exigir previamente a apresentação de u m
melhores. diploma.
C o m o as organizações populares têm u m É necessário avaliar melhor o papel que o
papel capital a desempenhar na evolução ensino e, e m particular, a educação dos adul-
económica e social, é necessário tê-lo plena- tos p o d e m desempenhar nas transformações
mente e m conta e m tudo o que se relaciona socioeconómicas dos países e m desenvolvi-
c o m a educação. D e facto, a educação deve mento. O que supõe que a educação deixe de
conduzir o h o m e m a dotar-se de bons ins- ser u m a acumulação de conhecimentos pas-
trumentos de progresso e de transformação, sivos e prepare para a acção ajudando os
É necessário associar mais estreitamente o seus beneficiários a dotar-se de meios sufi-
indivíduo ao processo de formação para cientemente poderosos para proteger e defen-
facilitar a aprendizagem dos adultos e para der os seus interesses e a participar de m o d o
favorecer o desenvolvimento da personali- construtivo no desenvolvimento das respec-
dade. É possível que todos os tipos de ensino tivas sociedades. A s organizações populares
— escolar, extra-escolar e não tradicional — rurais são indispensáveis se pretendemos que
devam ser utilizados de acordo c o m as neces- o desenvolvimento económico e a educação
sidades; para os adultos, c o m o é evidente, divulguem a esperança e o gosto do pro-
insistir-se-á na formação extra-escolar e não gresso nos campos contribuindo assim, efi-
tradicional. A estrutura da educação não pode cazmente, para a construção de u m futuro
ser tributária do tempo, n e m da idade, n e m melhor.

246
Hilary Perraton

Aprender a viver melhor

Mas, o que é a educação dos adultos? É mente, o ensino magistral era a regra e res-
muito simplesmente aprender tudo o que nos pondia às necessidades da maior parte das
possa ajudar a compreender o meio em que sociedades. É evidente que ainda hoje apren-
vivemos e o modo como podemos modificar e demos certamente mais, e m geral, e m famí-
lia e no nosso ambiente imediato do que na
utilizar este meio para o nosso bem-estar. A edu-
cação não se limita ao que se passa na sala escola. M a s n e m esta educação tradicional,
de aula. extra-escolar, n e m a nova educação escolar
Julius Nyerere, 1969 nos proporcionam o que exigimos à educação :
os meios de nos adaptarmos a u m m u n d o
e m mutação, aproveitando as suas vanta-
A razão de ser do ensino à distância — uti- gens e melhorando-o. Esta crise da educação
lização conjunta de textos impressos, da está na origem de muitos esforços tendentes
rádio e do ensino magistral— é evidente: a encontrar outros meios para além do ensino
os que desejam beneficiar da educação são magistral onde esbarramos c o m a penúria
mais numerosos do que todos aqueles que mundial de professores. A s tentativas efec-
os nossos professores esperam ensinar nas tuadas para resolver os problemas da edu-
salas de aula tradicionais. Se a educação é cação através da radiodifusão, desde Salva-
necessária ao desenvolvimento — c o m o su- dor a Samoa, desde a índia ao Peru, encon-
cede — se os que desejam tanto a educação tram-se entre as mais importantes. M a s ,
c o m o o desenvolvimento são cada vez mais c o m o sublinhava u m estudo recente, «os
numerosos — c o m o sucede— é necessário seus efeitos foram muito limitados e m rela-
que encontremos outros meios de ajudar as ção à extensão dos problemas enfrentados»1.
pessoas a aprender. O ensino à distância é A radiodifusão apresenta a vantagem evi-
u m destes meios: pode melhorar a instrução dente de poder penetrar verdadeiramente e m
que as crianças recebem na aula. M a s desem- toda a parte. Se dispusermos de receptores
penha u m papel provavelmente mais impor- (e se pudermos consertá-los quando se ava-
tante na educação dos adultos, e m particular riam), as emissões p o d e m ser ouvidas e m
como Nyerere aponta na citação apresen- qualquer aldeia de África. M a s é muito difí-
tada. cil aprender unicamente através da escuta de
emissões ou da leitura de textos impressos.
Proponho-me examinar aqui os esforços Estamos, portanto, n u m impasse: não pode-
desenvolvidos para promover o desenvolvi- m o s ter professores e m todas as aldeias;
mento ligando o ensino magistral à rádio e
aos textos impressos. Tentarei resumir o que
já foi realizado para orientar a acção futura
e para salientar os problemas ainda não 1. R . N W A N K W O I , «Educational uses of broadcas-
ting», e m : S. W . H E A D (dir. publ.), Broadcasting
resolvidos. in Africa, p. 303, Philadelphia, Temple Univer-
É fácil expor o problema. Ainda recente- sity Press, 1974.

247
Hilary Perraton.

podemos ter rádio e textos impressos, m a s aprende o u realiza qualquer acção m e s m o


não é essa a melhor maneira de aprender quando falha u m a emissão, enquanto o
sozinho. A solução consistirá e m combinar melhor programa radiodifundido do m u n d o
a radiodifusão e o estudo colectivo? Projec- só é útil na medida e m que é ouvido e tra-
tos executados e m África nos últimos dez balhado.
anos provaram que se trata de u m a técnica Estes projectos mistos repartem-se por
importante, até m e s m o determinante, para a quatro categorias: os grupos de estudo c o m o
educação e o desenvolvimento dos adultos — as tribunas radiofónicas rurais do G a n a ou
falo sobretudo de África, pois a minha expe- os grupos criados por organismos c o m o o
riência e a do International Extension College I N A D E S (Instituto Nacional Africano de
provêm essencialmente desse continente, mas Desenvolvimento Económico e Social) na
penso que se encontrariam exemplos compa- África Ocidental, ou o Agriservice da Etió-
ráveis na Ásia ou na América Latina. O estudo pia; os programas destinados a apoiar orga-
colectivo proporciona aos indivíduos a pos- nismos sociais o u políticos existentes; as
sibilidade de participar no processo de ensino campanhas intensivas de curta duração,
e na acção que daí decorre. c o m o as que foram lançadas na República
Nyerere escreveu e m 1968: «Devemos fazer Unida da Tanzânia a partir de 1970; e os
parte da sociedade que transformamos; deve- programas destinados a alargar a audiência
m o s trabalhar a partir do interior e m vez de da escola. Examinemos cada u m a destas
descer do nosso pedestal, c o m o os antigos categorias para, e m seguida, podermos tirar
deuses, que faziam qualquer coisa e desapa- certas conclusões gerais.
reciam. U m país, u m a aldeia, u m a comuni-
dade não p o d e m ser desenvolvidos, p o d e m
Grupos rurais 2
apenas desenvolver-se eles próprios... Se pre-
tendemos promover u m desenvolvimento real,
A ideia partiu do Canadá. Grupos de agri-
devemos procurar a participação da popula-
cultores vítimas da depressão dos anos trinta
ção. A s pessoas instruídas podem assumir o
formaram-se para seguir programas radiofó-
comando deste desenvolvimento — e devem
nicos rurais e agir concertadamente após estes
fazê-lo. M a s só poderão transformar a socie-
programas. Destas reuniões nasceu u m a acção
dade se trabalharem a partir do interior1.»
cooperativa, especialmente e m matéria de
Muitos projectos radiofónicos fazem-nos pen-
comercialização. Esta ideia foi introduzida
sar nesses deuses: vindos do éter, pretendem
na índia, no G a n a e e m outros países, e as
modificar a vida das aldeias sob o impulso
tribunas radiofónicas continuam a ser u m
da metrópole. M a s , se u m projecto de edu-
aspecto importante da educação rural nos
cação combinar o ensino à distância —uti-
diversos países de África. Consagram-se emis-
lizando a rádio e textos impressos— e a
sões radiofónicas ao melhoramento da agri-
acção colectiva no seio da comunidade, per-
cultura o u da comercialização; são escuta-
mitirá integrar u m a informação útil da ori-
das por grupos de agricultores que estudam
gem externa nas forças latentes da comuni-
e m conjunto a maneira de tirar partido do
dade. Experimentaram-se várias fórmulas,
que aprenderam, aplicando o que decidirem.
que diferem pelo estilo das emissões e pelo
O I N A D E S , cuja sede é e m Abidjan, adop-
tipo dos textos impressos. Pela minha parte,
tou u m a abordagem u m pouco diferente.
considero que o contacto directo c o m o
Apresenta u m número limitado de emissões,
professor é o elemento mais importante e
mais difícil de introduzir c o m sucesso.
C o m o é evidente, a elaboração dos cursos 1. J. K . N Y E R E R E , Freedom and development, p . 25,
radiodifundidos e impressos não é fácil, Dar es Salaam, Oxford University Press, 1973.
m a s nada é mais delicado de manejar d o 2. T . D O D D S , Multi-media approcaches to rural edu-
que o elemento h u m a n o . U m b o m grupo cation, Cambridge, International Extension Col-
lege, 1972.

248
Aprender a viver melhor

preferindo fornecer cursos de agricultura im- obter fundos»). O s meios utilizados compu-
pressos, concebidos para o estudo colectivo. nham-se de u m manual, de u m a série de emis-
«Estes cursos apresentam-se sob a forma de sões radiodifundidas e de «notas» destinadas
u m a série de brochuras, contendo cada u m a aos membros dos comités reunidos para ouvir
delas matéria de três ou quatro lições. São as emissões. Estas deveriam seguir-se de u m a
explicados de maneira simples e directa» c o m discussão susceptível de permitir u m a actua-
a ajuda de u m vocabulário que não ultrapassa ção mais eficaz dos comités.
600 palavras1, sendo os termos técnicos defi- Neste caso, utilizaram-se a rádio e os textos
nidos por palavras deste vocabulário de base. impressos para apoiar o trabalho de organi-
Para o estudo destes cursos, o I N A D E S esti- zações políticas já existentes. A estrutura dos
mula a formação de grupos, se possível na base comités forneceu u m modelo para o estudo
de unidades sociais existentes — aldeias, famí- e a acção colectivas. Se este modelo fosse
lias ou grupos etários. Desde o início que os permanente, o programa estender-se-ia por
grupos são acompanhados por u m agente de u m período limitado : a experiência aproximar-
divulgação, que trabalha c o m eles servindo-se -se-ia, então, mais das campanhas tanzanianas
do material disponível para explorar colecti- do que dos grupos rurais acima descritos.
vamente u m terreno. Está prevista a infor-
mação retroactiva: os grupos de agricultores
completam e m conjunto u m questionário à Campanhas de estudo
medida que avançam no estudo de u m a brochu-
ra e enviam-no para a sede do I N A D E S onde E m 1970, a República Unida da Tanzânia
as respostas são examinadas e comentadas. lançou u m a campanha nacional de educação
dos adultos sobre os objectivos e o desen-
Assim, as tribunas radiofónicas rurais e os
volvimento das eleições, utilizando para este
grupos do I N A D E S salientam a discussão e
efeito u m a série de emissões radiofónicas,
a acção colectivas, estimuladas pelo material
textos impressos e grupos de escuta organi-
recebido do exterior. O s grupos devem ser
zados. Três anos depois, «foi lançada u m a
estáveis e, embora se possam apoiar e m insti-
campanha muito mais importante de escuta
tuições sociais existentes, são criados, e m
colectiva sob o n o m e de Mtu ni Afya (literal-
geral, tendo e m vista o ensino rural.
mente «o h o m e m é a saúde»). Abrangeu
cerca de dois milhões de cidadãos. Pela pri-
Auxílio às instituições existentes meira vez, não se tratava de u m a campanha
de informação cívica ou económica: tinha
T a m b é m podemos utilizar os métodos de
por tema a educação sanitária. Está confir-
ensino à distância para ajudar as instituições
m a d o que ela incidiu espectacularmente sobre
existentes. Assim, no Botswana, o ministério
certos hábitos sanitários de u m grande número
e m causa pediu que o Botswana Extension
de pessoas2.» O programa previsto para u m
College elaborasse u m programa destinado
período limitado visava a formação de 75 000
aos comités de desenvolvimento das aldeias;
animadores e deveria permitir não só aumen-
n u m país tão grande c o m o o Botswana não
tar os conhecimentos sobre a saúde, c o m o
teria sido possível reunir todos os membros
ainda melhorar as práticas sanitárias: nas
destes comités para que seguissem u m a for-
duas primeiras semanas, realizaram-se 1200
mação e, assim, os métodos de ensino à dis-
acções colectivas contra o paludismo e, depois
tância pareceram particularmente apropria-
da campanha, foi assinalada a construção de
dos. O programa destinava-se a fornecer infor-
centenas de milhares de latrinas.
mações mais completas sobre o papel dos
comités, as suas relações com a colectividade
e c o m os poderes públicos e o seu campo de 1. Ibid., p . 22.
acção (um capítulo do manual preparado pelo 2. B . L . H A L L e T . D O D D S , Voices for developmen :
the Tanzania national radio study campaigns, p . 9,
College para os comités intitula-se « C o m o Cambridge International Extension College, 1974.

249
Hilary Perraton

O método da campanha de escuta radiofó- fornecem, de maneira mais ou menos cor-


nica — de grande envergadura, intensiva, na recta e honesta, meios de realizar estudos
qual participam muitos organismos públicos secundários. Foi assim que a organização de
diferentes e que mobiliza a atenção da popu- cursos por correspondência destinados àque-
lação para u m único problema durante u m les que não p o d e m frequentar a escola cons-
tempo limitado— também foi adoptada no titui a principal actividade d o serviço dos
Botswana. Organizada pela universidade e m cursos por correspondência d o Ministério
1973, a campanha relativa ao plano de desen- da Educação da Zâmbia.
volvimento nacional para 1973-1978 é actual- Trata-se de u m a via difícil e solitária, e ten-
mente seguida por u m a campanha sobre as tou-se, por vezes, a criação de centros de
pastagens tribais orientada por diversos estudos ligados às escolas, afimde ajudar os
organismos públicos. Trata-se de informar que se instruem por correspondência. O ensino
o público sobre as modificações introduzidas por correspondência e pela rádio continua a
no regime rural tradicional e de dar a conhe- ser o elemento principal, mas os alunos podem
cer aos poderes públicos a maneira c o m o a receber conselhos, estímulos e ajuda e m caso
nova política é acolhida e deve ser executada de dificuldade de u m professor mais encar-
aos níveis local e nacional. A campanha tem regado de os aconselhar do que de os ensinar.
u m duplo objectivo: conduzir a u m a acção Criaram-se centros de estudo deste tipo no
ao nível local e permitir decisões políticas ao Botswana e na Suazilândia; os projectos ten-
nível d o distrito e do país, tendo e m conta as dentes a organizá-los no quadro de u m a ope-
reacções dos grupos de estudo. T a m b é m é ração mais ambiciosa, na ilha Maurícia,
considerada c o m o o ponto de partida para está unicamente à espera de financiamento.
u m programa, de longo alcance desta vez, de Esta fórmula parece muito modesta, sobre-
educação rural sobre os temas da utilização tudo e m comparação c o m a extensão dos
e da beneficiação das terras. programas de educação pela rádio da Repú-
blica Unida da Tanzânia, por exemplo. M a s
pode desempenhar u m papel mais importante
A escola alargada do que parece, se considerarmos que permite
que u m a escola se ocupe tanto das crianças
E m toda a África, são muitos os que desejam não escolarizadas c o m o dos privilegiados que
prosseguir os estudos para além do nível pri- a frequentam; por outro lado, pode ser útil
mário, m a s que não o p o d e m fazer: tentou-se, mostrar que grupos de alunos que recebem
sob diversas formas e por diversas ocasiões, do exterior u m a grande parte da sua educa-
responder a esta aspiração. N a ilha Maurícia, ção possam, no entanto, beneficiar dos recur-
o sector privado interveio e criaram-se «colé- sos disponíveis n o seio da colectividade.
gios cogumelos» e m toda a ilha, oferecendo
possibilidades de educação — e m geral, m e -
díocres — paralelamente ao sistema nacional. Que aprendemos?
A s «brigadas» do Botswana e as «escolas
politécnicas camponesas» d o Quénia repre- Acabamos de passar rapidamente e m revista
sentam tentativas para dispensar u m ensino u m sector vasto e complexo da educação;
secundário de tipo diferente, correspondente trata-se de inserir n u m contexto apropriado
às necessidades da sociedade. E m toda a o que aprendemos sobre o ensino directo nos
África são muitos os que tentam efectuar projectos multi-media ou de ensino à distân-
estudos secundários por correspondência; cia, pois, c o m o mencionei, todas as espécies
m a s são muitas vezes enganados por direc- de projectos de educação, é possível formu-
tores de estabelecimentos comerciais sem lar certas conclusões gerais c o m o ponto de
escrúpulos. O s estabelecimentos públicos de partida para outras experiências deste tipo.
ensino por correspondência multiplicam-se : Referem-se, e m particular, aos quatro aspee.

250
Aprender a viver melhor

tos que se seguem: o diálogo, a informação — e não de aprender factos novos — do que
retroactiva, o desenvolvimento e as modali- o ensino didáctico2. E m todo o caso, abs-
dades práticas. traindo destas considerações morais e teóricas,
Desde Sócrates a Freire todos os educado- é u m a fórmula mais eficaz. C o m o talvez pro-
res têm pensado que o diálogo está no cerne v e m as latrinas construídas n a República
da educação. E u m a das necessidades que Unida da Tanzânia, e m 1973, após o Mtu ni
enfrentamos é a necessidade de conciliar as Afya; de assinalar ainda que a eficácia dos
economias de escala, que podemos obter por comités de desenvolvimento de aldeia que, no
meio da produção centralizada do material Botswana, se seguiram ao nosso programa,
pedagógico, c o m o diálogo, que é indispen- tem aumentado e que a sua acção de desen-
sável se pretendemos que a educação seja volvimento se intensifica.
libertadora e não «bancária», como diz A combinação do ensino directo c o m mate-
Freire: « N a concepção bancária da educa- rial impresso e radiodifundido b e m concebido
ção, o saber é u m d o m que aqueles que se e cuja produção está centralizada permite
consideram instruídos concedem àqueles que difundir a informação mais rapidamente e
julgam ignorantes1.» Para que o desenvolvi- mais amplamente (e provavelmente c o m m e -
mento seja útil e eficaz, são necessários dois nos despesa) do que unicamente através dos
tipos de conhecimentos: os conhecimentos métodos tradicionais do ensino directo. O diá-
técnicos (melhores métodos de cultura, saúde, logo permite ainda ter e m conta conheci-
planeamento familiar, etc.) fornecidos pelos mentos locais e tornar o ensino mais eficaz.
nossos tecnólogos e pelos nossos cientistas, A informação retroactiva decorre natural-
e também o conhecimento das condições mente do diálogo. U m grupo de estudo e m
locais, dos homens de determinada região, que u m único m e m b r o seja alfabetizado pode
que o c o m u m dos mortais possui. Os nossos fornecer esta informação retroactiva aos
problemas afectivos atingem u m a tal extensão elaboradores do programa. A informação
que os nossos raros tecnólogos não p o d e m retroactiva exerce, pelo menos, três funções.
encarregar-se da educação no plano nacional. E m primeiro lugar, permite que os grupos
Quanto à tarefa que consiste e m adaptar as de estudo participem n o programa — por
suas soluções a u m a situação dada, c o m exemplo, os problemas apresentados por estes
todas as suas particularidades, deve ser da grupos p o d e m ser utilizados e m emissões
competência de todos os que vivem essa situa- radiodifundidas. E m segundo lugar, permite
ção. É aqui que a abordagem do estudo colec- que os que planificam o programa o modifi-
tivo adquire todo o seu sentido. q u e m durante a sua utilização ou prevejam
Determinado serviço de u m ministério pode- a fase seguinte e m função das necessidades
ria muito simplesmente produzir programas locais. Assim, n o Botswana, quisemos conhe-
radiofónicos o u brochuras, por exemplo, cer os tipos de projectos de desenvolvimento
sobre os melhores métodos de cultura, e asse- desejados pelas aldeias, a fim de conceber
gurar-lhes u m a ampla difusão. M a s este m o d o ulteriormente programas mais específicos cor-
de agir impõe às aldeias u m a solução sem ter respondendo a estas necessidades.
e m conta as diferenças locais e reduz os cam- N a ilha Maurícia, a informação retroac-
poneses ao estado de objectos. Pelo contrá- tiva respeitante a u m programa de planea-
rio, se utilizarmos o m e s m o material c o m o mento familiar intitulado A minha vida amanhã
ponto de partida para u m estudo colectivo, forneceu dados susceptíveis de formar a base
os que esperam tirar partido da informação
p o d e m estudá-la, ver c o m o ela se aplica à
sua situação e desempenhar u m papel activo 1. P . FREIRE, Pedagogy of the oppressed, p. 58,
no desenvolvimento que procuram. Além N e w York, Herder, 1972.
2. E . M . ROGERS, F. L . SHOEMAKER; Communica-
disso, o estudo colectivo parece constituir tion of innovations, pp. 288 e segs., N e w York,
u m meio melhor de modificar as atitudes Free Press, 1971.

251
Hilary Perraton

de u m a acção e m sectores inteiramente novos unicamente para guiar os educadores, orienta


da educação relativa ao planeamento familiar. a política relativa a u m problema chave.
A informação retroactiva pode desempenhar A sua incidência será sentida a dois níveis:
u m papel mais modesto m a s igualmente essen- ao nível nacional, sobre o conjunto da polí-
cial: permitir que os organizadores melhorem tica e, ao nível do distrito, sobre a repartição
o que fazem. das terras entre as três categorias, e sobre as
E m terceiro lugar, podemos utilizar a infor- regras relativas ao regime rural. C o m o a exe-
mação retroactiva para alterar as decisões e cução do programa teve início e m Junho de
as acções políticas. Foi o que se passou nò 1976, é ainda demasiado cedo para avaliar a
Botswana depois do programa sobre as pas- eficácia desta informação retroactiva política.
tagens tribais. Por razões de ecologia, de eco- M a s , u m programa piloto executado e m
nomia e de justiça social, revelou-se neces- Dezembro de 1975 indicou que os grupos de
sário modificar o regime rural das terras estudo salientavam exactamente os sectores
tribais do Botswana—que representam m e - nevrálgicos nos quais se determinava o futuro
tade da superfície total. A s terras, que sempre da política adoptada e nos quais os poderes
foram tratadas e exploradas colectivamente, públicos não tinham ainda reconhecido a sua
dividir-se-ão, no futuro, e m três categorias: linha de conduta — as deslocações entre
os terrenos comunais a explorar pela colec- distritos, a repartição das forragens e a sua
tividade e onde não existirão domínios sepa- incidência quando os movimentos de gado
rados por vedações; as explorações comerciais foram mais limitados, as modalidades da
que são objecto de u m contrato de arrenda- criação de sindicatos de criadores de gado, etc.
mento; e os terrenos reservados para u m a Assim, u m a das funções dos grupos de
exploração ulterior. N o quadro do programa estudo n o ensino directo consiste e m forne-
de informação do público que precede estas cer u m a informação retroactiva; a experiên-
alterações, o governo do Botswana criou u m cia prova que este papel cria u m sentimento
projecto de estudo colectivo cujos objectivos, de utilidade nos participantes, permitindo
definidos n u m documento oficial, são os que os educadores e os responsáveis políticos
seguintes: tenham conhecimento de dados muito impor-
« . . . O programa de informação do público tantes.
tem por objectivo principal dar a conhecer Alterar a vida individual ou familiar é o
a política seguida. M a s tem ainda mais três objectivo da maior parte dos programas de
objectivos : estimular a troca de opiniões entre educação e m causa. D e acordo c o m os resul-
o público, informar os conselhos rurais, os tados do I N A D E S , das tribunas radiofónicas
conselhos de distrito e o governo central rurais e das campanhas tanzanianas, as dis-
sobre a maneira c o m o a população considera cussões de grupo conduzem a alterações prá-
a aplicação da política local, e iniciar o longo ticas. M a s é ainda u m domínio delicado:
processo que consiste e m ajudar os indivíduos devemos agora aprofundar os meios de trans-
a aprender c o m o p o d e m beneficiar da polí- formar u m grupo de estudo colectivo n u m
tica seguida, por exemplo, formando grupos grupo que procura efectivamente melhorar
ou sindicatos de pequenos criadores de o seu próprio ambiente: é o que passarei a
gado...» examinar, determinando o que devemos ainda
Depois de ter recolhido a opinião d o aprender.
público, o governo tomará medidas para dar Descobrimos progressivamente, através da
seguimento às opiniões expressas. Se neces- experiência, as modalidades práticas destes
sário, reverá a política definida no presente projectos. B e m entendido, é impossível enun-
documento e submeterá ao parlamento as
modificações resultantes da consulta à popu-
lação1. 1. Government paper n.° 2 of 1975, National policy
on tribal grazing land, p . 18, Gaborone, G o -
A informação retroactiva não serve, pois, vernment Printer, 1957.

252
Aprender a viver melhor

ciar regras gerais para a hora de difusão das A informação retroactiva é u m elemento
emissões, o estilo do material pedagógico a importante, que tem pelo menos três funções:
empregar, a criação de grupos mistos ou não obrigar o aluno a participar no projecto,
e muitos outros problemas que devem ser instruir o educador a fim de aumentar a sua
resolvidos e m cada caso particular. M a s a eficácia e fornecer u m a informação para as
experiência mostra geralmente que a forma- decisões políticas.
ção de animadores é u m elemento determi- O estudo colectivo deve ser concebido
nante que, e m muitos países, suscita talvez — pelo menos para a educação extra-esco-
mais problemas do que na República Unida lar— de tal m o d o que o grupo passe do
da Tanzânia, onde o professor da escola pri- ensino à acção.
mária já é aceite como encarregado também É essencial escolher o animador adequado.
da educação dos adultos. E m outros países, O s animadores de grupo devem receber u m a
os animadores de grupos — e e m especial formação; o seu papel é diferente do de u m
os professores— adaptaram-se dificilmente professor do ensino primário tradicional.
a u m papel onde não se trata de fornecer
informações m a s de estimular a discussão.
Mais u m a vez se podem aplicar as primeiras Problemas
conclusões retiradas da experiência do Bots-
wana: no programa piloto relativo às pasta- A experiência adquirida permite-nos deter-
gens, que foi executado e m Dezembro de 1975, minar as principais dificuldades encontradas
as animadoras obtiveram melhores resultados na execução de numerosos projectos e para
do que os animadores, as mães de família os quais possuímos ainda poucas soluções
foram melhor sucedidas do que os profes- eficazes. Enumero-as resumidamente, consi-
sores, e os animadores recrutados após u m a derando que estão identificadas, embora não
reunião de aldeia (kgotla) realizaram melhor superadas.
trabalho do que os que tinham sido nomea- Programas longos ou curtos: pretendemos
dos por u m divulgador depois de u m a visita campanhas de curta duração, modeladas pelo
ao domicílio do candidato, ao seu local de grupo de escuta tanzaniano, ou programas
trabalho, ao clube ou à organização a que de longo alcance, c o m as tribunas radiofó-
pertencia1. Conclusão provisória, m a s que nicas rurais? A resposta depende muitas
se impõe: é necessário recrutar e formar os vezes da natureza do programa de estudos.
animadores tendo rigorosamente e m conta M a s , frequentemente, a análise dos objecti-
os valores da sociedade e m que trabalham. vos do programa não indica qual é a melhor
N ã o basta que estes animadores saibam como solução, n e m qual é a melhor combinação
dirigir u m grupo de adultos — embora se das duas fórmulas.
trate já de u m a tarefa considerável; devem É sempre difícil assegurar a informação
também, idealmente, ser aceites c o m o ani- retroactiva, particularmente quando se trata
madores e inovadores pela sua própria de u m a operação de grande envergadura. Se
sociedade. provém de u m grande número de grupos,
Podemos, portanto, elaborar agora, para o organismo responsável corre o risco de
os projectos de educação tridireccional, u m a ficar submerso. U m a amostra seria sufi-
primeira série de princípios decorrentes prin- ciente? Para os educadores talvez, m a s não
cipalmente da prática e justificados pelo fornece a resposta individual que pode dese-
sucesso. Resumamo-los: jar u m grupo de estudo ou u m a aldeia.
O s projectos de ensino à distância que A acção deve acompanhar o ensino na
exigem o estudo colectivo são eficazes.
O s projectos devem ser concebidos de tal 1. Evaluation Unit Botswana Extension College,
m o d o que se instaure u m diálogo no seio ínterim evaluation report to grazing committee,
dos grupos. Gaborone, BEC, 1976.

