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Na assim chamada pós-modernidade muitos valores foram transgredidos ou

simplesmente rejeitados. O indivíduo colocado no centro do universo depois da virada


antropológica matou Deus, como descreve Nietszche[1], e com isso lê o mundo somente
a partir de si tornando-se parâmetro da realidade. De fato, o dito de Protágoras é muito
atual: “O homem é a medida de todas as coisas[2]”. Além disso, a postura hedonista do
homem contemporâneo intensifica seu individualismo desproporcionando as relações e
a comunhão, justamente por enxergar o outro como objeto da sua vontade, do seu desejo
e do seu prazer.
Outro fator de ruptura é a querela da liberdade, isto é, o ser humano pós-
moderno não aceita que sua liberdade seja obstruída por normas e regras. Como se diz:
“É proibido proibir”, contudo, nisso já se manifesta uma regra; ser livre não é uma
decisão, mas uma imposição, a qual está concomitantemente ligada ao axioma
sartreano: “O homem é condenado a ser livre[3]”.
Por outro lado, nessa espinhosa questão da liberdade há outra postura que
idolatra as normas e regras, como um farisaísmo moderno. Não conseguem pensar e
agir sem a estrutura da lei. Assim, o agir é, ou seja, o indivíduo é uma marionete ou um
fantoche que vive a lei pela lei. Porém, tal reflexão não é do tipo anarquista que visa
extinguir toda forma de lei e regras, mas enxerga a lei como instrumento, a qual está
para resguardar a vida. No entanto, em certas situações da vida a lei não consegue
responder, daí a criatividade e ousadia.
Nesse sentido, cabe a pergunta: qual é então a melhor forma de viver? Qual o
segredo para encontrar a felicidade? Nessas questões comuns, as quais o ser humano
formulou durante toda a história, já se encontra um grande problema: a tentação de
buscar antídotos ou\e fórmulas para resolver os problemas. Em outras palavras, a
tendência é terceirizar a vida para que outros a vivam, ou encontrar algo que facilite a
experiência do viver, que por sua vez é duro e penoso.
O homem pós-moderno tem preguiça de querer viver a dura realidade. São
muitos os livros de auto-ajuda que prometem soluções mágicas para tornar melhor a
experiência do viver, com receitas e dicas que ajudam a ter uma vida melhor e saudável.
            Contudo, viver é sofrer, como diz o literato alemão Goethe[4] em uma de suas
obras. Estar na vida é encara-la com serenidade e com firmeza, disposto a pagar o preço
das escolhas feitas. No filme, ou melhor, na obra que se tornou filme de
Tolkien[5]: “Hobbit, uma Jornada Inesperada”, na cena em que Gadalf questionado
pela senhora Galadriel em Valfenda, a respeito da tarefa perigosa dos anões em
reconquistar Erebor, ele afirma algo que nos falta muito hoje: “são ações de pessoas
comuns, simples, que fazem suas tarefas diárias com empenho, que afastam de si os
males e mostram o rosto da felicidade ao mundo”.
O que significa isso? Ora, hoje o imediatismo tomou conta da vida moderna, não
basta mais esperar, tudo tem que ser para ontem. Hoje num restaurante ou num café se
conversa com o mundo inteiro, através do whats, mas não com a pessoa que está a nossa
frente. Não se dá valor pelo processo, pelo ciclo, pelo fazer, mas tudo já é pronto ou
mastigado. Então, como será? O que esse texto confuso propõe? Bom, nossa sociedade
atual é comparada com um edifício, grande e alto, muito maior que as torres gêmeas da
Malásia. Todavia, seu fundamento também é profundo e bem preparado com muito aço
e concreto, ou\e pedras grandes e fortes. Ora, essa analogia diz respeito ao alicerce da
civilização ocidental, que está no chão da antiguidade e sustentado pela argamassa
medieval. Apresenta-se aqui alguém que em seu tempo soube encontrar o segredo
da Ars Vivendi, a “Arte de Viver”.
Na experiência de São Francisco de Assis dois momentos, dentre os muitos
marcantes de sua vida, ajudam ilustrar tal pensamento. Primeiro o encontro com os
leprosos e depois a fala do Crucificado na igreja de São Damião. De fato, para
Francisco era insuportável ver e estar perto de leprosos, até que num dia ele movido
pela graça do Altíssimo vai ao encontro deles e passa a conviver com eles. No seu
Testamento, Francisco diz: “O próprio Senhor me encaminhou até os leprosos e eu fiz
misericórdia com eles, e tudo que parecia amargo tornou-se doçura para a alma e o
corpo”.
Num segundo momento, ele estando fora dos muros da cidade de Assis, vê uma
igrejinha velha e abandonada, ao passo que a adentra e se põe a rezar. Assim ouve do
Crucificado: “Francisco, não vês que minha casa estás em ruínas. Vai, pois, e restaura
minha Igreja”. Imediatamente, ele se coloca a trabalhar pela restauração daquela
igrejinha. Desse modo, Francisco no auge de seu processo de conversão aprendeu a ser
menor, isto é, ter a capacidade de sair de si mesmo, e ir ao encontro do outro, esse na
figura do leproso, marcado pela podridão humana e por isso marginalizado pela sua
condição. Assim, na missão recebida do Crucificado, Francisco restaura a si mesmo, ou
seja, busca viver a forma do Santo Evangelho. E na vivência assídua restaura a Igreja do
Senhor com a vida e o exemplo.
            Por outro lado, a partir donde o jovem Francisco encontrou as forças para vencer
a si mesmo indo ao encontro dos leprosos? Por ele mesmo, como um herói? A princípio
ele seguiu essa trilha, uma vez que buscava ser cavaleiro para tornar-se grande e
poderoso. Para tanto, ele foi educado na arte da cavalaria para poder alcançar tal
objetivo. Ora, ele era cortês, elegante, prudente, ajudava os pobres, esperto,
companheiro e tinha uma grande liderança. Porém, ele depois de um ano prisioneiro e
gravemente ferido começa a repensar sua vida. Até que então, depois de um sonho de
grandeza e glória coloca-se novamente a posto para guerrear nas Apúlias. No caminho
ele semi-dormente, como sugere a LTC[6] escuta uma voz que o questiona a respeito de
sua empreitada: “Francisco, Francisco, quem pode lhe fazer melhor: o senhor ou o
servo? O senhor, ele diz. Então, porque deixas o príncipe pelo vassalo? Senhor o que
queres que eu faça?” Volta para Assis, e lhe será dito o que deverá ser feito?[7]”
            Nesse diálogo de Francisco com o Senhor, uma questão é fundamental: a
coragem de questionar a si mesmo, abandonar um modo de vida e buscar outro modo
novo, o qual ainda não é dito, precisa ser descoberto e feito pelo próprio Francisco.
Olhar para um santo como Francisco é ter em primeiro lugar essa atitude de querer se
abrir par o Senhor e não ter medo de trilhar seu caminho.
Ora, para Francisco se tornar o que ele foi, precisou-se de muito empenho, em
renunciar muitas coisas para estar na vinha do Senhor, isto é, fazer a conversão
diariamente, durante toda a vida. Aprender com os erros e fracassos. Utilizar de toda
força para fazer o bem. Em outras palavras, Francisco só se tornou o que é pelo simples
fato de cada dia buscar estar junto a Deus com o coração aberto para fazer a Sua
Vontade. Contudo, tal adesão é livre, gratuita e ao mesmo tempo encarnada na vida, na
Igreja (mesmo com os pecados cometidos por ela). Não basta saber a doutrina e a lei é
preciso querer vivê-las com a vida.
Sendo assim, nessas breves e desengonçadas linhas procurou-se traçar
provocações para uma mudança de atitude frente a mórbida mediocridade vivida por
querer ter uma vida sossegada regada pelo ter, prazer e poder. A experiência de
Francisco de Assis lança luzes no fim do túnel da modernidade, pois de fato, como
Nietzsche afirma na “Gaia Ciência”, além de o homem moderno ter matado a Deus, ele
também “sai ao meio-dia com uma lanterna querendo iluminar o sol”. Noutras palavras,
rejeitou-se a religião cristã, justamente alegando que ela tornava a vida um conto de
fadas, e com o progresso da razão alcançar-se-ia o estágio de um ser humano melhor e
de um mundo, que regido pela lei da ciência, seria justo e igual para todos. O que se
viu? Duas guerras mundiais, regimes totalitários que juntos dizimaram milhões de vidas
e uma sociedade que se preocupa mais com a bolsa de valores, do que com seus
indivíduos. Onde está a justiça provinda desse progresso racional? É claro que nossas
vidas se tornaram mais longa e confortável com o avanço científico, inclusive esse texto
é escrito numa máquina, contudo, a senhora ciência traiu a si mesma, e causou um
enorme vazio sem colocar nada no lugar.
Em contrapartida, não adianta se dizer crente ou simplesmente cumprir preceitos
religiosos, mas como Francisco de Assis é necessário se dispor ao seguimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo, que nos revelou o rosto do Pai e o Amor do Espírito Santo. A fé
que Deus nos deu através da sua Igreja, precisa ser ratificada em nossa vida, e ao
mesmo tempo para perseverarmos no discipulado é preciso entendermos o que é a nossa
fé, na alegria de sermos discípulos. Porém, nesse seguimento “a porta é estreita e o
caminho é cheio de pedras e espinhos” (Jo 10, 15), no qual há também inúmeras e belas
flores.

