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CateCismo da Realeza

soCial de Nosso seNhoR


Jesus CRisto
Dados lnternacionais de Catalogagâo na
Publica$âo (CIP) (eDOC BRASIL, Belo
Horizonte/MG)
Philippe, Auguste, 1874-1935.
P549c Catecismo da realeza social de Nosso Senhor
Jesus Cristo: seus direitos divinos na ordem social /
Pe. Philippe, C. SS. R.; prefâcio Dorn Justino
Bueno. — Rio Grande da Serra, SP: Associagâo
Cultural Christus Regnat, 2019.
128 p. : 14 x 21 cm

Titulo original: Le Catéchisme Des Droits Divins


dans L’Ordre Social.
ISBN 978-65-80449-58-3

1. Jesus Cristo — Reinado. 2. Igreja e sociedade.


3.SecuIarizagâo (Teologia). I. Bueno, Justino. II.
Tftulo.
CDD 261.10904
Elaborado por Mauricio Amormino Jdnior —
CRB6/2422
ÍNDICE

CATECISMO CÍVICO DIREITOS


DIVINOS NA ORDEM SOCIAL
JESUS CRISTO, MESTRE ABSOLUTO

PREFÁCIO 5
INTRODUÇÃO 21
LIÇÕES
Domínio soberano de Deus sobre qualquer Sociedade
22
Consequências necessárias da condição de criatura,
condição essencial de qualquer sociedade 25
Domínio Soberano de Nosso Senhor Jesus Cristo
sobre qualquer sociedade e qualquer nação 32
Condições e sentido exato da Realeza de Jesus Cristo
34
Caráter espiritual da Realeza de Nosso Senhor
Jesus Cristo 39
Poder da Igreja na Ordem Social estabelecida por
Deus 43
Erro fundamental dos tempos presentes 47
Direitos intangíveis da Verdade e do Bem 56
O pecado do liberalismo: pecado da Europa e do
Mundo 62
Castigos enviados por Deus aos Países e às nações
que abandonam o Senhor 70
Remédios para os males atuais 76
Da ação 81
Organização de uma liga apostólica 92
A festa do Cristo Rei 95
APÊNDICE
PREFÁCIO

Dom Justino de Almeida Bueno OSB*


Mui honrado aceitei o convite a prefaciar essa “peque-
na-grande” obra. E, para fazê-lo, gostaria de começar contan-
do alguns fatos e tecendo comentários sobre uma das carac-
terísticas do episcopado do grande Santo Ambrósio de Milão
(+397) que teve uma intensa atividade pastoral em prol das
relações Igreja-Estado.

Com a derrota e morte de Máximo (+388), o vencedor


Teodósio (+395) foi associado ao Império e mostrou-se sim-
pático às idéias de Santo Ambrósio frente a hereges e pagãos.
De fato, Teodósio atendeu prontamente quando o santo Bispo
impediu a reconstrução da sinagoga1 e do santuário dos valen-
*Monge beneditino da Abadia de Nossa Senhora de Monserrate do
Rio de Janeiro, é sacerdote, licenciado em Pedagogia (PUC-Rio) e
tem mestrado em Estudos Monásticos (Anselmiano-Roma). Junto com
o CDB (Centro Dom Bosco-Rio) está fundando um mosteiro
beneditino tradicional em Trajano de Moraes – RJ.

1. Um discurso de Ambrósio aos jovens cristãos alertou-os sobre os


perigos do casamento com judeus (De Abrahamo, IX,84; XIV,451).
Porém, sua oposição aos judeus assumiu um caráter muito mais ativo
na questão do bispo de Calínico (atual Raca), na Mesopotâmia.
Conta-se que, em 388, uma multidão liderada pelo bispo local e
diversos monges teriam destruído uma sinagoga na cidade. O
imperador Teodósio, o Grande, ordenou que ela fosse reconstruída às
custas dos rebeldes, incluindo o bispo. Ambró- sio imediatamente
enviou um furioso protesto ao imperador (Epistolæ XI. XVI,1101 et
seq) afirmando que a “glória de Deus” está envolvida na questão e
que, portanto, ele não poderia ficar calado. “Deve o bispo ser
compelido a reerguer uma sinagoga? É possível que ele o faça
religiosa-
tinianos de Calínico. Mas, quando o senado pediu a abrogação
dos decretos de Graciano, que favoreciam os cristãos, o im-
perador apesar de concordar com Ambrósio em não conceder
o que os senadores pagãos pediam, deixou bem claro para o
bispo que sua decisão foi autônoma e que não fez isso porque
Santo Ambrósio havia pedido. Além disso obrigou daquele
momento em diante os membros da corte a manter sigilo no
que se referia à política imperial. Essa necessidade de definir
os limites das respectivas esferas de ação do bispo e do impe-
rador, começou a gerar uma certa tensão entre os dois.

Temos aqui um aceno a um aspecto importante das


relações entre a Igreja e o Estado no Ocidente que, a partir
de acontecimentos como os que nos referimos, começaram a
evoluir de modo bem diverso do Oriente. Enquanto neste as
estruturas eclesiásticas se acomodavam cada vez mais às es-
tatais, e ninguém questionava o imperador sobre o seu direito
de intervir nas questões eclesiásticas, no Ocidente nascia como
que uma divisão de competências. O bem do Estado e sua pró-
pria condição de cristão obrigavam o imperador a proteger e
promover a única religião verdadeira, mas as questões de fé e
os assuntos internos da Igreja eram competência exclusiva das
autoridades eclesiásticas.
mente? Se ele obedecer ao imperador, tornar-se-á um traidor de sua
fé; se ele desobedecê-lo, um mártir. Que mal real houve, afinal de
contas, ao destruir uma sinagoga, uma ‘casa de perfídia’, uma casa
de ímpios’, na qual Cristo é diariamente blasfemado. De fato, ele
deve se achar não me- nos culpado que o pobre bispo; pelo menos
na medida que ele não esconde seu desejo de que todas as
sinagogas sejam destruídas, que nenhum destes lugares de
blasfêmia recebam permissão para existir”. No final, ele conse- guiu
de Teodósio uma promessa de que a sentença seria completamente
re- vogada, uma decisão cuja consequência natural foi que, dali para
diante, o prospecto da imunidade abriu espaço para outras
destruições de sinagogas por todo o império. Por outro lado, Ambrósio
ocasionalmente dizia algo de bom sobre os judeus, como numa
passagem de sua “Enarratio in Psalmos” (I,41; XIV,943), na qual ele
lembra que “alguns judeus demonstram uma vida pura e muita
diligência e amor pelo estudo”.
Um reflexo dessa nova situação pode ser vista num
outro incidente envolvendo Santo Ambrósio e o imperador, que
apesar de ser um ato visto pelos dois meramente no pla- no
disciplinar e intra eclesial, não deixou de ter repercussões
políticas e funcionar como um paradigma das relações Igreja
- Estado. O fato ocorrido foi a reação do santo bispo, quando o
imperador Teodósio ordenou o massacre de Tessalônica. Uma
multidão enfurecida tinha matado o governador militar da Ilí- ria
no circo de Tessalônica. Teodósio, numa primeira reação,
dominado pela ira, ordenou que se castigasse severamente os
culpados. Isso provocou um banho de sangue da população,
incluindo mulheres e crianças, com o qual os soldados vin-
garam seu general, pois a revogação da ordem do imperador,
exigida por Santo Ambrósio, não chegou a tempo. Este, en-
tão, foi o único que, numa conduta corajosa, fez frente a essa
barbaridade, recriminando a crueldade do imperador. Quando
este, mesmo advertido por carta de Ambrósio, quis entrar na
igreja acompanhado de sua corte, Santo Ambrósio o impediu
com autoridade e valentia: “Não ousaria, em sua presença,
oferecer o sacrifício divino”. Como o imperador recalcitrasse e
invocasse o exemplo do rei Davi, Santo Ambrósio o recrimi- nou
publicamente e lhe perguntou se aquela boca que ordenara tão
cruel massacre era digna de receber a hóstia sagrada. Con-
vidou-o, então, a imitar Davi não só no pecado, mas, também,
na penitência, pois “o pecado só nos é tirado pelas lágrimas e
pela penitência”. Teodósio aceitou e, após um tempo fazendo
penitência, no Natal de 390, revestido de trajes penitenciais,
confessou publicamente o seu pecado, e foi readmitido no seio
da Igreja. Cinco anos depois, era o próprio Santo Ambrósio que
pronunciava a oração fúnebre deste mesmo imperador, de
quem exigiu atos de penitência.