253
Hilary Perraton

maior parte dos casos. M a s , levar u m grupo neira de incorporar u m sistema de ensino
de pessoas a ouvir rádio e m conjunto ou a nestas estruturas, a fim de se adaptarem
estudar é muito diferente de empreender u m a melhor ao ritmo e às necessidades da exis-
acção perdurável. Para resolver problemas tência quotidiana.
deste tipo, é necessário que nos preocupe- Finalmente, estas diversas fórmulas con-
m o s mais c o m a natureza das organizações tribuem apenas c o m alguns elementos de res-
sociais — dos grupos de alunos e da sua situa- posta parcial aos grandes problemas de
ção — do que c o m a produção do material. educação. Muitos educadores expõem demora-
É do lado dos alunos e não dos professores damente as insuficiências do ensino secundário
que se situam os problemas difíceis e impor- tradicional, m a s é muito mais difícil saber o
tantes. que o deve substituir ou completar, para res-
O s centros de estudos por correspondência ponder simultaneamente às necessidades dos
p o d e m parecer muito longe dos grupos de alunos que terminam nesta fase os seus estu-
estudo colectivo sobre os quais nos debruçá- dos a tempo integral, às dos que os prosse-
m o s ; na realidade, são os mesmos indivíduos guem ... e às das sociedade. Talvez se chegue
que são abrangidos. O especialista do desen- a u m a solução parcial combinando judiciosa-
volvimento comunitário que trabalhou n o mente o material pedagógico cuja produção
Botswana Extension College sobre o pro- está centralizada e o estudo colectivo. Talvez
grama de desenvolvimento das aldeias verifi- mais importante ainda é o facto de não nos
cou que, nas reuniões de aldeia, não cessava encontrarmos — muito longe disso — no
de responder a perguntas sobre os programas ponto e m que a maior parte dos indivíduos
de exames. Existem dois problemas: e m pri- pode definir e exprimir as suas próprias
meiro lugar, poderão estes grupos ser igual- necessidades de educação (nem m e s m o na-
mente ligados, de u m a o u outra maneira quele e m que contribuir para este processo é
à educação extra-escolar? E m segundo lugar, considerado o papel central dos responsáveis
poderemos fazer alguma coisa c o m ofimde pela educação dos adultos), actividade cuja
assegurar que estes centros sejam mais do necessidade Paulo Freire apontou e m D a r es
que escolas de terceira categoria para aqueles Salaam 1 . T a m b é m neste caso, a solução par-
que não têm a sorte de aceder aos estabeleci- cial poderia consistir e m incorporar o ensino
mentos de primeira (ou de segunda) cate- directo n u m sistema de ensino à distância e
goria? de informação retroactiva, para conhecer m e -
O s agentes de divulgação desempenham lhor as necessidades humanas fundamentais
e m muitos projectos de educação extra-esco- e m matéria de educação.
lar u m papel importante m a s que entra, por São estes os dados do problema. É por tudo
vezes, e m conflito c o m as suas atribuições isto que a combinação dos diferentes media
tradicionais. O agente de divulgação agrícola ao serviço do ensino pode constituir u m pro-
surge muitas vezes c o m o detentor da chave cesso h u m a n o de contribuir para a educação
dos problemas agrícolas. M a s , quando novas e para o desenvolvimento. N u m m u n d o que
informações chegam por outros meios — tex- carece de recursos educativos, ela pode ser
tos impressos e rádio — o seu papel de infor- de u m a importância capital se aliar a com-
mador ou de guia apaga-se e m proveito de preensão e o conhecimento que o h o m e m da
u m a função de animador. Esta evolução, rua tem da sua própria vida à informação que
que pode ser desejável, é ainda difícil para o a tecnologia nos proporciona actualmente
agente de divulgação. sobre as potencialidades humanas.
A s estruturas sociais existentes, institu-
cionais ou não, são, e m geral, mais impor-
tantes para a população do que os grupos de
1. P. F R E I R E , «Research methods», Studies in adult
estudo ou as tribunas radiofónicas rurais. education, n.° 7, pp. 9 e segs., Dar es Salaam,
Q u e eu saiba, ainda ninguém encontrou m a - Institute of Adult Education, 1973.

254
Gottfried Schneider

A educação dos adultos


na República Democrática
Alemã

Formação contínua, estudos ininterruptos, Democrática Alemã, o seu papel transfor-


educação permanente. Estas reivindicações, m a r e cada vez mais no problema central da
e outras do m e s m o género, são actualmente revolução técnica e científica. Assim, a edu-
formuladas e m muitos países e e m muitas cação dos adultos procura formar espíritos
línguas. N ã o se trata de estribilhos defor- socialistas possuidores de u m a educação
mados, correspondem a u m a necessidade universal.
urgente da nossa época. Necessitamos de u m a C o m o consequência, o objectivo e o con-
qualificação mais desenvolvida, de conhe- teúdo da educação dos adultos caracterizam-
cimentos, de capacidades e de técnicas novas -se pelos seguintes aspectos principais:
para resolver os problemas que actualmente Educação socialista muito completa e de
surgem e m todas as esferas da vida social. nível elevado, baseada n u m sólido conheci-
O problema é o m e s m o , ou quase, e m mui- mento do marxismo-leninismo, ensino da
tos países, m a s a solução apresenta diferen- matemática moderna, das ciências naturais
ças muito nítidas e depende do tipo de socie- e das línguas;
dade considerada. Formação profissional e técnica apoiada
N a República Democrática Alemã, a edu- na ciência moderna;
cação dos adultos baseia-se na posição cen- Desenvolvimento e consolidação constan-
tral que o h o m e m ocupa na sociedade socia- tes da consciência socialista1.
lista, e n o desenvolvimento contínuo das A educação dos adultos na República D e -
suas características, dos seus talentos, das mocrática Alemã está, portanto, de acordo
suas aptidões e das suas qualidades morais. c o m os objectivos fixados pela U N E S C O na
Sendo assim, importa atribuir cada vez III Conferência Internacional sobre a edu-
mais responsabilidades aos indivíduos, fa- cação dos adultos, que se realizou e m Tóquio
zendo c o m que participem mais activamente e m 1972 e onde se afirmou que a educação
na administração e na organização do Estado, dos adultos «é u m instrumento de conscien-
assim c o m o e m todos os processos sociais. cialização, de transformação e de socializa-
O progresso técnico e científico está intima- ção... É o instrumento do desenvolvimento
mente ligado à formação, à educação e ao do h o m e m integral, total, considerado na
desenvolvimento do h o m e m . N a República globalidade das suas funções de trabalho e de
lazer, na sua participação na vida cívica, na
vida familiar, na vida cultural; é o reconhe-

Gottfried Schneider (Republica Democrática Alemã).


Director adjunto do Instituto Central de Formação 1. Ver «Grundsätze für die Aus-und Weiterbildung
Profissional da República Democrática Alemã. Pro- der Werktätigen», Aus der Tätigkeit der Volks-
fessor de pedagogia na Universidade técnica de Dresde. kammer und ihrer Auschüsse, n.° 19, 1970, p . 58.

255
Gottfried Shcneider

cimento e a descoberta das suas qualidades os responsáveis pedagógicos das fábricas


físicas, morais, intelectuais e espirituais». cooperam estreitamente neste domínio c o m
É por isso que, no quadro da educação dos os dos cursos nocturnos, das escolas profis-
adultos, toda a medida da qualificação se sionais, das universidades e dos estabeleci-
centra no conjunto da personalidade h u m a n a . mentos de ensino técnico;
Assim, a unidade do ensino geral e do ensino Difusão e divulgação das últimas desco-
especializado, do ensino profissional técnico bertas no domínio das ciências sociais, natu-
e da educação ideológica, e a interacção da rais e tecnológicas, sobretudo por intermédio
teoria e da prática são princípios fundamen- de organizações sociais (por exemplo, U R A -
tais de toda a medida da qualificação. N I A , Câmara de tecnologia, associações cien-
tíficas);
Formação complementar dos diplomados
das escolas técnicas e das universidades, assim
A educação dos adultos c o m o dos quadros subalternos nos locais espe-
no sistema de ensino ciais das fábricas, das academias do sector
industrial, das escolas técnicas, das uni-
N a República Democrática Alemã, a educação versidades e das escolas das organizações
dos adultos faz parte integrante do sis- sociais;
tema de ensino. Sob este aspecto, está per- Formação complementar dos gestores e m
feitamente de acordo c o m o princípio apre- institutos de gestão socialista da economia,
sentado na II Conferência Internacional sobre das escolas de partido e de sindicatos;
a Educação dos Adultos, que se realizou e m Possibilidade, para os professores e outras
Montreal e m 1970, e segundo o qual «a edu- pessoas que trabalhem no domínio da educa-
cação dos adultos faz parte integrante de ção dos adultos, de adquirir qualificações e m
todo o sistema nacional de educação, estando- locais especiais das empresas e indústrias, nas
-lhe organicamente ligada». escolas técnicas, escolares superiores e uni-
N o sistema de educação dos adultos, todos versidades.
aqueles que já exercem u m a profissão, todos O s cidadãos da República Democrática
os trabalhadores, têm a possibilidade de Alemã tiram plenamente partido destas pos-
melhorar os seus conhecimentos e as suas qua- sibilidades. Cerca de 90 por cento dos diplo-
lificações, no emprego ou durante o tempo mados pela universidade e escolas superiores,
livre. de 88 por cento dos diplomados pelas escolas
N a República Democrática Alemã, a edu- técnicas, de quase 75 por cento dos contra-
cação dos adultos apresenta-se sob as seguin- mestres e de 68 por cento dos operários qua-
tes formas 1 : lificados que exercem u m ofício, adquiriram
Formação e aperfeiçoamento dos operá- a sua formação no país depois de 1946.
rios especializados, dos operários qualifica- O sucesso do sistema integrado de educação
dos, dos chefes de equipa e dos contrames- socialista deve-se, e m grande parte, à educa-
tres2 nos locais ordenados para esse efeito ção dos adultos. Para nos convencermos,
pelas fábricas, cooperativas de produção agrí- basta que tomemos conhecimento dos seguin-
cola o u explorações agrícolas reunidas; tes números:
Consolidação e aprofundamento do ensino E m 1974, cerca de 800000 pessoas traba-
geral por meio de cursos nocturnos, e m clu- lhando na indústria, incluindo a construção
bes e e m centros culturais; civil, frequentaram cursos de preparação para
Possibilidade de adquirir os títulos que con- u m diploma.
duzem a estudos universitários ou técnicos
oferecida aos melhores operários qualifica-
dos, agricultores que trabalhem e m coope- 1. Ver o diagrama da pág. 258.
rativas, chefes de equipa e contramestres; 2. Vigilantes que receberam u m a formação especial.

256
L'éducation des adultes en République démocratique allemande

Educação dos adultos nos


estabelecimentos de ensino
Universidade, (Assistência
públicos e sociais
escola superior, às aulas ou
Academias de operários de escola técnica curso por
fábrica. superior correspondência).
Academias de aldeia.
Associações científicas (por
exemplo U R A N I A e a Câmara
de Tecnologia).
Academia d o sector industrial.
Escola de
Institutos de gestão socialista
técnicos ou d e
da economia.
engenheiros
Cursos nocturnos.
Academia da formação (Assistência às
permanente. aulas o u curso
Tele-ensino. por
S
•o
Academia dos pais. correspondência)
3
Academia das mulheres.
Partidos e organizações sociais. O —.
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Formação
_13 19.
profissional
depois d o Estabelecimento de ensino
Formação profissional
Abitur1 secundário complementar
_I2
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(em geral 2 anos) 11 17
Formação (3 anos) (Abitur)
profissional 10 16
(3 anos)
Ji
!
13

11

10
Estabelecimento secundário de
ensino politécnico geral
c o m 1 0 classes

Educação pré-escolar _6_


^ Possibilidades de frequentar
r estabelecimentos de educação permanente
Infantil 4
-*- Ingresso na vida profissional
T
Passagem da vida profissional 2
à formação permanente Creche
1
1
Titulo que proporciona o acesso à Universidade.

Fio. 1. Estrutura do sistema socialista integrado úe educação n a República Democrática Alemã.

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Gottfried Schneider
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258
A educação dos adultos na República Democrática Alemã

D e 1970 a 1974, cerca de 60 000 adultos total, mais de 1,5 milhões de pessoas segui-
trabalhando no comércio obtiveram u m cer- ram cursos nocturnos.
tificado de aptidão profissional. E m 1974, mais de 8 milhões de pessoas
Durante o m e s m o período, mais de 100 000 assistiram a mais de 200000 conferências
cidadãos frequentaram cursos nocturnos para
organizadas pela sociedade U R A N I A .
ingressar na Universidade ou n u m a escola
técnica; 450 000 adultos atingiram o nível A proporção dos operários agrícolas qua-
do penúltimo ou do último ano frequentando lificados passou de 9,2 por cento, e m 1960,
cursos nocturnos e cerca de 110 000 frequen- para 54,3 por cento e m 1971 ; atingiu 75 por
taram cursos de línguas estrangeiras; no cento e m 1975.

180
171 446

160

140
125 778 136 866
120

100 108 896

80 86 092
76 100
72 202
71 039
60 64 275

44 300
40 40 856

30 110 32 288
31 727
i 20

12 455

1960 1964 1967 1971 1974

aprendizagem

educação dos adultos

mulheres

FÍG. 3. Parte da educação socialista dos adultos no crescimento do número de operários qualificados.

259
Gottfried Schneider

O sistema não impõe limite de idade : todos rios que são os m e s m o s para o conjunto do
p o d e m beneficiar segundo os seus próprios país. Por conseguinte, todas as qualificações,
interesses e a maneira mais proveitosa para si adquiridas nos diferentes elementos do sis-
e para a sociedade. Assim, muitos indivíduos tema, correspondem a u m a norma uniforme
de mais de quarenta anos frequentam cursos e são reconhecidas por todas as instituições
nocturnos para melhorar os seus conheci- de aperfeiçoamento. O que implica que os
mentos gerais. Por exemplo, n a empresa trabalhadores possam passar ao nível supe-
pública V E B IFA-Getriebewerk Brandenburg, rior e, se necessário, mudar de instituição
200 dos 300 trabalhadores que seguiam cur- durante u m ciclo de estudos. O s estabele-
sos nocturnos na academia da fábrica, e m cimentos de ensino e os centros de educação
1972, tinham entre vinte e cinco e quarenta das fábricas e das cooperativas, das comunas,
anos e 31 tinham mais de quarenta anos. dos estabelecimentos sanitários, etc., aplicam
Actualmente, u m trabalhador e m quatro princípios uniformes e programas de estudos
participa n u m programa de qualificação orga- obrigatórios e m todo o país. Recebem ins-
nizada e metódica correspondente às neces- truções dos órgãos de Estado competentes,
sidades actuais e futuras da sua profissão e que os controlam. Devido ao seu carácter
da sociedade no seu conjunto «...para desen- estatal, a educação dos adultos é também
volver inteiramente... (as suas) capacidades e, orientada para o desenvolvimento da persona-
após livre decisão, colocar (as suas) forças lidade. Opomo-nos firmemente a u m a valoriza-
ao serviço do b e m c o m u m e do (seu) b e m - ção unilateral das capacidades, principalmente
-estar pessoal...», c o m o diz a Constituição1. manuais, tendo e m vista u m a actividade
estritamente limitada, que não é acompa-
nhada pelo desenvolvimento das aptidões
intelectuais e pela aquisição de conhecimentos
O carácter estatal fundamentais sólidos e de cultura geral.
e cientifico O montante das despesas públicas consa-
da educação dos adultos gradas à educação quase duplicou entre 1962
e 1973, m a s não nos fornece u m a ideia exacta
O proletariado e todas as forças de progresso do total das despesas efectuadas neste domí-
exigiram sempre que a educação tenha u m nio, e m especial c o m a educação dos adultos.
carácter estatal e u m carácter científico. C o m efeito, a formação profissional prática
Constituem actualmente os pilares do con- dos aprendizes e a maior parte das despesas
junto do sistema educativo da República consagradas aos programas de qualificação
Democrática Alemã, incluindo a educação organizados pelas academias dos operários
dos adultos. de fábrica são financiadas pela própria e m -
Documentos jurídicos c o m o a Constitui- presa. E m geral, esta encarrega-se também
ção, a lei sobre o sistema integrado de educa- das despesas originadas pela participação e m
ção socialista e a resolução da Câmara do seminários e cursos, a preparação das pro-
Povo sobre os princípios que regem a forma- vas de exame e a inscrição nos exames. M u i -
ção e o aperfeiçoamento dos trabalhadores tas empresas adquiriram o hábito de subsidiar
precisam que a educação dos adultos é de a compra dos livros técnicos necessários.
carácter estatal e de carácter científico, tanto Todas as empresas industriais pagam sempre
para as questões fundamentais como para as todas as despesas de participação e m cursos
questões secundárias. especiais, reuniões e conferências.
O carácter estatal da educação manifesta-se
especialmente pelo facto de tudo o que con-
duz a u m exame intermédio oufinal,seja qual
1. Constituição da República Democrática Alemã,
for o nível de qualificação, decorrer de pro- de 6 de Abril de 1968, publicada pela Staatswerlag
gramas de estudos e de formação obrigató- der Deutschen Demokratischen Republik, p. 19.

260
A educação dos adultos na República Democrática Alemã

O carácter científico da educação dos A qualificação profissional é, portanto, u m


adultos é assegurado principalmente pelo con- elemento essencial de todo o plano, e a base
teúdo e pelos objectivos precisos da educação do desenvolvimento contínuo e da segurança
permanente. A fim de resolver os problemas, social dos trabalhadores até à reforma. O s
especialistas das disciplinas consideradas, tra- comités executivos dos sindicatos zelam pela
balhadores experimentados, educadores e realização dos objectivos do plano.
representantes das organizações sociais, e m O s programas de qualificação pretendem,
especial dos sindicatos, fornecem a sua con- antes de mais, transformar os operários espe-
tribuição. cializados e m operários qualificados e per-
O corpo docente encarregado da educação mitir que os indivíduos passem de u m
dos adultos é extremamente competente. trabalho de horizontes limitados para u m a pro-
Todas as vias — academias de empresa, cur- fissão moderna. Além disso, dedica-se u m a
sos nocturnos o u academias de aldeia—• grande atenção ao aperfeiçoamento dos ope-
dispõem de professores a tempo integral per- rários, operários qualificados, chefes de equipa
feitamente qualificados e m ciências sociais, e contramestres. O s objectivos e o conteúdo
no seu próprio domínio de competência e e m deste aperfeiçoamento decorrem d o desen-
matéria de pedagogia. A maior parte possui volvimento social, do desenvolvimento cien-
u m grau universitário. Cientistas, engenhei- tífico-técnico e do da própria empresa.
ros e gestores são convidados, de vez e m U m domínio particular do aperfeiçoamento
quando, a fazer cursos sobre diversos assun- profissional é o da formação dos contrames-
tos: os elevados títulos que possuem e e sua tres. Depois de u m período experimental bas-
grande experiência constituem u m a garantia bante longo, esta formação é assegurada, desde
do carácter científico da educação dos 1973, da seguinte maneira 1 :
adultos. Formação de base (a m e s m a para todas as
especializações).
Preparação para o papel de animadores das
Educação dos adultos colectividades socialistas: ensino d o m a r -
e qualificação profissional xismo-leninismo, dos rudimentos da pedago-
gia e da psicologia, da ciência do trabalho e
A qualificação profissional, que está sempre da economia industrial.
ligada a u m desenvolvimento da cultura geral, Formação técnica (diferente segundo os
é u m elemento essencial da educação dos adul- tipos de especialização, que se interpenetram
tos. N ã o pode n e m deve ser de outro m o d o , e m parte).
se pretendemos atingir os objectivos fixados Especialização (trabalhos práticos para os
pela III Conferência Internacional sobre a futuros contramestres correspondendo às exi-
educação dos adultos (Tóquio), segundo as gências do sector de produção considerado).
quais esta deve ser « u m instrumento de pre- Todos os programas de formação são exe-
paração para a actividade produtora, ... para cutados pelas academias de operários de
a participação e para a gestão da empresa». fábrica, de aldeia o u de cooperativa. Incluem
É u m a das razões pelas quais os directores lições teóricas ministradas e m salas modernas
de fábrica e de empresas industriais são res- a classes o u grupos e u m a formação prática
ponsáveis pela qualificação dos trabalhadores nos locais de trabalho, e m laboratório peda-
do estabelecimento. A s normas educativas gógico o u c o m a ajuda de material de simu-
que são actualmente requeridas e que o serão lação e experimental. Esta formação é c o m -
no futuro figuram entre as actividades de
planificação da empresa tal c o m o os índices
económicos, técnicos ou tecnológicos. Todas
as maneiras de racionalizar o trabalho tem 1. Ver «Verordnung über die Aus-und Weiterbildung
der Meister», Journal juridique, I, n.° 33-173,
incidências sobre o plano da educação. pp. 342-344.

2ÓI
Gottfried Schneider

Formação dos contramestres (até 2 anos)

Especialização Especialização dos contramestres (em geral no sector Segundo os indivíduos


(2-3 meses) do futuro emprego), preparação para a direcção de e os empregos.
u m a secção.
Formação técnica Tecnologia. Formação diferente
(5-6 meses, pelo menos Funcionamento das máquinas, aparelhos e instrumentos para 115 especializações
480 horas) Economia de materiais
Técnicas de ensaio, de medida e de contrôle
Outras matérias de acordo c o m os domínios de espe-
cialização
Incluindo: saúde, trabalho, protecção contra o incêndio
e defesa civil
Formação de base Gestão socialista da economia (237 horas) Formação idêntica
(10 meses; 851 horas) Ciência socialista do trabalho (120 horas) para todas as
Fundamentos pedagógicos e psicológicos das especializações
actividades de gestão socialista (142 horas)
Noções fundamentais defilosofiamarxista-leninista
(74 horas)
Noções fundamentais de economia política
(126 horas)
Comunismo científico e noções sobre a luta do
movimento operário alemão e internacional
(52 horas)

pletada por conferências realizadas durante o da vida social, e, e m especial, no da educação


trabalho e em. outros locais. Outras formas dos adultos. Quanto à promoção e à quali-
de educação de adultos: os estudos individuais ficação das mulheres que trabalham a tempo
empreendidos por meio de material pedagó- integral está determinado o seguinte:
gico, escrito e audiovisual, as consultas e as Antes da formação, as empresas devem
entrevistas c o m os professores, os directores estabelecer c o m as mulheres interessadas acor-
de empresa e os colegas. dos sobre a qualificação que determinem os
objectivos e a duração da formação, a cola-
boração de u m conselheiro, o número de
horas de ausência autorizada do trabalho,
Acesso das mulheres a garantia da conclusão da formação (por
à educação dos adultos exemplo, e m caso de doença, de doença de
e m pé de igualdade u m filho, de gravidez), as entrevistas c o m a
direcção.
Mais de 80 por cento das mulheres e m idade A formação deve ser assegurada de m o d o
de trabalhar exercem u m a profissão, propor- racional, tendo e m conta as qualificações já
ção muito mais elevada do que e m muitos adquiridas, o trabalho realizado no plano pro-
outros países. fissional e privado e a profissão exercida.
N a base das directivas respeitantes à pro-
moção das mulheres, estabeleceram-se regu-
lamentos específicos nos diferentes domínios 1. Journal officiel, H , n.° 74, 1972, pp. 860-861.

262
A educação dos adultos na República Democrática Alemã

FIG. 4. As mulheres na indústria.

O s directores de empresa devem atribuir às N o que diz respeito aos objectivos e ao


mulheres postos que correspondam às suas conteúdo da qualificação, não existe diferença
qualificações. entre homens e mulheres.
A s mães de u m a ou mais crianças devem A organização da educação dos adultos
ser dispensadas do trabalho durante u m dia tem e m conta as responsabilidades particulares
por semana para seguirem cursos teóricos; das mulheres —família, trabalho por equi-
as mulheres c o m trêsfilhosou mais p o d e m pas, etc. Por este motivo, criaram-se classes
ser dispensadas do trabalho dois dias por reservadas às mulheres, a fim de adaptar a
semana. formação permanente e m função das fases
A s mulheres devem receber o equivalente difíceis da vida feminina. Para estes cursos,
ao seu salário médio. muitas empresas convidam os melhores pro-
Todas estas estipulações são, e m primeiro fessores e dispõem de material pedagógico
lugar, de ordem social e socioeconómica. moderno. Assim, a educação dos adultos
M a s trata-se de condições importantes da contribui para vencer o atraso histórico
qualificação das mulheres que trabalham a — e ainda visível e m certos sectores — das
tempo integral. mulheres no domínio da qualificação.

263
Ignacy Waniewicz

A educação dos adultos


em Ontário

Ontário, província situada no Canadá Central, por cento para os jovens de dezasseis anos, a 69
conta com mais de oito milhões de habitantes. por cento para os jovens de dezassete anos e
A superfície total da província é de mais de a 34 por cento para os jovens de dezoito anos.
quatrocentas mil milhas quadradas (ou seja, O sistema escolar pós-secundário apresenta
mais de um milhão de quilómetros quadrados), duas vias principais: os colégios comunitários,
mas a grande maioria da população vive na com mais de 90 c a m p u s que servem as prin-
parte sul da província, cuja superfície não cipais regiões económicas de Ontário, e as
chega a perfazer um terço da superfície total. universidades.
O sistema escolar de Ontário ministra o Os colégios comunitários foram criados nos
ensino primário e secundário a todas as crian- anos sessenta essencialmente com o objectivo
ças e jovens susceptíveis de beneficiarem desse de proporcionar programas de nível pós-secun-
ensino. O ciclo escolar inclui a escola infantil,dário orientados para o emprego aos diploma-
oito anos de ensino primário e cinco anos de dos do secundário que necessitam de formação
ensino secundário. A escolaridade é obrigató- e de instrução pós-secundárias diferentes das
ria desde 1870. Actualmente, vai dos seis aos fornecidas pelas universidades. Estes estabe-
dezasseis anos; a escola infantil recebe as lecimentos propõem, além disso, programas
crianças de cinco anos que os pais pretendam destinados a responder às necessidades em maté-
enviar para a escola, mas, na prática, quase ria de educação dos adultos e dos jovens não
todas as crianças dessa idade estão inscritas. escolarizados, quer sejam, ou não, diplomados
Depois da segunda metade dos anos sessenta do secundário.
muitas escolas abriram jardins infantis e, em Em 1975-1976, o número de estudantes a
1974, a percentagem das crianças de quatro tempo integral dos colégios comunitários atin-
anos que frequentava estas classes era de 33 por gia cerca de 60 000, contra cerca de 160 000
cento. No que respeita ao secundário, em 1974- estudantes a tempo integral nas universidades.
-1975, a taxa de inscriçõesl elevava-se a 87 No entanto, o número de estudantes que frequen-
tam cursos a tempo parcial nos colégios ultra-
passa consideravelmente o dos estudantes a
tempo integral, enquanto o número de estu-
Ignacy Waniewicz (Canadá). Jornalista, produtor- dantes a tempo parcial nas universidades é de
-realizador de emissões televisivas e sociólogo. Director
de Office of Planning and Development do Ontario 75 000. Além disso, várias centenas de milha-
Educational Communications Authority, em Toronto.
Autor de muitos filmes educativos, de programas
televisivos e de publicações neste domínio, como 1. Isto é, a relação entre o número total dos alunos
A radiotelevisão ao serviço da educação dos adultos inscritos nas classes do secundário, com deter-
— A s lições da experiência mundial (Presses de minada idade, e o número total das pessoas com
V Unesco). esta idade.

264
A educação dos adultos e m Ontário

res de adultos beneficiam das fórmulas de edu- da população. O s serviços educativos de Ontá-
cação de tipo não clássico propostas pelos rio estão, e m larga medida, «abertos» . N o
colégios comunitários e as universidades, assim entanto, tendo e m conta o número de «estu-
como por muitas outras organizações, tais como dantes potenciais» e as suas características
os conselhos escolares locais, as organizações demográficas e socioeconómicas, assim c o m o
sociais, comunitárias ou culturais, as autori- as razões pelas quais os «não-estudantes» não
dades municipais, as escolas privadas, os clubes participam e m actividades de educação, somos
desportivos ou outros, etc. forçados a concluir que os serviços educa-
tivos não estão, actualmente, suficientemente
adaptados às necessidades de muitos grupos
A procura de educação específicos.
a tempo parcial Entre aqueles que teriam necessidade de
u m sistema educativo mais acessível, encon-
Quais são a natureza e o alcance da partici- tram-se as mulheres e as pessoas que exer-
pação deliberada dos adultos e m actividades c e m certos tipos de empregos, tais c o m o os
de educação a tempo parcial, de tipo tradi- empregados de escritório, os operários não
cional ou não, n u m a região que conta c o m qualificados e as pessoas que habitam zonas
muitos estabelecimentos de ensino de tipo rurais. A s mulheres que permanecem e m casa,
tradicional? c o m o , de resto, todas as pessoas imobilizadas,
Para responder a esta questão, efectuou-se procuram t a m b é m possibilidades de educação
u m inquérito por sondagem orientado pelo que lhes estejam adaptadas.
Ontario Educational Communications Autho- O s resultados do estudo indicam claramente
rity ( O E C A ) 1 . O s resultados deste inquérito, que os adultos que trabalham têm necessidade
que foram recentemente publicados2, indi- de fórmulas e de serviços novos e mais diver-
c a m que o número de adultos da provincia sificados e m matéria de educação. Estes ser-
que seguem activamente u m a formação o u viços, cuja necessidade começa a fazer-se sentir,
qualquer tipo de ensino é, de facto, muito deveriam atender — mais d o que os servi-
elevado. O impacto desta forma de educação, ços existentes — às limitações que se devem
assim c o m o o interesse que lhe dedicam aque- ao tempo, à situação geográfica, à possibili-
les que ainda não participam n u m processo dade de deixar o domicílio e à de se deslocar.
de aprendizagem sistemática, são visíveis no Seria também aconselhável conceber serviços
conjunto dos grupos etários constituídos pelos mais adaptados às necessidades particulares
adultos e pelas pessoas que estão n o início dos adultos mais jovens e das pessoas de meia
da terceira idade. Pelo menos 1 400 000 adul- idade.
tos — cerca de 30 por cento da população e m N o s grandes centros urbanos, m e s m o
idade adulta — participam efectivamente nu- quando as possibilidades de educação são
m a actividade de aprendizagem sistemática; largamente abertas, urge pensar nos inúmeros
80 por cento pretendem prosseguir esta acti- grupos de adultos que não p o d e m utilizar as
vidade n u m futuro próximo e mais de 800 000 possibilidades existentes.
adultos — ou seja, cerca de 18 por cento da São necessários esforços suplementares se
população e m idade adulta— que, actual-
mente, não exercem qualquer actividade deste
tipo, exprimem a intenção de empreender
estudos n u m futuro próximo (um o u dois 1. O O E C A assegura o funcionamento de u m a rede
anos). de cadeias de televisão educativa e m Ontário,
difunde programas por meio de sistemas de tele-
U m a das principais conclusões que pode- visão à distância e distribui bandas video pelos
m o s tirar destes dados é que, e m Ontário, as estabelecimentos de ensino.
2. Ignacy W A N I E W I C Z , Demand for part-time lear-
possibilidades de instrução são numerosas e ning in Ontario, publicado pelo Ontario Institute
dativamente acessíveis a u m a grande parte for Studies in Education, Toronto, Canada, 1976.