[1]                      Filósofo alemão (1844-1900). A polêmica sentença de Nietzsche na


qual: “Deus está morto, e o seu sangue escorre em nossas mãos”, está no fragmento 125
da obra: A Gaia Ciência”. A proposta da crítica de Nietzsche não é dirigida a religião
cristã, propriamente dita, mas ele refuta a ideia de um Deus que é resultado de intuições
metafísicas oriundas da filosofia platônica, que foi assumida pelo cristianismo quando
precisa fundamentar a fé cristã, sobretudo na questão trinitária. Ora tal fundamentação
cristã criou uma cisão entre aquilo que Deus é, com aquilo que os homens dizem que
Deus pode ser. Em outras palavras, abandonou-se o Deus de Jesus Cristo revelado nas
Sagradas Escrituras para assumir um Deus provinda da reflexão metafísica, a qual diz
somente os atributos divinos, e não o que de fato Deus é, o grande Tomás de Aquino
sintetizou bem a teologia negativa de Díoniso Pseudo Aeropagita: “De Deus eu sei mais
o que Ele não é do que de fato Ele é, pois o nosso conhecimento é provisório a respeito
de Deus” (Suma Theológica. I.q3)
[2]                      Protágoras de Abdera (480.a.C-410.a.C) filósofo sofista grego.
[3]                      Jean Paul Sartre (1905-1980). O axioma sartreano ressalta que
a liberdade é incondicional e é isso que Sartre quer dizer quando afirma que
estamos condenados a sermos livres: "Condenado porque não se criou a si próprio; e, no
entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer"
 
[4]                      Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832). A obra citada é: “Os
sofrimentos do jovem Wherter”.
[5]                      J.R.R .Tolkien (1892-1973) literato inglês.
[6]                      Legenda dos Três Companheiros, está inserida nas Fontes
Franciscanas.
[7]                      LTC 2, 5.

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