Este episódio, que à primeira vista não parece ofere- cer


muitos problemas para alguns historiadores (um imperador
cristão que se submete à reprovação de um bispo - a autoridade
temporal se submete ao poder espiritual), para outros tem uma
importância ímpar. Estamos diante de um episódio que marca
uma inflexão na relação entre Império e Igreja (cria uma ju-
risprudência, se assim podemos dizer: “o imperador está na
Igreja, não acima dela”). Pela primeira vez um imperador
coloca sua condição de cristão acima da sua condição de
soberano. Na longa querela entre o poder temporal e o poder
espiritual que marca indelevelmente a teoria política medieval, a
imposição dessa contrição a Teodósio por Santo Ambrósio, por
assim dizer, antecipa em sete séculos a conhecida “peni- tencia
de Canosa”2, além de ser um marco primordial da pro- gressiva
supremacia eclesiástica sobre as instituições estatais. “César
deveria obedecer à moral cristã. Mais tarde, o próprio
imperador confessou que Ambrósio fê-lo compreender o ver-
dadeiro papel de um bispo cristão. Surgia assim um novo pa-
radigma ético a regular o comportamento dos governantes”3.
Pensei em contar esses acontecimentos
que marcaram o início da cristianização da sociedade e
daquela questão deli- cada: saber onde são as fronteiras da
Igreja e onde as do Esta- do, o como “dar a César o que é de
César e a Deus o que é de
2. A Penitência de Canossa, também chamada Caminho de Canossa,
é a viagem de Henrique IV, imperador do Sacro Império Romano-
Germânico, em janeiro de 1077, de Speyer ao Castelo de Canossa, na
Emília-Romanha, com o objetivo de solicitar ao Papa a revogação da
sua excomunhão. A es- pera a que foi sujeito (três dias e três noites,
de joelhos, às portas do castelo, com frio e neve, vestido como um
monge, com uma túnica de lã e descalço) para conseguir se encontrar
com Gregório VII, contou com a mediação de Matilde de Canossa e de
São Hugo, Abade de Cluny. Hoje, a expressão “Caminho de Canossa”
é usada para indicar uma petição humilhante.
3. COSTA, R., A Gênese da Monarquia no Ocidente Cristão (sécs. IV-
VI). Conferência proferida no XXII Encontro Monárquico do Rio de
Janeiro em 30 de junho de 2012. Disponível no endereço eletrônico:
http://www. ricardocosta.com/artigo/genese-da-monarquia-no-
ocidente. Veja, ainda: BRAVO CASTAÑEDA, G., Teodósio. Último
emperador de Roma, primer emperador católico, La Esfera de los
Libros, Madrid 2010; LENZENWE- GER, J., et alli, História da Igreja
Católica, Loyola, São Paulo 2006; SOR- DI, M., “La concezione
política di Ambrogio”, in V.V.A.A. I Cristiani e l’Impero nel IV secolo,
Università degli studi di Macerata, 1988, 143-165.
Deus” (Mc 12,17), pois, depois de dezesseis séculos, após
Santo Ambrósio, estamos vivendo num extremo oposto
(evidente, que não ignoro que nosso atual laicismo é fruto de
todo um processo que vem de ‘ismos’ pretéritos:
protestantismo, ilumi- nismo, liberalismo, marxismo,
psicologismo, modernismo, co- munismo, socialismo. ). De fato,
o escopo, buscado por cada
uma sociedade, Igreja e Estado, são distintos. A sociedade civil
busca um fim temporal (que não é só ou simplesmente um bem
material – bens temporais são, também, a virtude, a paz, a
concórdia, a amizade, a alegria... são características espirituais
que fazem a perfeição de uma vida humana, mas que
permanece humana); o fim, da Igreja é a bem-aventurança
eterna. E, aqui, está particularmente a dificuldade que não é
compreendida por muitos: a sociedade civil não é capaz, den-
tro dessa ordem das coisas, de dar ao homem seu fim último, a
finalidade para a qual ele foi criado4.
Sendo assim, a Igreja não vem nem destruir a natureza
da sociedade civil, nem seu fim que é o bem comum tempo- ral,
ela vem assumir, curar e elevar esse mesmo bem. Daqui
decorre que deve existir uma certa subordinação necessária da
sociedade civil à ordem sobrenatural, como vimos nos
episódios anteriormente, aqui, narrados. Não podendo nos dar
o nosso fim sobrenatural, a sociedade civil, ainda que indire-
tamente, deve guardar essa dependência de quem nos pode
levar ao nosso fim sobrenatural.
A História está recheada de exemplos, na busca desse
escopo, de dois erros que devem ser evitados:
– Uma clericalização da sociedade, quando o Estado
absorve a Igreja e se faz uma espécie de “sociedade sobrena-
tural”, confundindo os dois poderes;
4. Para essas reflexões aqui veja: Les cours de catéchisme de M.
l’abbé Gabriel Billecocq sur La Porte Latine, FSSPX - Site officiel du
District de France, novembre 2017, vidéo n° 65.
– Uma separação total dessas duas sociedades, que
atende ao que chamamos hoje o laicismo ou o liberalismo,
ideologias que consistem em dizer: o homem tem “duas vi-
das”: a civil/política e a religiosa. Uma não tem nada a ver com
outra. É uma espécie de esquizofrenia: como ser duas coisas
diferentes, ao mesmo tempo: cidadão e cristão?! Não posso
agir como cristão quando devo agir como cidadão?
Que disse Santo Ambrósio a Teodósio?
Ora, essa é a doença que atacou nosso mundo oci-
dental, e que cria tantas dificuldades para as relações entre a
sociedade eclesial e a civil. Nossa sociedade está doente e no
afã de reduzir exclusões esquece-se que a exclusão mais trá-
gica é obra dela mesma: a exclusão de Cristo do seu horizon-
te, a exclusão da Sua presença na organização da sociedade
e das instituições públicas, a exclusão do reinado social de
Jesus Cristo.
Mesmo entre aqueles que deploram essa tendência
atual, poucos entendem que:
– Que é essa exclusão a origem de nossos males;
– Que estamos provando pelo absurdo (vide a arte por-
nográfica financiada com dinheiro público, o STF ‘legislando’ pró
aborto, um bispo francês proibindo a construção de um
mosteiro em sua diocese e festejando a de uma mesquita, o in-
cêndio da Catedral de Notre Dame etc.) a necessidade de levar
em conta a autoridade de Deus na administração pública e nos
assuntos civis do nosso mundo atual;
– Que, essa solução, não está longe de nós, mas muito
mais perto que pensamos. De modo maravilhoso encontramo-
-la e resumida na encíclica Quas Primas de Pio XI, escrita em
19255. Essa doutrina pode ser resumida no adágio: “A paz de
5. Nova edição: Pio XI, Encíclica Quas Primas, sobre o Reinado
Social de Cristo, Editora Cristo Rei, Belo Horizonte 2015. Além do
documento
Cristo pelo reino de Cristo”6.
Ora, o presente Catecismo da Realeza Social de Nosso
Senhor Jesus Cristo e seus direitos divinos na ordem social –
de autoria do Pe. Philippe, CSSR – que quase cem anos depois
de sua primeira publicação (1927), novamente e, diga-se de
passagem, oportunamente, nos é oferecido pela Editora Reale-
za, da Associação Cultural Christus Regnat, é um instrumento
eficaz para nos fazer conhecer todo um conjunto de verdades
que poderão fecundar as iniciativas políticas, sociais e cultu-
rais em nosso país em prol do Reinado Social de Nosso Senhor
Jesus Cristo, ou seja, de uma sociedade e de uma organização
governamental onde se reconheça a Deus como Criador e fim
último, onde nada seja anteposto a Cristo ou esteja em contra-
dição com o seu reinado e direitos sobre as suas criaturas.
Podemos, de modo resumido, elencar as principais
verdades aqui expostas em oito itens7:
l°. Deus é o Ente supremo, independente e soberano e,
como tudo foi criado por Ele, d’Ele depende e deve voltar a
Ele, tem um poder único, ilimitado e total sobre todas as
coisas. Ou seja: todas as Sociedades, Nações e Estados, per-
tencem a Deus como a seu Criador e Fim Supremo;
papal, o volume traz também três artigos raros (e inéditos em
Português) sobre a Realeza de Cristo, publicados originalmente na
revista La Civiltà Cattolica; os discursos do Cardeal Leme e de dom
João Becker (então arce- bispo do Rio Grande do Sul) quando da
inauguração do Cristo Redentor e três orações a Cristo Rei. Trata-se,
portanto, de um manual sobre a doutrina e a espiritualidade de Cristo
Rei. A excelente tradução – também inédita – foi feita diretamente do
latim por Renato Romano.
6. “La royauté sociale de Notre Seigneur Jésus-Christ: La mission des
laïcs dans la reconquête”, Revue Civitas 1 (2001) cf.:
http://www.civitas-ins- titut.com/2004/08/09/la-royaute-sociale-de-
notre-seigneur-jesus-christ/, consulta 10/05/2019.
7. Esses oito pontos, que aqui comentamos, já se encontram
elencados pelo próprio autor do Catecismo (cf. pp.)
2°. Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, é rei no céu
e na terra. A Igreja participa desta realeza;
3°. Todas as Constituições dos Povos e sua Legisla-
ção, deveriam ter como fundamento e arcabouço : Deus, Jesus
Cristo e a Missão da Igreja;
4°. A Declaração dos Direitos do homem, cancelou das
Constituições e das Leis: Deus e tudo quanto é divino, substi-
tuindo-os pelo homem deificado;
5°. O desconhecimento desse Direito Divino, e o reco-
nhecimento somente dos direitos humanos, gerou a laicidade, e
todos os erros dela resultantes;
6°. Esses direitos do homem sem Deus leva-o a uma in-
dependência soberana, desfrutando de todas as liberdades: de
consciência, do ensino, da imprensa, de associação, dos cultos.
E, o que é uma aberração, crê que tem a faculdade de fazer leis
iníquas e imorais e impor, à força, a sua observância;
7°. Se quisermos evitar os castigos divinos e catás-
trofes tremendas, cumpre que trabalhemos por suprimir, nas
Constituições dos Povos, o chamado «Direito moderno», e es-
sas «grandes liberdades».
8º. A paz e a ordem só poderão ser conseguidas se hou-
ver obediência a Deus e aos seus direitos sobre nós, para que
as Nações permaneçam unidas pelos vínculos da justiça e da
caridade em Cristo.
Aqui, levando em conta esses dois últimos pontos, te-
mos que ressaltar o que julgamos ser uma ‘grande tirada’ dessa
obra. Ela nos alerta que nossa ação em prol do Reinado Social
de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve, justamente, aproveitar-
-se desses falsos direitos e pseudo liberdades, inventadas
pelos laicistas. É com as próprias armas que estão usando
para des- truir a sociedade cristã que devemos destruir suas
monstruosas
criações. Como?
-Aproveitando da liberdade de ensino para pregarmos a
doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo nas escolas, na internet,
nos Centros Católicos que surgem, nas famílias, na Paróquia...
-Precisamos aproveitar da imprensa para publicar li- vros
católicos, republicar as obras clássicas do catolicismo que tanto
bem fizeram, as vidas dos santos, os manuais de moral e
ascética, os livros de espiritualidade que as ‘editoras católicas’
não querem editar...
-Precisamos aproveitar da liberdade de associação para
formarmos Centros e Institutos Católicos, reuni-los em Ligas
Nacionais, articular a união de todos os grupos católicos para
termos nossos representantes na política e nos meios de poder
decisório.
-Enfim, é preciso professarmos, ostensivamente, o cul-
to do verdadeiro Deus. Ensinarmos, a todos, que só a verdade
e o bem têm direitos, o erro e o mal não têm;
Um simples fato pode nos alertar para a necessidade
desse reconhecimento explícito, da nossa parte e das nossas
instituições, da nossa identidade católica: o debate sobre a pre-
sença dos crucifixos nos lugares públicos (onde ainda não foi
retirado).
Alguns anos atrás, uma polêmica gerada pelo presiden-
te da União de Mulçumanos da Itália, tomou conta daquele
país, já que o islâmico apresentou queixa contra uma escola
pública declarando que a presença do crucifixo violava a li-
berdade religiosa de seus filhos. Entre as inúmeras declarações
em defesa da presença da cruz nas escolas e tribunais, con-
forme prevê a legislação italiana, uma que chamou atenção foi
a do ministro do interior, Giuseppe Pisanu, que declarou: “sinto-
me ofendido como cristão e também como cidadão. O
crucifixo não é apenas um símbolo da minha religião, mas a
expressão mais elevada de dois mil anos de civilização que
pertencem ao povo italiano”8. Segundo resolução multiparti-
dária do Parlamento italiano, o crucifixo “é o mais antigo e
poderoso símbolo da liberdade de todos”, bem como o símbo-
lo “da laicidade do Estado”, e, por isso o governo deve verifi-
car “o efetivo respeito” da lei que prevê sua presença em todas
as salas de aula e empreender uma campanha “para explicar a
todos por quais motivos o crucifixo representa nossa identida-
de nacional, européia e ocidental”9
Aqui está a razão, creio eu, da necessidade de lutarmos
com todo vigor pelo Reinado Social de Nosso Senhor Jesus
Cristo, para que nossos governantes e nossas instituições re-
conheçam e afirmem as raízes cristãs de nossa civilização. “A
Roma cristã foi para o mundo moderno o que a Roma pagã
tinha sido para o mundo antigo, um núcleo universal” (Cha-
teaubriand). É uma questão de identidade, de fidelidade à ver-
dade histórica, de afirmação do núcleo universal que une o
Ocidente.
E, nós, brasileiros, não podemos fingir que não sabemos
que somos a Terra de Santa Cruz, que “não se cospe no prato
que se come”, que a matriz da nossa cultura é católica (ainda
que não possamos desprezar a contribuição dos indígenas e
africanos). A língua portuguesa e a fé cristã, legados da queri-
da “terrinha”, deram à nossa pátria uma identidade, uma cara.
Nossa literatura, nossas escolas e toda nossa cultura têm suas
raízes na cultura católica européia. Não podemos deixar que
essa tendência revisionista atual, que nega a memória das nos-
sas raízes católicas, fabricando um falso e inexistente pluralis-
mo cultural, vingue entre nós. “Uma sociedade que esquece
seu passado fica exposta ao risco de não ser capaz de enfren-
tar o presente – e pior ainda – de chegar a tornar-se vítima de
8. Cf. Aciprensa 28/10/2008.
9. Idem.
seu futuro!” (João Paulo II).
O Catecismo da Realeza Social de Nosso Senhor Jesus
Cristo e seus direitos divinos na ordem social é, portanto, de
uma atualidade e oportunidade extremas, uma obra que deve
ser lida e estudada por todos que desejam empenhar-se na
res- tauração da Cristandade.
Uma última palavra, gostaria de dizer, sobre a festa de
Cristo Rei, ainda celebrada na nova liturgia pós Vaticano II,
mas esvaziada do seu verdadeiro e original significado.
Se nos perguntarmos: Quais foram as intenções de Pio
XI ao instituir uma festa em honra de Cristo Rei? Veremos que a
resposta não pode ser buscada na hodierna celebração, que
ao torná-la somente uma festa de conclusão do Ano Litúrgico
ceifou essas intenções do Santo Padre. As insuspeitas palavras
de um pregador franciscano, que está na moda, sobre isso, con-
firmam o que estamos dizendo e, vai além, mostra a intenção
contrária a Pio XI, da mentalidade pós-conciliar (o negrito é
nosso)10:
“Quando foi instituída a festa de Cristo Rei (em 1925),
este era o aspecto que mais se sentia: proclamar o prima-
do de Cristo sobre os reinos da terra que cada vez mais
abertamente se declaravam hostis ou neutros diante da fé
e da Igreja: havia implícito um certo confronto entre o mun- do
e a Igreja. Veio depois o Concílio Vaticano II e deu-nos da
Igreja uma imagem um tanto diferente: não mais uma Igreja
acusadora do mundo, mas uma Igreja para o mun- do,
aberta para o mundo e em diálogo com ele, incluindo
também o mundo político de inspiração não-cristã. O resul-
tado foi o embaraço, a crise, o silêncio. Procurou-se dar à fes-
ta de Cristo Rei um novo conteúdo, suprimindo da noção
10. Cantalamessa, R., A Palavra e a Vida, Reflexões sobre a Palavra
de Deus própria dos domingos e das festas do ano – Ano B, trad.
Sabino F. Affonso, Editora Raboni, Campinas 1996, 320-321.
evangélica de reino qualquer matiz de polêmica contra o
mundo. Mas é justa essa solução? Estava errado o evangelista
João, quando falava de um conflito irredutível entre o mundo e
Jesus e entre o mundo e seus discípulos? Penso que não.
Estou convicto, antes, creio – porque é de fé que se trata – que
ainda hoje o reino de Deus sofre violência (cf. Mt 11,12); que há
guerra entre os dois reinos, ou as ‘duas cidades’, no mundo, e
que permanecer neutros não é possível, porque os
neutros são sempre, na realidade, as melhores tropas de
um dos dois reinos”.
Muito interessante essa última afirmação: “os neutros
são sempre, na realidade, as melhores tropas de um dos dois
reinos”. Sim, os neutros (ou os claramente contrários?) conse-
guiram desvirtuar a finalidade de Pio XI, que desejou inscrever a
primazia de Cristo num duplo plano social e político e, por isso,
falou de “Realeza Social” de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Assim, o Papa desejava chamar atenção para o fato da religião
não se tratar de um assunto privado, que não se pode relegar
a fé a um campo neutro, pois a sociedade só será plenamente
humana se for plenamente cristã. A religião pode não organi-
zar a sociedade, mas o Cristo não deixa de contribuir para a re-
novação da mesma, pois o Evangelho explicitado na doutrina da
Igreja tem a força para nutrir desde o interior as sociedades
humanas contribuindo para que as mesmas se elevem em todos
os seus aspectos, humanos e políticos.
Eco, portanto, a voz do Papa Pio XI, ainda hoje, a nos
lembrar esse seu desejo, inspirado por Deus: «É muito para
desejar, e nunca demais, que a sociedade cristã possa haurir,
largamente, vantagens tão preciosas, e as conserve perma-
nentemente. É preciso, para isso, propagar, o mais Possível, a
doutrina da dignidade real de nosso Salvador. Nenhum outro
meio nos parece mais idôneo para este fim, do que a institui-
ção de uma solenidade própria, especial, em honra de Cristo
Rei”.
A verdadeira finalidade da Festa de Cristo Rei é mais
uma das muitas restaurações a ser feitas que o vendaval pós
conciliar parece ter dizimado. No entanto, como disse um
grande cardeal da atualidade, “sempre houve traições na Igre-
ja. Hoje não tenho medo de afirmar que há padres, bispos e até
cardeais que temem proclamar o que Deus ensina e transmitir
a doutrina da Igreja. Eles têm medo de não serem aceitos, de
serem considerados reacionários. Então eles afirmam coisas
confusas, vagas e imprecisas para não serem criticadas, e são
aliadas à evolução estúpida do mundo. É uma traição: se o
pastor não guia seu rebanho para águas mansas, para o pasto
de capim fresco de que fala o salmo, se ele não o protege dos
lobos, ele é um pastor criminoso que está abandonando seu
rebanho. Jesus diz: “Ferirei o pastor e as ovelhas do rebanho
se dispersarão”. É o que acontece agora”11.
E o mesmo Cardeal, continua:
“Há uma forte maioria de sacerdotes que
são fiéis à sua missão de ensinar, santificar e governar. Mas
há também um pequeno número que cede à tentação
insalubre e perversa de alinhar a Igreja com os valores das
sociedades ocidentais atuais. Eles querem, em primeiro lugar,
dizer que a Igreja é aberta, acolhedora, atenta e moderna. A
Igreja não é feita para ouvir, é feita para ensinar: ela é
mater et magistra , mãe e educadora. Certamente, uma mãe
ouve seu filho, mas seu papel, em primeiro lugar, é ensinar,
orientar e dirigir, por- que ela sabe melhor do que seus filhos
que direção tomar. Al- guns adotaram as ideologias do mundo
atual com o pretexto falacioso de se abrir para o mundo; Seria
necessário, antes, tornar o mundo aberto a Deus, a fonte de
nossa existência. Não podemos sacrificar a doutrina a uma
pastoral que seria
11. Entrevista com o Cardeal Robert Sarah: “A Igreja caiu na
escuridão da Sexta-Feira Santa”, publicado por Laurent Dandrieu na
Revista Valeurs Actuelles. Tradução de Elena Faccia Serrano para
InfoVaticana [infovatica- na], consultada em maio de 2019. A Entrevista
foi feita por ocasião do lan- çamento de seu novo livro A tarde já está
caindo e o dia está terminando.
reduzida a uma porção mínima de misericórdia: Deus é mi-
sericordioso, mas apenas na medida em que reconhecemos
que somos pecadores. Para que Deus possa exercer sua mi-
sericórdia, devemos retornar a Ele como o filho pródigo. Há
uma tendência perversa que consiste em falsificar a pastoral,
opondo-se à doutrina e apresentando um Deus misericordioso
que não exige nada. Mas não há pai que não exija nada de
seus filhos! Deus, como todo bom pai, é exigente, porque quer
grandes coisas para nós”12.
E, por fim, aludindo ao terrível exemplo de Judas, diz:
Há homens na Igreja, alguns em altos níveis da hierar-
quia, que mancharam a Igreja, desfiguraram a face de Cristo,
mas Judas não deveria nos levar a rejeitar todos os apóstolos.
Esses graves fracassos não condenam a Igreja; pelo contrá-
rio, mostram que Deus confia em pessoas fracas para demons-
trar o poder de seu amor por nós. Ele não confia sua Igreja a
heróis excepcionais, mas a homens simples, para mostrar que
é Ele quem age através deles”13.
Pois bem, nós não somos heróis, somos
esses homens simples, fracos, mas não neutros, imbuídos do
desejo de fazer a vontade de Deus, de cumprir aquela missão
que o mesmo
12. O Cardeal Robert Sarah afirma ainda, com muita propriedade:
“... Acho que há um projeto especialmente estruturado de destruição
da Igreja, de- capitando sua cabeça, os cardeais, os bispos e os
sacerdotes. Nós nos es- forçamos para destruir o sacerdócio e,
acima de tudo, o celibato, que é apresentado como algo impossível e
não natural: porque se destruirmos o celibato, danificaremos
irremediavelmente uma das maiores riquezas da Igreja. O abandono
do celibato agravaria ainda mais a crise da Igreja e reduziria a
posição do sacerdote, chamado não só a ser outro Cristo, mas o
próprio Cristo, pobre, humilde e celibatário (“A Igreja caiu na
escuridão da Sexta-Feira Santa” [infovaticana])
13. Cardeal Robert Sarah: “A Igreja caiu na escuridão da Sexta-
Feira San- ta” [infovaticana] consulta: maio de 2019. Entrevista com
Nicolas Diat, por ocasião do lançamento de seu novo livro A tarde já
está caindo e o dia está terminando.
Cristo nos deu de instaura tudo n’Ele. Que a Virgem Maria, um
espelho para nós, nos ajude a ser fiéis cumpridores de nossos
deveres, para que sejamos dignos das promessas do seu Filho,
nosso Rei e Senhor Jesus Cristo.
CATECISMO CÍVICO
DIREITOS DIVINOS NA ORDEM SOCIAL, JESUS
CRISTO, MESTRE ABSOLUTO
Pelo Pe.A. PHILIPPE