265
Ignacy Waniewicz

pretendemos abrir a educação a diversos outro local de ensino. Estima-se e m 2,6 o


grupos étnicos, e m especial à população fran- número médio de programas de educação e m
cófona de Ontário. que está «inscrito» o «estudante» adulto m é -
O nível de rendimento e o nível de instru- dio. Por outras palavras, os que estão cons-
ção estão estreitamente ligados à participação cientes dos seus esforços para se instruírem
nas actividades de educação para adultos. podem, na maior parte das vezes, indicar mais
Quanto mais instruídas e mais dinheiro ganha- do que u m domínio de estudo pelo qual se
rem as pessoas, mais activamente se interes- interessam particularmente. O s estabeleci-
sarão pelas actividades de educação que se mentos de ensino de tipo tradicional, c o m o as
lhes proporcionem. A variável mais determi- universidades, os colégios, os cursos noctur-
nante da utilização das possibilidades de edu- nos ou os cursos por correspondência, as esco-
cação parece ser o nível de instrução. São as las profissionais, etc., são responsáveis uni-
pessoas cujo rendimento individual familiar camente por 30 por cento do conjunto dos
é mais elevado que utilizam mais estas possi- programas de educação de adultos; 70 por
bilidades, o que parece dever-se ao facto do cento de todas as actividades de educação
seu nível de instrução ser geralmente mais ele- organizadas têm lugar para além do sistema
vado. cujo principal objectivo é a educação.
O fosso que separa os «providos» dos «des- Nestas circunstâncias, onde se instruem,
providos» e m matéria de educação parece então, os adultos de Ontário? Perto de u m
aumentar, a despeito do nível de instrução d o estudante adulto e m dois participa, pelo m e -
conjunto da população parecer elevar-se. nos, e m u m programa de educação elaborado
São necessárias novas iniciativas e esforços por organizações comunitárias, culturais, de
profundos se queremos modificar esta situa- serviços o u similares (tal c o m o os grupos
ção crónica que determina que as classes comunitários, as bibliotecas, os museus, o
socioeconómicas menos favorecidas estejam Y M C A , a Cruz Vermelha, as Igrejas, etc.);
sistematicamente «sub-representadas» entre os 16 por cento de todos os programas de edu-
adultos que desenvolvem actividades de edu- cação estão, de u m a maneira ou de outra,
cação, enquanto as classes média e superior ligados ao local de trabalho dos interessados,
estão constantemente «super-representadas» por se inserirem na execução das tarefas pro-
S e m minimizar estes obstáculos e estas limi- fissionais, por terem lugar no local de traba-
tações manifestas c o m que depara a abertura lho m e s m o sem ter relação c o m as tarefas
das possibilidades de educação (e que não profissionais, o u ,finalmente,por serem exe-
desaparecerão nunca completamente na m e - cutados por outras organizações ou estabe-
dida e m que u m a educação mais eficaz sus- lecimentos, mas patrocinados pelo empresário
cita u m desejo suplementar de educação), ou pelo sindicato profissional. U m número
Ontário dá provas de u m a atitude nova e comparável de actividades deve-se a autodi-
dinâmica quanto à compreensão das necessi- dactas, isto é, a pessoas que procedem, por
dades e m matéria de educação de adultos. sua própria iniciativa e organizando o seu
O resultado é u m a extrema diversidade das trabalho, à aquisição sistemática de certos
fórmulas de educação. conhecimentos e competências. (Convém su-
blinhar que, segundo todas as probabilidades,
o número de pessoas que se dedicam a este
tipo de actividades é muito mais importante
Onde se instruem do que estimámos).
os adultos? O facto da nossa estimação estar manifes-
tamente aquém da realidade explica-se por o
A maior parte dos adultos que participam e m inquérito ter sido efectuado por meio de
actividades de educação frequenta habitual- entrevistas individuais, na base de u m ques-
mente mais do que u m estabelecimento o u tionário que salientava as práticas «educati-

266
A educação dos adultos e m Ontario

vas». Muitas das pessoas que se instruem O ensino de tipo não tradicional abrange
e m determinados domínios ignoram que u m amplo leque de matérias, desde as dis-
exercem u m a actividade educativa e têm ten- ciplinas de carácter profissional e técnico até
dência, portanto, para negar a existência des- ao artesanato e às actividades recreativas.
tas práticas n o que lhes diz respeito. Estudos Contudo, a maioria dos programas que não
efectuados por Allen Tough 1 indicam que conduzem a diplomas consiste e m cursos
quase todos os indivíduos se lançam e m pelo de aperfeiçoamento profissional dos quais a
menos u m a ou duas acções de auto-instrução, maior parte dá lugar à atribuição de u m
por ano, e que este número pode atingir 15 certificado o u de u m atestado.
ou 20 e m certos casos. Talvez seja interes- Algumas universidades criaram colégios
sante notar que todos os autodidactas que se exclusivamente reservados aos estudantes a
definiram c o m o tal durante o nosso inquérito tempo parcial. Assim, o Woodsworth College
participavam e m pelo menos u m programa da Universidade de Toronto põe os recursos
educativo de tipo mais formal. O que parece da Universidade à disposição dos adultos dis-
indicar que os que participam e m actividades postos a empreender estudos sistemáticos a
de educação no quadro de u m estabeleci- tempo parcial. A Universidade conta c o m u m
mento de ensino ou de outra organização total de 20 000 estudantes a tempo parcial,
estão mais conscientes dos esforços de auto- dos quais muitos estão inscritos e m progra-
-instrução que p o d e m empreender. mas de estudos conduzindo a diplomas ou
U m número considerável de adultos bene- certificados. Muitos estudantes seguem cursos
ficia das possibilidades de educação propor- por correspondência. Entre os programas que
cionadas por clubes ou grupos reunindo pes- p o d e m ser seguidos a tempo parcial, incluem-
soas c o m interesses particulares, c o m o os -se, além da preparação dos diplomas de
clubes de leitores, os cine-clubes, os grupos bachelor of arts, de bachelor of science e de
de teatro amador, os clubes desportivos, etc. bachelor of education, os seguintes programas:
N o total, 9 por cento dos programas de edu- primeiro e segundo ano da maior parte dos
cação têm por quadro este género de grupo. programas de formação de engenheiros; pri-
Cerca de 5 por cento dos «estudantes» indi- meiro e segundo ano do programa de formação
caram as emissões de rádio e de televisão de enfermeiras e u m programa de aperfeiçoa-
c o m o u m a das fontes dos seus esforços de mento conduzindo a u m diploma de bachelor
educação: 2 por cento de todas as activi- of science e m reeducação física e profissional.
dades de auto-educação empreendidas por U m colégio análogo, o Atkinson College
adultos baseiam-se e m programas de rádio da Universidade York de Toronto, é u m a
e de televisão. faculdade de letras e de ciências que funciona
Talvez seja interessante descrever resumi- exclusivamente à noite e propõe cursos que
damente alguns dos locais onde se realiza a dão lugar a quatro diplomas: bachelor of arts,
educação dos adultos. bachelor of science, bachelor of arts (adminis-
tration) e bachelor of social work. Este colégio
UNIVERSIDADES funciona segundo o princípio das unidades
de valor e não por anos universitários. N o
As dezassete universidades de Ontário facul- Verão, as aulas efectuam-se também durante
tam aos alunos-estudantes a tempo parcial o dia.
diversos cursos, conduzindo, ou não, a diplo- A Universidade de Waterloo propõe u m
mas. Muitas disciplinas proporcionam u m programa por correspondência incluindo aulas
ensino de tipo tradicional a tempo parcial
concedendo diplomas ao nível do segundo e
do terceiro ciclo do ensino superior. Cerca
1. Allen T O U G H , The adult's learning projects, The
de u m terço dos estudantes inscritos nestes Ontario Institute for Studies in Education,
cursos são estudantes a tempo parcial. Toronto (Canadá), 1971.

267
Ignacy Waniewicz

magistrais gravadas e m cassettes, acompa- -secundários dando direito a diplomas repre-


nhadas por séries de fichas e de manuais. sentam perto de u m quinto das inscrições
Apesar da grande maioria dos estudantes totais, e aquelas que não fornecem qualquer
residir nos grandes centros urbanos, alguns diploma cerca de u m terço.
deles vivem e m zonas isoladas do norte, assim
c o m o e m outras províncias do Canadá. E m CONSELHOS ESCOLARES
1975-1976, cerca de 2500 estudantes seguiram
cursos por correspondência da Universidade Quase todos os conselhos escolares propõem
de Waterloo. Muitos dos programas que programas de educação permanente, sob qual-
conduzem a diplomas p o d e m ser seguidos na quer forma. O s programas de tipo não formal
totalidade ou e m parte por correspondência: representam mais de 80 por cento das acti-
trata-se dos diplomas de B . A . de psicologia vidades. É no domínio dos «tempos livres e
geral e de história geral, do B. Math, general actividades recreativas», que reúne mais de
degree, do B . Sc. de ciências gerais, etc. u m quarto das pessoas que frequentam os
O programa de curso por correspondência cursos dos conselhos escolares, que se regista
inclui, além do ensino que dá direito ao a maior concentração de inscrições.
diploma, cursos de divulgação ou de iniciação
e m domínios c o m o a contabilidade, a infor- BIBLIOTECAS
mática, a literatura geral, a história, etc.
As bibliotecas de Ontário organizam activi-
COLÉGIOS dades culturais muito diversas, c o m o confe-
COMUNITÁRIOS rências, projecções de filmes, reuniões impro-
visadas, debates, visitas, exposições, etc.
Os vinte e dois colégios de artes aplicadas e Algumas delas propõem ainda programas de
de ensino técnico (colleges of applied arts andinstrução de tipo não formal mais estrutura-
technology), geralmente designados por colé- das e sistemáticas. A participação nestes pro-
gios comunitários, existentes e m Ontário, gramas não se adapta ao m e s m o tipo de
dividiram-se e m mais de noventa campus por medida que a participação nas actividades orga-
várias municipalidades da província. Propõem nizadas pelas universidades, os colégios comu-
aos estudantes-adultos, além dos programas nitários e os conselhos escolares. N e m sempre
a tempo integral muito diversificados, n u m e - é fácil ou possível obter o número de inscrições
rosas possibilidades de educação : nas 300 bibliotecas principais e nas bibliote-
Cursos pós-secundários, conduzindo aos cas locais (mais de 700).
diplomas e certificados habitualmente conce- As bibliotecas municipais, de aldeia e rurais,
didos pelos colégios; que representam 30 por cento das bibliotecas
Cursos de iniciação ou de formação pro- da província, não possuem, e m geral, pro-
fissional não fornecendo diplomas; gramas de educação permanente. A s biblio-
Cursos de reciclagem patrocinados pelo tecas propõem essencialmente actividades de
Departamento da mão-de-obra e da imigra- educação tendo por tema as actividades recrea-
ção do governo federal e por organismos da tivas, os tempos livres e o desenvolvimento
província; pessoal. A natureza dos programas propos-
Cursos de formação no domínio do tra- tos, assim c o m o as horas de abertura (manhã
balho e da indústria, b e m c o m o cursos de e tarde) parecem indicar que as bibliotecas
formação e m gestão, organizados e m cola- atraem mais as mulheres do que os homens.
boração c o m empresários de diversos sec-
tores; YMCA-YWCA
Programas de formação de aprendizes.
Cerca de 300 000 adultos participam nestas Os 60 Y M C A (Young M e n ' s Christian Asso-
actividades. A s inscrições nos programas pós- ciation) e Y W C A (Young W o m e n ' s Christian

268
A educação dos adultos e m Ontário

Association) de Ontário proporcionam n u m e - seguintes: desenvolvimento pessoal, forma-


rosas fórmulas de educação de tipo não for- ção técnica, formação dos delegados sindi-
mal. cais, organização sindical, negociação de con-
Os programas propostos sob as rubricas venções colectivas e conflitos do trabalho e
«desenvolvimento pessoal» e «actividades arbitragem.
recreativas e tempos livres» atraíram cerca
de 90 por cento de todos os participantes. ORGANIZAÇÕES DO SECTOR
Nestas duas categorias, os programas de DA SAÚDE
ensino estruturado nos domínios dos des-
portos e da educação física constituíam mais O s hospitais dispensam serviços educativos,
de 40 por cento das actividades propostas. c o m o a formação no emprego e o aperfei-
Além disso, propõe-se u m número conside- çoamento das enfermeiras. Outros organis-
rável de programas no domínio das línguas, m o s de serviços sanitários propõem programas
das artes plásticas e do artesanato. de socorrismo, de tratamento a domicílio e
Geograficamente, as actividades educativas de preparação para o parto. Assim, o St.
destes organismos concentram-se nas zonas John's Ambulance propõe diversos cursos de
urbanas, onde a população é muito densa e, socorrismo para crianças e adultos e m toda a
para além da educação e m matéria de despor- província. O s cursos sobre o tratamento a
tos e de tempos livres, acompanham muitas domicílio são organizados pela Cruz-Verme-
vezes as actividades das outras organizações lha Canadiana. O s cursos de preparação para
educativas ou culturais. o parto são propostos por organismos c o m o o
Prenatal Education Committee of Metropo-
SECTOR DO TRABALHO litan Toronto, Canadian Mothercraft e Chil-
E DA INDÚSTRIA dren Education Association of Canada. Al-
guns organismos de serviços sanitários c o m o
A formação técnica e profissional ligada ao a Canadian Hemophilia Society, a Ontario
emprego é provavelmente u m a das formas Epilepsy Association e a Canadian Hearing
mais divulgadas de educação dos adultos, Society têm programas concebidos para res-
m a s é extremamente difícil recolher dados ponder às necessidades dos deficientes e suas
estatísticos a este respeito. famílias. N o entanto, a educação sanitária
Muitas organizações do sector do trabalho parece fazer-se a grande escala não no quadro
e da indústria patrocinam programas que têm de programas estruturados, m a s pela via dos
por quadro as universidades e os colégios meios de informação, dos anúncios, das bro-
comunitários. O Institute of Canadian Ban- churas, etc.
kers, por exemplo, é u m a das principais fontes
de financiamento dos programas que dão TELEVISÃO EDUCATIVA
direito a diplomas; organiza cursos e m catorze
universidades e dois colégios comunitários de Graças à Ontario Educational Communica-
Ontário. Associações c o m o as câmaras de tion Authority ( O E C A ) e às relações de
comércio, as associações patronais da indús- estreita colaboração que este organismo m a n -
tria, o instituto dos bancos, etc., propõem tém c o m as universidades, colégios e outros
seminários e cursos sobre assuntos susceptí- estabelecimentos de ensino de toda a provín-
veis de interessar os seus membros. cia, proporciona-se ao público u m número
Entre os programas propostos pelos sindi- crescente de fórmulas de educação, por inter-
catos de trabalhadores, muitos são os que médio da televisão. Emissões extraordinárias
adquirem a forma de seminários ou de ofici- v ê m completar dispositivos de aprendizagem
nas c o m a duração de dois dias (um fim-de- estruturados de maneira mais tradicional, e a
-semana) a cinco dias. A maior parte destes combinação destes métodos começa a cons-
programas efectua-se sobre u m dos seis temas tituir u m verdadeiro recurso para a educação

269
Ignacy Waniewicz

permanente. Seis universidades de Ontário a dispersão da informação sobre os cursos


ministram u m curso de divulgação de quí- existentes suscita actualmente u m grave pro-
mica, s e m concessão de diploma, baseado blema. Nestes últimos anos têm sido tomadas
n u m a série de emissões televisivas intitulada iniciativas interessantes, tendentes a centra-
«Dimensions in science» (Dimensões da lizar a informação e a difusão para além das
ciência). A universidade de Waterloo faculta fronteiras administrativas. Assim, o Metro-
u m curso de história por correspondência politan Toronto Library Board 1 publica
intitulado « O sentido da civilização», conce- pelo menos duas edições por ano do seu
bido a partir da célebre série de emissões Continuing education directory (Repertório da
televisivas «Civilização». O Seneca College educação permanente). Este repertório enu-
Without Walls de Toronto propõe u m curso mera a maior parte dos cursos a tempo par-
sobre as ciências políticas no Canadá, inti- cial, dos cursos de divulgação, dos cursos
tulado «The Government w e deserve» (O go- nocturnos, dos cursos por correspondência
verno que merecemos), que se inspira na série de carácter cultural, clássico, técnico, recrea-
de emissões televisivas homónima produzida tivo, profissional, de desenvolvimento pes-
pela O E C A . A Laurentian University de soal, etc., a todos os níveis de conhecimento
Sudbury utiliza a série de emissões televisivas e competência, que são propostos na zona
«Planet of M a n » (O Planeta d o H o m e m ) , metropolitana de Toronto durante u m deter-
produzida pela O E C A , b e m c o m o diversos minado semestre.
programas produzidos pela própria univer- A edição do Outono de 1976 do repertório
sidade, para u m curso do primeiro ano e m enumera cerca de 5500 cursos e programas,
geologia, concedendo u m diploma. A série excluindo os tipos de ensino que conduzem
«The Prisioner» (O prisioneiro), série policial a u m diploma, os cursos organizados pelas
futurista e psicológica difundida pela cadeia associações de tipo profissional e destinados
de televisão da O E C A , serve de base a u m exclusivamente aos seus membros e dos pro-
curso sem concessão de diploma proposto gramas organizados pelas Igrejas, sindicatos,
pelo Seneca College Without Walls c o m o clubes, associações de voluntários e organis-
título de «Explorações», e cujo objectivo m o s públicos, também destinados aos seus
consiste e m examinar certos problemas liga- membros.
dos aos valores humanos. A S u m m e r Aca- N o total, propõem-se mais de 200 matérias
d e m y (curso de Verão) da O E C A , concebida diferentes e m domínios c o m o as letras, o
para u m público não especializado, constitui trabalho, a tecnologia e as técnicas da c o m u -
u m a experiência relativamente nova e b e m nicação, o ordenador e o tratamento de dados,
sucedida. N o Verão passado foram apresen- o artesanato, a saúde e as ciências médicas,
tados dois cursos combinando a difusão de as letras clássicas, as línguas, a matemática,
programas televisivos, as conversações tele- o teatro, a dança, a música, os tempos livres,
fónicas, a escuta de bandas magnéticas, a a ciência, as ciências sociais, os desportos
consulta de material impresso e a organização e os jogos, as técnicas de engenharia e os
de reuniões, sob os títulos «Brush up your ofícios manuais. Muitos cursos sobre maté-
french» (Recapitule o seu Francês) e «Brush rias ensinadas no primário e no secundário
up your math» (Recapitule a Matemática). destinam-se aos que desejam completar a ins-
trução escolar a estes níveis. Além disso,

U m exemplo:
a zona metropolitana de Toronto
1. U m a das malhas do sistema regional de bibliotecas
Os organismos que propõem programas, de Ontário, que coordena os serviços de biblioteca
dos seis boroughs (bairros) de Toronto e cuja
assim c o m o as possibilidades de educação tarefa consiste essencialmente e m fornecer ser-
permanente, são tão diversos e numerosos que viços de referência centralizados.

270
A educação dos adultos e m Ontário

outros programas versam sobre assuntos muitos cursos gratuitos: e m especial, é o que
diversos c o m o os animais e m geral e os ani- acontece c o m o ensino do inglês c o m o segunda
mais domésticos, a cozinha, a costura, a jar- língua, c o m todos os cursos por correspon-
dinagem, o ordenamento da paisagem, o dência de nível secundário organizados pelo
estudo da natureza, o desenvolvimento pes- Ministério da Educação de Ontário, c o m mui-
soal, as viagens, os vinhos e licores, o jogo e tos cursos de artes plásticas e de artesanato
muitos outros temas ligados às actividades organizados pelos departamentos dos parques
recreativas e interessando o lar e a família. e tempos livres dos boroughs, c o m programas
O repertório fornece u m a lista de cerca de para pessoas da terceira idade, etc.
80 estabelecimentos e organizações da zona
metropolitana de Toronto que patrocinam
estes cursos. Quais são estas organizações? Disparidades geográficas
O s conselhos escolares, os departamentos dos e obstáculos à educação
parques e tempos livres, as bibliotecas públi-
cas dos seis boroughs da zona metropolitana Seria injustificado afirmar que os adultos só
de Toronto. Trata-se também das duas uni- têm possibilidades de educação nos grandes
versidades de Toronto e dos seus colégios, centros metropolitanos; observam-se, porém,
b e m c o m o dos quatro colégios comunitários disparidades consideráveis entre as diversas
que propõem — além dos cursos que condu- zonas da província.
zem a diplomas ou certificados — toda u m a Independentemente da dimensão da popu-
gama de programas de carácter geral ou espe- lação, parece que a presença de u m estabe-
cializados destinados ao «estudante perma- lecimento de ensino pós-secundário n u m
nente» que procura enriquecer-se intelectual, determinado condado predetermina o nível
cultural ou profissionalmente sem as limita- de participação dos adultos nas actividades
ções do ensino de tipo tradicional. Final- de educação na zona considerada. Assim, nos
mente, observamos nesta lista a presença das condados e m que não existe universidade
galerias de artes e dos museus do Toronto, de n e m colégio comunitário, a participação dos
grupos de teatro, ballet e música, de associa- adultos nas actividades de educação é muito
ções que se ocupam da saúde, de grupos e de mais fraca. A presença de u m a universidade
associações étnicas, de associações profis- ou de u m colégio parece incitar os outros
sionais, de sociedades e de institutos religio- organismos locais a oferecer possibilidades de
sos, de clubes de desportos e tempos livres, educação.
de sociedades científicas e de organismos É inegável que, no sul de Ontário, se encon-
públicos. tram possibilidades de educação mais amplas.
A duração dos cursos enumerados no reper- A s universidades situadas a menos de 80 qui-
tório varia consideravelmente, m a s a maior lómetros da fronteira sul do Canadá registam
parte deles dura dez ou vinte e cinco semanas. 90 por cento das inscrições e m programas a
A propina de inscrição varia também e m tempo parcial concedendo u m diploma,
função da duração dos cursos, do tipo de enquanto esta zona conta apenas c o m cerca
ensino e do tipo de organização que os gerem. de 80 por cento da população da província.
Assim, o Toronto Board of Education (Con- Encontramos também nesta região u m grande
selho Escolar de Toronto) propõe u m curso número de programas universitários que não
de quatro semanas sobre o tema «Defensive concedem nenhum diploma; só a cidade de
driver training» (a condução automóvel defen- Toronto — que conta c o m u m quarto da popu-
siva) por 5 dólares, enquanto u m curso por lação da província — regista mais de metade
correspondência de economia internacional das inscrições e m programas universitários
de trinta e quatro semanas apresentado pela que não dão direito a diploma. D o m e s m o
School of Continuing Studies da Universidade m o d o , Toronto e os arredores acolhem m e -
de Toronto custa 100 dólares. Existem, porém, tade dos adultos que se inscrevem e m pro-

271
Ignacy Waniewicz

gramas educativos dos colégios comunitários, e de 45 a 49 anos constituem u m importante


enquanto o resto se reparte pelos outros grupo de pessoas e m busca de possibilidades
centros industriais e mineiros. de educação. Quando examinamos os impe-
A melhor maneira de resumir as conclusões dimentos mais frequentemente apontados pelas
relativas aos obstáculos, à aprendizagem e às pessoas interrogadas, vemos que se trata de
razões da não-participação nas actividades de problemasfinanceirose de problemas de m o -
educação seria talvez a que consiste e m exa- bilidade para as mulheres de 18 a 24 anos;
minar os dados do ponto de vista do conjunto estes mesmos obstáculos aparecem e m se-
da população. E m primeiro lugar, convém gunda, terceira ou quarta posição para as
notar que apenas 23 por cento dos «não-estu- mulheres de 25 a 44 anos, depois da «falta
dantes» adultos invocam a falta de interesse de tempo». Para o importante grupo de
c o m o motivo da sua não-participação e m «estudantes potenciais» formado pelos homens
actividades de educação. de 25 a 29 anos, os problemas financeiros
Perto de dois milhões de adultos da pro- surgem e m segundo lugar e os problemas de
víncia consideram que o facto de «não ter mobilidade e m quarto.
tempo» é u m obstáculo à educação, apesar Quanto às outras variáveis, os «estudantes
de serem muitos os que podem empreender potenciais» cujosfilhosnão são escolarizados
os estudos, a despeito deste impedimento. invocam prioritariamente os problemas finan-
Cerca de 700 000 pessoas, ou seja 15 por ceiros e os problemas de mobilidade. São
cento da população total, consideram não estes mesmos três obstáculos ligados aos pro-
ter podido ou não poderem permitir-se finan- blemas financeiros e à mobilidade que se
ciar a participação e m actividades de educação. encontram nos três ou quatro primeiros
Mais de meio milhão consideram que lhes lugares das listas de obstáculos invocados
era, ou lhes é, demasiado difícil deixar o lar. pelos «estudantes potenciais» que se seguem:
Para cerca de meio milhão de pessoas, os mulheres que permanecem n o lar, pessoas
cursos eram ou são demasiado longe do domi- que iniciaram ou terminaram estudos pós-
cílio. Contudo, muitas pessoas invocam a sua -secundários, empregados e operários não
repugnância pelos horários fixos e pelos exa- qualificados.
mes ou ainda a sua incerteza quanto à quali- A estrutura das respostas é sensivelmente
dade dos cursos apresentados c o m o razão a m e s m a para os «não-estudantes», embora os
para não ingressarem nos cursos. problemas de adaptação às possibilidades
O número dos que declaram abertamente existentes e os problemas ligados à falta de
que é a falta de confiança e m si ou a falta de confiança e m si pareçam assumir maior impor-
instrução que os impede de participar nos tância.
estudos é relativamente baixo. A análise das disparidades geográficas res-
Se pusermos de lado motivos c o m o a falta peitantes às estruturas de acolhimento, dos
de tempo, o cansaço, ou a falta de interesse obstáculos à educação e das razões invocadas
por completar a educação, admitindo — c o m para não prosseguir os estudos deve conduzir,
ou sem razão — que se trata de motivações segundo parece, à emergência, mais u m a vez,
sobre as quais o planificador ou o adminis- do papel capital que poderiam desempenhar
trador da educação não pode actuar, os os sistemas educativos baseados nos media,
principais obstáculos a superar estão, por- no que se refere à satisfação das necessidades
tanto, ligados aos problemas financeiros, à de educação da população de Ontário, sobre-
mobilidade e aos problemas de adaptação às tudo se estivessem associados a todo u m
possibilidades existentes. Talvez seja interes- conjunto de situações de interacção ensino/
sante examinar c o m o estes obstáculos pertur- aprendizagem, adaptadas às necessidades dos
b a m os principais grupos de «estudantes interessados n o que respeita aos horários,
potenciais» e de «não estudantes». aos locais e à concepção das actividades de
Verificou-se que as mulheres de 18 a 34 anos educação.

272
Filippo M . de Sanctis

U m a conquista
dos trabalhadores italianos:
as "150 horas"1

Entende-se, e m Itália, por «150 horas» as tuto dos trabalhadores (lei aprovada a 20
horas-crédito conquistadas pelos metalúr- de Maio de 1970) cujo artigo 10.° prevê dis-
gicos a quando das lutas pela renovação do pensas de serviço pagas para fazer exames, o
contrato de Março de 1973. M a s , para além direito ao trabalho por turnos para facilitar
deste significado principal e imediato, as a assiduidade às aulas e a preparação para os
«150 horas» adquiriram u m significado polí- exames; o direito de recusar horas suple-
tico e cultural considerável. mentares ou o trabalho e m dias feriados.
Tentaremos, no presente artigo, explicar Estas vantagens não são concedidas para
resumidamente do que se trata, fazer o balanço estudos universitários, c o m excepção das
da experiência, descrevê-la nos seus pri- dispensas para exames.
meiros anos, fornecer alguns elementos de M a s foi a renovação dos acordos contra-
avaliação e, finalmente, traçar perspectivas tuais de 1972-1973 que marcou u m progresso
no quadro da sociedade italiana. decisivo : os metalúrgicos obtiveram u m «cré-
dito» de 150 horas para estudos. A s m o d a -
lidades v ê m formuladas n o Contrato Colec-
A conquista das «150 horas» tivo dos metalúrgicos, de Abril de 1973:
pela classe operária «Os trabalhadores que, para melhorar a sua
própria cultura, m e s m o no âmbito da empresa,
O direito ao estudo está plenamente confir- desejem frequentar estabelecimentos públicos
m a d o pela Constituição Italiana (art. 34) e assimilados ou reconhecidos, ou frequentar
pela Declaração dos Direitos do H o m e m , aulas, p o d e m beneficiar de férias pagas de
aprovada pelas Nações Unidas e m 1948, e acordo c o m u m número de horas trienal à
ratificada pelo Parlamento italiano e m 1955. disposição de todos os assalariados». Para ter
M a s , para poder exercer verdadeiramente este direito a u m a dispensa remunerada, o tra-
direito fundamental, os trabalhadores neces- balhador deve seguir u m curso cuja duração
sitaram de trinta anos de luta nas frentes polí- seja o dobro do número de horas requeridas
tica e sindical. (isto é, u m curso de, pelo menos, 300 horas).
O primeiro resultado positivo foi o Esta-
1.
N a redacção deste artigo, apoiámo-nos princi-
palmente nas obras a seguir indicadas das quais
retirámos informações e dados: L . D O R E : Fabbrica
Filippo M. De Sanctis (Itália). Professor de educação e scuola, le 150 ore, R o m a , Editori Riuniti 1975;
dos adultos (Universidade de Florença) e de metodologia Quindicinale di note e commenti CENSIS, n . o s 228
da educação dos adultos (Universidade de Roma). Par- e 229, 15 de Junho de 1975. Foi publicada u m a
ticipou, a diversos títulos, em actividades de educação bibliografia abundante e exaustiva pela revista
permanente, às quais consagrou muitas publicações. Scuola e Città, n . 0 3 7 e 8, 1975.