INTRODUÇÃO

São calcados aos pés, hoje em dia, os direitos da verdade,


e sobretudo os direitos da Verdade Suprema. Por isso
apre- senta-se este catecismo, a pedir de todos profundo
ato de Fé: ato de Fé em Deus e em Jesus Cristo, enquanto
inter- vêm, Eles, com sua autoridade, em qualquer
agrupamento social, como intervêm com seu poder
incontrastável, em toda a criação. Cumpre não se
esqueçam os povos de que, em todas as relações de
homem com o homem, de uma so- ciedade com outra
sociedade, de um país com outro país, como em tudo
quanto constitui a organização íntima da nação, dependem
de Deus e de Jesus Cristo. Neste pon- to, como na
questão da própria existência de Deus, todo o indivíduo
deve curvar-se reverente, e dizer no fundo da alma:
“Credo”, eu creio.
LIÇÃO PRIMEIRA
Domínio Soberano de Deus sobre qualquer
Sociedade

1. Recitai os primeiros artigos do Símbolo dos


Apóstolos.
Creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do céu e da
terra, e em Jesus Cristo seu Filho único, Nosso Senhor.
2. Como se exprime, neste particular, a Santa
Igreja no Credo da Missa?
Creio num só Deus, Pai todo poderoso, que criou o céu a
terra, as coisas visíveis e invisíveis. Creio num só Senhor,
Jesus Cristo, Filho único do Pai.
3. Que entendeis com estas palavras: Criador do
céu e da terra, das coisas visíveis e invisíveis?
Entendo que tudo quanto existe fora de Deus foi feito
por Deus; e que todas as coisas, visíveis e invisíveis, foram
criadas por Ele.
4. Que diferença fazeis entre as coisas visíveis e
as invisíveis?
Coisas há que podemos apreender por meio dos senti-
dos, vista, ouvido e outros: estas são as coisas visíveis. Com
estas, existem realmente outras que também podemos conhe-
cer, mas não por meio dos nossos sentidos.
5. Lembrai alguns exemplos de coisas invisí-
veis.
São invisíveis: os anjos, a alma humana, o pensamento
humano, a vontade humana, o poder e a autoridade humana.
6. Não será, igualmente, a sociedade dos
homens coisa invisível?
Não é visível a sociedade dos homens, porque não são
os sentidos que a percebem. Entretanto, conhecemo-la perfei-
tamente. Nossa inteligência entende muito bem que esta nação
é distinta daquela, que tal sociedade, pública ou particular, é
diferente de qualquer outra sociedade.
7. Será a sociedade, considerando-se no que tem
de visível e no que tem de invisível, uma cria-
tura?
É. E, portanto, quando rezo o “Creio em Deus”, di-
zendo: creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do céu e da
terra, e de todas as coisas, visíveis e invisíveis, confesso e pro-
fesso, solenemente, que toda a sociedade, como todo indiví-
duo, foi criado por Deus, e por conseguinte, de Deus depende.
Dependência absoluta.
8. Que provas dareis de que é mesmo uma
criatu- ra a Sociedade?
Temos o testemunho de Deus e do Espírito Santo nas
Sagradas Escrituras. Temos o testemunho da Santa Igreja. E
podemos, além disso, aduzir provas ministradas pela razão.
A sociedade é uma reunião de homens. Ora,
o homem é criatura. Logo, pertencem às coi- sas
criadas as relações que existem entre os homens.
Uma sociedade, como qualquer nação, constitui evi-
dentemente uma realidade positiva. Esta realidade é, com
certeza, uma entidade moral, pessoa jurídica, e não é Deus.
Desde que está fora de Deus, foi criada por Deus, e está
forçosamente sujeita ao domínio incondicional de Deus, assim
como a criatura é propriedade do seu Criador.
Outra verdade fundamental. Não é apenas por ser o
homem uma criatura que depende de Deus. É também por- que
Deus é o fim supremo e último do mesmo homem. Não resta
dúvida que a finalidade de todo o criado é o Criador. Em
especial, toda a criatura racional, inteligente, tem como alvo
derradeiro, sublime e infinito, Deus. O homem está feito para
alcançar Deus. E deve entender que é este o seu fim. E deve
tratar de realizá-lo. Ora, as condições, as contingências em que
Deus colocou o homem são tais que não pode este deixar de
viver em sociedade. Logo, como ente social, o fim último e
supremo do homem é Deus. Quem o nega afirma que o fim da
sociedade é esta mesma sociedade, e isto já não passa de
idolatria, além de absurdo.
LIÇÃO SEGUNDA
Consequências necessárias da condição de
criatura, condição essencial de qualquer sociedade

9. Qual é a consequência imediata que se resulta


de ser a sociedade uma criatura?
Primeira consequência é a dependência necessária, ab-
soluta, completa de qualquer sociedade e de qualquer ordem
social estabelecida, assim como de qualquer ordem social pos-
sível, para com Deus.
10. Não está claro, para mim isto de dependência
de um organismo social para com Deus. O or-
ganismo social não possui consciência. Apenas
o indivíduo é capaz de entender o que é obriga-
ção moral, e de cumpri-la.
Vai nas considerações acima expandidas lastimável con-
fusão. Com efeito, a criação, e a consequente dependência em
que se acha toda a sociedade, nada tem com a consciência
que porventura o homem possui destes fatos. Existem porque o
ho- mem recebeu de Deus o ser. Queira ou não queira, o homem é
uma criatura. E o mesmo acontece com uma sociedade
qualquer. É condição essencial para ela o estado de sujeição
da criatura.
Mais do que isso. Toda a sociedade é uma reunião
dotada de inteligência. Logo, é preciso que saiba, em pri- meiro
lugar, o que é que constitui a sua essência. É preciso que
conheça os deveres primordiais que lhe são impostos. Ora, a
verdade básica, alicerce de todas as outras, a verda- de
donde promanam as obrigações da criatura, é certamente o
Domínio Soberano que Deus exerce sobre suas criaturas, e a
dependência absoluta destas para com o Criador.
A coletividade que desconhece esta verdade ele- mentar
e fundamental trilharia caminhos errados. Fal- tar-lhe-ia um
requisito imprescindível. Perder-se-ia in- falivelmente. É
urgente, pois, e intuitivo, que todo o Estado, toda a Nação
ou, por outra, qualquer Sociedade, professe para com Deus a
submissão mais completa.
Vemos, portanto, este preceito de Ordem Social, esta-
belecido e confirmado, tanto pela consciência coletiva como
pela consciência individual.
11. Que outro corolário resulta desta condição de
criatura própria de qualquer sociedade?
Consequência imediata e inelutável é que a mesma
constituição íntima de toda sociedade depende de Deus. Isto
significa que os elementos todos que entram na formação do
grupo devem estar impregnados, repassados, compenetrados
de Deus. Todos os elementos. Assim é que se encontram sem-
pre num agrupamento: 1º a união das vontades; 2º um fim a
realizar; 3º meios adequados à consecução deste fim.
Ora, por ser criatura, a sociedade depende de Deus em
cada um destes elementos. Quem não vê a conclusão ri-
gorosamente lógica? Quando se organiza um grêmio, deve-
-se considerar — através do prisma do fim supremo e derra-
deiro: Deus — o alvo particular em vista. Os meios que se
adotarem não poderão, em caso algum, menosprezar as exi-
gências da Lei eterna. Enfim, a conjunção das vontades será
feita de harmonia com a vontade do Árbitro Soberano.
Daí decorre que o passo inicial de um Estado que se
organiza é insculpir na sua Constituição, na sua Magna Carta,
na sua legislação, como em tudo o mais, este preito de vassa-
lagem, este reconhecimento total, sem reserva, dos direitos de
Deus, esta conformidade exata com os ditames da Lei Eterna.
Afirmar o contrário é entronizar a desordem e descambar para
a idolatria.
12. Neste caso, ficaria decretada para os Estados
a obrigação de prestar culto a Deus?
Fica. Pois as considerações precedentes dizem respeito
a qualquer coletividade composta de seres inteligentes. Assiste
a todo Estado, a toda a nação e à própria sociedade das
nações, a obrigação preliminar de conhecer seus deveres
essenciais, de inteirar-se e convencer-se deles. Motivos mais
relevantes não pode haver: Deus é o Deus das sociedades,
tanto quanto é o Deus dos indivíduos. E desde que o distintivo
e caráter específico das sociedades é justamente serem
sociais, sob este aspecto é que lhes cumpre tributar a Deus
culto e vassalagem absoluta.

13. Será possível constranger os Estados a prestar


culto a Deus? Na prática, não querem saber de
Deus.
Nada melhor, para a solução desta questão, do que lem-
brar as palavras do apóstolo São Paulo. No capítulo primeiro
da Epístola aos Romanos, exprime-se como segue: “Desfere-
-se do alto do Céu a ira de Deus contra as impiedades e injus-
tiças dos homens que conservam presa, com esta mesma injus-
tiça, a verdade; porque o que Deus conhece, também para eles
é claro: Deus a eles o comunicou. Pois as suas perfeições in-
visíveis, sua onipotência eterna e sua divindade, ele as tornou
patentes à inteligência humana, por meio das suas obras, desde
a criação do Mundo. Logo, para eles, não haverá desculpa, já
que conheceram a Deus, e assim mesmo não o glorificaram
como Deus, e não lhe deram graças”. (Rm 1, 18, etc.)
O Espírito Santo, pela boca do Doutor das Nações,
proclama que não têm desculpa os pagãos engolfados nos
horrores da impiedade. Nada que os escuse por não terem co-
nhecido nem glorificado a Deus. Acusa-os de haverem rejeita-
do a luz, e não pode absolutamente achar justificações.
Da mesma forma que os pagãos, designados aqui por
São Paulo, os Estados modernos, sejam eles quais forem,
são responsáveis. Ninguém admitirá que procedem consoan-
te as exigências da consciência e os ditames da razão. Deus
manifesta-se, revela-se, com efeito, por suas obras, tan-
to aos governantes e aos dirigentes como aos outros indiví-
duos. Ora, se houver entre eles quem deixe de exigir o cul- to
social e oficial dos Estados a Deus, este é culpado pelos
motivos que aduz São Paulo. No ponto de vista meramente
racional, os governos, os parlamentos, os legisladores, etc.,
têm obrigação de prestar a Deus um culto. E desta obrigação
não podem eximir nenhum Estado, sociedade alguma.
Estas considerações nos levam à seguinte conclusão.
Ainda quando um Estado andasse afastado das diretivas da
Igreja, por não as conhecer, vigorava para ele, rigorosa e ine-
lutável, a necessidade de entregar-se a Deus, e de submeter-
se aos preceitos divinos da Lei Eterna.
14. Então serão culpados todos os políticos que
não têm a coragem de proclamar o soberano
domínio de Deus sobre todas as criaturas, em
especial sobre os organismos sociais, embora
aleguem tais políticos motivos de prudência e
oportunismo?
Certamente. O apóstolo São Paulo o diz sem rodeios. E
declara mais, que se exercerá a severidade de Deus contra os
povos desobedientes a esta lei primordial. Quem não quer
aceitar Deus como Criador, Mestre e Soberano Senhor da so-
ciedade, posterga o código natural, despreza e ofende o lume
da razão. Não nos servem as suas teorias e havemos de
comba- tê-las com a energia do desespero e a certeza do
triunfo.
15. Resulta disso que a sã política é, e deve ser,
dirigida por Deus?
Isso mesmo. Política sã há de ser dirigida por Deus.
Pode-se entender pela palavra “política” isto ou aquilo, não
importa: é sempre alguma realidade, e sujeita sempre ao man-
do divino. E importa sobremaneira não esquecermos aqui a
doutrina do nosso fim último, precedentemente exposta. Não
será lícito nunca, e nem sequer prudente, perder-se de vista
esta verdade capital: o homem está nesta terra para conquis-
tar a bem-aventurança eterna. E todas as instituições humanas
ou divinas têm a mesma e única mira: almejam a glória de Deus
e a salvação das almas. Logo, cumpre que as organiza- ções
sociais todas, todas as ações políticas, todas as normas e
diretivas das constituições, tomem na devida consideração este
princípio fundamental: o homem não está criado para a vida
temporal, senão para a Eternidade. Os códigos dos povos, as
suas legislações, seus preceitos jurídicos, administrativos e
quaisquer outros devem assentar no alicerce da finalidade de
toda existência humana. Esta finalidade exige que a política,
como tudo o mais, se conforme rigorosamente com as prescri-
ções da Lei Eterna de Deus e do Decálogo, com os ensinos do
Credo.

16. Isto que dizeis do Estado, da nação, submissão


total, completa a Deus, não é também o caso
da Igreja?
Exatamente. A Igreja é uma sociedade, e por isso mes-
mo deve a Deus obediência absoluta, sujeição perfeita. Exis-
tem neste mundo inúmeras sociedades, e variadíssimas. En-
tretanto, duas dominam as outras: a Igreja e o Estado.
Hoje em dia, porém, grassam e proliferam es-
pantosamente as teorias errôneas quanto à subser-
viência que incumbe ao Estado para com Deus. Daí
a urgência de derramar a luz neste particular.
Mas a Igreja tem de professar uma submissão a Deus
tanto mais profunda, quanto mais importante é seu papel de
diretora dos homens na consecução dos destinos eternos. A
Igreja depende de Deus na própria existência. De-
pende dele pelos meios de que lança mão para santificar as al-
mas. Igualmente pela missão que lhe foi imposta: apontar aos
indivíduos e aos chefes, às sociedades particulares e aos Esta-
dos, os caminhos que levam à salvação. Em resumo, qualquer
sociedade depende de Deus. O Estado é uma sociedade: logo
o Estado depende de Deus. A Igreja é uma sociedade, logo a
Igreja depende de Deus, e esta dependência apresenta caráter
mais íntimo.
17. A conclusão que parece desprender-se do que
foi precedentemente exposto é a concordância
plena entre a Igreja e o Estado no governo dos
homens; não é isso?
Certíssimo. Este foi constantemente o ensino dos
Papas: que houvesse harmonia perfeita entre a Igreja e o
Estado. A razão é óbvia: ambos estes poderes, Igreja e Es-
tado, são instituições emanadas da vontade de Deus.
O papel da Igreja é nortear os homens e conduzi-
-los à felicidade suprema. O papel do Estado é promover o
bem-estar material e temporal dos seus súditos. Tal bem es-
tar proporcionado pelos governos é destinado a remover os
obstáculos, e a facilitar a romaria terrena em demanda do Céu.
Sendo a posse do Céu o alvo final, o termo único de tudo, é
claro que tudo deve ser coordenado em vista deste objeto.
Desde que a Igreja foi incumbida de encaminhar in- falivelmente
os homens para seus destinos sublimes, é ne- cessário que
seja obedecida. Isto entra nos planos da Provi- dência. Ainda
que seus domínios não envolvam as coisas de ordem
material, dela é que recebemos as instruções pre- cisas para
uso lícito destes mesmos bens transitórios.
Pio IX e Leão XIII condenaram, de modo formal e ter-
minante, a tese da separação da Igreja e do Estado.
18. Esses ensinamentos parecem importantíssi-
mos, excepcionalmente graves. Dir-se-ia que
nenhuma inteligência humana, querendo des-
posar a verdade e reverenciar a lei divina, não
deverá jamais tolerar o pensamento sequer da
independência de um Estado, de uma socieda-
de, ou simplesmente da política com Deus?
É isso mesmo. Um pensamento destes, sendo voluntá-
rio, consentido, encerra um ato de rebelião, uma revolta carac-
terizada, uma declaração explícita de independência da criatu-
ra para com o Criador. Essa insubordinação do espírito contra
Deus constitui um pecado de extrema gravidade.
LIÇÃO TERCEIRA
Domínio Soberano de Nosso Senhor Jesus Cristo
sobre qualquer sociedade e qualquer nação

19. Podeis repetir o segundo artigo do Creio em


Deus?
“Creio em Jesus Cristo Nosso Senhor”. E no Credo da
Missa, dizemos: “Creio num só Nosso Senhor, Jesus Cristo,
Filho único de Deus, Deus de Deus, que se encarnou no seio
da Virgem da Maria e por nós se fez homem”.
20. Haverá uma relação especial entre a
Santíssi- ma Humanidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo e a Ordem Social estabelecida no
mundo?
Não há dúvida nenhuma. O homem foi criado para a vida
em comum. A sua própria natureza, as contingências das suas
faculdades o predispõem e o constrangem a viver em so-
ciedade. Jesus Cristo se fez Homem para conduzir a criatura à
bem-aventurança eterna. Logo, o Divino Redentor deve pos-
suir influência eficaz em todas as modalidades que o homem
revestir nesta sua marcha para o termo supremo. Ora, o ho-
mem é feito para a Sociedade; cumpre, portanto, que realize
seus destinos como ente social, isto é, por meio da sociedade
na qual forçosamente entra. Esta não pode, evidentemente,
constituir um fim. Não passa de meio. Mas, para ser meio ade-
quado, carece de santidade e de ação santificante. Isto, somen-
te por Cristo, através da Santíssima Humanidade de Nosso Se-
nhor. Donde decorre que deve existir relação especial e íntima
entre a Santíssima Humanidade de Cristo e a Ordem Social
estabelecida no mundo.
21. Agora, por que se há de falar tanto de Nosso
Senhor Jesus Cristo? Se Ele é Deus, é bem de
ver que será certo também para ele tudo o que
dissermos de Deus, não é?
Claro que sim. Tudo quanto se afirma de Deus convém
ao Verbo Eterno, feito homem por nosso amor. Jesus Cristo é
Deus. Por isso, qualquer sociedade depende d’Ele: dependên-
cia soberana e absoluta. Todavia, é preciso não esquecer que
há em Jesus Cristo uma única pessoa, que é a Pessoa do
Verbo, e duas naturezas: a natureza divina e a natureza
humana.
A Pessoa do Verbo é que tomou a natureza humana, e
com ela se uniu hipostaticamente. Deste modo subsiste a natu-
reza humana de Cristo apenas no Verbo. Reveste-se em Jesus
Cristo de condições especialíssimas.
22. Que condições especialíssimas são estas, re-
vestidas pela Santa Humanidade de Jesus Cris-
to por causa da dignidade resultante da União
hipostática?
São teândricos os atos de Nosso Senhor Jesus Cristo. E
é porque sempre os atos são atribuídos à pessoa. Já que há
uma só pessoa em Jesus Cristo, e não duas, todos os atos da
natureza humana de Jesus Cristo são referidos à pessoa divina.
23. Não é também Jesus Cristo o nosso Redentor?
Jesus Cristo é Nosso Redentor. Por sua natureza huma-
na, resgatou o mundo. É nesta natureza que ele é Medianeiro
entre a Trindade e o homem. Para compreendermos os poderes
especiais e a missão divina de Jesus Cristo Homem, é preci- so
termos em vista as condições que impõe ao Divino Mes- tre
esta qualidade de Homem Medianeiro. É verdadeiramente
Homem. É verdadeiramente Deus. Não depende de ninguém.
Nada tem que receber, seja de quem for. E tudo depende dele.
Como Homem, de Deus lhe vem tudo, o que se dá com qual-
quer criatura. Porém de outra maneira.
LIÇÃO QUARTA
Condições e sentido exato da Realeza de Jesus Cristo