¿73
vn-8
Filippo M . de Sanctis

O número de assalariados ausentes do tra- cutíveis e aceitáveis. Entre os primeiros figu-


balho não pode ser superior a 2 por cento. ravam as 150 horas porque, «além das razões
Outras categorias de trabalhadores obtive- de custo e das consequências práticas para a
ram vantagens semelhantes durante os anos empresa», surgem c o m o u m a «exigência
que se seguiram. O s ceramistas (contrato de absurda de aculturação da classe operária».
17 de Junho de 1973): 120 horas anuais, das Ora, cultivar-se era precisamente aquilo a
quais 40 remuneradas, não podendo este que os operários aspiravam. Conta-se que,
direito ser exercido simultaneamente por mais durante a reunião c o m os metalúrgicos, os
de 2,5 por cento dos empregados; trabalha- patrões exclamaram a propósito da reivin-
dores da madeira e da cortiça (23 de Junho dicação do direito ao estudo : « M a s que pen-
de 1973): 120 horas, das quais 40 remuneradas, sam fazer destas 150 horas? Aprender a tocar
ausência simultânea máxima: 2,5 por cento; cravo?» Essa eventualidade não deve ser
operários texteis (20 de Junho de 1973): excluída, responderam os interessados.
120 horas, das quais 40 remuneradas, ausência
simultânea máxima: 2,5 por cento; operários
do vidro (9 de Janeiro de 1974): 50 horas O direito ao estudo:
remuneradas; os trabalhadores do sector da
o que significa a sua obtenção
borracha, do plástico, do linóleo (18 de Março
de 1974): 150 horas, das quais 50 remunera- N a realidade, não devemos confundir a vitó-
das; ausência simultânea máxima: 3 por cento. ria obtida pelo movimento operário italiano
Entre as outras categorias que obtiveram o a partir de 1973 c o m estas formas de dispensa.
direito ao estudo, assinalemos os trabalha- Ela inscreve-se «numa linha sindical orientada
dores do livro (15 de Janeiro de 1974), dos para o controle operário da organização do
curtumes (15 de Fevereiro de 1974), da mari- trabalho (ritmos, pausas, ambiente de tra-
nha mercante, os empregados dos organismos balho, efectivos) e para u m a linha igualitária
locais, das empresas municipais, das fábricas prosseguida através do enquadramento único».
de brinquedos, da alimentação, da horticul- Por outras palavras, as 150 horas — c o m o
tura, dos aquedutos municipais. foi afirmado — representam u m instrumento
O s próprios operários agrícolas (12 de por meio d o qual, esforçando-se por supe-
Julho de 1974) beneficiaram de u m a lei esti- rar as diferenças objectivos de competência
pulando «a concessão aos operários, n u m profissional dos trabalhadores (diferenças
m o m e n t o indeterminado, de férias remune- exploradas pelo patronato para dividir os tra-
radas de 60 horas por ano para frequentar balhadores), se pretende fazer do enquadra-
aulas de recuperação escolar»; além disso, mento único não u m simples facto salarial,
«a nível da província, durante a renovação dos m a s u m meio de instaurar u m a igualdade
acordos, poderá decidir-se a concessão ulterior real entre os trabalhadores. Além disso, as
de u m número de horas suplementares». 150 horas constituem u m instrumento de cul-
Para fazermos u m a ideia da dureza dos tura útil ao indivíduo m a s que permite igual-
confrontos, notemos as diferenças entre os mente que a classe operária, as organizações,
números de horas de dispensa obtidas pelas os comités de empresa, exerçam u m controle
diversas categorias de trabalhadores e relem- colectivo mais eficaz sobre as condições de
brar u m a simples anedota. Quando os sindi- trabalho e que contestem mais vivamente o
calistas da metalurgia se dirigiram para a domínio hegemónico do patronato sobre a
mesa das negociações e m que tomavam parte, organização do trabalho. Esta contestação,
não u m patrão qualquer, m a s os represen- baseando-se na «não-delegação dos poderes»
tantes da maior, da mais séria, da mais avan- e na recusa de u m a pretensa objectividade da
çada e da mais esclarecida das indústrias ita- ciência e da técnica, requer « u m a capacidade
lianas, viram os seus pedidos divididos e m de reflexão cultural autónoma por parte da
três grupos: absolutamente inaceitáveis, dis- classe operária».

2
74
U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas»

E m suma, as 150 horas constituem u m a estudos efectuados pelos trabalhadores e aos


conquista qualitativamente diferente da sim- métodos mostram b e m o sentido que eles
ples reciclagem «profissional» e da promoção quiseram atribuir às 150 horas.
individual; a primeira está encerrada na D o ponto de vista institucional, o movi-
lógica da empresa e a segunda tem tendência mento sindical afastou claramente a ideia de
para fechar o trabalhador no seu desejo de u m a «escola operária» distinta do sistema
promoção social. escolar. Defendeu, pelo contrário, o princí-
O sindicalismo italiano, n u m a concepção pio segundo o qual as 150 horas devem
unitária que reúne as três confederações situar-se n o quadro da escola pública. A
(Confederazione generale italiani dei lavora- acção sindical teve, portanto, repercussões
tori — C G I L ; Confederazione italiani dei para além da fábrica, na sociedade, onde sur-
sindicati liberi — C I S L ; Unione italiani dei giu c o m o u m aspecto d o combate operário
lavoratori — U I L ) , procura atribuir ao direito a favor da reforma e da democratização da
ao estudo u m significado profundamente ino- escola. C o m o se afirma nas publicações sin-
vador. O estudo surge c o m o « u m instrumento dicais, o actual sistema escolar opera u m a
de mobilidade colectiva no sentido e m que o selecção rigorosa nosfilhosdos trabalhadores;
desenvolvimento cultural geral permite re- desempenha mal a sua missão de formação;
constituir a classe operária aos níveis mais baseia-se e m métodos e relações autoritá-
baixos, acabar c o m todas as formas de tra- rios; ignora a realidade das conquistas sociais
balho não qualificado ou subalterno». É evi-
e democráticas do país. Perante este sistema,
dente que esta concepção do sindicalismo é
os sindicatos têm a intenção de transformar
«incompatível c o m a actual organização do
as 150 horas n u m verdadeiro ponto de refe-
trabalho que se baseia precisamente na estra-
rência para toda a escola. É por isso que afir-
tificação e na hierarquização da classe operá-
m a m que as leis sobre o direito ao estudo
ria a diversos níveis, na subutilização das
capacidades, na qualificação cada vez mais p o d e m fornecer u m a ocasião de pressão sobre
fraca de massas de trabalhadores. A reivindi- a escola pública, tanto n o que respeita aos
cação do direito ao estudo está, pois, nesta programas e aos conteúdos c o m o aos m é -
óptica, intimamente ligada à luta contra a todos; u m a oposição dialéctica entre o antigo
actual organização do trabalho». A ideia das e o novo e, sobretudo, o regresso à escola
150 horas nasceu essencialmente da convicção de u m número crescente de trabalhadores
crescente da necessidade da cultura porque p o d e m contribuir para a renovação da escola,
«o desenvolvimento cultural dos trabalha- dando início, concretamente, a u m a verda-
dores provoca a explosão das contradições, deira reforma na base, e m vez de se limitar
põe tudo e m causa, torna objectivamente a reclamar dos poderes públicos a reforma da
indefensável o actual sistema de subutilização escola tantas vezes prometida.
das competências e dos conhecimentos, e torna Trata-se, pois, para os sindicatos, de tradu-
impossível a actual organização do trabalho». zir objectivamente o princípio, inscrito na
Constituição, do direito ao estudo, garantido
por u m sistema público profundamente reno-
C o m o se concretizam
vado. Perante esta orientação, donde trans-
parece a estratégia global dos sindicatos ita-
as 150 horas lianos, a tentação de encerrar as 150 horas n o
nas instituições ghetto de escolas para trabalhadores é m e n o s
no conteúdo dos estudos forte, m a s constata-se tanto a intervenção
e nos métodos? pública do estilo «educação popular» (como
meio «pobre» de recuperação, criado e m
A s opções precisas dos sindicatos n o que res- Itália e m 1947 sob a designação de escolas
peita à instituição escolar, ao conteúdo dos populares) c o m o a iniciativa privada, consi-

Z
V
Filippo M . de Sanctis

siderada exploração dos adultos desejosos de C G I L - C I S L - U I L conseguiu impor, de acordo


obter u m diploma de ensino superior. c o m o sentido político atribuído ao direito
Quanto ao conteúdo dos estudos, o signi- ao estudo, que não se estabeleçam programas
ficado atribuído pelos sindicatos às 150 horas rígidos de ensino (não mais de quatro uni-
«não conduz a u m a afirmação geral do direito dades interdisciplinares: a primeira incluindo
ao estudo, implicando u m a exigência cultural matemática e ciências; a segunda geografia,
nova». Reclama-se a necessidade de conteú- instrução cívica e história; a terceira italiano,
dos culturais e m relação c o m «a experiência e a quarta u m a língua estrangeira). Conseguiu,
dos trabalhadores, as lutas sindicais e os porém, que fossem previstas unicamente a
ideais do movimento operário», de u m a cul- duração dos cursos e a orientação geral do
tura «que seja u m instrumento de conheci- ensino, deixando-se ao cuidado dos profes-
mento e de análise da realidade, que permita sores, dos trabalhadores que frequentam estes
u m a tomada de consciência mais elevada e cursos e «do movimento sindical — m e s m o
mais ampla, por parte dos trabalhadores, dos que não esteja expressamente previsto, é u m
processos socieconómicos e m que estão impli- facto e m muitos casos — a definição concreta
cados, que forneça os instrumentos neces- dos planos de estudo».
sários de contestação e de superação da actual N o que diz respeito aos métodos, para além
organização do trabalho na fábrica e na da recusa de u m a aprendizagem mecânica
sociedade». dos conhecimentos, à importância do traba-
Afirmou-se n u m a reunião (em Novembro lho de grupo e a u m a abordagem interdisci-
de 1973) que as 150 horas devem ser utiliza- plinar, convém notar que a conquista e a
das e m função da real necessidade de conhe- gestão das 150 horas assentam no princípio
cimentos despertada pela fábrica e pelas lutas da sua utilização colectiva, ao qual o sindi-
sindicais: os comités de empresa devem iden- cato atribui tanta importância c o m o à refe-
tificar entre os «numerosos m o d o s de orga- rência à escola pública. A utilização colec-
nização do direito ao estudo» os que «cor- tiva das horas-crédito mostra que foi b e m
respondem melhor aos níveis de consciência compreendido o carácter ilusório das solu-
e à natureza das lutas no interior de cada ções individuais, m a s é também a afirmação
fábrica». Assim, «para reforçar u m a linha de u m a nova maneira de conceber o estudo.
igualitária que tem dificuldade e m penetrar O direito ao estudo deve, e m definitivo,
nas fábricas, devido precisamente aos dife- «ser exercido e gerido colectivamente por
rentes níveis de formação dos trabalhadores, todos os trabalhadores» tanto no exterior
os comités de empresa poderiam decidir colec- c o m o no interior da escola. O s métodos de
tivamente a concessão do benefício das 150 estudos são nitidamente influenciados por
horas aos operários que não possuem o cer- este princípio.
tificado de estudos secundários». E m certos A nova metodologia é definida durante a
locais, «quando a situação se deteriorou par- organização dos cursos, e no m o m e n t o do
ticularmente e u m conflito está prestes a seu processamento. N o que diz respeito à
explodir, o comité de empresa pode orien- primeira fase, basta recordar a cláusula do
tar-se para u m curso sobre o ambiente de tra- contrato dos metalúrgicos que «convida o
balho». D e u m m o d o geral, insiste-se na rela- comité de empresa a determinar, de acordo
ção estreita que deve existir entre os temas dos c o m a direcção, os critérios objectivos de
cursos, as realidades sociais e as do sistema selecção dos trabalhadores que beneficiam
de produção. desse direito»; m a s é necessário ter e m conta
N a circular do Ministério da educação o facto dos sindicatos não se limitarem a
pública que institui os cursos, está, de facto, fazer opções e recolher inscrições; procuram
previsto «que os planos de estudos e os pro- a participação de todos os trabalhadores n u m
gramas serão estabelecidos para cada curso debate sobre o significado profundamente
pelos professores e trabalhadores. A Federação inovador do direito ao estudo e m relação às

276
U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas»

iniciativas no interior e no exterior da fábrica, do primeiro ciclo; os professores são inves-


a fim de que o confronto político provoque tidos de u m a missão de duração limitada;
a emergência das exigências prioritárias, o os cursos são reunidos e m número de quatro,
tipo dos cursos, os métodos e os conteúdos, constituindo u m módulo; o número dos par-
os critérios de selecção dos participantes. ticipantes e m cada curso não deve ultrapas-
N a verdade, o curso começa precisamente sar 25; os cursos processam-se durante u m
nesse m o m e n t o . ano lectivo, o número de horas de aulas é de
N a segunda fase, a dos cursos propriamente pelo menos 350, c o m u m m á x i m o de 450
ditos, a gestão colectiva determina os métodos (o primeiro ciclo do secundário dura três
de estudos, estabelecendo relações de u m novo anos).
tipo entre os trabalhadores e os professores, Limitar-nos-emos —para não ultrapassar
entre todos os participantes, entre os próprios o âmbito deste artigo — a relatar o primeiro
professores, entre a escola e o meio de vida. ano, fornecendo algumas indicações sobre os
anos seguintes. O s 931 cursos organizados
e m 1973/1974 foram frequentados por 18 500
O processamento dos cursos trabalhadores. D o ponto de vista geográfico,
680 cursos (73 por cento) tiveram lugar no
Para compreender c o m o os sindicatos conce- norte da Itália; 135, ou seja, 14 por cento no
b e m a utilização das 150 horas, é necessário centro e 116 (12,5 por cento) n o sul.
ter e m conta a situação e m matéria de esco- N o que diz respeito ao perfil dos partici-
larização. Basta lembrar que a maior parte pantes, havia, no primeiro ano, trabalhadores
dos trabalhadores não possui o certificado de a q u e m tinha sido concedido o direito ao
estudos secundários; sobressai de vários estu- estudo nos contratos profissionais, trabalhado-
dos relativos unicamente à indústria metalúrgi- res de outras categorias que não tinham obtido
ca que «apenas 18 por cento dos trabalhado- este direito ou ainda desempregados e donas
res tinham terminado, e m 1970, a escolaridade de casa. D e acordo c o m u m estudo de Censis
obrigatória e que 65 por cento possuíam efectuado e m 8082 participantes, estes repar-
o certificado de estudos primários». tem-se do seguinte m o d o : operários agrícolas
Para tentar encontrar u m a saída para u m a (0,3 por cento); trabalhadores manuais, apren-
situação escolar fortemente desequilibrada, o dizes, operários não qualificados (28,6 por
sindicato escolheu utilizar prioritariamente cento); contínuos, moços de recados, escri-
as horas-crédito para preparação do certifi- turários (2,1 por cento); operários qualifi-
cado de estudos secundários. Apesar de se ter cados, operários especializados (60,9 por
concedido u m lugar privilegiado à recupera- cento); artífices (2 por cento); comerciantes
ção respeitante à escolaridade obrigatória, (0,6 por cento); proprietários exploradores
organizaram-se igualmente, nas universida- (0,2 por cento); empregados (1,8 por cento);
des, seminários abertos aos trabalhadores e enfermeiras (1,3 por cento); donas de casa
aos estudantes. (1 por cento); diversos (1,2 por cento). Entre
Alguns dados relativos aos anos lectivos os 8082 participantes, contavam-se 6848
de 1973/1974, 1974/1975 e às tendências do homens (84,7 por cento) e 1234 mulheres
ano 1975/1976 dão-nos u m a ideia da impor- (15,3 por cento).
tância dos cursos. N o primeiro ano organi- O m e s m o inquérito forneceu outros ele-
zaram-se 931 cursos no total; no segundo ano mentos úteis para traçar o perfil do partici-
cerca de 2200. Atingiam, e m 1976, perto de pante. O s homens têm, na sua maioria, mais
3500. Assim, surgem todos os anos cerca de de 25 anos, são casados e trabalham geral-
u m milhar de novos cursos. mente (77,7 por cento) e m empresas metalúr-
O s cursos que preparam para o certificado gicas de pequena e média dimensão. A s
de estudos secundários são assim concebidos : mulheres (15,3 por cento) são mais novas do
têm lugar nas escolas públicas secundárias que os homens, são solteiras e ocupam lugares

277
Filippo M . de Sanctis

subalternos. Cerca de 70 por cento dos par- tam 63 por cento do efectivo total. N o con-
ticipantes provêm de familias operárias o u junto, o corpo docente é jovem, recentemente
camponesas cujo nível de instrução raramente licenciado e predominam as mulheres. Quanto
ultrapassa o do certificado de estudos primá- ao extracto social, a maior parte (mais de
rios. Quanto à escolarização obrigatória, 56 por cento) dos professores provém da
73 por cento das pessoas interrogadas deixa- pequena e média burguesia (artífices, comer-
ram a escola antes dos 14 anos. Por outro ciantes, proprietários exploradores, emprega-
lado, 1,8 por cento não possui o certificado dos, técnicos, oficiais subalternos). O s filhos
de estudos primários, 59,7 por cento, pos- de operários agrícolas, de trabalhadores m a -
suem-no, 21,4 por cento frequentaram esta- nuais, de operários não qualificados, repre-
belecimentos secundários do primeiro ciclo, sentam 7,5 por cento dos efectivos, os filhos
16,9 por cento foram ainda mais além, de operários qualificados especializados 8,9 por
0,2 por cento não responderam. cento. O s outros (15,8 por cento) são filhos
O perfil d o participante revela-se através de quadros superiores, de directores de e m -
das suas motivações e expectativas. O «desejo presas, de membros de profissões liberais, de
de transformação», ditado também por u m a oficiais superiores, de professores de univer-
vontade de desenvolvimento pessoal, é mais sidade. O s professores são animados essen-
frequentemente invocado do que a «mobili- cialmente pelas seguintes motivações : desejam,
dade profissional», a «obtenção de u m di- na sua maior parte, «fazer u m a experiência
ploma» o u a «procura de u m emprego». pessoal e m matéria de formação» (67,5 por
Foi assim que 54,8 por cento das pessoas cento das respostas). O s outros pretendem
interrogadas responderam afirmativamente à «fornecer aos operários instrumentos para
pergunta: «Considera que u m nível mais ele- compreenderem melhor a realidade» (66,8 por
vado de instrução o ajudaria a compreender cento), «estabelecer u m contacto h u m a n o
melhor o que realiza no seu trabalho?» c o m os operários» (44,3 por cento) e «elevar
Para 53,5 por cento das pessoas «frequentar o nível cultural desta categoria particular de
as aulas é u m b o m meio de encontrar pessoas alunos» (36,3 por cento).
c o m problemas semelhantes aos meus e de O s temas tratados nas aulas apresentam-se
discutir c o m elas». À s perguntas relativas à pela ordem seguinte : condições e ambiente de
mobilidade profissional, 23 por cento respon- trabalho (64,8 por cento); meio social (51,8 por
deram: «Espero obter u m diploma que m e cento); conteúdo cultural das diversas uni-
proporcione u m a qualificação superior na dades interdisciplinares (40,5 por cento);
minha empresa», 12,9 por cento responde- muito depois v ê m os temas relativos à situa-
r a m : «Pretendo mudar de emprego e o cer- ção sindical (12,4 por cento); à situação polí-
tificado de estudos secundários ajudar-me-á tica (10,2 por cento), aos problemas familia-
seguramente a encontrar outro emprego»; res (4,2 por cento).
apenas 11,3 por cento responderam: «Pre- D e u m m o d o geral, aplicaram-se métodos
tendo obter u m diploma para poder pros- de trabalho que se inspiram na gestão colec-
seguir estudos superiores». Foram muito tiva dos cursos e na interdisciplinaridade,
raras as respostas afirmativas às perguntas colocando-se na óptica seguinte: valorizar a
respeitantes à procura de u m emprego; ape- experiência pessoal dos participantes, dis-
nas 1 por cento das pessoas interrogadas res- tinguir na discussão colectiva os limites
pondeu: «Estou desempregado e, sem diploma, subjectivos das interpretações que cada u m
é muito difícil, o u até impossível, encontrar faz da sua experiência pessoal e procurar as
trabalho». componentes objectivas dos fenómenos; ela-
O s professores são e m número de 575 e borar u m estudo correcto de investigação
53,9 por cento têm entre 26 e 30 anos; 32,3 por circunscrevendo b e m o problema, formulando
cento têm menos de 25 anos, 10,4 por cento hipóteses, recolhendo dados, examinando as
têm entre 31 e 35 anos. A s mulheres represen- primeiras conclusões; desenvolver a aptidão

278
U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas»

para a síntese, a classificação, a dedução e o bibliografias, documentos fotocopiados, etc.):


cálculo; colocar a investigação n u m a pers- 51,5 por cento dos professores colocam-nos
pectiva histórica, a fim de descobrir as cau- e m primeiro plano, 13 por cento e m segundo,
sas que determinaram ou modificaram o fenó- 8,5 por cento e m terceiro. O s meios audio-
m e n o a que se referem. C o m o observa Dore, visuais são muito pouco utilizados: 92,2 por
a experiência baseia-se e m métodos muito cento dos professores não os mencionam
diferentes dos da escola tradicional: « O pro- entre o material utilizado.
fessor não transmite, ponto por ponto, o seu Durante o ano escolar de 1974/1975, houve
saber aos alunos, aos trabalhadores; pelo con- 2206 cursos, dos quais 1409 (63 por cento)
trário, escolhe c o m eles u m tema de estudo, no norte do país, 369 (17 por cento) no centro,
estabelece u m a discussão colectiva sobre o 429 (20 por cento) n o sul, c o m u m aumento
problema partindo dos conhecimentos do e m percentagem dos cursos na parte meridio-
outro, e elabora, c o m toda a autonomia, u m nal. M a s , do total (2206), é necessário dedu-
verdadeiro sistema de investigação». N a ver- zir os que foram financiados por contribui-
dade, não se trata unicamente de aprender a ções das regiões e das comunas; os cursos
servir-se de certos instrumentos culturais, financiados pelo Estado e instituídos para o
mas de compreender por que é que tantos ano de 1974/1975, n u m total de 2028, foram
trabalhadores deles foram privados e m idade frequentados por cerca de 38 000 trabalha-
escolar. dores.
Sobressai do inquérito de Censis que as
«discussões» foram «muito frequentes» (76,3
por cento), e as «explicações» também foram
«muito frequentes» (51,5 por cento). O tra- Algumas conclusões
balho de grupo foi «muito frequente» (49,7 por sobre a experiência
cento), as «assembleias» foram «muito fre-
quentes» (8 por cento) e «ocasionais» (55,8 por A s conclusões inspiradas pelos dados, suma-
cento). Se adicionarmos as utilizações «muito riamente apresentadas, referem-se ao inte-
frequentes» e «ocasionais», obtemos os se- resse geral da experiência, aos problemas pre-
guintes resultados: «discussões», 91,3 por cisos que o seu processamento suscita, ao
cento; «trabalho de grupo», 80,8 por cento; alargamento desta iniciativa e às suas pers-
«assembleias», 63,8 por cento. Por outro lado, pectivas.
as «interrogações» são praticamente inexis- Considerando a experiência do ponto de
tentes («muito frequentes», 3 por cento, vista sindical e político, o u sob o aspecto da
«ocasionais», 6,6 por cento, «muito raras», educação dos adultos, ela apresenta-se-nos,
12,2 por cento, «nulas», 50,6 por cento, «não no conjunto, profundamente inovadora. D o
mencionadas», 27,6 por cento). N o que diz interior d o movimento operário, surge-nos
respeito ao material de ensino, os manuais «como u m a grande conquista, sem prece-
escolares são muito pouco utilizados (cerca dente no m u n d o capitalista», c o m o afirmou
de 60 por cento de respostas negativas por G . Napolitano ao apresentar os trabalhos do
parte dos professores). Utilizam-se sobretudo comité central do Partido Comunista Italiano
livros não escolares (são apontados e m pri- sobre o tema «Luta de ideias e renovação
meiro lugar por 27,7 por cento dos profes- cultural», que tiveram lugar de 13 a 15 de
sores e e m segundo lugar por 25,6 por cento); Janeiro de 1975. N ã o é considerada u m a aqui-
os jornais e revistas v ê m e m primeira posição sição cultural, m a s a via para u m «progresso
para 4 por cento dos professores, e m segunda intelectual das massas», que faz parte inte-
posição para 25,9 por cento e e m terceira grante das lutas operárias, u m aspecto impor-
posição para 25,4 por cento. O material pre- tante da «proposta geral de u m novo modelo
parado n o interior do estabelecimento é muito social» (G. Trentin).
apreciado (cursos policopiados, questionários, D o ponto de vista da educação dos adul-

279
Filippo M . de Sanctis

tos, para q u e m conhece a história deste pro- donar prematuramente. M a s , outros proble-
blema e m Itália (desde as primeiras socie- m a s surgiram por parte dos professores que
dades de auxílio mútuo até hoje), a conquista vieram desempenhar tarefas para as quais não
das 150 horas marcou u m a rotura, u m salto estavam preparados; esta falta de preparação,
qualitativo. É evidente que, tendo e m vista tanto nos comportamentos c o m o nos métodos,
os últimos trinta anos, foi demorado o esta- encerrou os tradicionalistas n u m a atitude de
belecimento consciente de u m a ligação entre recusa e impeliu-os para interpretações res-
movimento operário e educação dos adultos; tritivas, enquanto os inovadores se deixavam
mas é necessário dizer que este atraso foi arrastar por abstracções e improvisações.
totalmente preenchido pelas 150 horas. Estas N o entanto, foi o choque entre o m u n d o do
parecem ter aberto a possibilidade de u m a trabalho e o m u n d o da escola que provocou
mutação — no sentido biológico do termo — as dificuldades mais graves: o facto dos esta-
da teoria e da prática da educação dos adul- belecimentos escolares, que julgam gozar de
tos. Este ponto deveria ser mais profunda- autonomia total, não estarem habituados a
mente abordado do que neste artigo. Afirma- sofrer intervenções nos seus assuntos, pro-
m o s apenas que as 150 horas abrem a via a vocou traumatismos e confrontos, tanto ao
u m sistema de educação dos adultos e m que a nível das relações entre o Ministério da
aquisição de conhecimentos não é neutra Educação Pública e os sindicatos, c o m o n o
(isto é, essencialmente ligada à conservação interior das próprias escolas entre os direc-
do statu quó) mas e m íntima relação c o m o tores e os trabalhadores. Para além das posi-
controle social dos processos criadores do ções dos ministérios, dos inspectores, dos
trabalho, da informação, dos tempos livres, directores, é necessário ver nestes traumatis-
da vida quotidiana. m o s e confrontos a manifestação salutar de
N ã o é u m a tarefa fácil. O s problemas pre- u m fosso entre a escola e a sociedade, u m
cisos suscitados pelos cursos nascem justa- fosso histórico que não pode ser preenchido
mente da resistência à inovação. Encontra- c o m ambiguidades. Queremos dizer que seria
ram-se dificuldades a diversos níveis e e m u m erro procurar atenuá-los ou encobri-los;
diferentes momentos. C o n v é m ter e m conta, é necessário que todas as contradições sur-
para evitar mal-entendidos, que os próprios jam à luz do dia. E m nossa opinião, só u m
trabalhadores continuam agarrados aos velhos confronto, claro e explícito de ideias (de ordem
métodos tradicionais de estudo, na medida institucional e ideológica, administrativa e
e m que alguns deles reclamavam u m a «escola» metodológica) permitirá compreender u m a
— c o m tudo o que ela tem de pior — seme- das principais motivações das «150 horas»:
lhante à que tinham sido obrigados a aban- a reforma da escola italiana.

280
Jonathan Gunter e James Theroux

Desenvolver
auditorios de massa
para a rádio educativa:
duas abordagens1

D e acordo com a U N E S C O , estão e m ser- Depois de ter explicado este paradoxo,


viço no Terceiro M u n d o u m mínimo de descreveremos duas estratégias utilizadas no
75 milhões de receptores de radiodifusão. Equador para atingir e instruir as massas.
A maioria dos habitantes dos países da A m é - A primeira salienta a comunicação dirigida
rica Latina e importantes minorias de Afri- por profissionais «de cima para baixo», a
canos e Asiáticos pode actualmente ouvir segunda a comunicação dirigida «de baixo
emissões radiofónicas. Estes auditórios, essen- para cima» c o m a participação dos seus des-
cialmente extra-escolares, e e m grande parte tinatários. A primeira adaptou os métodos
compostos por adultos, têm imensas neces- da publicidade comercial americana, a segunda
sidades e m matéria de educação permanente ampliou os métodos de desenvolvimento
de base. Para muitos deles, só a rádio per- comunitário dos padres das paróquias rurais
mite entrar e m qualquer momento e m con- da América Latina. A s duas experiências são
tacto c o m o m u n d o exterior à aldeia o u à diferentes na sua escala, princípios, objec-
vizinhança. N o entanto, menos de 5 por tivos e resultados, mas ambas as mensagens
cento do número total de horas de emissões educativas transmitidas atingiram massas de
radiofónicas do Terceiro M u n d o foram clas- auditores adultos 3.
sificadas c o m o educativas pela U N E S C O .
C o m o é evidente, os educadores não conse-
guiram conquistar o meio de comunicação 1. A s opiniões expressas neste artigo são as dos
de massa mais espalhado no m u n d o . N ã o autores e não correspondem necessariamente às
desconheciam o poder da rádio, mas, atraídos dos seus superiores.
2. Estes números, extraídos do Annuaire statistique
por ela devido ao seu reduzido custo e à de V Unesco para 1974, baseiam-se e m relatórios
possibilidade de abranger u m vasto público, fornecidos por 85 países. A categoria das emis-
escolheram, e m nossa opinião, modos de sões educativas englobava a educação extra-escolar
utilização que, e m geral, a impedem de atin- para as crianças, os adolescentes e os adultos,
assim c o m o o ensino de tipo clássico. A s outras
gir, por u m preço realmente reduzido, ver- categorias incluíam as emissões de informação
dadeiros auditórios de massa. (actualidade e assuntos públicos), culturais, cien-
tíficas, recreativas, especializadas, publicitárias, etc.
Estas utilizações da rádio parafinsnão educativos
e, na maior parte dos casos, estranhas ao desen-
Jonathan Gunter (Estados Unidos da América). Director volvimento, representavam mais de 95 por cento
de Clearinghouse on Development Communication do conjunto das emissões.
Academy for Educational Development (Washington). 3. A revista trimestral americana Development com-
munication report (Washington, D . C . ) examina
James Theroux (Estados Unidos da América). Director frequentemente outros tipos de programas radio-
de Radio Software Research Projet University of fónicos. (Disponível gratuitamente no Organismo
Massachusetts (Amherst). Clearinghouse on Development Communication,

281
Jonathan Gunter e James Theroux

O paradoxo d o s educadores geros insípidos e a procura do sensacional


q u e utilizam a rádio de que são culpados os responsáveis por emis-
sões que procuram unicamente aumentar o
O s meios de grande informação estão, e m número dos seus auditores são demasiado
gera], entregues a pessoas capazes de atrair a conhecidos para que os recordemos aqui.
audiência das massas. Para conquistar e reter N o entanto, estes excessos não devem dissi-
estes auditórios, convém que nos coloquemos mular o facto dos educadores poderem tirar
no seu próprio terreno. Muitas vezes, os edu- lições úteis das técnicas de emissões de carác-
cadores de adultos não t o m a m consciência ter comercial e recreativo.
das incidências destes factos essenciais. A o Muitos educadores que operam na rádio
contrário do que sucede c o m os alunos na estão menos atentos às necessidades dos audi-
aula, c o m os participantes das tribunas rurais tores do que à maneira de atingir objectivos
ou das escolas radiofónicas, os auditórios educativos ou de desenvolvimento a longo
de massa não são auditórios «cativos». prazo. Afastando-se das práticas tradicionais
N ã o basta prometer a u m auditório de do ensino escolar e da educação dos adultos,
massa recompensas sedutoras n u m futuro empenham-se geralmente e m ligar a mensagem
mais ou menos próximo (conhecimentos, radiodifundida a actividades de aprendizagem
habilidade profissional) e empreender a sua e m grupo no contexto de programas diversifi-
instrução através da rádio segundo os m é - cados a longo termo. N a verdade, muitas
todos tradicionais. Para ser b e m sucedido autoridades internacionais da educação são
c o m u m auditório deste tipo, é necessário da opinião de que, para que a rádio produza
mais do que sensibilizar as pessoas suficien- efeitos profundos e perduráveis sobre as
temente motivadas para se tornarem e con- populações a educar, é essencial completar
servarem membros de u m a tribuna rural o u estas emissões c o m o texto impresso e u m
de u m a escola radiofónica. É necessário con- ensino magistral.
siderar que, apesar do seu desejo de instrução B e m executadas, as estratégias de aprendi-
e de educação pessoal, o auditor de massa, zagem e m grupo asseguram provavelmente
está privado do estímulo mútuo da escuta u m a educação mais profunda d o que as
colectiva e que é susceptível de reacções afec- emissões abertas destinadas ao grande público.
tivas. Podendo escolher, no seu receptor, Estas estratégias atingiram, de resto, auditó-
outras estações que lhe oferecem música, rios numericamente importantes e m alguns
folhetins e variedades, basta voltar o botão países do Terceiro M u n d o . Contudo, nós
para ouvir outro programa desde que u m a defendemos que a maior parte dos países não
emissão o aborreça, o fatigue ou se torne está à altura de conseguir constituir verda-
demasiado difícil de seguir. deiros auditórios de massa para a aprendiza-
O s auditórios de massa diferem, pois, pelo gem e m grupo. A preparação de grupos de
seu desejo de recreação e de evasão, dos gru- aprendizagem, a produção de textos impres-
pos de auditores organizados. O meio mais sos, os problemas de coordenação, diminuem
seguro de perder u m auditório de massa é os recursos a conceder ao elemento sobre o
pretender pregar ou dirigir. O meio mais qual u m projecto de educação pela rádio pode
seguro para o atrair e conservar é oferecer- exercer mais influência : a qualidade da mensa-
-lhe u m a satisfação emocional imediata e g e m radiodifundida.
contínua — instruindo-o. Defendemos também que, e m muitas cir-
O s produtores de emissões comerciais e cunstâncias, os recursos são melhor empre-
recreativas sabem c o m o dirigir-se ao público gues quando são aplicados a estratégias que
dentro desta óptica, tendo e m conta o estado fornecem menos educação a mais auditores.
de espírito do público, m a s , infelizmente,
carecem de u m a visão mais ampla no domínio 1414 22nd Street, N . W . ( Washington D . C .
da educação ou do desenvolvimento. Os exa- 20037, Estados Unidos da América).