24. Qual é a causa fundamental da


Realeza Social de Jesus Cristo?
Este fundamento é a vontade formal da Santíssima
Trindade de conceder a Jesus Cristo Homem um poder real,
verdadeiro e absoluto. É bem de ver que não se trata dos Di-
reitos do Verbo de Deus, os quais são infinitos, mas sim dos
Direitos e Poderes outorgados por Deus à santíssima Humani-
dade do Verbo.
25. Terá Deus dado a conhecer a sua Vontade nes-
te particular?
Deu, sem dúvida. Na sua Encíclica “Quas Primas”, o
Papa Pio XI apresenta duas provas manifestando a Vontade
Divina neste assunto.
26. E quais serão estas duas provas que
o Papa apresentou?
Eis a exposição da primeira prova aduzida por Pio XI.
“O fundamento que serve de base a esta dignidade, a este
poder de Nosso Senhor, nós o temos exatamente designado
nas seguintes palavras de São Cirilo de Alexandria: ‘Nosso
Senhor possui, numa palavra, o poder sobre todas as criaturas
não por- que o tivesse conquistado pela violência ou por outro
qualquer meio, mas sim por essência e por natureza’. Seu poder
resulta da união admirável que os teólogos chamam de
hipostática.
Por consequência, não deve somente o Cristo ser
adorado como Deus pelos anjos e pelos homens, senão que
devem mais, estes e aqueles, obedecer submissos à
onipotên- cia desse Homem. Porquanto, em virtude deste
único título da união hipostática, o Cristo possui o domínio de
todas as criaturas, se bem que não lhe aprouvesse exercer os
direi- tos desta supremacia real durante a sua vida terrestre”.

Tal é o pensamento do Papa neste particular: a união hi-


postática da natureza humana com a pessoa do Verbo proporcio-
na à natureza humana na pessoa de Jesus Cristo uma dignidade
transcendental. Estaabrange, forçosamente, asoutrasdignidades
todas que porventura possam caber em naturezas humanas.
Com efeito, a razão não admite, e mesmo acha ridículo,
que se coloque ao lado da natureza humana revestida pelo Verbo
outra dignidade que fizesse alarde de algum direito ou prerroga-
tiva de superioridade sobre o Filho de Deus feito Homem.
Não se admite, e pareceria sumamente ridículo, que um
príncipe, uma câmara legislativa, proclamassem a própria
preeminência, oficial, jurídica e efetiva, sobre Aquele a quem
Deus outorgou o privilégio inaudito da União hipostática. E
este é o fundamente primordial e essencial da realeza
justamente atribuída a Nosso Senhor Jesus Cristo.
27. E qual será o segundo fundamento
doutrinal da Verdade ensinada por Pio XI?
Pio XI assim prossegue: “Haverá porém lembrança
mais grata e suave do que esta: Jesus Cristo nos rege e domi-
na não somente por direito de natureza, mas ainda por outro
direito que adquiriu, direito de Redentor? Recordem-se os ho-
mens esquecidos, recordem-se todos de quanto temos
custado a nosso Salvador. Não fostes resgatados a troco de
bens pere- cedouros como sejam o ouro e a prata, não. É o
preciosíssi- mo sangue de Cristo que vos remiu. De Cristo
imolado, feito Cordeiro sem mácula, puríssimo. Já não nos
pertencemos a
nós próprios, desde que Jesus Cristo nos comprou tão caro.
Nossos mesmos corpos vêm a ser os membros de Cristo”.
E neste ponto ainda, eis o que pensa o Papa. Toda cria-
tura é de Deus. O homem havia se perdido pelo pecado. Nada
tinha ele com que pagasse o resgate. Jesus Cristo, Verbo de
Deus feito Homem, compadecido de tamanha desgraça, com-
prometeu-se em saldar com seu Sangue divino o nosso débito.
Em paga a Santíssima Trindade deu-lhe de presente o gênero
humano em peso, sem exceção de nenhuma criatura. Nosso
Senhor Jesus Cristo, em especial, ficou com este privilégio de
constituir um corpo único, e um mesmo todo, com os homens
que lhe fossem unidos pela graça santificante.
28. Terá dado a conhecer Nosso Senhor
Jesus Cristo as intenções da Santíssima
Trindade a respeito deste poder real?
Deu. É fato. Com a imponência tranquila da sua majes-
tade divina, perante o universo inteiro, e perante os séculos, Je-
sus Cristo declarou: “Foi-me concedido todo o poder no Céu e
na terra”. Note-se que o tal poder lhe foi concedido; logo, ele
obteve esse poder. Note-se, em segundo lugar, que Nosso
Senhor diz: todo o poder; logo não existe mais, na terra, poder
diferente, nenhum poder fora do poder de Cristo. O poder foi-
-lhe dado pela Santíssima Trindade; por conseguinte, o poder
dos reis, dos príncipes, de qualquer autoridade constituída, é o
Poder de Cristo. Isso se vê perfeitamente da palavra de São
Paulo: “Non est potestas nisi a Deo”. É esta a gênese do po-
der. Todo o poder vem de Deus, e só d’Ele pode provir. Todo o
poder foi confiado a Cristo. Portanto, qualquer poder passa
através de Cristo, vem de Cristo.
29. Pode-se, acaso, inferir daí que Nosso
Senhor Jesus Cristo exerce uma autoridade
real, ver- dadeira, sobre qualquer sociedade?
Não padece dúvida. Em primeiro lugar, conforme o
assevera Leão XIII, pertence a autoridade, essencialmente,
como atributo próprio, a qualquer sociedade. Sem o atributo do
poder, não haverá sociedade. Toda a sociedade é regida pela
autoridade. Faça-se o cotejo destes princípios. Relacionem-se
uns com outros, ver-se-á imediatamente surgir, em plena luz, a
seguinte conclusão: a autoridade que se encontra depositada
numa sociedade ou numa nação é outorgada por Nosso Senhor
Jesus Cristo; origina-se nele, depende dele. Por isso, essa
auto- ridade é de natureza tal, que há de ser necessariamente
subme- tida a Cristo. Donde se conclui que Nosso Senhor Jesus
Cristo é o Rei legítimo e único de todas as sociedades cujo
elemento primordial, a autoridade, promana dele.
30. Trata também Pio XI de um poder
legislativo, executivo e judiciário. Estará Jesus
Cristo re- vestido igualmente deste tríplice
poder?
Está. De fato, nem se compreendia que poder seria
esse, que não gozasse dos direitos de legislar, de julgar, de
absolver e de condenar. Este tríplice poder é consequência ne-
cessária da autoridade que Deus entregou a Jesus Cristo.
31. Que motivo haverá ainda que justifique a
Rea- leza Social de Jesus Cristo?
Na própria natureza de qualquer sociedade, especial-
mente no seu alvo, na sua finalidade, temos outra prova da
soberania da Realeza de Jesus Cristo sobre a Ordem Social
inteira.

32. Não é a autoridade que determina o fim


de
qualquer sociedade?
É sim. Quem reconhece, numa sociedade, a existência
do poder, afirma por isso mesmo que este poder tem a obriga-
ção de levar a tal sociedade à realização dos seus fins. Na ver-
dade, é lícito considerar a meta do agrupamento, deste ou da-
quele ponto de vista, através deste ou daquele prisma, nunca,
porém, de modo a perigar ou esquecer-se o fim supremo.
Ora, se o papel da autoridade é promover a consecu-
ção dos alvos do grupo por ela regido, claro está, indubitável,
que a autoridade procedente de Cristo — e repita-se, qualquer
autoridade vem d’Ele mesmo — deverá ter em mira o fim que
Jesus Cristo almejou na sua vida e na sua morte. Porventu- ra,
consentiria Nosso Senhor Jesus Cristo em delegar, fosse a
quem fosse, uma parcela do seu poder, despojando-a, e despo-
jando-se a si próprio da influência, da eficiência que lhe cabe
para a obtenção do resultado final da Redenção? Impossível.
Absolutamente. Da mesma forma, não poderá ele de modo
algum desistir dos seus direitos, nem do mínimo dentre eles,
quanto à sua autoridade sobre os meios usados pela
sociedade, ou sobre as vontades que se associaram num
grêmio.
LIÇÃO QUINTA
Caráter espiritual da Realeza de Nosso Senhor
Jesus Cristo

33. Que outro traço característico podeis ainda


mencionar da Realeza Social de Nosso Senhor
Jesus Cristo?
Encontra-se exarado por Pio XI, nos conceitos a seguir:
“Todavia, é antes espiritual esta realeza. Diz respeito
principalmente às coisas espirituais. É o que aparece patente
dos textos lembrados da Bíblia. Aliás, os modos de proceder
do próprio Cristo, Nosso Senhor, claramente o demonstram.
Vemos que os Judeus, e os mesmos apóstolos, alimentam es-
peranças vãs, ilusórias, de que algum dia o Messias há de
reviver as liberdades nacionais, há de restaurar o reino de
Israel. Jesus diversas vezes desfaz essas opiniões, desman-
cha esses cálculos, destrói tais esperanças. Na hora em que
está para ser proclamado rei pela multidão que o cerca, ren-
dida e entusiasmada, Jesus foge, oculta-se para escapar do
título e das honras. Perante o pró-cônsul romano, declara,
solenemente, que não é deste mundo o seu reino. Consoan-
te os ensinamentos dos Evangelhos, sabemos que os
homens, querendo entrar no dito reino, devem preparar-se
por meio da penitência, e nele terão ingresso tão somente
pela fé pelo batismo. Este, com ser um rito exterior, também
indica e pro- duz uma regeneração interior. Único inimigo
desse reino é o reino de Satanás, soberano das trevas e da
mentira. E que é que pede dos seus súditos? Que
renunciem às riquezas e aos bens terrestres? Que pratiquem
a mansidão extrema? Te- nham fome e sede de justiça? Sim,
tudo isso, e mais: que fa-
çam abnegação de si próprios e carreguem a sua cruz.
Dois títulos de posse conquistou Nosso Senhor Jesus
Cristo. O Primeiro direito, o de Redentor, adquirindo por seu
sangue a Igreja. Segundo direito, o de Sumo Pontífice, que se
ofereceu e continua oferecendo-se perpetuamente como vítima
de expiação por nossos pecados. Ora, quem não vê que sua
dignidade real deve ser adequada à natureza desta dúplice
missão, e dela participar? Entretanto, seria erro lamentável e
vergonhoso negar a Cristo feito homem a soberania nas coi-
sas cívicas, sejam elas quais forem. Recebeu, com efeito, do
seu Pai direitos absolutos, de forma tal que tudo está sujeito a
sua vontade. Assim mesmo, durante sua vida terrestre, deixou
por completo de exercer esta autoridade. Não quis saber da
posse nem dos governos das coisas humanas. Entregou isto
aos detentores efêmeros e sucessivos. É esta verdade que
en- contramos magnificamente expressa nestes versos: “Non
eri- pit mortalia qui regna dat caelestia” — Não arrebatará
tronos da terra, este que os distribui no céu”.
34. Como explicareis desenvolvidamente
este ca- ráter espiritual da Realeza de Jesus
Cristo?
Basta resumir o que ficou precedentemente. Em virtu- de
da união hipostática e da sua ação redentora, possui Nosso
Senhor Jesus Cristo plena autoridade sobre todas as criaturas.
Só através de Jesus Cristo, unicamente por Ele, é que o ho-
mem há de conseguir o seu fim último. Jesus Cristo é o Ca-
minho que se deve trilhar para obter a salvação. É a Verdade
que há de alumiar todo homem vindo a este mundo. É a Vida
feita para animar e santificar as almas por meio da graça.
Em consequência do seu poder absoluto, Jesus Cris- to
tem de influir em cada homem, de modo a ser realmente para
todos o Caminho, a Verdade e a Vida. Em consequên- cia
deste mesmo poder absoluto, pelo qual tem jurisdição in- teira
sobre qualquer Associação e qualquer autoridade, há de Jesus
Cristo necessariamente intervir para que nenhum poder
terrestre estorve a ação divina, para que ninguém seja tolhido
de encontrar, querendo, o Caminho, a Verdade e a Vida. Há
de intervir para que qualquer Associação e qualquer autori-
dade contribua, efetivamente, a proporcionar a todos o desco-
brimento e a posse do Caminho, da Verdade e da Vida.
Destas simples considerações destaca-se, portanto,
numa luz claríssima, o caráter social e espiritual da Realeza de
Jesus Cristo. Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei. Foi dado a Ele
poder absoluto, até sobre as coisas temporais. E é lícito a Ele
o exercício deste poder, quer se trate dos negócios de ordem
material, quer se trate dos negócios da ordem espiritual. Na
prática, limita-se à intervenção espiritual.
35. Até que ponto vai a intervenção espiritual
de Nosso Senhor Jesus Cristo nas
organizações sociais?
Não há limites para esta intervenção divina. O Cristo Rei
tem de exercê-la diretamente por si mesmo. Também por sua
Igreja, pelas constituições fundamentais dos povos e dos
países, em todos os agrupamentos sociais, inclusive na socie-
dade das nações. É este o meio natural, normal e racional, aliás
único, que tem o Divino Rei para desempenhar a missão, a um
tempo celestial e terrena, que Ele se impôs.
36. Se for assim, Nosso Senhor Jesus Cristo é
Rei
de todas as nações?
Efetivamente. É. Isto, consoante a palavra do profeta: a
Ele foram dadas, para herança, todas as nações e seu império,
ou melhor, sua propriedade dilata-se até aos confins do Uni-
verso.