282
Desenvolver auditórios de massa para a rádio educativa: duas abordagens

É lamentável que o lugar dominante ocupado cação e de duro labor consentidos por u m a
pelas estratégias de aprendizagem e m grupo organização privada dinâmica e b e m finan-
nas publicações especializadas tenha impe- ciada.
dido de apreciar correctamente a solução das Estamos, portanto, e m condições de per-
emissões abertas destinadas a auditores de guntar se as estratégias de aprendizagem e m
massa. grupo são capazes de atrair auditórios de
Recentemente, entre 65 projectos radiofó- massa na maior parte dos países e m desen-
nicos baseados no desenvolvimento, apenas 5 volvimento, onde as condições são diferentes
diziam respeito a emissões abertas destinadas daquelas e m que foram executados os três
a u m auditório de massa não organizado, não projectos exemplares. D e resto, os restantes
cativo1. Todas as outras incluíam emissões dezassete projectos sobre os quais possuímos
directamente ligadas à participação e m u m dados numéricos de escuta, apresentam m e -
programa a longo termo de discussão, de nos de 15 000 auditores. Examinaremos e m
estudo ou de acção e m grupo. seguida dois métodos susceptíveis de ajudar
Os 20 projectos que forneceram indicações projectos deste tipo a atrair u m maior número
sobre a sua escuta destinavam-se todos a de auditores e de assegurar u m a utilização
auditórios organizados, constituídos e m grupo. mais rentável do meio de comunicação de
Apenas três destes projectos atingiram, na que ocupa o primeiro lugar no m u n d o .
opinião dos responsáveis, aquilo que pode-
remos chamar auditórios de massa. Trata-se
do Movimento Brasileiro de Educação de Técnicas publicitárias
Base ( M E B ) , nos primeiros anos sessenta
(com 111006 participantes), das Escolas Servindo-se de u m a sociedade de publicidade
Radiofónicas Sutatenza da A C P O , na Colôm- de N o v a Iorque de renome, para facilitar a
bia (167 451 alunos e m 1968) e da Campanha realização do seu programa de educação, o
a favor da saúde, na República Unida da Tan- Instituto Nacional do Equador para a nutri-
zânia, e m 1973 (2 milhões de participantes). ção pôde elaborar u m projecto de carácter
N o s três casos, estes elevados números podem inovador. A s técnicas da publicidade radio-
explicar-se por circunstâncias excepcional- difundida não tinham ainda sido sistematica-
mente favoráveis. mente aplicadas às necessidades e m matéria
E m primeiro lugar, convém observar que de educação n u m país e m desenvolvimento.
a República Unida da Tanzânia é o único A maneira de ver dos educadores tradicio-
dos três países e m questão onde o auditório nais é fundamentalmente diferente da dos
excedeu 1 por cento do conjunto da popu- organizadores de publicidade comercial. E m
lação. A estatura do presidente Nyerere c o m o geral, os educadores esforçam-se por provocar
h o m e m de Estado, a posição que tomou a grandes transformações (alfabetização, apren-
favor do desenvolvimento rural, e a criação de dizagem da aritmética, formação profissional)
organizações rurais no seio do partido e dos e m pequenos grupos de pessoas. O s publici-
ministérios explicam provavelmente o notá- tários, pelo contrário, cultivam u m auditório
vel sucesso deste projecto de aprendizagem de massa e procuram provocar transformações
e m grupo. mais modestas de comportamento (abandonar
N o Brasil, nos primeiros anos sessenta, o a marca X pela marca Y de u m produto de
governo empenhou-se na mobilização das consumo existente).
massas populares para realizar u m a trans- Embora os educadores reconheçam as dife-
formação social rápida. Depois da mudança
de regime, e m 1964, o número de auditores
do M E B declinou brutalmente. 1. Emile M C A N A N Y , Radio's role in development;
five strategies of use, documento disponível gra-
N a Colômbia, a larga audiência da A C P O tuitamente e m Clearinghouse on Development
é o resultado de vinte e cinco anos de dedi- Communication.

z83
Jonathan Gunter e James Theroux

renças individuais e consagrem muito tempo mãos depois de ir à casa de banho, antes de
aos seus auditórios relativamente «cativos», comer ou antes de preparar os alimentos;
as relações dos publicitários e dos seus audi- para desenvolver a utilização de sabão na
tórios são completamente diferentes. Os publi- lavagem das mãos; para aumentar o número
citários t o m a m c o m o base as necessidades das de pessoas que compreendem que lavar as
massas e as estereotipias culturais. mãos pode matar os parasitas e contribuir
O s publicitários empregam o método de para que se evitem doenças.
«alcance e frequência» que consiste e m intro- Mensagem sobre o sal iodado. Para que se
duzir repetidamente a m e s m a mensagem compre mais sal iodado; para aumentar o
curta nos intervalos dos programas recreativos número de pessoas que compreendem a causa
muito populares junto do auditório que pre- do bócio; para aumentar o número de pes-
tendem atingir. N o Equador, repetiram-se soas que sabem que o sal iodado se vende e m
spots sobre a nutrição dez a quinze vezes por pacotes que permitem distingui-lo do outro
dia durante mais de u m ano e m duas esta- sal; para aumentar o número de pessoas que
ções populares de radiodifusão de duas pro- compreendem que o bócio é u m a doença grave.
víncias. Cada objectivo e a mensagem correspon-
Cada u m destes spots, c o m a duração de dente constituíam o resultado de u m processo
u m minuto, referia-se a u m problema parti- minuciosamente elaborado. Peritos e m maté-
cular de nutrição, para o qual propunha u m a ria de higiene e de nutrição foram consultados
solução realista e económica. Concebida sob sobre os problemas a que se devia conceder
a forma de diálogo, cada mensagem pretendia prioridade. Seleccionaram-se as soluções reco-
atingir objectivos muito específicos: mendadas para obter a certeza de que basta-
Mensagem sobre a malnutrição por falta de ria difundir mensagens de informação e de
proteínas e calorias. Para provocar o maior motivação para que pudessem ser adoptadas
consumo de leguminosas e outros alimentos pelos auditórios desejados. C o m efeito, n u m
que constituem u m a fonte económica de dos países, os peritos, utilizando esta técnica,
proteínas; para que o papel das proteínas tinham recomendado que as populações con-
no corpo h u m a n o se torne mais conhecido. sumissem mais fígado. N o entanto, verificou-
Mensagem sobre o abandono prematuro do -se que esta carne era excessivamente cara e
aleitamento materno. Para favorecer o alei- difícil de encontrar. A solução foi, então,
tamento materno e m relação ao aleitamento considerada inaceitável para ser objecto de
artificial entre a população de fracos recursos; publicidade.
para que se reconheça a superioridade inegá- U m a vez escolhido u m pequeno número
vel do leite materno sobre os outros leites; de temas apropriados, as mensagens foram
para que as mães saibam c o m o preparar outras redigidas, repartidas entre os peritos para
espécies de leite. serem comentadas e, e m seguida, produzidas
Mensagem sobre a água insalubre. Para sob forma provisória. Foram, então, subme-
inculcar o hábito de ferver a água destinada tidas a ensaios preliminares, ouvidas por 100
ao consumo familiar; para que as pessoas ou 200 famílias que faziam parte dos grupos
compreendam que beber água não fervida apontados, examinando-se a sua eficácia
expõe à contracção de doenças; para que mais através da credibilidade e atracção do audi-
famílias t o m e m consciência de que a água tório.
para beber está contaminada ou impura; Depois de modificadas, atendendo às indi-
para aumentar o número de famílias que cações fornecidas pelos ensaios preliminares,
tapam o recipiente que contém água para as mensagens foram gravadas, divulgadas atra-
beber. vés de discos e distribuídas pelas estações
Mensagem sobre os parasitas, as diarreias radiofónicas participantes. Elaborou-se u m
e outras perturbações intestinais. Para que os horário de emissões correspondendo aos hábi-
adultos e as crianças lavem mais vezes as tos de escuta do auditório e m causa. D e

284
Desenvolver auditórios de massa para a rádio educativa : duas abordagens

acordo c o m os elaboradores do projecto, era reduzíssemos este número de 50 por cento,


extremamente importante contactar regular- cerca de 50 000 famílias —provavelmente
mente c o m a estação para assegurar u m a fre- 250 000 pessoas — teriam aprendido os prin-
quência adequada. Depois do pessoal da esta- cípios nutritivos fundamentais descritos nos
ção ter ouvido os spots várias centenas de spots. E a formação deste auditório deve-se a
vezes, consideravam que tinham produzido u m projecto que só foi aplicado e m duas das
efeito sobre os auditores e cessavam de os vinte e u m a províncias do Equador.
difundir. N o entanto, de acordo c o m a expe- Quanto à modificação de comportamento,
riência de empresários americanos de publi- a mensagem sobre o sal iodado obteve u m
cidade comercial, era nesse momento que os enorme sucesso. Antes da campanha apenas
spots tinham mais impacto, donde a neces- 5 por cento dos mestiços das regiões monta-
sidade de continuar a difundi-los. nhosas utilizavam sal iodado, m a s a propor-
ção daqueles que, interrogados no fim da
OS RESULTADOS campanha, declararam consumi-lo atingiu
98 por cento. Por outro lado, as outras m e n -
Durante as entrevistas de fim de campanha, sagens — que obtiveram grande sucesso no
a maior parte das pessoas que constituíam plano da tomada de consciência e de reconhe-
os grupos visados declararam ter possibili- cimento dos factos — não conseguiram pro-
dade de ouvir rádio. A s proporções eram de vocar transformações significativas. C o m o
83 por cento dos mestiços da planície cos- explicar este acontecimento?
teira, 85 por cento dos mestiços e 64 por cento O sal iodado era u m produto que os gru-
dos índios, mais pobres, das regiões monta- pos e m causa não tinham dificuldade e m obter,
nhosas. m a s que não era reconhecido c o m o superior
N a maioria das famílias que c o m p u n h a m do ponto de vista nutritivo. A l é m disso, o
a amostra, as pessoas interrogadas mostra- consumo de sal não iodado era u m hábito
ram que estavam ao corrente dos spots recor- b e m arreigado. N ã o havia diferença de preço
dando, sem auxílio, informações específicas entre os dois tipos de sal. Assim, a situação
contidas e m cada mensagem. A s atitudes e m era muito semelhante àquela e m que a publi-
relação ao aleitamento materno melhoraram cidade comercial, apresentando a alternativa
apesar da concorrência da publicidade a «marca X — marca Y » , se revelou tão eficaz.
favor de fórmulas de biberão e de leite e m pó. A s outras mensagens implicavam modifica-
A s mensagens respeitantes à importância do ções de comportamento muito mais impor-
consumo de proteínas, à necessidade de ferver tantes. Vários dos produtos alimentares reco-
a água para beber e de lavar as mãos antes mendados pela sua riqueza e m proteínas eram
de comer também tinham obtido sucesso no muito caros. Podia ser impossível adquirir
plano da tomada de consciência, do conhe- legumes. A s pessoas podiam não estar habi-
cimento dos factos, e da atitude. tuadas a comer legumes às refeições. Por
A extensão massiva desta aquisição de outro lado, ferver a água é fastidioso e o c o m -
conhecimentos surpreende muito os educa- bustível necessário para esta operação é caro.
dores. Apesar de se tratar de amostras das A impossibilidade de quantificar as modi-
regiões rurais e das populações de recursos ficações de comportamento devia-se, e m
reduzidos, a projecção dos resultados à escala parte, à metodologia. A s pessoas conscientes
das duas províncias abrangidas pelas emis- do interesse que existe e m ferver a água ou
sões permite fazer u m a ideia aproximada do e m lavar as mãos antes de comer tinham ten-
impacto das mensagens. D e acordo c o m esta dência para responder aos inquiridores que
projecção, as mensagens sobre as proteínas, era o que elas faziam quer fosse ou não ver-
sobre a necessidade de ferver a água, sobre dade. Estas afirmações são muito difíceis de
a de lavar as mãos, e sobre o aleitamento atin- comprovar sem observação directa dos parti-
giram mais de 100 000 famílias. M e s m o que cipantes. Por outro lado, é possível verificar

285
Jonathan Gunter e James Theroux

o consumo de sal iodado por meio dos n ú m e - indeterminação que encontramos e m todos os
ros de venda e procurando ver quai dos dois governos.
produtos é utilizado e m casa das familias
interrogadas. INCIDÊNCIAS
Foi recomendada outra técnica de verifica-
ção, m a s não pôde ser aplicada. A s investi- N ã o obstante estas dificuldades, não gostaría-
gações e m matéria da publicidade comercial m o s de deixar o leitor c o m a impressão de que
mostraram que as pessoas que hesitam e m a publicidade só é eficaz nas situações e m
falar francamente do seu próprio comporta- que se apresenta a alternativa «marca X -
mento são facilmente tentadas a falar do dos - marca Y » . Muitas foram as lições tiradas da
vizinhos. E , ao responderem «de ricochete», experiência equatoriana inicial que permiti-
descrevem muitas vezes, afinal o seu compor- ram melhorar os métodos e os resultados,
tamento. A s autoridades do Equador esti- agora comunicados, relativos a outros pro-
m a r a m que este método não era compatível jectos. E m dois países, por exemplo, decidiu-se
c o m a cultura do seu país e não autorizou o que, nos domínios e m que as questões de prin-
seu emprego. cípio apresentem ambiguidades, se renunciará
Outro factor que limita a modificação do às mensagens estabelecidas se não se obtiver
comportamento pode ser considerado ligado u m consenso sobre estas questões. Prevêem-se
a questões de princípio. Quando u m a mensa- para projectos ulteriores u m a formação mais
gem é patrocinada por u m a instituição nacio- desenvolvida dos inquiridores e o melhora-
nal e difundida e m duas províncias, deve mento dos métodos de avaliação dos resul-
estar e m perfeita conformidade c o m a polí- tados.
tica nacional. Para ter u m impacto profundo, Além disso, os primeiros resultados rela-
as mensagens devem ser claras, simples e tivos a outros países mostraram já o sucesso
directas, o que supõe a existência de u m obtido e m tentativas mais ambiciosas efec-
consenso sobre questões de princípio c o m - tuadas para provocar modificações de c o m -
plexas, o que n e m sempre acontece. portamento. N a Nicarágua, anúncios difun-
didos e m todo o país levaram as mães de
Assim, a mensagem mais eficaz respeitante lactentes sofrendo de diarreia a preparar e
ao aleitamento materno deveria afirmar que administrar, e m casa, grandes quantidades de
o leite da m ã e constitui, só por si, a alimen- líquidos, ideia que não lhes tinha surgido.
tação ideal do lactente. Alguns peritos tinham Aprenderam através da rádio a confeccionar
esta opinião; outros, e m especial os do Insti- a bebida receitada e retiveram a receita. Neste
tuto Nacional de Nutrição do Equador, con- caso, os especialistas da nutrição da Nicará-
sideravam que o aleitamento materno deve- gua tinham concordado e m reconhecer que
ria ser obrigatoriamente associado a u m a era este o remédio apropriado contra a
alimentação sólida. A mensagem difundida foi desidratação. Além disso, tinham sido reco-
u m compromisso entre estas duas opiniões lhidas informações quanto ao preço dos
divergentes. ingredientes necessários à sua preparação e
A mensagem mais eficaz quanto à necessi- quanto à possibilidade de os obter. Estas
dade de ferver a água para beber deveria afir- mensagens deveriam ter por efeito u m a dimi-
mar que toda a água para beber teria de ser nuição da taxa de mortalidade infantil.
fervida. É essa, de facto, a opinião de certos Atendendo a que, na Nicarágua, u m óbito
peritos. N o entanto, outros peritos consideram e m cinco se deve à diarreia infantil, esta curta
que, e m vastas regiões do país, não existe mensagem deveria contribuir poderosamente
nenhum risco e m beber água não previamente para melhorar a situação sanitária deste país.
fervida. Assim, mais u m a vez, o impacto da Parecia possível, então, atingir, através da
mensagem difundida foi reduzido devido a publicidade, objectivos mais ambiciosos do
u m a questão de princípio marcada por u m a que a adopção generalizada do sal iodado

286
Desenvolver auditorios de massa para a rádio educativa: duas abordagens

e m substituição do sal c o m u m . Apesar dos quantidade de bandas magnéticas. Este equi-


objectivos que este esforço publicitário poderá pamento foi confiado aos auxiliares, grupo de
atingir continuarem indeterminados, é pos- não-profissionais voluntários das comunida-
sível mencionar algumas limitações do m é - des vizinhas de Tabacundo empregados c o m o
todo. Pretendendo abranger auditórios de assistentes pedagógicos nos centros da escola
massa, a publicidade trata dos problemas que radiofónica. Todos os auxiliares se responsa-
dizem respeito ao conjunto dos indivíduos e bilizam por u m gravador que utilizam para
para os quais ninguém pode contribuir c o m registar elementos de programa e m bandas
a sua solução pessoal. Até agora, o método magnéticas que, depois da montagem, são
foi aplicado para provocar ligeiras modifica- utilizadas por Radio Mansaje para difundir
ções de comportamento c o m u m efeito con- duas emissões semanais, cada u m a c o m meia
jugado poderoso e para as quais não são neces- hora.
sários novos bens ou serviços. Embora possa Sob o título de Mensaje Campesino (A m e n -
ser empregue e m programas contendo u m a sagem do camponês), estas emissões diferem
contribuição e m bens e serviços (no domínio das que são tradicionalmente difundidas pela
da higiene, da nutrição ou da agricultura), a rádio rural. E m vez de serem realizadas por
publicidade não parece, no entanto, ser capaz profissionais da comunicação para atingir u m
de provocar profundas transformações psico- público rural, são emissões feitas por campo-
lógicas nos indivíduos ou nos grupos. A este neses para camponeses. N ã o se destinam aos
género de objectivos adapta-se certamente m e - grupos de auditores organizados da escola
lhor o tipo de comunicação radiodifundida radiofónica, mas ao grande público das emis-
que descreveremos e m seguida. sões abertas. O postulado pretendia que os
camponeses teriam tanto interesse e m ouvir
a sua própria rádio que Mensaje Campesino
Tabacundo atrairia u m vasto auditório. Este cálculo reve-
lou-se acertado.
U m programa que contrasta fortemente c o m O gravador de cassettes tornou-se o ins-
os métodos muito especializados dos profis- trumento de trabalho dos auxiliares, que
sionais da publicidade é o que foi produzido p o d e m utilizá-lo durante as aulas da escola
por rurais e para rurais e m Tabacundo (Equa- radiofónica ou e m outros locais. U m curto
dor). N a zona de escuta do emissor de Radio espaço de tempo (duas horas) bastou para
Mensaje encontra-se u m número de adultos ensinar aos interessados o funcionamento
analfabetos estimado e m 42 000, entre os muito simples dos aparelhos. A curiosidade
quais menos de 3 por cento participam na de saber que utilização decidiriam fazer os
escola radiofónica de Tabacundo 1 . Desde os auxiliares dos seus gravadores era geral, e
últimos meses de 1972 que 40 centros da escola foi por isso que os responsáveis pelo projecto
radiofónica trabalham c o m o padre Isaías insistiram e m que os empregassem c o m o enten-
Barriga na elaboração de programas que dessem.
atinjam o mais amplo auditório de massa, O projecto foi aplicado para criar u m novo
sob a forma de emissões abertas. A b e m dizer, tipo de comunicação radiodifundida, diferente
pensa-se que estas emissões atraem mais audi- do estilo elaborado e artificial das emissões
tores do que qualquer outro programa recrea- recreativas difundidas na capital. A hipótese
tivo captado na região. Dir-me-ão que parece
impossível? Vejamos o que se passa.
C o m u m donativo de 1500 dólares recebido 1. Para mais pormenores ver James H O X E N G ,
do Projecto de Educação circum-escolar de Alberto O C H O A , Valerie ICKIS, Tabacundo:
Massachusetts para compra de equipamento, batttery-powered dialogue, disponível e m espanhol
e inglês no Center for International Education,
Radio Mensaje adquiriu 40 gravadores de University of Massachusetts Hills House South.
cassettes de modelo simples e u m a grande Amherst, Mass.

28 7
Jonathan Gunter e James Theroux

mais ansiada era de que a expressão popular dades o ouviriam — e talvez c o m mais inte-
poderia ajudar a definir os objectivos da c o m u - resse do que o até então testemunhado pelas
nicação e aprofundá-los. Assim, os conceitos emissões consagradas ao desenvolvimento
tradicionais de «informador» e de «auditor» comunitário.
característicos dos mass media deveriam nor- U m estudo efectuado e m 1971 (Vega) para
malmente desaparecer. O s autores do projecto os serviços de Assistência Católica do Equa-
pensavam que programas que cedessem a pala- dor, O X F A M e A I D tinha revelado que,
vra aos camponeses poderiam produzir neles apesar de toda a importância atribuída ao
u m duplo efeito: maior consciência do seu desenvolvimento comunitário pela estação
próprio valor; melhor conhecimento do desen- de rádio, os programas tinham u m impacto
volvimento comunitário. sobre os auditores pouco significativo. Espe-
rava-se que a utilização dos gravadores de
OS OBJECTIVOS cassettes aumentasse este impacto, reunindo
a opinião das populações das numerosas
U m relatório anterior da Agency for Inter- pequenas comunidades abrangidas por Radio
national Development (AID) (Astle, 1969), Mensaje.
descrevendo u m programa escolar radiofó-
nico nas Honduras, atribuía u m a grande parte PRODUÇÃO
do seu sucesso ao sentimento expresso pelos
participantes de «fazer parte de u m grupo Fornecem-se bandas magnéticas virgens aos
despertando para u m a nova vida». Este «sen- auxiliares, que se encarregam de as enviar à
tido do grupo» é tão importante c o m o o sen- estação de Tabacundo quando tiverem rea-
timento experimentado pelo indivíduo que lizado u m a gravação que desejam ver utilizada
acaba de ser b e m sucedido n u m empreendi- por Mensaje Campesino. Todas as bandas
mento e cujas aptidões inutilizadas são salien- recebidas pela estação são escutadas pelo
tadas por ter aprendido a 1er. Observou-se o padre Barriga ou pelo seu assistente. Para
m e s m o fenómeno e m outras pessoas das montar e compor o programa semanal de
Honduras, como foi transmitido pelos moni- meia hora utilizam-se dois gravadores de
tores e auxiliares reunidos e m sessões de for- cassettes. A cassette e m que a emissão foi
mação e encontros mensais. O relatório ligava gravada é conservada e são enviadas novas
estreitamente estes factores ao desenvolvi- cassettes para as comunidades.
mento «da confiança, do interesse e da cons- O programa tem aumentado desde o iní-
ciência de grupo». cio do projecto. Inicialmente, diñmdia-se a
A equipa Universidade de Massachusetts- m e s m a emissão de meia hora aos Sábados e
-Tabacundo partiu do princípio de que u m Domingos. A o fim de dois meses o padre Bar-
«sentido do grupo» mais agudo aumenta no riga decidiu produzir programas diferentes
h o m e m a confiança e m si. Favorecendo o para os dois dias. Depois, após a reunião
desenvolvimento combinado dos conhecimen- acima mencionada, dos auxiliares, a estação
tos e o seu reforço através da comunicação começou a radiodifundir a emissão do
entre aldeias, os responsáveis pelo projecto Domingo à Segunda Feira à tarde, precisa-
consideravam possível que se desenvolvesse mente antes do curso de primeiro ciclo da
a confiança e m si e u m sentimento de efi- escola radiofónica.
cácia. Durante a sua formação, os auxiliares exa-
Podia prever-se sem grandes riscos de erro minaram as diferentes maneiras de utilizar
u m progresso dos conhecimentos relativos os gravadores. O pessoal do projecto não
ao desenvolvimento das comunidades. Pare- recomendou n e m impôs nenhuma utilização
cia provável que se Mensaje Campesino trans- particular. Quanto ao padre Barriga, asse-
mitisse u m projecto de desenvolvimento n u m a gurou que a estação se interessaria por tudo
determinada comunidade, outras comuni- o que se produzisse.

288
Desenvolver auditórios de massa para a rádio educativa : duas abordagens

Os resultados não foram imediatos, pois a 25 de Novembro. A terceira sessão conce-


recolha e a substituição das cassettes revela- dia mais importância ao desenvolvimento
ram-se u m pouco mais difíceis do que se tinha comunitário. A comunidade de Ucshaloma,
imaginado. O padre Barriga esperou pela pri- construída no cimo da montanha que domina
meira reunião dos auxiliares para recolher as Tabacundo, realizou u m a reunião durante a
primeiras gravações, e a primeira emissão foi qual se decidiu que toda a gente participaria,
difundida durante o fim de semana de 11 de no Sábado seguinte, n u m a minga, ou projecto
Novembro de 1972. Durante u m a entrevista de trabalho comunitário. O s habitantes da
c o m o padre Barriga, os auxiliares conside- comunidade estavam a tentar melhorar as
raram que emissões de meia hora difundidas suas condições de vida; tinham constituído
ao Sábado às 17 horas e retomadas ao D o - u m a cooperativa e erigido, e m conjunto,
mingo à m e s m a hora seriam ouvidas pelo u m a nova casa para cada u m dos seus m e m -
maior número possível de camponeses. bros. Depois de ter gravado esta reunião,
procederam à gravação sonora dos trabalhos
durante a minga. Podia ouvir-se o barulho
ANÁLISE DO CONTEÚDO
dos martelos para além das vozes dos traba-
DE ALGUNS PROGRAMAS
lhadores que discutiam os seus progressos e
O primeiro programa era composto de comen- necessidades.
tários sobre as escolas radiofónicas, acompa- 30 de Dezembro. Esta emissão foi inteira-
nhados de u m pouco de música tocada por mente consagrada à celebração do Natal e
u m a formação pertencente a u m a das c o m u - realizada pelo auxiliar e pelos alunos do cen-
nidades. A s observações dos auditores pro- tro de Cananvalle. O auxiliar, u m cultivador,
vieram de vários centros, assim como de u m proferiu o sermão; os alunos leram o Evan-
grupo de 18 seminaristas trabalhando e m gelho e endereçaram votos aos colegas das
diversas comunidades que participavam na outras escolas radiofónicas. Apesar do seu
escola radiofónica. C o m o era de prever, o carácter especial, esta emissão teve u m largo
tom geral da emissão foi solene e de certo auditório.
m o d o constrangido: 20 de Janeiro. O programa teve início c o m
Um seminarista. «Desejo trabalhar c o m os u m a gravação da assembleia dos auxiliares,
camponeses tanto no plano cultural como realizada e m Janeiro. O problema dos grava-
religioso para os ajudar a progredir. Ten- dores não tinha estado n o cerne das discus-
ciono adquirir mais experiência a fim de m e sões, m a s tinha-se reclamado unanimemente
tornar mais útil como pároco de aldeia mais tempo de difusão, se possível precisa-
quando regressar à minha província». mente antes do início das aulas. Este pedido
O auxiliar do centro de Chaveznamba. « N o foi satisfeito e m Fevereiro, quando o pro-
início deste novo ano escolar, começamos por grama habitual de Domingo passou a ser
desejar as maiores felicidades ao padre Isaias repetido às Segundas Feiras e apresentado
Barriga, aos nossos queridos professores da às 16 horas e 30, precisamente antes da aula
escola radiofónica e aos nossos colegas da das 17 horas.
província de Pichincha. Todo a gente se O programa de 20 de Janeiro revelou u m
interessa pelos gravadores, embora tenhamos outro aspecto da utilização dos gravadores.
u m certo medo de falar. M a s esperamos que, Grupos musicais, e m que participam mulheres,
a pouco e pouco, nos habituaremos a esta interpretaram cantos e m quichua; membros da
nova ideia. D e momento, consideramo-la u m escola Simon Bolivar leram poemas originais,
tanto estranha». e outra escola, a de Cochas, apresentou música
Todos os alunos interrogados se declara- especialmente composta para o Mensaje Cam-
ram muito felizes por estar na escola radio- pesino.
fónica e convencidos de que seria certamente 24 de Fevereiro. O poder índio foi evocado
u m b o m ano. no início da emissão, c o m a entrevista por

289
vn-9
Jonathan Gunter e James Theroux

u m auxiliar do presidente do Movimento Q u e m o m a n d o u vir? Porque é que havemos


Nacional Indígena, recentemente criado, José de falar consigo?» Tendo recebido respostas
António Quinde. Este descreveu os objectivos satisfatórias a estas perguntas, demonstraram
da organização e os progressos até então rea- a maior cordialidade. M a s estes camponeses
lizados e anunciou u m a série de reuniões eram diferentes de outros que encontrámos
convocadas para saber se o movimento era no Equador. Possuíam u m sentimento de
considerado útil pela população indígena. dignidade, de igualdade e de confiança e m si.
C o m o prelúdio de u m a inovação tocou-se Qual a razão? E m que medida este senti-
música quichua: leitores principiantes leram mento poderia ser atribuído às emissões radio-
e m voz alta páginas da publicação Cultivemos difundidas? Ninguém saberia dizê-lo exac-
Hortalizas, contribuindo, assim, c o m u m ele- tamente. E , com toda a franqueza, a distinção
mento de comparação eventualmente recon- entre as causas e os efeitos complexos tal-
fortante para os alunos que ainda consideram vez seja impossível de fazer por meio dos
a leitura e m voz alta c o m o u m exercício difícil. métodos conhecidos de avaliação.
D e acordo c o m o conjunto das emissões N o entanto, fizeram-se tentativas para
até agora difundidas, pensamos que a música medir objectivamente o impacto de Mensaje
deve continuar a desempenhar u m papel impor- Campesino. Inquéritos muito breves revelam
tante e que o desenvolvimento comunitário que os campesinos têm alguma coisa a dizer e
será largamente salientado. O s alunos pare- estão mutuamente dispostos a ouvir-se. O inte-
cem ter u m elevado sentido de participação e, resse suscitado pela informação sobre o
depois da primeira emissão, já ninguém desenvolvimento comunitário aumentou entre
receava os gravadores. Algumas comunidades 1972 e 1973. O questionário não revelou pro-
começaram a realizar e a gravar pequenas gressão nos sentimentos de valor pessoal e de
peças de teatro incluindo mensagens de carác- eficácia, mas, sob este aspecto, verifica-se u m a
ter moral ou social. Interpretando diferentes oposição evidente entre a experiência do autor
papéis, os membros destas comunidades levam e a anedota que se segue, característica c o m o
à cena problemas e os debates que se seguem muitas outras.
são partilhados pela rádio c o m outras comu- Tendo-se oferecido para produzir u m a série
nidades. de aulas radiodifundidas, u m agrónomo redi-
O s auxiliares deram provas de grandes giu os textos e leu-os ele próprio na rádio.
capacidades de inovação na utilização dos M a s os auditores não tardaram e m reagir,
gravadores. O padre Barriga conta que u m declarando: «Estamos certos de que sabe do
grupo conseguiu convencer u m engenheiro que está a falar, mas fá-lo de tal m o d o que
do Ministério dos Recursos Hidráulicos a não percebemos nada». Actualmente, e m
deixar-se entrevistar para o programa do Tabacundo, u m campesino revê o texto c o m
Mensaje Campesino. A s respostas deste enge- o agrónomo até estar certo de o compreen-
nheiro às perguntas que lhe foram feitas sobre der b e m , e só depois o lê ao microfone.
a possibilidade e a dificuldade de obter água O padre Barriga apresenta duas razões
corrente forneceram preciosas indicações aos para a eficácia do seu método. E m primeiro
membros dos outros centros. lugar, concede aos camponeses o «poder das
palavras». Permite-lhes que comuniquem uns
c o m os outros e também c o m ele, responsá-
OS RESULTADOS vel pela estação de rádio e pela escola radio-
fónica. Antigamente, a única possibilidade
Quando u m dos autores deste artigo esteve que lhes era oferecida consistia e m escrever
e m Tabacundo, e m Janeiro de 1977, não com dificuldade mensagens que, e m seguida,
encontrou campesinos passivos e intimidados. eram lidas ao microfone. Sentiam-se pouco à
Antes de qualquer entrevista, os aldeões per- vontade e m frente de u m a folha de papel e
guntaram-lhe: «Donde v e m ? Por que veio? não conseguiam exprimir tudo o que pensa-

290
Desenvolver auditórios de massa para a ládio educativa: duas abordagens

v a m ; aquilo que conseguiam dizer era-lhes Para qualquer organismo de financiamento,


retransmitido pela voz esclarecida do padre. o preço dos gravadores e das bandas (1500 dó-
U m a modificação ainda mais importante lares) é ínfimo. A m ã o de obra é gratuita.
citada pelo padre Barriga foi a transformação Depende de vários factores que este projecto
da rádio — esse meio de comunicação que só pareça justificar u m financiamento por fontes
transmitia música citadina, vozes citadinas e internacionais noutros locais. O s gravadores
valores citadinos — n u m órgão de informação de cassettes, de baixo preço, que têm atrás
rural difundindo aquilo a que ele chamou a de si quatro anos de b o m funcionamento nas
«mística do campo». Ele vê neste novo tipo regiões montanhosas do Equador, deverão dar
de comunicação radiodifundida u m meio de provas e m outros climas. Será necessário que
reforçar os objectivos e as satisfações da vida o interesse manifestado e m outros países pela
no campo. rádio popular se revele tão grande c o m o e m
Tabacundo. E , finalmente, será necessário
Este último ponto talvez esclareça e m que
que os governos estejam dispostos a permitir
é que o modelo de Tabacundo pode contribuir
que a rádio possa ajudar o público a exprimir-
para fornecer algum ensino sobre o desenvol-
-se livremente.
vimento. O facto da rádio atingir as massas
rurais do m u n d o inteiro não basta para a A realização de u m a réplica deste projecto
transformar n u m meio de comunicação rural e m outros contextos comporta ainda a dificul-
capaz de criar u m a cultura rural e de con- dade de produzir u m programa semelhante
tribuir para u m desenvolvimento de boa qua- exercendo a m e s m a força de atracção sobre
lidade nos campos. Se a rádio urbana endere- u m auditório mais variado de u m país na sua
çar mensagens urbanas aos camponeses, totalidade. O emissor de Radio Mensaje tem
corre o risco de acelerar a migração para as u m alcance efectivo de trinta quilómetros.
cidades, e m vez de favorecer o desenvolvi- É lícito perguntar se o cunho pessoal que
mento das regiões rurais. O modelo fornecido parece explicar a grande popularidade do
por Tabacundo oferece u m ponto de partida programa na sua região poderia ser trans-
para transformar a rádio n u m verdadeiro posto à escala regional o u nacional. N a
meio de comunicação de massa ao serviço América Latina, onde os emissores locais são
dos campos. Caracterizado pela participação, muito numerosos, é evidente que a questão
pode adaptar o estilo e o conteúdo da rádio pode ser considerada secundária, m a s e m
rural às necessidades e aspirações dos audi- Africa, onde muitos países possuem unica-
tores. mente u m a rede nacional, pode ter u m a grande
importância.
Encontrar pessoas c o m o o padre Barriga
levanta talvez, para realizar o m e s m o pro-
POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO jecto noutros locais, u m problema mais árduo.
EM OUTROS LOCAIS A confiança que soube inspirar aos c a m p o -
neses parece essencial para o estabelecimento
Seria completamente impossível para a maio- de u m a troca regular e construtiva de infor-
ria dos alunos das escolas radiofónicas do mações entre as aldeias e a estação. Esta con-
Terceiro M u n d o comprar gravadores e cas- fiança foi edificada a partir do amor autêntico
settes c o m o seu dinheiro. Pensamos que a do padre pela população de Tabacundo, que
escola radiofónica típica deveria estar à altura se exprimiu pela sua dedicação às comuni-
de se encarregar das despesas de manutenção dades ao longo dos últimos vinte anos. Mais
e operação. Pela sua parte, o padre Barriga do que o meio de transmissão de u m a série de
pagou todas estas despesas durante o ano, programas ou de mensagens, a rádio de Taba-
esperando, no entanto, que o projecto da cundo é u m instrumento de consolidação e de
Universidade de Massachusetts lhe reem- desenvolvimento das relações assim estabe-
bolse pelo menos u m a parte. lecidas.

291
Jonathan Gunter e James Theroux

A s duas maneiras de se dirigir ao público blema e produzir resultados imediatos. D e


através da rádio que acabam de ser examina- facto, a justificação das despesas dos orga-
das parecem decorrer de culturas e de filoso- nismos que financiam estes dispendiosos
fias opostas e incompatíveis. O método que métodos exige que se obtenham resultados
se inspira na publicidade americana decompõe mensuráveis n u m curto lapso de tempo.
o processo de desenvolvimento n u m a série Além disso, estes métodos necessitam de u m a
de pequenos problemas fáceis de abordar, infra-estrutura b e m desenvolvida de meios de
que p o d e m ser submetidos a u m a análise informação e de u m a reserva de pessoal quali-
técnica e tratados por especialistas. O m é - ficado para a produção, a investigação e a
todo aplicado e m Tabacundo não procede gestão. À medida que se vão aperfeiçoando,
por fraccionamento é, pelo contrário, holís- deveriam ser cada vez mais aplicados.
tico. Postula que o processo de desenvolvi- Tabacundo mostra a via que conduz à rea-
mento se apoie essencialmente n u m a tomada lização de comunicações de massa a partir
de consciência por parte do indivíduo e da da base. M a s trata-se de u m a obra de longo
comunidade e n u m diálogo permanente. A s alcance. O padre Barriga trabalha para Taba-
soluções para os problemas do desenvolvi- cundo há vinte anos e, provavelmente, per-
mento devem ser encontradas principalmente manecerá nesta cidade por mais vinte anos
na comunidade e devem ser aplicadas pela ainda. O seu método apoia-se na dedicação
comunidade e não por especialistas vindos das pessoas ao desenvolvimento popular e não
de fora. no seu nível de conhecimentos técnicos. O s
N o entanto, entendemos que estas duas resultados serão necessariamente mais lentos
abordagens não devem ser consideradas con- a obter e poderão ser, e m grande parte, difi-
traditórias. U m a interpretação u m pouco cilmente mensuráveis, de acordo c o m os cri-
mais construtiva consiste e m considerá-las térios sociais e as ciências sociais dos países
sob o aspecto das situações e dos objectivos ocidentais.
a que se adaptam. Nesta óptica, revelam-se
complementares. N o entanto, as vantagens apresentadas por
A publicidade é capaz de abranger u m Tabacundo nos domínios da tomada de cons-
grande número de pessoas e de provocar ciência individual e da solidariedade comuni-
modificações certamente pouco importantes, tária poderiam ajudar a reduzir a atonia, a
m a s cujo impacto global é poderoso. O s alienação e a desintegração social inquietantes
recursos que lhe são atribuídos p o d e m ser que são susceptíveis de acompanhar o assalto
empregues rapidamente e m determinado pro- da tecnologia ocidental avançada.

292
Tendencias e casos

A influência da edição transnacional


sobre o saber nos países e m desenvolmento1
Keith B . Smith

Os livros constituem frequentemente o fulcro dir t a m b é m da sorte dos autores e dos seus
da actividade e da comunicação intelectuais. manuscritos quando efectuam u m a opção na
Veiculam o saber de país para país e n o inte- massa dos manuscritos que lhes são subme-
rior dos próprios países. tidos. Q u e controle p o d e m realmente exercer
Juntamente c o m outros suportes são os os editores sobre os manuscritos e e m que
captores e os vectores dos conhecimentos, da fundamentam as suas opções? E m particular,
cultura, da informação e dos divertimentos e m que é que diferem os resultados quando
da sociedade. Apesar dos livros se contarem se trata de u m a edição transnacional, local
entre os mais antigos media, a edição é a ou nacional? E m que é que a actividade
menos estudada das indústrias da comuni- intelectual e as estruturas das sociedades são
cação. Nunca suscitou o m e s m o interesse que afectadas pelos editores c o m o agentes do
outros media mais recentes c o m o a radio- saber?
difusão e a imprensa. N a maior parte dos paí- N e n h u m a categoria particular de livro
ses, a profissão encontra-se submersa sob u m a exerce u m a influência exclusiva sobre o
espantosa mistura de folclore e mística sobre desenvolvimento dos conhecimentos. A clas-
a qual só se levanta o véu através de memórias sificação dos livros por categorias intelectuais
dos editores e da história das casas editoras. e culturais é u m a distinção cultural que
Contudo, a influência exercida pelos livros é depende da maneira c o m o u m a sociedade
u m facto reconhecido. Eles alimentaram reli- entende a arte e a cultura. N o entanto, o
giões, inspiraram revoluções; ensinaram, des- presente estudo refere-se mais especialmente
truíram, guiaram, animaram e influenciaram à edição de obras diferentes dos romances e,
a vida dos homens das mais diferentes m a - nesta categoria, aos sectores, da edição, espe-
neiras. cializados na publicação de obras conside-
Escritores, editores, educadores, bibliote- radas especializadas, eruditas, universitárias,
cários e livreiros decidem dos livros que o
público pode 1er. O s editores parecem deci-
1. Este estudo foi primeiramente efectuado, e m Abril
de 1976, n o Institute of Development Studies da
Universidade de Sussex, para a Divisão das
Keith B . Smith (Reino Unido) é editor e consultor ciências sociais aplicadas da U N E S C O . Foi
junto da Inter-Action, cooperativa londrina de meios apresentado n u m a reunião de peritos sobre o
de informação, e director de Third World publications estudo da influência das sociedades transnacionais
de Birmingham. Foi professor no Quénia, director das sobre o desenvolvimento e as relações interna-
exportações das edições William Collins, e efectuou cionais nos domínios da competência da U N E S C O ,
investigações sobre os aspectos internacionais da edição que se realizou e m Paris, e m Junho de 1976.
no Institute of Development Studies da Universidade de Foi revisto na Inter-Action, e m N o v e m b r o de 1976,
Sussex. para Perspectivas.

293
Tendências e casos

educativas, documentais. Alargar o alcance millan e Oxford University Press abriram


do nosso estudo levar-nos-ia a generalizações escritórios na índia. Pouco depois, a editora
excessivas. Estas categorias incluem os livros francesa Hachette iniciou a sua expansão nos
mais susceptíveis de ser utilizados n o ensino países submetidos à influência da França,
superior, nas escolas, na educação escolar e começando pela Turquia e o Egipto. O s edi-
não escolar e nas bibliotecas de estudos, e tores dos Estados Unidos só começaram a
lidos por aqueles que desejam instruir-se e exportar para além da América do Norte
documentar-se. Aplicarei tão amplamente a depois de 1940. São actualmente os maiores
minha argumentação aos continentes de exportadores de livros universitários e cien-
África, da Ásia e da América Latina que as tíficos para certos países e m desenvolvimento.
excepções poderão, por vezes, revelar-se tão N a senda das edições das missões cristãs
instrutivas c o m o as generalizações. O inte- do ensino colonial, o desenvolvimento das
resse que apresenta o estudo dos aspectos edições transnacionais originou u m impor-
internacionais da edição deve-se, e m parte, tante afluxo de livros do Reino Unido, de
ao facto de ser a indústria do livro que difunde França ou dos Estados Unidos para países
as teorias sobre o sistema transnacional. Ora, e m desenvolvimento. N a maior parte dos
a indústria do livro constitui, talvez, u m a países e m desenvolvimento, c o m u m a econo-
parte integrante deste sistema. mia de mercado o u u m a economia mista, os
editores transnacionais dominam os sectores
da edição que têm mais influência sobre o
A edição transnacional saber, excepto nos países e m que os governos
concederam a editores do Estado a exclusi-
A Organização das Nações Unidas estabele- vidade da edição dos livros destinados ao
ceu recentemente u m a definição das socieda- ensino primário e secundário.
des transnacionais que se aplica a casas de
edição cujo grau de «transnacionalidade» é
variável. N u m caso extremo, u m editor trans- Orientação metropolitana
nacional pode limitar-se a vender livros para
exportação. Foi assim que a maior parte das A s casas de edição transnacionais limitaram-
sociedades, actualmente assinaladas c o m o -se primeiramente a exportar os seus títulos
transnacionais, começaram as suas operações metropolitanos para os países e m desenvol-
c o m o estrangeiro, mas distinguem-se actual- vimento, onde eram lidos pelos colonos e
mente das empresas nacionais por possuírem utilizados nas escolas fundadas para formar
ou controlarem sucursais oufiliaisfora do u m a classe média local. E m certos países da
seu país. E m certas regiões d o m u n d o e m Ásia, estes editores, seguindo o rasto dos
desenvolvimento, e m especial na América missionários, começaram a publicar livros
do Sul, os editores transnacionais preferem e m língua local e houve pelo menos u m editor
operar por intermédio de agentes d o que que, e m 1909, descobriu o lucro que daí
abrir os seus próprios escritórios. poderia retirar. E m 1925, as administrações
A expansão imperial da Inglaterra e da coloniais de certas regiões sentiram necessi-
França levou consigo os seus próprios sis- dade de estimular a redacção e a publicação
temas de ensino. A s escolas das colónias de manuais escolares mais adaptados às con-
tinham o m e s m o programa do que as da dições locais; esta modificação operou-se len-
metrópole. O s manuais franceses e ingleses tamente e os primeiros livros destinados à
eram importados para acompanhar u m pro- África anglófona foram publicados depois
grama também importado. de 1930.
N o início do século, certas firmas inglesas Devido ao papel que se lhes reconhece na
começaram a adquirir u m a dimensão trans- defesa da paz e da compreensão internacio-
nacional quando casas c o m o L o n g m a n , M a c - nal, e da importância concedida à educação

294
Tendencias e casos

na planificação nacional, os livros estão, e m internacionais sobre os direitos de autor e


grande parte, isentos de direitos de alfândega. importam, portanto, do Ocidente, livros que
A sfiliaisdas sociedades transnacionais nos contêm conhecimentos novos. Este comércio
países e m desenvolvimento puderam, assim, é manifestamente rentável para os editores
basear a sua acção na distribuição dos títulos transnacionais e para os autores metropoli-
publicados pela casa m ã e . É o que se verifica, tanos se tivermos e m conta a inquietação que
e m particular, c o m o que diz respeito aos lhes causam as edições piratas e o vigor c o m
editores americanos de publicações eruditas ou que reforçam as convenções a despeito dos
destinadas ao ensino superior. Quando as pedidos de maior flexibilidade formulados
filiais se orientam também para a edição de pelos países e m desenvolvimento.
livros destinados a substituir as importações, A predominância de livros metropolitanos,
é, e m grande parte, porque os programas e m combinada c o m outras forças transnacionais,
vigor n o sistema escolar nacional exigem conduziu à bipolarização dos intelectuais dos
livros adaptados às condições locais. Fora países e m desenvolvimento, formando a
do país, a venda destes livros continua a ser maioria u m a classe transnacional orientada
marginal. Estas listas locais aumentaram para a metrópole, e a minoria u m a classe
durante o presente decénio, de tal m o d o que, contestatária ardentemente nacionalista. A
e m certos casos, representam até 80 por cento indústria do livro constitui apenas u m dos
do montante das operações comerciais do factores da criação desta intelligentsia trans-
editor transnacional na região considerada. nacional. Entre os outros factores menciona-
A sfiliaisperiféricas das sociedades transna- remos os estudos nos estabelecimentos metro-
cionais têm u m a terceira função: transmitem politanos, o «êxodo das competências» e o
manuscritos aos leitores da direcção central, número crescente das universidades de orien-
quando decidem que há razão para os publi- tação metropolitana. A riqueza desempenha
car e distribuir pelo mercado continental ou também u m papel directo, pois os países
internacional. São estas três funções que metropolitanos p o d e m realmente escolher os
situam os editores transnacionais n o contexto programas de investigação que desejam finan-
internacional. ciar e exercer, assim, influência sobre as
A situação mundial do livro reflecte certos publicações a que estes programas darão
desequilíbrios e u m a orientação metropoli- lugar. Esta riqueza permite igualmente finan-
tana dominante. E m 1950, os países e m desen- ciar os organismos que exportam a cultura,
volvimento contavam 37 por cento dos adul- c o m o os serviços de informação dos Estados
tos alfabetizados do m u n d o e 42 por cento Unidos, o British Council e diversos orga-
da população escolar e a sua produção de nismos governamentais franceses e soviéticos.
livros representava 24 por cento da pro- O s serviços de informação levam, por vezes,
dução mundial. E m 1970, a sua parte de pro- os institutos universitários e os editores a
dução de livros tinha decrescido para 19 por defender certos interesses metropolitanos.
cento, enquanto a população escolar tinha Existe u m a ligação estreita entre a edição
passado de 42 para 63 por cento e a dos transnacional, as línguas de difusão interna-
alfabetizados adultos de 37 para 50 por cento. cional e as intelligentsias transnacionais.
O s países e m desenvolvimento importam a A expansão imperialista impôs o francês e o
maior parte dos livros de nível universitário, inglês e m vastas regiões do m u n d o e arrastou
o que não surpreende, u m a vez que os prin- na sua senda a edição transnacional. O s inte-
cipais exportadores, a Europa e os Estados lectuais da Ásia e da África escrevem e lêem
Unidos, são, desde há alguns séculos, os ainda c o m u m m e n t e na língua da antiga metró-
principais produtores de saber científico e de pole. A situação é u m pouco diferente na
publicações intelectuais. A maior parte dos América do Sul onde os intelectuais univer-
países e m desenvolvimento são signatários sitários não utilizam exclusivamente o espa-
de pelo menos u m a das duas convenções nhol e se interessam vivamente por livros

295
Tendências e casos

escritos e m inglês, e m francês, e m alemão e e m recidos pelos editores transnacionais. A Indo-


russo. Consideram que as publicações e m nésia, pelo contrário, ao adoptar o bahasia
espanhol não os vinculam suficientemente às indonesia c o m o língua de ensino, sem desen-
línguas internacionais orientadas para u m a volver suficientemente as edições de Estado
metrópole. Entre todas as edições e m línguas n e m incentivar a edição privada, provocou
de difusão internacional, a edição e m língua graves penúrias e m vez de se libertar da depen-
espanhola é a que está menos dependente de dência.
u m a metrópole. O s editores espanhóis são
obrigados a sofrer a concorrência dos edito-
res argentinos e mexicanos. A influência sobre os leitores
O s editores de outros países europeus sen-
tiram todas as vantagens que poderiam reti- A edição transnacional operou u m a impor-
rar de edições nas línguas de difusão interna- tante transferência de conhecimentos dos
cional. N o s países escandinavos, na Holanda, centros avançados para as zonas periféricas
na República Federal da Alemanha e e m do m u n d o e contribuiu para constituir o
certos países da Europa de Leste, alguns capital intelectual de muitos países e m desen-
editores desenvolvem as suas edições e m lín- volvimento. Este comércio, juntamente c o m o
gua inglesa e podem, assim, começar a con- desenvolvimento de u m a intelligentsia trans-
correr c o m os exportadores tradicionais de nacional, ocasionou a transferência das in-
livros destinados aos países e m desenvolvi- fluências metropolitanas sobre a produção e o
mento. O s editores transnacionais, c o m o m o s - consumo locais do saber. A s duas secções
trarei mais adiante, procuram minar a posição seguintes explicarão as transferências que se
das línguas internacionais c o m influência da efectuam no quadro da edição transnacional
metrópole nos países e m desenvolvimento. e que, por seu intermédio, atingem os leitores.
N o s países e m desenvolvimento e m que N u m a secção ulterior, estudaremos os meios
predominam os livros escritos e m línguas de através dos quais estas transferências colocam
difusão internacional, este processo acentua a edição nacional nos países e m desenvolvi-
o desfasamento intelectual entre os indivíduos mento.
instruídos que têm acesso a estes livros e os O s editores transnacionais que d o m i n a m o
alfabetizados mais pobres que devem conten- mercado dos livros escolares e m numerosos
tar-se c o m livros locais impressos na sua países e m desenvolvimento transferem para
língua. Existem, evidentemente, muitos exem- estes países certos aspectos do ensino carac-
plos de línguas importadas que erigiram u m a terísticos da metrópole. É o caso, por exem-
barreira entre a élite e o resto da população. plo, dos métodos pedagógicos e m que a
Alguns países e m desenvolvimento aplicam transferência se opera muitas vezes através
u m a política nacional do livro, que atenua do canal de livros que foram elaborados na
esta divisão operada por u m «transnaciona- metrópole. Este procedimento caracteriza a
lismo» apoiado n u m a metrópole. E m Cuba, publicação de manuais escolares desde que os
graças à campanha massiva de alfabetização, manuais ingleses foram superficialmente adap-
à negação dos direitos de autor internacional tados às escolas africanas, contentando-se e m
e à criação de u m monopólio de Estado con- substituir a palavra «batatas» por «ignames».
fiado ao Instituto del Libro, os livros não são A importância dos trabalhos de adaptação
instrumentos de dependência transnacional. dos editores transnacionais depende da sua
A República Unida da Tanzânia segue u m a actividade de edição no Reino Unido. O que
política menos radical e menos centralizada, abre, na maior parte das vezes, a via à adapta-
que assenta no emprego do swahili e na afri- ção, é a importante participação dos pais
canização dos conteúdos, da orientação geral n u m a reforma do ensino secundário da mate-
e da fabricação, m a s que, no caso das publi- mática moderna o u do método de Nuffield
cações escolares, apela para certos meios ofe- baseado na descoberta pelo aluno e imaginada

296
Tendências e casos

nos anos sessenta. Estas tendências pedagó- transferência que resulta de u m contrato inter-
gicas foram transmitidas ao ensino africano nacional directo entre os educadores ou do
pelas vias especializadas graças ao auxílio texto escrito pelos autores. A s transferências
oficial e às adaptações dos editores. O pro- da metrópole para a periferia, e m matéria de
blema de saber se esta influência moderniza- educação, consistiram também, c o m o vimos,
dora que se exerce sobre o ensino africano n u m a transposição para as colónias dos sis-
favorece o desenvolvimento dos alunos é temas de ensino metropolitanos. O s livros
controversa. D o ponto de vista do editor, que seguiram esta transposição constituíram
depende principalmente do grau de adaptação, importantes instrumentos de transferência
A s alterações introduzidas nos manuais de m a - cultural. Durante decénios, os alunos afri-
temática para incorporar o ambiente local canos e asiáticos aprenderam a história, a
dos alunos são insuficientes, se não tiverem geografia e as instituições do Ocidente e as
e m conta certos factores c o m o as variações ciências naturais da zona temperada. Este
culturais da percepção, as atitudes culturais saber constituiu u m a grande parte da baga-
perante a abstracção, as classificações e as g e m intelectual da intelligentsia transnacio-
medidas e u m relativo hábito destas noções. nal da maior parte dos países e m desenvolvi-
O grau de adaptação dos principais ele- mento. C o m a constituição de comissões de
mentos de programa depende, e m grande exame locais e a importância concedida às
parte, da importância do mercado potencial culturas nacionais nos programas escolares,
e da equipa encarregada da adaptação, que é os manuais metropolitanos eram acolhidos
habitualmente u m grupo oficial ou nomeado c o m mais dificuldade e as editoras transna-
pelo ministério. Foi assim que o programa cionais foram obrigadas a responder às exi-
de matemática editado na origem pela C a m - gências locais ou às directivas dos ministérios
bridge University Press para as escolas do da educação. N o s países e m que as taxas de
Reino Unido foi parcialmente adaptado para escolarização são fracas, estes não têm a
o Botswana, o Lesotho e a Suazilândia, m a s m e s m a influência sobre as sociedades de edi-
mais profundamente remodelado para o mer- ção transnacionais e p o d e m eventualmente
cado da África Oriental, que é mais impor- decidir que a reforma dos programas é impos-
tante. Esta actividade de adaptação apre- sível se os novos manuais não forem publi-
senta três novos aspectos. O s dois primeiros cados por edições do Estado.
mostram que este comércio, apesar de rentá- A o nível do ensino superior, os países e m
vel para os editores metropolitanos, não está desenvolvimento têm pouca influência sobre
inteiramente limitado a u m circuito intra- a edição transnacional, excepto quando este
-transnacional : e m primeiro lugar, muitos sector do ensino é importante, c o m o sucede
pedidos de adaptação são oficiais; e m segundo na índia. C o m excepção dos manuais de base,
lugar, alguns dos editores iniciais, c o m o Blac- o mercado oferecido pelos países e m desen-
kie e Chambers ou John Murray, apesar de volvimento é habitualmente demasiado res-
britânicos, não são firmas transnacionais e trito para poder exercer u m a grande influência
alguns dos editores que publicam as adapta- sobre o programa de publicação dos editores
ções pertencem a sociedades quase indígenas, transnacionais.
c o m o a East African Publishing House. A ideologia de base dos editores transna-
O terceiro novo factor é u m pequeno movi- cionais, c o m o a de todas as empresas capita-
mento de manuais adaptados de geografia listas, baseia-se n o lucro. É evidente que as
e de ecologia para as metrópoles e entre os sociedades comerciais publicam algumas colec-
mercados do terceiro m u n d o . ções e alguns títulos de que não esperam bene-
A transferência de novos métodos pedagó- fícios, m a s que se destinam a levar a sua
gicos raramente se deve à iniciativa dos edi- imagem de qualidade. Além disso, o que é
tores escolares transnacionais. N a maior parte ainda mais interessante, alguns grupos de
das vezes, estes asseguram a base material da editores metropolitanos estão animados de