37. As homenagens públicas que devem ser


pres- tadas a Jesus Cristo Deus e Homem não
terão elas a sua fonte no próprio caráter
espiritual da Realeza de Jesus Cristo?
Isso mesmo. As homenagens públicas de adoração e de
amor, de reconhecimento e reparação, de orações e súplicas,
hão de tributar-se a Jesus Cristo, Deus. É imposição feita por
Jesus Cristo Rei, a Jesus Homem e a todas as criaturas. Jesus
Cristo Rei possui uma Realeza espiritual, exatamente porque é
Ele Via, Verdade e Vida. Ainda mais, porque só Ele tem os
meios de adorar dignamente, e dignamente prestar à Santíssi-
ma Trindade o devido culto. O cumprimento destas diversas
obrigações do homem é mesmo um dos alvos que visava Nos-
so Senhor Jesus Cristo na sua romaria terrena. Logo, é atri-
buição da sua Realeza pedir do homem e da sociedade inteira
contas deste tributo espiritual. E não tem esta, e não tem aquele
outro recurso para a realização do seu fim supremo.
LIÇÃO SEXTA
Poder da Igreja na Ordem Social estabelecida por Deus

38. Que intenções terá o Cristo, Rei das


Socieda-
des, para com a Igreja?
Dizem respeito a um duplo objeto. Em primeiro lugar,
exige dela a submissão mais perfeita a Deus. Não é lícito a ela
ajuntar um único artigo às verdades que nos foram ensi- nadas
por Jesus Cristo. Da mesma forma, não pode suprimir um só
dogma. Depende de Deus, até nas coisas mínimas.
Dependência absoluta. Em segundo lugar, por determinação de
Jesus Cristo, tem de cumprir uma missão. Esta incumbência é
confiada à Igreja, por Jesus Cristo, em virtude do domínio que
este possui sobre qualquer autoridade. Necessariamente,
então, vem a ser uma participação deste domínio sobre qual-
quer autoridade.
39. Como se poderia desenvolver esta
doutrina da missão da Igreja?
Eis em que situação colocou Jesus Cristo a sua Igre- ja.
Disse-lhe: “Ide, ensinai todos os povos. Estarei convosco todos
os dias, até a consumação dos séculos”. Estas palavras nos
manifestam as intenções de Jesus Cristo. Quer o Divino Mestre
que a sua Igreja venha a ser no mundo o instrumento da
salvação das almas. Ele o quer de maneira tal que excluiu
qualquer outra organização, e tão somente a esta Igreja confiou
a pastoreação das almas para as levar à Bem-aventurança final.
Quer, sem dúvida, que a sua Igreja desempenhe no mundo,
para a salvação das almas, o papel de organismo indispensá-
vel.

40. Neste caso, concluir-se-ia que a Igreja é


tão necessária como o próprio Cristo; será que
se
deve admitir isso?
Por que não?! Se for esta mesma a vontade de Je- sus
Cristo, que a Igreja venha a ser tão necessária como Ele
mesmo! Ora, Jesus Cristo manda que a sua Igreja ensine
os povos e administre os sacramentos. Ou por outra, man- da
que, por intermédio da Santa Igreja, todo o homem e toda a
sociedade encontre nele: Via, Verdade e Vida.
Para o decorrer da sua existência toda, o homem tem
como Rei Jesus Cristo. Deste recebeu ordem explícita, posi-
tiva, que obedecesse à Igreja, sempre que esta fala em nome
de Jesus, Via, Verdade e Vida. Ora, Jesus Cristo apresenta-se
com esses títulos não somente ao indivíduo, mas a qualquer
sociedade. Logo, é preciso que toda a sociedade obedeça à
Igreja, como ao próprio Jesus Cristo, pois ela é quem recebeu
o encargo de interpretar os pensamentos e a vontade do Divino
Mestre, tanto na ordem social, como na ordem individual.
41. Se for assim, cabe à Igreja o título de
Rainha, e ao Papa o de Rei?
Certíssimo. Cabe. Ninguém há, acima da Igreja, nin-
guém junto dela, que a possa aconselhar, ensiná-la, nem di-
rigi-la, senão Deus, o Espírito Santo e Nosso Senhor Jesus
Cristo. Se Nosso Senhor Jesus Cristo é, na verdade, Rei, por-
que tem autoridade sobre quaisquer poderes — da mesma
forma é Rainha a Santa Igreja, porque assumiu o papel de
ensinar aos detentores da autoridade as obrigações, os deve-
res que lhes assistem. A Igreja rege: portanto, é rainha.
Exatamente com as mesmas credenciais, iguais direi-
tos e motivos idênticos, o Papa é Rei.
42. Quais são as consequências
imediatas destas verdades?
Primeira dentre todas essas consequências, é que Jesus
Cristo e sua Igreja hão de forçosamente intervir na Ordem So-
cial inteira. Em qualquer organização ou agrupamento huma-
no, devem, por mandato rigoroso e divino, expor aos Povos e
às Associações a doutrina infalível. Claramente o diz a Santa
Sé nas instruções dirigidas ao Arcebispo de Tours.
“Em meio dos transtornos do nosso tempo, importa re-
petirmos aos homens que a Igreja, por instituição divina, é o
único barco de salvação dado ao mundo. Estabelecida sobre
Pedro e seus sucessores, pelo Filho de Deus, não somente
vem a ser a defensora das verdades reveladas, como também
sal- vaguarda da lei natural. Porquanto se faz oportuno hoje,
mais do que nunca, redizer, como costumais Monsenhor, que a
ver- dade soberana, libertadora dos indivíduos e das
sociedades, é a verdade sobrenatural, com toda a plenitude,
todo o brilho e toda a pureza, sem disfarce, sem diminuição,
sem mescla aco- modatícia, tal, numa palavra, como Nosso
Senhor Jesus Cris- to a trouxe à terra, tal como Ele a entregou
aos guardas e mes- tres, a Pedro e à Igreja” (Carta em 16 de
março de 1917).
Segunda consequência correlativa,
ponto por ponto, da primeira, é que a Ordem Social
não pode ab- solutamente dispensar Jesus Cristo e a Igreja.
São ne- cessários. Se não o fossem, bem se vê que não os
im- punha Deus ao gênero humano, para meio de salvação. Já
que receberam uma missão a cumprir junto dos po-
vos, missão indeclinável, aos povos impõe-se a obrigação re-
cíproca de recorrer a esse ministério sagrado.
43. Mas, neste caso, a Igreja deverá cuidar
não só das almas senão também das
sociedades. Não será exagero isto?
Absolutamente. Nenhum exagero. A Igreja e o Papa,
é um fato, devem preencher junto das almas, e não só,
mas ainda junto das sociedades, funções impos- tas pela
sabedoria divina. Claro que à Igreja unicamente tem sido
confiado na terra o depósito das verdades revela- das, como
também das verdades morais de ordem natural.
Nem podia subsistir sociedade alguma que não reco-
nhecesse a existência desta lei moral, ou não a observasse. À
Igreja, portanto, cabe a magna tarefa de ministrar as verdades
primordiais, capazes, exclusivamente elas, de salvar o uni-
verso e cada nação em particular. À Igreja, e a ela só, cabe
interpretar com autenticidade e direito as leis da justiça na-
tural que hão de pautar as relações entre os povos. É coisa
que facilmente se entende. Intuitiva. Não é a Igreja que leva ao
fim supremo os povos? Ora, estes têm como existência normal
neste mundo o estado de sociedade. Logo, a missão da Igreja
é conduzi-los a seu fim, por meio da sociedade na qual, por
decreto de Deus, lhes cumpre viver. Essas altíssimas questões,
alumia-as todas a verdade primordial do fim últi- mo que Deus
quer, e o homem deve querer por igual.
Não é de estranhar se o desprezo desta verdade e
desta lei acarreta castigo divinos. Quem os não entreverá nesta
im- potência persistente dos governos lidando, esforçando-se
por estabelecer a Paz entre as nações? Arredam Deus, a
Igreja e o Sumo Pontífice. O resultado não pode ser outro:
querendo eles edificar sem Deus, Deus deixa que edifiquem.
Não há base, rui o edifício fragorosamente. É fatal.
44. Então será preciso, custe o que custar,
con- vencer os homens da dependência de
qualquer sociedade para com Deus e Jesus
Cristo, e da Missão da Igreja?
É isso mesmo. Existe um aforismo muito conhecido que
reza: “De dois males, deve escolher o menor”. Ora, é certo que
é maior o mal resultante do silêncio dos que têm obriga- ção de
ensinar. Maior e mais prejudicial do que todos os ou- tros
males. Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, neste particular deu
ordens claras e terminantes: em tratando-se de espalhar no
mundo a Verdade divina, se for necessário sofrer a persegui-
ção e os tormentos, não há hesitar. Antes o próprio martírio do
que a covardia, o amesquinhamento das verdades necessárias
à salvação.
SÉTIMA LIÇÃO
Erro fundamental dos tempos presentes