297
vn-io
Tendencias e casos

u m ideal profissional que atenua a sua procura interesses dos leitores do seu país. Pode atri-
do lucro; é o que sucede sobretudo c o m os buir-se u m certo poder àsfiliaism a s , neste
editores universitários ingleses e americanos: caso, trata-se unicamente d o poder de infor-
c o m excepção parcial dos manuais escolares, mar a direcção central do potencial de venda
a edição caracteriza-se por u m mercado muito oferecido pelos leitores e institutos locais.
incerto e u m a proporção elevada de novidades. O que equivale principalmente a interpretar
Assim, é difícil avaliar o potencial de vendas os gostos de u m a intelligentsia local, m a s
de u m manuscrito e é mais fácil justificar transnacional e «metropolitanizada». Assim,
outros critérios de selecção c o m o o valor m e s m o quando os editores transnacionais
intelectual ou literário. A natureza e a apli- publicam manuscritos redigidos por autores
cação destes critérios serão determinadas por dos países e m desenvolvimento, o processo
factores c o m o a estrutura e a tradição da de selecção e, por conseguinte, as listas dos
sociedade, a imagem que o editor tem de si editores têm tendência para reforçar a depen-
próprio e o grupo a que se refere, e pela m e - dência do país e m desenvolvimento e m rela-
dida e m que concebe o seu papel c o m o essen- ção aos países metropolitanos.
cialmente normativo ou essencialmente inter- Esta dependência não seria tão grande se os
pretativo.
leitores dos países e m desenvolvimento fos-
A s editoras transnacionais delegam mais sem mais numerosos e mais diversos. O s edi-
ou menos poder nas suasfiliais.A sua ideo- tores metropolitanos não têm o objectivo de
logia, tal c o m o se manifesta por intermédio alargar os seus mercados através do financia-
das suas estruturas diferentes, determina a mento dos programas de alfabetização a
natureza da sua influência sobre o saber. longo termo ou das bibliotecas rurais. A sua
A s maiores editoras transnacionais designam principal preocupação além da procura do
u m director local que goza de grande auto- lucro, consiste mais e m procurar manuscritos
nomia no que respeita à publicação de manuais de qualidade do que e m aumentar o número
escolares e de obras nas línguas locais, m a s dos leitores. É geralmente o Estado que se
que deve endereçar à direcção central os encarrega de abranger u m público mais amplo,
manuscritos, literários ou não, escritos e m por intermédio das bibliotecas e, por vezes,
línguas de difusão internacional. Nesses casos,
dos gabinetes de publicações que editam m a -
o poder aparente do director local é muito
nuscritos sem qualquer interesse comercial.
superior à sua influência real, pois os manuais
Apesar desta acção do Estado, é provável
estão mais intimamente ligados do que qual-
que a estrutura dominante da distribuição
quer outra categoria de livros às condições
dos livros conduza à separação dos leitores
perceptíveis do mercado. N o s países e m desen-
volvimento, os manuais acompanham geral- por u m fosso ainda mais profundo do que o
mente de perto os programas escolares e as que divide os utentes dos meios de informação.
grandes sociedades transnacionais que os Por outras palavras, à medida que a indústria
editam são as menos dispostas a renunciar ao do livro se desenvolve, alguns sectores da
lucro. população c o m u m estatuto socioeconómico
superior tendem a adquirir conhecimentos
Existem, n o entanto, manuscritos que c o m u m ritmo mais rápido do que os que pos-
dependem menos intimamente das condições
suem u m estatuto inferior, de tal m o d o que a
do mercado local e que dão ao editor que
diferença entre os saberes tende a aumentar
decide da sorte do manuscrito u m a maior
e m vez de diminuir.
liberdade de julgamento. É o caso dos livros
para adultos, documentais, literários ou uni- Assim, apesar dos princípios pluralistas
versitários escritos e m línguas de difusão dos editores transnacionais, as principais
internacional. M a s o poder de decisão per- influências que determinam a repartição do
tence sobretudo aos editores metropolitanos saber, c o m excepção dos manuais escolares,
que conhecem perfeitamente os gostos e os são as decisões tomadas pelos editores metro-

298
Tendências e casos

politanos e o mercado internacional domi- mente nacional não teria tido possibilidade de
nado pela metrópole. o fazer. O que talvez seja largamente provei-
É interessante notar, de passagem, que toso, sobretudo quando se trata de disciplinas
manuscritos que criticam e contestam poli- mais exportáveis, tais c o m o a ciência o u a
ticamente certos países e m desenvolvimento tecnologia, e m que, por exemplo, u m livro
encontram, por vezes, u m editor metropoli- tratando de certos aspectos da silvicultura
tano, enquanto nenhum editor local ou ver- tropical pode tornar-se rentável atingindo
dadeiramente transnacional os poderia pu- u m mercado tropical e m vez de u m mercado
blicar. unicamente nacional. Este alcance internacio-
nal é mais importante para países muito peque-
nos. Assume igualmente u m a importância
Influência sobre os autores crescente n o mercado universitário, onde o
aumento do número de bolsas de estudo deu
A actividade dos editores de livros actua não origem a u m a maior especialização e a u m a
só sobre o consumo intelectual c o m o também certa incidência dos mercados sobre as publi-
sobre a produção. Esta influência faz-se sen- cações altamente especializadas a que estas
tir nas relações entre escritores e casas edi- bolsas exigem o acesso. Poder-se-ia tirar o
toras. m e s m o partido da extensão d o saber se os
Apesar das recentes fusões entre empresas editores dos países e m desenvolvimento tives-
metropolitanas de edição, a indústria do livro sem acesso a u m mercado mundial, o que
tem u m a ideologia essencialmente pluralista. não acontece. Muitas vezes n e m sequer atin-
M e s m o quando fazem parte de u m grupo, gem o mercado d o seu próprio continente,
as sociedades conservam frequentemente u m a apesar de algumas novas empresas c o m boas
relativa independência. O s editores transna- promessas de futuro estarem à altura de
cionais exportaram esta atitude para os países aumentar a sua clientela.
e m desenvolvimento e m que a extensão do É nos domínios mais estritamente culturais,
monopólio de Estado sobre a edição causa c o m o as ciências sociais, a literatura, os livros
as maiores apreensões. São por vezes estas destinados ao grande público e às crianças
apreensões que, entre outros factores, levam as que a edição transnacional deforma a pro-
sociedades transnacionais a facilitar o desen- dução intelectual. Muitos autores, principal-
volvimento de u m a indústria local do livro mente os universitários, possuem duas moti-
perante as edições do Estado. O pluralismo vações : o desejo de comunicar e o de adquirir
oferece aos autores u m a gama mais vasta de prestigio ou ganhar dinheiro. Quando os edi-
possibilidades do que nos países e m que a tores da metrópole recebem os seus manus-
edição está mais centralizada. M a s a escolha critos, transmitem-nos habitualmente a u m
dos títulos publicados não é apenas fruto de leitor, afimde colherem u m a opinião sobre
u m a atitude pluralista, é também determinada o seu valor. Infelizmente, não foi feito n e n h u m
pela maneira como os editores interpretam estudo sobre a interacção entre os editores e
o mercado e pela sua ideologia dominante. os conselheiros, mas é provável que a decisão
C o m o vimos, quando u m autor submete de publicar ou não publicar u m manuscrito
u m manuscrito a u m a casa editora transna- seja tomada tendo e m conta a opinião da
cional, este manuscrito é julgado e m função metrópole, os gostos internacionais e a posi-
de u m mercado internacional, excepto quando ção do autor na élite transnacional. É , por-
se trata de u m manual escolar, de u m manual tanto, u m a autoridade da metrópole, o u
de base, ou de u m a obra redigida n u m a língua orientada para a metrópole, que, por inter-
local. O s editores transnacionais c o m acesso médio dos editores transnacionais,filtrao
a muitos mercados no m u n d o podem, muitas saber à sua entrada nos países e m desenvolvi-
vezes, aceitar u m manuscrito e publicá-lo c o m mento. É neste sentido que u m trabalho pode
fins comerciais, enquanto u m editor pura- adquirir, ou não, legitimidade, pois é muito

z
99
Tendencias e casos

raro que ideias não publicadas adquiram concedido. Simultaneamente, devido a este
autoridade. E m certos sistemas de ensino, subsídio, os livros do editor transnacional
a promoção dos autores universitários depende vendem-se mais baratos do que os livros locais
também dos editores. A necessidade de satisfa- equivalentes dos quais alguns não p o d e m ,
zer os que detêm esta autoridade influencia portanto, ser publicados. O que desanima os
certamente os autores dos países e m desen- autores locais, não significando, porém, que
volvimento. Muitos serão aqueles que escre- o auxílio a favor d o livro seja afinal, preju-
v e m indo ao encontro do que pensam cons- dicial, embora exija u m a avaliação mais reflec-
tituir o desejo da rede transnacional orientada tida.
para a metrópole. E m certas regiões e m que,
para certas categorias de livros, c o m o as
publicações universitárias das Antilhas, o
público é particularmente limitado, os auto- Editores
res devem quase inevitavelmente apontar nacionais e locais
para u m público internacional. nos países e m desenvolvimento
E m certos países e m desenvolvimento, os
autores devem optar entre duas categorias de O s editores transnacionais exercem igual-
editores locais, os editores comerciais e os mente u m a influência indirecta sobre o saber
outros. Excluindo a índia, as edições uni- devido à sua influência sobre a edição nacio-
versitárias comerciais são raras. O número nal nos países e m desenvolvimento. Para
das editoras universitárias subsidiadas tem estudar este fenómeno, devemos, e m primeiro
aumentado na Ásia e na África Ocidental, lugar, estabelecer u m a distinção entre as
m a s o número de obras publicadas é ainda diferentes categorias de editores nacionais.
limitado. E m geral, é menos prestigioso ser A s estruturas da edição local e nacional
publicado por estes editores locais do que por nos países e m desenvolvimento são a resul-
editores transnacionais. Alguns escritores afri- tante de factores muito diversos: grau de
canos apreciados reagem actualmente contra alfabetização e de instrução, política dos
a predominância das casas editoras trans- governos e m matéria de edição de Estado no
nacionais confiando aos editores locais alguns domínio da educação, desenvolvimento dos
dos seus manuscritos. Esta atitude insere-se serviço de biblioteca e do poder de compra,
n u m pequeno movimento de protesto a que disponibilidade dos diversos elementos da
já aludi. infra-estrutura dos manuscritos e m relação
Assim, por u m lado, o acesso ao mercado às livrarias, passando pelas tipografias, acesso
internacional assegura aos editores transna- ao capital e à arte, atitude do governo perante
cionais a rentabilidade de u m certo número os editores capitalistas, os editores estrangei-
de títulos e, por outro lado, a orientação ros e os editores de Estado, poder e influência
metropolitana do editor transnacional con- dos editores nacionais e locais. É neste con-
jugate c o m o transnacionalismo do país e m texto que surgem duas grandes categorias de
desenvolvimento, para impedir a legitimação casas editoras nos países e m desenvolvimento :
da produção intelectual desse país. as edições comerciais e as edições não comer-
Algumas formas de ajuda a favor do livro ciais. A s organizações não comerciais são
prejudicam a produção de escritos locais; habitualmente organizações de Estado que
é o que sucede, e m particular, c o m as medidas publicam manuais, o u empresas de edição
graças às quais os editores transnacionais universitárias subsidiadas por universidades
obtêm subsídios para as suas publicações. ou institutos. O s editores de Estado benefi-
Estas medidas originam u m a diminuição do ciam quase sempre de u m monopólio sobre
preço de venda e proporcionam aos compra- os manuais do ensino primário. Situam-se
dores a possibilidade de adquirir u m livro habitualmente entre u m a instituição que
que não teriam podido obter sem o subsídio reflecte a ideologia política nacional, c o m o o

300
Tendências e casos

Instituto dei Livro de Cuba, e u m órgão de signatários de negociar os seus direitos c o m


intervenção criado para conservar reservas os editores dos Estados Unidos, excepto
estrangeiras, produzir livros a preço mais quando o editor britânico tinha a possibili-
acessível e fazer que os manuais estejam dade de publicar no conjunto do «mercado
de acordo c o m o pensamento do governo, tradicional», isto é, e m quase todo o antigo
c o m o o Educational Publications Bureau de império britânico. Este mecanismo permitiu
Singapura. O monopolio que daí resulta que os editores britânicos mantivessem o
traduz-se pelo controle exercido pelo serviço controle dos seus mercados e limitassem a
governamental encarregado de elaborar os expansão americana. O s editores britânicos
programas escolares e pela casa editora de defendem que, se o mercado se dividir, as
Estado sobre o conteúdo intelectual dos tiragens diminuirão e o preço dos livros
manuais. N o caso dos editores não comer- aumentará. É possível, m a s tal não aconte-
ciais não subsidiados, é habitualmente o ceria se os editores de todos os países tives-
pessoal docente de u m a universidade ou sem acesso ao mercado internacional alcan-
instituto que toma a decisão de publicar çando, assim, a possibilidade de elevar as
ou não. suas tiragens e alargar a distribuição, pos-
A s empresas locais de edição comercial sibilidade que está ainda, e m grande parte,
estão geralmente ligadas a três tipos de situa- reservada aos editores transnacionais.
ção. Algumas são dirigidas por profissionais C o n v é m assinalar duas excepções de impor-
que começaram, por vezes, por editar as suas tância para as restrições infligidas à acção
próprias obras, c o m o as edições Onitsha na dos editores dos países e m desenvolvimento:
Nigéria. Outras criaram u m serviço de edição os romances populares locais, os livros de
a partir de u m a livraria; vários importadores conselhos de ordem social e pessoal e os
indianos tornaram-se editores por este pro- manuais de preparação intensiva. A s grandes
cesso. Outras ainda nasceram de movimentos casas editoras transnacionais exerceram o
políticos ou culturais ou foram criadas por essencial dos seus esforços sobre as especia-
intelectuais desejosos de criar certas cate- lidades da metrópole, desprezando a litera-
gorias de livros. Muito poucos editores, nos tura de diversão. Esta continua, pois, aberta
países e m desenvolvimento, seguiram a prá- aos editores locais e aos importadores que
tica habitualmente admitida nos países metro- fornecem livros e revistas publicados por
politanos que consiste e m abandonar grandes outros editores metropolitanos. O s princípios
casas editoras para fundar pequenas empresas. e m que se baseia a política dos editores
Todas estas categorias de editores comer- transnacionais e o interesse que dedicam ao
ciais são obrigadas, mais cedo ou mais tarde, mercado urbano explicam que se tenham
a enfrentar os editores transnacionais que limitado aos manuais escolares tradicionais
d o m i n a m os sectores mais proveitosos do e aos livros educativos, e que tenham evitado
mercado. Algumas vantagens permitem que publicar livros de preparação intensiva. O s
os editores transnacionais mantenham esta editores dos países e m desenvolvimento sen-
posição, confinando, assim, e m grande parte, tem dificuldades e m sustentar a concorrência
os editores locais aos sectores marginais de no domínio dos manuais escolares. Alguns
u m a indústria já por si marginal. Esta domi- deles serviram-se de livros de preparação
nação provocou igualmente u m a certa hosti- intensiva para adquirirem bases e se tornarem
lidade no Canadá e na Austrália nos anos capazes de se lançar na publicação de obras
setenta. O s editores australianos tiveram de mais sérias.
pagar pelo British Traditional Market Este desequilíbrio histórico provocou, n a
Agreement contra o qual o Ministério da maior parte dos países e m desenvolvimento
Justiça dos Estados Unidos intentou u m a sem grande mercado universitário, u m cisma
acção por desrespeito ao acordo estabelecido. imprevisto que tem vindo a acentuar-se.
Este acordo impedia os editores britânicos O público espera que as obras comerciais

301
Tendências e casos

mais intelectuais sejam publicadas por casas embora menos caros, não possuíam u m a apa-
editoras transnacionais e as raras obras de rência tão atraente c o m o os livros publicados
fundo publicadas pelos editores locais são, pelos editores transnacionais. E m outros
geralmente, desacreditadas. E m muitos países casos, os editores dos países e m desenvolvi-
e m desenvolvimento onde assim acontece, mento parecem sofrer de u m a dependência
o desequilíbrio é, pelo menos parcialmente, psicológica que os leva a querer atingir as
restabelecido pela actividade de editores normas dos editores metropolitanos sem ter
locais subsidiados, tais c o m o as imprensas e m conta as condições locais. Esta atitude
universitárias. Ultimamente, os editores trans- origina sempre u m aumento d o preço dos
nacionais começaram a publicar livros de livros e restringe, portanto, a difusão do seu
preparação e romances de diversão, m a s nada conteúdo.
permite ainda dizer se esta atitude reduzirá
a cisão existente ou se porá e m perigo o
principal mercado dos editores locais.
A s três principais influências
U m a das vantagens históricas dos editores
transnacionais metropolitanos consiste e m exercidas pela edição
terem a sua sede no centro de redes de c o m u - transnacional
nicação e de transporte da África e da Ásia.
O s editores dos países e m desenvolvimento O que sobressai mais nitidamente do que
estão instalados na periferia e esta estrutura acabamos de dizer é o alcance internacional
radical tem influência sobre o envio de livros que os editores transnacionais dão ao saber
e documentação de u m ponto para outro. e à difusão do saber, dos conhecimentos, das
A s comunicações intelectuais entre países e m ideias, do trabalho de criação, etc., entre os
desenvolvimento, e m vez de se fazerem direc- que d o m i n a m as línguas de difusão interna-
tamente, passam geralmente pelos centros cional e ocasionalmente entre os leitores que
metropolitanos. Esta situação é menos nítida utilizam línguas locais. A sua acção tem reper-
na Ásia Oriental onde os livros circulam entre cussões internacionais e reforça a compreen-
países c o m o H o n g - K o n g , Singapura e Malásia. são e a apreciação intelectuais entre nações.
T a m b é m é menos nítida na América do Sul Esta transferência não se faz e m sentido único
e na América Central onde os livros publica- u m a vez que os editores transnacionais acei-
dos na Argentina ou no México se vendem tam os manuscritos de autores de países e m
e m outros pontos do continente. desenvolvimento e lançam-nos n o mercado
Entre os editores mais intelectuais da África internacional. Deste ponto de vista, o inter-
e da América Latina, nota-se u m a tendência nacionalismo dos editores transnacionais é
para querer igualar o estilo e as normas das tão positivo para o público c o m o para os
metrópoles e m matéria de produção e de escritores.
apresentação dos livros. Assim, ocupam-se Salientei ainda u m a característica menos
tanto da qualidade do papel c o m o da enca- reconhecida da edição transnacional e que
dernação e das ilustrações. Atenua-se a dis- resulta não tanto d o seu internacionalismo
tinção entre os elementos funcionais de apre- c o m o da sua base metropolitana. Quase todos
sentação (legibilidade, solidez) e a apresentação os editores transnacionais têm a sua sede nos
luxuosa, a qualidade superior do papel e países metropolitanos o u no país que domina
as capas coloridas. Alguns editores locais a região. T ê m , assim, u m a orientação metro-
sentem-se obrigados a caminhar neste sentido, politana que, associada a outros factores,
u m a vez que o gosto evoluiu devido à fami- v e m reforçar a dependência intelectual dos
liarização dos compradores c o m os m o d o s países e m desenvolvimento. Esta síndrome
de apresentação metropolitana. Estes edito- é o resultado da maneira c o m o se constitui
res citam casos e m que o pessoal dos minis- o saber e é o produto da história colonial;
térios da educação recusou livros porque, actualmente, é reforçado por elementos do

302
Tendencias e casos

capitalismo mundial e do transnacionalismo c o m o a de Quimantù n o Chile, foram cria-


intelectual, linguístico e universitario. das c o m pleno conhecimento da fraqueza
Esta influência debilitante é incentivada que resulta da dependência da metrópole.
pela relação de certo m o d o simbiótica que O terceiro domínio e m que se exerce a
une a élite dos países e m desenvolvimento influência das casas editoras transnacionais
às sociedades transnacionais, e que procura é o da edição nos países e m desenvolvimento.
reservar às élites o benefício da edição trans- Já mostrei que nos países e m desenvolvimento
nacional. Infelizmente, alguns instrumentos a indústria do livro é contrariada pelo poder
do internacionalismo reforçam a circulação e a influência mundial dos editores transna-
dos livros e m sentido único, atrasando, por- cionais e c o m o estes últimos decidem da
tanto, o desenvolvimento da independência extensão do mercado aberto aos editores dos
intelectual. Algumas forças lutam contra esta países e m desenvolvimento, excepto nos casos
dependência, m e s m o n o interior do sistema e m que o Estado intervém e estabelece u m
de edição transnacional, m a s são demasiado monopólio. Seria necessário empreender u m
fracas para contrabalançar as forças mais estudo de grande envergadura para medir a
poderosas do transnacionalismo das metró- influência dos editores transnacionais sobre
poles. O s mais interessantes e os mais excep- a edição nos países e m desenvolvimento e,
cionais destes fracos contrapesos são talvez e m particular, para determinar o poder e as
as convenções intermitentes entre os editores possibilidades dos pequenos editores inde-
dos países e m desenvolvimento e os editores pendentes. Estes publicaram livros e bro-
transnacionais, nos termos das quais o editor churas e exercem u m a grande influência e m
transnacional distribui nos países metropo- matéria de alfabetização n o plano dos conhe-
litanos os livros publicados pelos editores dos cimentos e até sobre a história nacional.
países e m desenvolvimento. N o exterior do E m resumo, embora o internacionalismo
sistema transnacional, outras forças adversas da edição transnacional seja positivo n o plano
estão e m jogo, desde a lassidão sentida pelos intelectual, a sua orientação essencialmente
autores perante a dominação dos editores metropolitana reforça os laços de depen-
transnacionais, até às casas editoras que, dência.

303
Notas e comunicações

Revista de publicações

Língua, pedagogia, politica e sociedade: o bilinguismo e m marcha

A y o B A M G B O S E (dir. publ.) Enseignement et langue maternelle en Afrique occidentale,


Paris, Presses de l'Unesco, 1976, 137 pp.
Frances Willaid von M A L T I T Z . Living and learning in two languages: bilingual-bicultural
education in the United States. N e w York, McGraw-Hill Book Company, 1975, 221 pp.
C O L E C T I V O D E A L F A B E T I Z A Ç Ã O . L'alphabétisation des travailleurs immigrés. Colecção
«Textes à l'appui», Série pedagogia. Paris, François Maspero, 1975, 326 pp.
Diana E . B A R T L E Y . Soviet approaches to bilingual education. Language and the teacher:
a series in applied linguistics, n.° 10. Filadélfia, Center for Curriculum Development,
1971, 281 pp.
Merrill S W A I N (dir. publ.) Bilingualism in Canadian education: issues and research:
Le bilinguisme dans l'éducation canadienne: la recherche et les problèmes. Yearbook of
the Canadian Society for the Study of Education/Annuaire de la Société canadienne
pour l'étude de l'éducation, vol. 3, 1976. Edmonton, S C E E / C S S E , 136 pp.

O principio de base da pedagogia reside na adaptação de ultrapassar o modelo monolítico constituído pela
dos métodos de ensino aos alunos. N u m a escola pri- utilização de u m a língua oficial única. O número de
mária c o m u m não se ensina a alunos de oito anos o Perspectivas dedicado, e m 1976, à educação bilingue
cálculo diferencial ou as equações químicas relativas e multilingue constitui u m testemunho do interesse
ao cracking dos hidrocarburetos. M e s m o quando suscitado e m larga escala pelo problema da escolari-
u m indivíduo ultrapassa largamente as capacidades zação e m língua materna — o que poderia ser consi-
da maioria dos alunos, é totalmente inútil tentar ensi- derado u m ponto de partida para a elaboração de
nar-lhas. N o entanto, os sistemas de educação de mui- novos programas, e m vez de u m a «inovação metodo-
tos países baseiam-se, pelo menos e m parte, na violação lógica».
destes princípios elementares: ensina-se n u m a língua Entre a variedade de publicações que descrevem
que, pelo menos u m a parte dos alunos — e, e m cer- as tentativas de diversas nações no sentido de enfren-
tos regimes coloniais ou neocolonialistas, a quase tar o problema da educação e m língua materna, foram
totalidade dos alunos— compreendem c o m dificul- seleccionadas quatro como representativas dos dife-
dade. Por motivos de ordem histórica, ideológica e rentes tipos de estudo sobre o assunto. Estas publica-
«prática», a maior parte dos sistemas de educação ções têm e m c o m u m u m a preocupação explícita:
assentam na utilização de u m a língua oficial, pelo como utilizar as línguas maternas no processo de edu-
menos no interior de determinadas zonas geográ- cação? Implicitamente, elas estão ligadas por u m
ficas; por vezes, coexistem duas línguas oficiais no m e s m o fenómeno subjacente de carácter sociopolítico:
m e s m o território; raramente serão mais do que duas. a l''ngua dominante no ensino está ligada, na maior
A s consequências deste estado de coisas no plano edu- parte das vezes, a u m sistema de dominação social e
cativo são geralmente desastrosas para maioria das económica e m que as diferenças de línguas designam
crianças (e dos adultos), obrigados a estudar n u m a u m ou mais grupos como dependentes. A pedagogia
língua diferente da língua materna 1 . e a política estão intimamente relacionadas.
Durante os últimos anos muitas nações tomaram
consciência, de m o d o espectacular, da possibilidade 1. Ver, mais adiante, u m a excepção importante.

304
Notas e comunicações

Enseignement et langue maternelle en Afrique occiden- geral, de alto nível, embora u m a certa desigualdade
tale é u m a colectânea de ensaios redigidos por educa- possa ser atribuída a diferenças das condições locais
dores da África ocidental (Serra Leoa, Benim, G a n a e ou à experiência dos colaboradores: enquanto u m
Nigéria). Fornece-nos u m resumo dos esforços desti- autor se estende exageradamente sobre u m projecto
nados a resolver os problemas relativos à língua nos piloto relativo ao emprego de u m a única língua afri-
países cujas fronteiras foram determinadas no século cana, n u m a só escola, outro, n u m estudo dedicado
passado pelos interesses das potências coloniais da ao projecto «Livros de leitura» do Estado des Rivières
Europa Ocidental, e não pelas afinidades étnicas ou na Nigéria, aborda c o m coerência e e m menos páginas
linguísticas dos povos interessados. E m comparação u m vasto programa incluindo a elaboração de livros
c o m muitas outras partes do m u n d o , a diversidade de leitura para as primeiras classes e m quinze línguas,
linguística desta região é absolutamente surpreendente. acompanhados de guias para os professores e de u m a
A Serra Leoa, c o m u m a população de pouco menos documentação sobre os sistemas de ortografia utili-
de quatro milhões de habitantes, possui pelo menos zados.
18 línguas reconhecidas, das quais algumas apresen- O aspecto mais estimulante das actividades des-
tam, além disso, importantes diferenças dialécticas; critas é talvez o desenvolvimento rápido do estudo cien-
no capítulo sobre o Gana, afirma-se que «nunca nin- tífico das línguas africanas. O s autores contribuem
guém soube quantas línguas se falam no território c o m u m a documentação bastante pormenorizada
do país» (p. 76). Graças a u m resumo histórico do sobre os trabalhos desenvolvidos pelos linguistas para
ensino das línguas maternas na África Ocidental e a dotar de u m a ortografia as numerosas línguas que,
u m a excelente introdução sobre a evolução das polí- até agora, nunca foram escritas. Existe algo de cati-
ticas desenvolvidas pelos Estados contemporâneos, vante na obra imensa que constitui a passagem para-
o leitor está à altura de compreender o aparecimento lela de dezenas de culturas do m u n d o da tradição
progressivo de políticas nas quais o inglês e o fran- oral para a luz crua e analítica do alfabetismo. Este
cês — que são actualmente as principais línguas uti- movimento, iniciado e m diversos pontos durante o
lizadas no ensino (em particular aos níveis secundários último século, principalmente pelos missionários cris-
e superior) — começam, nas escolas primárias, a dar tãos, foi rapidamente acelerado c o m o desenvolvi-
lugar às línguas africanas. A evolução para o emprego mento das técnicas linguísticas modernas. O estudo já
das línguas maternas dos alunos é ainda embrionária, mencionado sobre o projecto «Livros de leitura» do
m a s os autores prevêem que a «língua materna será Estado des Rivières expõe o método de normalização
provavelmente introduzida no ensino primário, den- linguística aplicado simultaneamente a mais de u m a
tro de dez anos, na maior parte dos países que, actual- dúzia de línguas; a descrição prmenorizada da maneira
mente, se limitam rigorosamente ao inglês e ao fran- c o m o a ortografia é modificada, tanto pela tradição
cês» (p. 21). c o m o pela prática, afimde responder às necessidades
Estas tentativas não surpreenderão os especialistas dos leitores é relativamente rara nas revistas não
avisados de África, m a s serão úteis aos leitores que especializadas e merece ser lida.
desejam ter u m a visão de conjunto dos factores lin- A crítica a fazer a este livro consiste e m afirmar que
guísticos que afectam a evolução do ensino nas nações o leitor gostaria de saber mais sobre as abordagens
africanas. O s dirigentes políticos devem esforçar-se adoptadas no resto da África Ocidental. Dispõe dos
por desenvolver as bases de u m a identidade nacional, fragmentos de u m mosaico que, u m dia, deveria ser
lutando contra os problemas suscitados pelo subde- completado.
senvolvimento económico e pela diversidade étnica. Living and learning in two languages: bilingual-
O poder de divisão resultante da preferência conce- -bicultural education in the United States transportá-
dida a u m a língua autóctone e m detrimento de todas baos para urn ambiente totalmente diferente: nos
as outras desempenhou o papel de travão sobre a Estados Unidos, os educadores encontram, nas salas
tomada de decisões e suscitou curiosas anomalias. de aula, u m número surpreendente de grupos linguís-
U m autor observa, por exemplo, que, no Gana, «o ano ticos — imigrantes de todas as partes d o m u n d o ,
que marcou o ponto culminante do nacionalismo foi índios da América, e cidadãos americanos de língua
também o que viu baixar a importância das línguas espanhola ou francesa cuja terra-natal foi absorvida
nacionais no ensino» (p. 83). A s tentativas são, e m pela expansão do país através do continente ou das

3°5
Notas e comunicações

Caraíbas (Porto Rico). N a pátria da teoria do «cadi- única língua oficial, o inglês, o texto dá a impressão
nho» (melting pot), a acção conjugada dos grupos inexacta de que a recente decisão tomada pelo Q u e -
de pressão étnicas, das legislações federais e dos Esta- beque de transformar o francês na única língua oficial
dos, assim c o m o das decisões dos tribunais, suscitou da província constitui, de algum m o d o , u m a excepção.
u m vasto movimento tendente a modificar os objectivos A s considerações sobre a União Soviética são parti-
tradicionais da assimilação cultural e linguística nas cularmente fracas e teriam ganho e m se apoiar e m
escolas. obras de consulta sérias c o m o as de Lewis 1 ou Bar-
O principal defeito do livro de von Maltitz reside tley. Finalmente, ter-se-iam evitado digressões inúteis,
no facto de ignorar as incidências profundas de ordem o que teria melhorado a obra.
sociológica e política do reconhecimento das línguas O autor, u m a professora que conhece b e m as classes
minoritárias nas escolas americanas. Embora se afirme bilingues, dá o melhor de si própria nas breves descri-
na introdução que «os aspectos políticos da educação» ções das experiências bilingues a que assistiu enquanto
são amplamente ignorados, o ponto de vista domi- redigia o livro. M a s os seus resumos ocasionais sobre
nante da maioria anglo-saxónica reflectido n o con- a pedagogia e o clima dessas classes perdem-se, por
teúdo dos programas bilingues é aceite de facto: vezes, na massa dos dados; assim, u m capítulo enu-
estes devem ajudar os alunos anglo-saxónicos a apren- mera, u m a a u m a , todas as respostas a questionários
der u m a língua estrangeira, tal c o m o devem ensinar submetidos a funcionários dos departamentos da edu-
inglês aos alunos de língua minoritária. O autor revela cação dos cinquenta Estados; trata-se de u m a fonte
pouca simpatia pelos grupos minoritários partidários de informações preciosas que u m a abordagem temá-
de u m a abordagem «separatista», e m que os estudantes tica teria permitido explorar melhor. E m suma, este
de língua minoritária estão agrupados e isolados de estudo pretende tratar de todas as formas da educação
todos os alunos de língua inglesa, a fim de preservar bilingue e bicultural e m cada Estado dos Estados Uni-
melhor o seu património cultural e linguístico. O reco- dos, assim c o m o e m Porto Rico, tarefa que teria posto
nhecimento dos direitos das línguas minoritárias está à prova as capacidades do autor mais informado e
intimamente ligado ao de igualdade social e política; mais experimentado. Infelizmente, m e s m o apesar de
é evidente que têm sido feitos progressos, m a s o autor resumir inúmeros dados, o estudo não proporciona
não parece ter u m a opinião coerente sobre os laços ao leitor u m a visão clara dos factos. O assunto merece
que u n e m os conflitos inevitáveis aos problemas ser tratado mais correctamente.
gerais do ensino bilingue. N ã o encontramos e m parte E m França, muitos voluntários dedicam-se desde há
nenhuma u m resumo preciso da política americana anos a ajudar os trabalhadores imigrados, e m especial
sobre este ponto, m a s existem algumas contradições os que vêm de África e dos países do Mediterrâneo.
evidentes: na página 178, podemos 1er que os créditos O Colectivo de Alfabetização representa u m dos gru-
federais servirão apenas para a «integração dos alunos pos que criticam do m o d o mais radical a política actual
(de língua inglesa e minoritária)», enquanto no pará- do governo neste domínio. A sua obra colectiva mais
grafo seguinte se precisa que este princípio foi expli- recente, L'alphabétisation des travailleurs immigrés,
citamente suprimido da exposição de princípios revista coloca deliberadamente a política e a pedagogia no
que figura e m destaque no Bilingual Education Act m e s m o plano. A primeira secção deste livro traça u m
(Educations Amendments of 1974). U m capítulo dedi- quadro ideológico e m que a alfabetização é conside-
cado à maneira como outros países tratam as suas rada c o m o fazendo parte da luta pela transformação
minorias linguísticas («How other countries deal with social. Para os membros do Colectivo, só as aborda-
their language minorities») contém erros e utiliza gens mais revolucionárias (ou c o m o tal consideradas)
fontes de informação medíocres. Para apontar u m são dignas de elogios: os programas de alfabetização
exemplo, afirma-se (p. 101) que «o inglês e o fran- funcional da U N E S C O são declaradamente acusados
cês são as línguas oficiais do Canadá»; e m seguida,
u m a nota precisa: «excepto na província do Quebe-
que» (p. 119). Esta afirmação não tem e m conta a 1. E . Glyn L E W I S , Multilinguism in the Soviet Union,
diferença que existe entre a política do governo fede- Aspects of language policy and its implementation,
ral e m matéria de língua oficial e as políticas das dez Haia e Paris, Mouton, 1972. Ver a comunicação
províncias. Enquanto numerosas províncias têm u m a feita por Z . Z A C H A R I E V , Perspectives, vol. IV,
n.° 4, 1974, pp. 625 e segs. ( N D L R ) .

306
Notas e comunicações

de «reforçar simultaneamente a exploração das clas- gogia apropriada através da qual o animador adapta
ses dominadas pela sua integração no desenvolvi- o curso a essas exigências, levando progressivamente
mento capitalista, e a dominação ideológica das classes os alunos a admitir a necessidade de adquirir, e m pri-
favorecidas sobre aquelas» (p. 28); apesar de se apon- meiro lugar, o domínio da expressão oral. O livro
tarem alguns elementos positivos da obra de Freire termina c o m u m dossier que propõe mais de quarenta
(um «grande passo e m frente» e m comparação c o m temas de lições, designadas por «contactos».
os métodos tradicionais), esta também é criticada na Assim, esta obra apresenta u m a abordagem inte-
medida e m que se limita à «libertação das consciên- grada do ensino aos trabalhadores imigrados — u m a
cias», sem ligar a alfabetização ao combate ideoló- posição política, u m guia teórico de pedagogia lin-
gico; u m capítulo inteiro critica o que actualmente guística e u m a série de exemplos de lições. Parece
se pratica e m França. Apenas dois modelos de pro- adaptada ao seu objectivo —isto é, à formação de
grama de alfabetização recebem elogios: os da Repú- monitores c o m o fim de alfabetizar os trabalhadores
blica Popular da China e da Guiné-Bissau. A obra imigrados e m França — apesar da sua audiência
mantém, ao longo da sua análise crítica, u m a certa correr o risco de ser limitada devido à sua visão política.
posição ideológica — o que talvez seja u m a quali- Infelizmente, não fornece dados sobre a eficácia da
dade — m a s a auto-satisfação e o tom de superioridade metodologia proposta, embora assente manifesta-
dos autores correm o risco de desagradar a muitos mente na experiência. E m suma, este livro está redigido
leitores. N a verdade, é inútil procurar o mínimo traço c o m coerência, rigor e clareza.
de humildade ideológica — m e s m o quando o colec- A última obra escolhida, o Anuário da Sociedade
tivo confessa francamente ter cometido erros peda- Canadiana para o estudo da educação, Le bilinguisme
gógicos no início das suas actividades (ver pp. 93-95). dans l'éducation canadienne: la recherche et les problè-
N o entanto, m e s m o o leitor que não partilhe da mes, apresenta u m panorama dos problemas do bilin-
posição ideológica dos autores poderá apreciar a pri- guismo vistos por especialistas das investigações sobre
meira parte da obra c o m o documento sobre a activi- a educação. O aspecto mais original desta colectânea
dade e m curso. A análise dos diversos grupos e inte- de artigos reside no interesse que concede aos pro-
resses representados no movimento de alfabetização blemas que se põem fora do Quebeque e que rara-
e m França é profunda, frequentemente correcta mente são focados nas publicações; estes problemas
(embora polémica) e por vezes muito perspicaz. Ver, dizem respeito aos índios e aos Esquimós (Inuit) ori-
por exemplo, a nota dedicada aos «interesses de classe» ginários da América do Norte, pois as minorias fran-
divergentes dos diversos subgrupos de trabalhadores cófonas importantes não vivem no Quebeque, e aos
imigrados (pp. 53-54). grandes grupos não ingleses e não franceses (em espe-
O tom m u d a na segunda secção do livro, onde são dial ucranianos) das províncias da planície. Além
expostos métodos de ensino bastante tradicionais mas disso, u m artigo trata da elaboração de programas
actualizados. Destina-se aos monitores de alfabetização para o ensino do francês c o m ajuda das técnicas de
e apresenta u m esboço das principais teorias linguís- «imersão precoce»: as crianças anglófonas são ins-
ticas a partir das quais é possível abordar a alfabe- truídas exclusivamente e m francês na escola infantil
tização dos adultos que falam línguas minoritárias. e na primeira ou nas duas primeiras classes da escola
O s autores rejeitam, juntamente, as abordagens que, primária, e m seguida, o inglês é progressivamente intro-
no caso dos trabalhadores que não falam francês, duzido nas outras classes.
começam por lhes ensinar a escrever e a 1er u m a Este ponto interessa aos leitores que desejam c o m -
língua que eles não compreendem. Nas primeiras fases preender os problemas do Canadá no seu conjunto,
da formação dá-se prioridade à expressão oral, quando m a s decepciona os que estão particularmente desejosos
os adultos estão à altura de falar e compreender o de conhecer melhor os problemas actuais do Quebeque
francês, passa-se ao ensino da escrita e da leitura. a relação entre a língua e as posições políticas nesta
O s autores sabem, porém, por experiência, que muitos província. Além disso, o leitor não canadiano talvez
trabalhadores, devido ao condicionamento que sofre- se sinta desorientado pela complexidade das questões
ram nos países de origem (em particular e m África), jurídicas e constitucionais subjacentes aos artigos e
esperam e exigem a abordagem inversa. N u m caso que os autores supõem conhecidas (excepto no que
semelhante, o colectivo sugere o emprego de u m a peda- respeita à educação dos índios e dos Esquimós).

3°7
Notas e comunicações

Apesar dos problemas do Quebeque não serem fiáveis e, no entanto, contradizem u m conjunto muito
examinados, o que provoca u m sério desequilíbrio, mais extenso de investigações sobre os inconvenientes
a obra fornece u m precioso contributo na medida sociais deste método, segundo os quais, como foi
e m que nos revela u m Canadá cuja diversidade lin- dito no início desta comunicação, o ensino de u m a
guística e cultural parece superior à que apresentam, segunda língua é muito prejudicial aos alunos, crian-
e m geral, as obras de consulta disponíveis. Vários ças ou adultos. Os diferentes autores apelam para fac-
autores examinam as incidências politicas, sociais e tores não linguísticos para explicar esta aparente
pedagógicas de políticas susceptíveis de ultrapassar a contradição: o efeito produzido pelo emprego de u m a
dicotomia clássica inglês-francês e de permitir o uso segunda língua dependeria de factores e de atitudes
de outras línguas nas escolas. São, por vezes, franca- contextuais, e não da própria linguagem. As crianças
mente polémicos e, sem excepção, abordam o contexto pertencentes a u m grupo social dominante (do ponto
político do ensino bilingue. N a verdade, os especia- de vista económico, político e/ou cultural) parecem
listas da educação ou da linguística observarão que tirar proveito desta fórmula, enquanto resultados
alguns artigos se estendem mais sobre os problemas exactamente opostos se observem entre as que fazem
políticos do que sobre os problemas de investigação. parte de grupos sociais dependentes — daí a aliena-
Apenas u m artigo constitui u m amplo balanço, apoiado ção cultural característica das minorias socialmente
numa bibliografia completa. desfavorecidas (por exemplo, a minoria canadiana
U m dos temas de investigação tratados merece, francesa fora do Quebeque, os índios, os imigran-
muito particularmente, ser mencionado como con- tes, etc.). Estes dados, retirados da experiência cana-
clusão desta comunicação: os autores procuram, por diana, exigem u m a verificação cuidadosa a partir de
repetidas vezes, referir-se a u m a importante contra- outras fontes de informação: assim, e m certos novos
dição que sobressai dos diversos trabalhos. E m vários Estados Africanos, poderá a maioria da população
pontos do Canadá efectuaram-se estudos rigorosos representar u m grupo dependente quando é obrigada
para avaliar os efeitos das técnicas de «imersão pre- a superar o obstáculo criado pelo ensino dispensado
coce»; a maior parte das investigações conhecidas con- na língua da antiga potência colonizadora? M e s m o
firmam que estes programas são muito eficazes na ao nível da pedagogia, é evidente que a questão do
aprendizagem do francês e que, além disso, não pro- bilinguismo na educação não pode ser tratada sem
vocam efeitos secundários prejudiciais ao inglês dos ter em conta os problemas gerais das relações sociais
alunos interessados. N a verdade, os sucessos repetidos e políticas.
deste programa piloto levaram muitos pais a mudar
de atitude a este respeito e incitaram os professores STACY CHURCHILL
a rever a concepção tradicional que consiste em adiar Professor associado e m Ontario Institute
o estudo de u m a segunda língua até à escola secun- for Studies in Education (OISE) e e m
dária ou, pelo menos, até ao fim da escola primária. School Graduate Studies da
As investigações e m que esta tendência se apoia são Universidade de Toronto (Canadá).

Ronald D O R E . The diploma disease: education, qualification and development. London


Allen and Unwin (Unwin Education Books), 1976.

C o m a expansão da escolarização e m quase todos os candidatos ao trabalho verificam que o acesso ao


países do mundo, expansão explicada ou justificada emprego necessita cada vez mais de «títulos» confe-
por objectivos políticos, era natural observar u m a ridos pelos estudos. A conjugação destas evoluções,
inflação dos diplomas e u m ajustamento crescente de favorece o aparecimento e a generalização da «doença
pedidos do mercado do trabalho para os diferentes dos diplomas» nos países desenvolvidos e nos que estão
empregos. Para postos de trabalho que não requeriam, e m vias de o ser. Foi a esta conclusão que chegou a
há alguns decénios, nenhum diploma, os empresários, maior parte dos analistas das tendências da escolari-
perante a abundância de diplomas, preferem elevar zação no mundo nos últimos dez anos. Nesta pers-
o nível das qualificações exigidas. Por seu lado, os pectiva, a que reflexão poderia conduzir-nos a obra

308
Notas e comunicações

de u m especialista eminente c o m o o professor Ronald abranger o que nos parece essencial na problemática
Dore, que consagrou longos anos ao estudo destes da obra: o papel da educação no sistema social e a
problemas e cuja rica experiência abrange u m a grande fragilidade de toda a reflexão sobre a «doença dos
variedade de países? diplomas» que não tenha e m conta a ideologia e as
E m primeiro lugar, n u m esforço de rigor, Dore opções sociopolíticas dos países e m causa. Sob este
rejeita as explicações de tipo mecanista e a-histórico. aspecto, o autor estabeleceu u m contraste nítido e
Depois de apresentar, resumidamente, o problema da lúcido entre os objectivos apontados e as medidas
inflação dos diplomas no seu contexto específico concretas tomadas e não se deixou influenciar por
(desde o fim do período colonial), o autor mostra, conclusões superficiais elogiosas para as opções rei-
através de quatro estudos de casos referentes a países vindicadas pelos países estudados. A s páginas sobre a
tão diferentes c o m o o Reino Unido, o Japão, o Sri República Unida da Tanzânia são particularmente
Lanka e o Quénia, que o papel da educação e o signi- pertinentes sob este ponto de vista.
ficado do diploma estiveram intimamente ligados às C o m excepção do capítulo xn—digressão tanto mais
condições históricas do desenvolvimento económico supérflua que o autor já se referiu brilhantemente ao
e escolar destes países, chegando, assim, à sua tese do dossier da descolarização n u m a nota actualmente
«efeito do desenvolvimento tardio» (the late develop- clássica «False prophets: The Cuernavaca critique of
ment effect). O sistema de educação japonês desen- school» (IDS, Discussion paper n.° 12) — a terceira
volveu-se de maneira muito diferente do do Reino parte da obra trata das soluções «radicais»: retirar
Unido; algumas destas diferenças devem-se às tradi- inteiramente à escola a sua função de selecção social —
ções culturais e às estruturas sociais dos dois países; por meio de testes de aptidão e não por meio de testes
mas, para a tese do autor, as mais pertinentes devem-se de resultados pedagógicos; «aprendizagem durante a
ao facto do Japão ter iniciado a sua industrialização carreira e não no início da carreira, educação e for-
mais tarde do que o Reino Unido. O caso do Sri mação». A experiência chinesa é apontada c o m o u m
Lanka talvez seja mais complexo, sobretudo por causa exemplo extremo deste tipo de estratégia. A s implica-
dos factores linguísticos que atrasaram a «digestão» ções éticas e políticas de soluções radicais; o seu signi-
do conhecimento ocidental; porém, o atraso no início ficado e m termos de sistemas de valor para a sociedade
da industrialização provocou u m efeito ainda mais (e, e m especial, o significado do esforço e da justiça)
dramático sobre a inflação dos diplomas e suas uti- as perspectivas do ponto de vista da igualdade e da
lizações na selecção dos empregos. O Quénia possui democracia, etc., constituem outros tantos assuntos
u m sistema mais jovem e mais complexo do que o Sri abordados nos últimos capítulos.
Lanka; «o efeito do desenvolvimento tardio» é ainda Chegado ao fim desta obra fortemente documentada
mais espectacular. Dore conclui assim o seu diagnós- e poderosamente construída, o leitor poderá verificar:
tico: «Quanto mais recente é o processo de desenvolvi- a) a riqueza e a necessidade da introdução das dimen-
mento..., mais ampla será a utilização dos diplomas sões históricas e m toda a análise dos problemas da
para seleccionar os empregos, mais rápida será a taxa educação; b) o mérito da multidisciplinaridade da
de inflação das qualificações e a educação será mais abordagem de Ronald Dore que não hesita e m apelar
fortemente dominada pelos exames, c o m prejuízo dos paralelamente e, por vezes, contraditoriamente, para
seus objectivos fundamentais». a psicologia, a sociologia, a economia, a educação-
A segunda parte da obra intitulada «a sabedoria -pedagogia e a ciência política para interpretar as expe-
convencional» é dedicada a u m a análise crítica das riências estudadas; c) que é inútil propor reformas de
soluções e das teorias apresentadas pelos especialistas educação, ou apreciar o realismo de toda a solução
dos problemas de educação e a u m a enumeração das — para o problema da inflação dos diplomas, por
abordagens convencionais para enfrentar o problema exemplo — sem referência ao contexto sociopolítico,
da inflação dos diplomas, particularmente nos países aos objectivos pretendidos, aos meios disponíveis e
e m que o desejo de reformas da educação é muito às medidas tomadas pelos países para os atingir. Por
intenso, c o m o na República Unida da Tanzânia, todas estas razões, não duvidamos de que esta obra
Cuba e Sri Lanka. Dore mostra que estas reformas contribuirá útil e significativamente para o progresso
tinham poucas possibilidades de sucesso. Sendo assim, das ciências da educação e de que existem grandes
o discurso modifica-se naturalmente, alarga-se para vantagens na sua leitura.

309
Notas e comunicações

N o entanto — e talvez devido à qualidade do livro — u m objectivo para as categorias dominadas e é rejei-
não podemos deixar de exprimir u m certo número de tado pelas categorias dominantes. Só o combate pela
críticas, certamente inspiradas e m algumas discor- transformação pode gerar a alteração das relações
dâncias de fundo quanto às conclusões do autor. sociais e, portanto, modificar as realidades da socie-
Apesar das precauções tomadas e das referências aos dade desigual; combate de natureza dialéctica e prá-
contextos socioistóricos, a problemática da desi- tica, evidentemente. Nesta perspectiva, as propostas
gualdade e da democracia é, na verdade, apresentada — que Dore considera modestas — contidas no capí-
numa óptica que podemos apelidar de «funcionalista» tulo xiii, só são legítimas e realistas se forem criadas
e de «determinista», e não n u m a óptica «dialéctica». pelos grupos dominados e pressupõem acções e m
Por outras palavras, Dore parece considerar a desi- profundidade para modificar as relações sociais.
gualdade como u m a realidade quase inevitável e m A origem ou a paternidade das propostas são tão
todo o sistema social — o mundo confuciano é utó- importantes, ou mais, do que os conteúdos. U m a outra
pico—, resultante ou sendo determinada pelas dife- característica da óptica funcionalista e determinista
renças de aptidões e de perfis entre indivíduos; ela é é, no caso presente, u m a confusão entre a análise
funcional, pois é compatível com a gestão de toda a sociopolítica da problemática da desigualdade e a sua
sociedade que é ordenada segundo as responsabili- interpretação redutora e m termos psicológicos e
dades e as qualidades dos diferentes grupos sociais; individualistas. Não é por acaso que Dore, nos últimos
o objectivo (para quem?) consiste e m torná-la aceitá- parágrafos da sua obra, se baseia na diversidade de
vel, minimizando-a; trata-se, portanto, de ter espe- talentos dos indivíduos e das necessidades sociais
rança e de acreditar que o sistema social possa natu- para exprimir algumas dúvidas sobre o futuro, ape-
ralmente evoluir para u m mundo menos desigual e sar do seu optimismo. Enquanto nos recusarmos a
mais democrático, desejando u m a modificação pro- considerar que a problemática da desigualdade é tam-
gressiva das atitudes e das mentalidades que contri- bém, alguns dizem sobretudo, de natureza dialéctica
buem para esta situação. O que leva a admitir, por e essencialmente de poder entre grupos — seremos
outro lado, que, através de medidas apropriadas conduzidos à resignação que Dore tem o mérito de
— de estímulo ou de orientação dos comportamen- rejeitar, ou à especulação de que a história acabará
tos — seja possível eliminar a estratificação da socie- por transformar o h o m e m — diploducus — da socie-
dade e m grupos fundamentalmente e m situações de dade desigual, no h o m e m confuciano da sociedade
conflito. A óptica «dialéctica» admite que as relações (sem classes?).
entre grupos moldam e determinam a existência dos JACQUES H A L L A K
grupos e são, e m última análise, mais essenciais; instituto Internacional
a transformação das relações entre grupos constitui de Planificação da Educação.

C . A . B O W E R S , Cultural literacy for freedom: an existential perspective on teaching


curriculum and school policy, 1974, 184 pp., Elan Publishers, P. O . Box 5442, Eugene,
Oregon, Estados Unidos da América.

Concordando total ou parcialmente ou discordando sas e m Pedagogia dos Oprimidos com o pretexto dema-
inteiramente das ousadas propostas formuladas pelo siado sumário de que não podem aplicar-se a u m a
autor para melhorar as escolas públicas americanas, «tecnocracia como a nossa». Diga-se de passagem que,
esta obra parecerá sempre estimulante, por vezes apesar do termo «tecnocracia» ser empregue muitas
provocadora e irritante, e os especialistas da educação vezes para qualificar e criticar a sociedade americana
— incluindo os que partilham das tendências refor- contemporânea, nunca é definido, o m e s m o suce-
madoras do professor Bowers— encontrarão nela dendo com o sentido atribuído pelo professor Bowers
muitos motivos de suprpresa, para não dizer mais. às noções capitais de «cultura» e de «alfabetismo».
O autor menciona os estudos feitos por Paulo Muitos leitores sentir-se-ão desanimados pela obs-
Freire no Brasil, mas rejeita e m bloco as ideias expres- curidade do estilo e pelo carácter famoso e puramente

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Notas e comunicações

palavroso de certas passagens, c o m o , por exemplo, diferença sensível entre o que é ensinado e as reali-
a seguinte (escolhida entre muitas outras): «Muitos dades da existência, então, seremos obrigados a renun-
reforços utilizados na escola estão ligados à cultura ciar às nossas ilusões a respeito da escola... e a pro-
baseados no consumo que, segundo alguns críticos da curar transformar radicalmente o sistema de ensino».
sociedade, está na própria origem das perturbações N o capítulo intitulado «Realidades sociais e mitos
do comportamento que tanto inquietam os que estão educativos» — que é, talvez, o melhor do livro —
empenhados e m o modificar». o professor Bowers critica o sistema escolar actual
Apesar destas deficiências, a orientação das refor- e aponta-lhe várias lacunas. Baseando-se e m citações
mas do ensino propostas pelo autor é sedutora. extraídas de oito manuais e guias pedagógicos conclui
C o m a ajuda de argumentos iconoclastas, mas sólidos, que, e m geral: « U m a impressão de irrealismo emana
lança ataque sobre ataque contra certas inovações da maior parte das informações fornecidas nas esco-
e m voga que, e m sua opinião — tal c o m o na minha — las primárias a respeito da sociedade. A s explicações
correm o risco de reduzir estas actividades humanas relativas ao trabalho, à tecnologia, ao progresso e à
que são o ensino e a aprendizagem a u m a tecnologia comunidade reflectem mitos tradicionais atávicos que
de autómatos. Trata-se, por exemplo, da teoria e da tinham sentido no início do processo de industrialia-
prática do «condicionamento operante» de B . F . Skin- lização, mas que estão actualmente inteiramente ultra-
ner (as crianças não são cobaias); do «sistema dos passados c o m o fontes de compreensão ou de percep-
prémios de ensino» (truque que permite iludir a ver- ção da realidade».
dadeira questão, que consiste e m determinar «como A solução de substituição proposta consiste e m criar
se devem formar os jovens para os preparar para u m a u m «meio protegido e m que os alunos possam estudar
vida que tenha sentido»); e do ensino «competencia- livremente a natureza e as implicações da sua própria
lista» (que é incompatível c o m u m «processo de cultura». Mais precisamente: «Podemos considerar
investigação autêntico que implica que as respostas que a escola assegura ao aluno u m moratória psicos-
não sejam conhecidas antecipadamente»). social» estimulando-o a avaliar a sua cultura sem
O autor sublinha que, e m matéria de inovação recear u m a punição... se não chegar às conclusões
— m e s m o não tecnocrática— os entusiasmos não ratificadas pela sociedade dominante».
podem nunca contribuir para o melhoramento do U m a reforma deste tipo teria, b e m entendido, inci-
ensino. «As reformas pontuais perdem muitas vezes dências múltiplas e complexas do ponto de vista da
a sua eficácia devido aos elementos não modificados política e da logística da educação. O professor Bowers
do sistema educativo». Aplicando a sua própria teoria, propõe-se inscrever nos programas, a título de exem-
o professor Bowers preconiza portanto — e é o que plo, duas unidades de estudo concebidas segundo o
constitui a parte essencial da sua obra — nada mais do sistema da «moratória psicossocial», u m a sobre a
que u m a reforma global c o m múltiplas repercussões tecnologia e outra sobre o tempo. Sublinha ainda a
das quais seria difícil apresentar u m a enumeração necessidade de recrutar e de formar novos tipos de
rápida e completa sobre todos os aspectos do sistema professores («caracterizados por u m alto grau de tole-
educativo. rância e m relação à complexidade, u m a imagem de si
Começa por indicar que o ensino público americano positiva, ausência de ideias preconcebidas... e gosto
representa «para além da família ... a tentativa mais de participar c o m outros e m actividades criativas»),
sistemática no sentido de socializar a juventude adap- assim c o m o u m maior número de administradores de
tando-a à concepção dominante da realidade, tal espírito aberto.
c o m o é compreendida pelos adultos da classe média». O livro evita as duas armadilhas e m que caem
Esta concepção é feita de «postulados culturais, de actualmente muitos dos estudos teóricos americanos
explicações e de normas consagradas» — referindo-se sobre a reforma do ensino; não se inspira n u m futu-
às «características actuais da sociedade e do ambiente». rismo quimérico, n e m e m entusiasmos irresponsáveis.
C o m o poderemos avaliar esta acção «socializante» M a s deixa certamente subsistir no espírito dos leito-
da educação? res u m certo número de dúvidas — e m especial, na
« A escola fornece explicações realistas, m a s não minha opinião, as duas seguintes:
podemos afirmar que não induza as crianças e m erro E m primeiro lugar, e m que medida a noção de
ao perpetuar mitos disfuncionais. M a s , se existe u m a «moratória psicossocial» é realista de u m ponto de

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Notas e comunicações

vista pedagógico? A escola nova seria u m «meio pro- tradicional segundo a qual a responsabilidade do
tegido», mas não u m «claustro», afirma o professor ensino compete à comunidade local, para adoptar
Bowers. D e facto, os programas de estudos que pro- u m sistema de autogestão da escola pelos professores
põe a título de exemplo atribuem u m a importância e os alunos mais velhos. M a s , quem tomará a iniciativa
considerável à observação e experiência directas da de u m a reforma tão ousada? C o m o parece evidente,
sociedade local. M a s , será possível mergulhar os alu- não será a comunidade local que, na opinião do autor,
nos na realidade e simultaneamente protegê-los con- desconfia, por natureza, de toda a transformação
tra esta m e s m a realidade? conceber u m a instituição radical do ensino opondo-se-lhe necessariamente.
que seja torre de marfim e, ao m e s m o tempo, «uni- « A discussão de problemas sociais de fundo, ou sim-
versidade aberta» ao nível escolar? estar na sociedade plesmente u m a descrição precisa de problemas sociais,
e permanecer autónomo? será geralmente considerada u m a ameaça por certos
E m segundo lugar, graças a que operação política indivíduos ou grupos sociais que se lamentarão de
oculta conseguiríamos criar e multiplicar escolas que o dinheiro dos contribuintes sirva para incentivar
capazes de assegurar u m a «moratória psicossocial»? a subversão na escola».
N a sua conclusão, intitulada «Que poderemos fazer?», É este o «calcanhar de Aquiles» da atraente pro-
o professor Bowers propõe alguns elementos de u m a posta do professor Bowers: trata-se, de facto, de
estratégia: m a s as suas sugestões não são convin- «subversão».
centes, pois não aponta nenhuma razão para aqueles
que estão à altura de fazer o que «poderia ser feito» A R T H U R GILLETTE
sejam efectivamente tentados a fazê-lo. N u m capí- Departamento da juventude,
tulo anterior recomenda que se renuncie à concepção Unesco

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