45. Qual será, no tocante a estes assuntos, o


erro mais prejudicial, mais nefasto?
O erro hodierno, pejado de consequências altamente
lastimáveis, consiste em dizer que não há, nem pode haver,
quer para o indivíduo, quer para as sociedades, nenhuma ver-
dade absoluta, isto é, imposta e preexistente. Logo, nem por
direito, nem de fato, não haveria, nem poderia haver o que se
chamasse verdade ou o que se chamasse erro. O resultado,
per- feitamente lógico e inelutável, é que o bem, o mal, a justiça
ou a injustiça, isso tudo não existe. As mesmas regalias, as
mes- mas licenças pertenceriam, por igual, ao erro como à
verdade, ao bem como ao mal.
46. O que vem a ser as tais regalias, as tais
prerro- gativas ou licenças concedidas ao erro?
Quem não as vê? O contágio já levou o mal a toda
parte. Não há organismo social político, e em especial não há
constituição oficial das nações que não adote na prática, como
fundamento, a famigerada “Declaração dos Direitos do ho-
mem” da revolução francesa de 1789. Aí são absolutos esses
direitos. O homem é soberano. Tudo depende dele, tudo é feito
por ele, inclusive a própria Verdade.
47. Qual será o alcance dessa Declaração dos
Di- reitos do homem no ponto de vista social
mo- derno?
É fácil compreendê-lo. Outrora, o centro, como o
princípio e o fim de qualquer organismo social, e também de
qualquer indivíduo, era Deus, era Jesus Cristo, era a Igreja, de
acordo com as sacratíssimas exigências dos Direitos divinos.
Deitaram abaixo estas doutrinas. Suprimiram Deus, sem mais
nem menos. E no lugar dele puseram o homem. De forma que,
hoje em dia, onde imperava, e sempre devera imperar Deus, aí
está o homem, a querer, com seus pensamentos e sua
vontade, substituir o pensamento de Deus, a Verdade divina, a
vontade e a lei de Deus.
48. Como é que se apresentam aos olhos
do vulgo estas reformas?
Vêm com termos bombásticos, pomposos, destina- dos
a impressionar e entusiasmar as multidões ignorantes ou
simplistas. São as grandes liberdades modernas, que todos os
países timbram em ostentar para base de sua Magna Carta.
Liberdade de consciência, liberdade da imprensa, liberdade de
associação, liberdade dos cultos. Hão de ter um freio essas
liberdades. É natural. Mas o único freio é a lei, a qual será ape-
nas a expressão da vontade geral.
49. Que significação terão essas palavras
bonitas, essas liberdades todas? Não indicam
que nada no mundo pode tolher ao homem a
prática da virtude?
Também isso poderiam indicar. E era mesmo a única
significação legítima. Infelizmente, não acontece. A realidade é
outra. E muito outro é o uso que o liberalismo moderno tem
feito dessas grandes liberdades. Na interpretação atual, adota-
da por todos em todo lugar, o homem tem o direito de viver
como bem entende, e de ensinar o que quiser; o direito de es-
crever qualquer coisa e de publicá-la; o direito de associar-se a
outros, seja qual for o fim a alcançar, bom ou ruim. Final-
mente, cada um pode prestar culto a quem lhe agradar, seja a
Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Maomé, ou mesmo ao
Demônio, querendo.
50. Que relação existe entre estas aplicações
das liberdades modernas e o erro fundamental
an- teriormente assinalado?
A relação é patente. Na opinião das sociedades e das
nações contemporâneas, e também do homem adepto dos
princípios da revolução, não existe mais verdade alguma. O
que existe é pura e simplesmente o homem, isto é, o pen-
samento e a vontade do homem. Uma qualquer pessoa terá o
direito absoluto de conceber e alimentar as ideias que lhe
aprouver e de adotá-las como normas de conduta. Isto prova
de sobejo que a única realidade existente para o homem, da
qual haja de fazer caso, são apenas as suas próprias elucubra-
ções, o que ele mesmo houver por bem imaginar e arquitetar.
Fora de si, não há verdades. E daí pode cada um, logicamente,
doutrinar à vontade, pela palavra ou por seus escritos.
Outro corolário dessas teorias, é que nada valem as
leis, senão tanto quanto traduzem a vontade geral, ma-
nifestada pela escolha, eleição e sufrágio popular; mas não
porque exprimissem a Verdade e a Vontade divina.
Em resumo, não reconhece o Direito moderno nenhu- ma
verdade; regula-se exclusivamente pelo pensamento huma- no.

51. Será mesmo tão grande, tão


preponderante, a influência da “Declaração dos
Direitos do ho- mem” sobre a mentalidade
contemporânea, e sobre os erros modernos?
Não padece dúvida. Desde que ao homem se atribui o
direito de pensar o que quer, não se pode negar que lhe seja
lícito por igual fazer o que julgar bom, e proceder como en-
tende. Só enxerga a si próprio, a sua própria pessoa endeusa-
da, independente de toda autoridade e de toda verdade.
Tal pressuposto acoberta e legitima os piores des-
varios em todos os ramos da atividade humana. Trate-se de
filosofia, de teologia, de política, de matérias econômicas
e sociais, não importa: a inspiração, o guia, o propulsor, se- rão
sempre os pensamentos, as fantasias do homem.
E é mais nefasta, e excepcionalmente grave, esta pre-
tensão, porque são direitos oficialmente promulgados e procla-
mados como rigorosamente pertencentes ao homem. Qualquer
pensamento, palavra ou ato que os tome por base hão de ser
impreterivelmente, necessariamente lícitos.
52. Mas não haverá também na
“Declaração dos Direitos do homem” limites que
reprimam a possíveis desmandos e abusos?
Certo que há. Segundo aqueles Princípios, os Di- reitos
de uma pessoa são extremados pelos Direitos de ou- tra
pessoa. Assim, o direito que tenho de tirar o bem do meu
vizinho é cerceado pelo direito que ele tem de con- servar o que
possui. O direito que tenho de matar o próxi- mo vai de
encontro ao direito de existência que lhe assiste. Tais restrições
vêm estudadas e formuladas nos códigos.
Porém, são ilógicas. Se forem, por princípio, ab- solutos
os meus direitos, ninguém lhes há de por li- mites, de
qualquer natureza. Pode a legislação sofis- mar quanto
quiser, e amontoar textos, sempre há de contra ela
prevalecer o dogma intangível e basilar da li- berdade sem freio
e dos diretos inalienáveis do homem.
Quem não vê a desenvoltura com que hão de campear
as doutrinas mais heterogêneas, mais estrambóticas e absur-
das?! Às escâncaras, sob o broquel dos famosos Direitos do
homem, podem apregoar-se erros grosseiros e perniciosos,
funestíssimos a todos os organismos sociais, valendo-se, con-
tudo, da proteção da autoridade, porque o papel desta já não é
amparar e defender a Verdade, e sim defender e amparar o
pensamento do homem.
53. Mas combater tais ideias
universalmente ad- mitidas não será atacar, na
sua base, o direito moderno?
De fato é. O dever do católico, hoje em dia, é dar com-
bate sem tréguas a esses falsos princípios do direito moderno.
54. Como podeis dar uma noção exata do
Direito moderno?
De modo facílimo. Repetindo as palavras do Papa Leão
XIII na sua belíssima Encíclica Immortale Dei.
“Porque sejam de mesma raça e mesma natureza, são
semelhantes todos os homens, e por este fato iguais entre si
na prática da existência. Cada um só depende de si próprio, a
tal ponto que não admite superioridade de quem quer que
seja. Goza de liberdade plena e máxima para pensar o que
quiser, sobre qualquer assunto, para fazer o que lhe agra- dar.
Ninguém pode dar ordens aos outros. Numa sociedade que
repousa nestas bases, a autoridade pública é meramen- te a
vontade do povo, o qual, senhor de si próprio, é único que
fabrique leis e mandamentos para seu uso. Escolhe de-
legados, mas não é bem um direito que lhes concede; an-
tes, é uma função para em nome dele exercer o poder.
É silenciada a soberania de Deus, exatamen- te
como se este não existisse, ou nada tivesse com a mar- cha
da sociedade do gênero humano; ou ainda, como se os
homens, quer individualmente, quer associados, coi- sa
alguma devessem ao Criador, ou fosse possível imagi- nar-se
autoridade qualquer, com sua causa, sua força e poder, não
dimanando inteiramente do mesmo Deus.
Desta forma, bem se vê, não passa o Estado de um gru-
po, senhor de seus destinos, regendo-se a si próprio. E de ser
tido o povo como fonte e origem de todos os direitos e toda a
autoridade, resulta que o Estado se julga isento de obrigações
para com Deus, professa não ter nenhuma religião, não indaga
da única que seja verdadeira entre todas, e crê que não deve
preferir esta nem aquela, que não deve favorecer particular-
mente nenhuma, senão atribuir a todas a igualdade de direitos,
obstando tão somente a que perturbem a ordem pública.
Em consequência disso, cada um gozará de ple- nos
poderes para julgar qualquer controvérsia religiosa, para
seguir o credo que melhor lhe convier, ou mesmo ne- nhum se
quiser, se nenhum lhe agradar. Daí decorre, neces-
sariamente, a liberdade desenfreada das consciências, a
liberdade total de adorar ou não adorar a Deus, a licença sem
limites de pensar e de publicar o que se pensa”.
Em suma, segundo Leão XIII, os princí- pios
do Direito moderno são: 1º Todo o poder e toda a
autoridade provêm do homem; é a primeira conse- quência
da Declaração dos Direitos do Homem;
2º Este poder manifesta-se pelo reconhecimen- to
da liberdade mais absoluta logo posta por obras. Des- de
que o homem possui todos os direitos não sofrerá ne- nhum
constrangimento, não aceitará nenhuma obrigação;
3º Já que o direito de um homem pode prejudicar o
direito de outro homem, a legislação moderna restringe o uso
da liberdade total: meu direito extrema-se nos confins do di-
reito alheio. Ainda que ilógica, esta harmonização é indispen-
sável. Do contrário surgiriam conflitos e haveria fatalmente
desordem. Qualquer sociedade que se queira organizar preci-
sa de estatutos e códigos. Entretanto, essas constituições não
consultam Deus, Jesus Cristo Nosso Senhor ou a Lei eterna,
nada. Consultam apenas a vontade geral dos membros perten-
centes a tal sociedade. Os indivíduos enviam um delegado in-
cumbido de exprimir a vontade deles no parlamento.
A Legislação vem a ser, portanto, o conjunto das von-
tades da multidão, ou a resultante dos direitos do homem.
Atentemos num ponto de importância suma: a vonta- de
geral, que não presta contas a ninguém, poderá promulgar
decretos abusivos, contrários à moral e ao bom senso. Não faz
mal. Tornar-se-ão obrigatórios tais decretos, porque é a lei,
quer dizer, a expressão da vontade geral.
55. Será grande a diferença entre o Direito
Moder- no e o Direito Católico baseado nos
Direitos
Divinos?
É muito grande, sim. É completa. São diametral- mente
opostos. O fundamento do Direito Moderno é o ho- mem. O
fundamento do Direito Católico é Deus. Consi- dera o Direito
Católico o fim supremo e último da criatura. O Direito
Moderno considera o homem como sendo, para si mesmo, o
fim supremo. O primeiro cuidado do Direi- to Católico é
respeitar a dependência absoluta de qualquer criatura para
com Deus, e especialmente a dependência para com Deus
de todas as sociedades e todos os Estados. Quanto ao
Direito Moderno, assenta a união das vontades que constitui
a sociedade na vontade de cada
um dos membros, à revelia de toda a vontade divina.
O Direito Católico procura, por meio da organização das
leis, o reino de Deus sobre os indivíduos e as sociedades.
O Direito Moderno oficializa, e põe por obras, a negação
da Verdade católica e de toda a Verdade divina. É o
reconhecimento legal, autorizado por direito, do lai- cismo, do
ateísmo, e até de toda a qualidade de erros.
Em suma, o Direito Católico é o Direito, é a autori- dade
e o poder que resultam do Direito, postos a serviço da única
Verdade que salva os indivíduos e os povos.
O Direito Moderno é o Direito, é a autoridade e o poder
que resultam do Direito postos a serviço do homem para
rebaixá-lo, jurídica e legitimamente, ao nível de ídolo, isto é,
falso princípio e fim suposto de todas as coisas.
Quem desejar inteirar-se do descalabro medonho e dos
estragos tremendos produzidos pelo Direito Moderno, bastar-
-lhe-á fazer o estudo comparativo da Vida dos Povos de Cons-
tituições vazadas nos ditos Princípios modernos, e dos povos
cuja Constituição se molda nos Princípios católicos.
56. Não haverá outra interpretação do
liberalismo, mais certa e aceitável?
Esta palavrateve, com efeito, aplicações ou-
tras. Aí vão, em resumo, os dois aspectos principais.
Há o liberalismo de que se falou anteriormente. Con-
cede direitos ao Erro e ao Mal, em perfeita igualdade com os
que concede à Verdade e ao Bem. É fonte e raiz de to- dos
os destemperos, de todos os desvarios e desordens.
Há, em segundo lugar, um liberalismo menos audaz,
mais disfarçado. Chega a denominar-se liberalismo católico:
estranho disparate e aberração indigna. São igualmente de-
sastradas as suas consequências. Não afirma este liberalismo
que o Erro e o Mal possuem direitos. Mas não o nega. Antes,
na prática, acha melhor e muito de acordo com o espírito de
tolerância e caridade cristã que se vá vivendo em meio dos
erros modernos, e na companhia de quem os professa, exa-
tamente como se esses erros tivessem direitos. Pretende que
todos têm suas opiniões, e que não é lícito incomodar quem
quer que seja por causa disso. Ficam equiparados, desta
forma, na prática, o Erro e a Verdade, o Bem e o Mal.
É fácil prever em que vai dar este ensino perverso, que
prescreve o respeito não só para os adeptos do erro, senão
para o próprio erro condenado por Deus.
57. Não será mesmo preferível seguir esta
linha?
Absolutamente. Dois motivos fortes militam contra o
tal liberalismo chamado liberalismo católico.
1º Ele arrebata a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo a
glória que lhes cabe na Ordem Social. Deus e seu Cristo
devem, com efeito, imperar na Ordem Social. Ora, com as teo-
rias do chamado liberalismo católico, não será jamais Deus
conhecido, amado e glorificado como cumpria que o fosse.
2º Apresenta perigo iminente das almas perderem-
-se numa atmosfera viciada pelos princípios do Libera- lismo
chamado católico. O Catolicismo deve, por essên- cia,
expandir-se e educar. Se não se expande, não educa segundo
o Espírito de Cristo. Constitui-se então um ambien- te, um
meio, que se torna em breve acatólico, e mesmo ateu.
Assim é que o tal liberalismo católico provoca a perda de
um número incalculável de almas.
OITAVA LIÇÃO
Direitos intangíveis da Verdade e do Bem

sofia.

58. Será que unicamente a Verdade e o Bem têm


direitos?
Afirmativamente.
59. Qual é a base desta afirmação?
Tem para alicerces os ensinos da teologia e os da filo-

60. Quais são os ensinos da filosofia?


Não possui o nada direito algum, desde que não existe.

Como podia o que não existe possuir direitos? Quem concede


direitos ao nada, comete, portanto, uma injustiça, pratica uma
impostura. Ora, conceder direitos ao erro, que vem a ser? É con-
cedê-los ao nada, nem mais nem menos. Basta, para entender
isto, refletir na significação destas palavras: Verdade e Erro.
A Verdade está na inteligência, na medida em que esta
reproduz exatamente uma realidade existente. Quando a inte-
ligência reproduz em si, espiritualmente, uma coisa que não
existe, é o erro. E que sucede, neste caso? Trago na mente a
ideia de uma coisa, como se ela existisse. Concedo-lhe o direito
de ocupar um lugar no meu espírito, como se ela existisse. De
fato, não existe. E não existindo, não passa de uma imaginação
do meu próprio espírito. Sem nenhum fundamento. Hei de dar
então, aos meus atos, à minha vida, este alicerce irreal, fictício,
de fantasia? Quais serão as consequências de tamanho
despro- pósito? Acontecerá, é claro, o mesmo que aconteceria
com todo edifício que se procurasse construir sem fundamento.
Eu dou à minha vida, e à minha ação social para base a minha
própria ideia que nada representa de objetivo e real;
necessariamente,
todo o edifício intelectual e social que eu construir alicerçado
nesta ideia destina-se a ruir cedo ou tarde com estrondo.
Uma ação proveitosa, uma vida útil, exi- gem
essencialmente a base de uma realidade posi- tiva. E é
por isso que a Verdade, tão somente, é que tem direito à
existência, na ordem individual e social.
Não há nenhuma consideração que autorize o erro a
pleitear os mesmos direitos. E caso vingue esta pretensão abu-
siva do erro, e ele entre e tome posse de uma inteligência ou
das multidões, é só usurpando, praticando injustiça clamorosa.
61. Quais são os ensinos da teologia?
A teologia argumenta com a Revelação feita ao mundo
por Nosso Senhor Jesus Cristo. Veio com efeito o Salvador à
terra para remir o universo, e cada indivíduo em particular.
Para este fim, comunicou aos homens a Verdade. Pertence a
Ele esta Verdade por direito divino, e mais por virtude da Obra
Redentora que Ele realizou. Sendo dele esta Verdade, e por Ele
oferecida ao mundo, para um fim claro e bem determinado,
quem a tolhe, quem a embarga, ou a destrói, ou a diminui, é
culpado de injustiça. Ofende os direitos de Jesus Cristo.
62. Se fosse assim, só haveria lugar para a
Verda- de. E a celebérrima distinção entre a
tese e a hipótese?
Está muito certo que não pode haver lugar de
direito senão para a Verdade e para o Bem.
Quanto à distinção entre a tese e a hipótese, é preciso
que seja bem entendida. Nem sempre o foi, de modo que essas
teorias, mal interpretadas, acarretaram a perda de muitas al-
mas.

63. Mas não teve aprovação da Igreja esta


distin- ção?
Não teve. É um raciocínio sutil, inventado por certos
teólogos. Lançaram mão deste recurso para por à vontade e
sossegar as consciências, ou, como se diz vulgarmente, para
sair de apuros.
64. Que distinção será essa e que uso fazem
dela?
Tese chamam a situação que ocupariam a Verdade e o
Bem, estando no pleno gozo de todos os seus direitos. Por exem-
plo, a Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo e a Igreja,
desempenham, entre os povos e as nações, o papel que lhes
cabe legitimamente: é o estado de tese. Neste caso, vamos
vivendo praticamente sob o Reinado de Jesus Cristo e da sua
Igreja.
Talsituação,porém,poucoseencontra.Oquesevê,defato,
não é isso, não. É sim Jesus Cristo desprezado ou desconhecido
pelas sociedades. É a Verdade e o Bem espezinhados,
esbulhados das prerrogativas que lhes pertencem. Esta é a
situação de fato. Pior ainda. O Mundo e os Estados andam
comple- tamente desnorteados, tontos, transviados. A ponto
que fora utopia cuidar em devolver, praticamente, à Verda-
de e ao Bem, o que fora de justiça rigorosa. E é a isso que
se denomina estado de hipótese, quer dizer a inferioridade
em que nos achamos, diante da força — força não raro or-
ganizada — dos inimigos de Jesus Cristo e da Igreja.
Que se há de fazer nestas condições?
Nunca será lícito a ninguém desamparar a Verdade e
o Bem. Nunca será permitido a ninguém renegar Deus e a
Igreja. O que se impõe é a tolerância das aberrações que não
têm remédio de eficácia imediata. Dizemos bem tolerân- cia.
Tolerar não é concordar, e muito menos aprovar.
Logo, quando as circunstâncias exigirem esta paciên-
cia, será preciso guardar viva, no fundo da alma, a vontade
inabalável de restituir quanto antes à Verdade e ao Bem os seus
direitos. Será preciso mais, trabalhar com afinco, aproveitan-
do para a boa causa da liberdade concedida indevidamente a
todos. Promover, em especial, a difusão dos sãos princípios a
favor da Verdade, restabelecendo assim, aos poucos, o estado
de tese.

65. Que interpretação falsa se fez desta


distinção?
É a seguinte. Não poucos católicos valeram-se des- sas
teorias para se furtar ao cumprimento das suas obri- gações.
Diziam, simplesmente, resignados: “O nosso es- tado é o da
hipótese”. E nada fazem para modificar esse estado e voltar
ao da tese. É o primeiro desvario, consequên- cia funesta de
princípios certos, porém mal interpretados. Há outro,
resultado do precedente. Assim tranqui- lizadas as
consciências, paralisadas e entorpecidas as ati- vidades que
houveram de lutar, reina o marasmo, a apatia, o torpor, criando
um ambiente social de sossego ilusório, de paz aparente e
esterilizadora. Insinua-se, infiltra-se, e de tão natural a
respiração nesta atmosfera deletéria vai-
-se instilando nas almas o veneno sem provocar a mínima
repulsão, com a inconsciência mais completa e fatal.
Alerta, católicos! É preciso reagir, custe o que custar! Re-
vigorar as palavras de Jesus Cristo: “Sim, sim, não, não”. Estes
preceitos do Divino Mestre só os compreende e os observa quem
adere franca e lealmente, sem reserva, aos únicos princípios da
Verdade que devem orientar para Deus a Ordem Social.
Conclua-se. No caso da distinção de tese e hipótese,
arrefecer o zelo apostólico, diminuir as conquistas e a eficácia
educadora da Igreja entre os povos, é um obstáculo que deve
ser afastado. Porque, do contrário, deixariam de progredir na
virtude e santificar-se as almas. Cairiam na tibieza, e finalmen-
te na indiferença prática.
66. Como se esclarece a seguinte dúvida: no
estado de hipótese será tolerado o erro.
Combatido, mas tolerado. Chegando o estado
de tese, não haveria mais essa tolerância. Não
é de recear então a tirania entronizada, sob o
rótulo de So- berano Domínio de Deus e
Realeza de Cristo?
É isto mesmo que falam os incréus. Não enrubescem,
gritando aos católicos: “quando sois os mestres, os donos e
detentores do poder, tendes exigências exorbitantes; ousa- reis
tudo contra nós. E quando não o sois, reclamais com in-
sistência esta mesma liberdade que negais aos outros”.
O argumento é falaz. Quem quiser aferir com justiça e
isenção de ânimo, há de ter presentes as rea- lidades
supremas. E são estas: 1º o homem está nes- te
mundo para salvar a alma; 2º apresenta-se-lhe a alternativa,
inapelável e temerosa, de uma eternidade fe- liz, e de uma
eternidade desgraçada. Não há outra saída.
Ora, conhecemos os requisitos impostos pela sabe-
doria divina. Para ser salvo, precisa o homem morrer em es-
tado de graça. E não há maior barbaridade, maior monstruo-
sidade, do que facilitar a ele os meios de transviar-se. Por
outra, a caridade mais assinalada, o amor mais puro, consis-
tirá em auxiliá-lo a conquistar a Eterna Bem-aventurança. Que
fazem as modernas Constituições dos Povos a este respeito?
Autorizam e legitimam, quando não as exaltam, to- das as
perversões do espírito e do coração, e desta maneira
franqueiam às almas, e apontam, os caminhos do inferno.
Lembrados esses fatos indubi veis, eis
como se soluciona a questão.
1º Não padece dúvidas. Cabendo-nos, a nós Católicos,
as responsabilidades do mando, tudo faríamos, como tudo
fazemos na hora presente, e sempre faremos tudo, para que
não se perca uma só alma!
2º Nem por isso havíamos de confundir jamais Or- dem
Social com Ordem Individual. Na ordem estritamente individual,
não imporíamos jugo nenhum às consciências. Querendo
alguém, para nosso desagrado, e apesar de tudo, perder-se,
afinal, é conta dele. Logo, quem se rebelasse per- tinazmente
contra Cristo e sua Igreja, nós o deixaríamos en- tregue às
decisões da própria consciência, conquanto não desse
escândalo. Nenhum escândalo, entenda-se bem. Porque não
poderia a autoridade permitir que a doença de um indi-
víduo contagiasse e prejudicasse uma sociedade ou um país
inteiro, nem mesmo o bem particular de uma única alma.
3º É por isso que usaríamos da nossa autoridade para
impossibilitar a propagação do erro. E neste sentido, havería-
mos de modificar nos Códigos e nas Cartas Magnas das Na-
ções o absolutismo exagerado e nefasto das grandes
liberdades modernas.
NONA LIÇÃO
O pecado do liberalismo: pecado da Europa e do
Mundo

67. Será pecado o liberalismo?


É pecado, certamente. Nos casos concretos podem apa-
recer atenuantes: ignorância, intenções boas, o exemplo geral,
etc. Que diminuam a responsabilidade, mas em si mesmo, o
liberalismo é pecado grave, pecado do espírito.
68. Que ideia devemos fazer deste
pecado do es- pírito?
O pecado do Liberalismo inflige a Deus a su- prema
injúria. É a substituição de Deus pelo ho- mem, como
ressalta da Declaração dos Direitos do homem, e das
liberdades que esta Declaração postula.
Vejamos como se deram os fatos.
Segundo os princípios do Direito moderno, é só o
homem que pode e deve ocupar o lugar que houvera de ser
reservado a Deus, justamente porque Deus é Deus.
Deus, quer dizer Criador e Dono absoluto. Isto é da
própria essência das coisas. Deus da consciência indi- vidual,
Deus da Sociedade, das nações e do Universo.
Suprime-se, e lá vai a fazer as vezes dele, em- possado
pelo espírito humano, o homem e o pensa- mento do
homem, substituindo Deus, isto é, deifica- do. Dono
absoluto dos seus próprios destinos, pessoais, familiares e
sociais, nacionais, internacionais e mundiais.
O homem agora é o mestre. Assim o proclamou.
Julgando ele com a sua sabedoria soberana que seja bom
admitir na prática da vida isto que ele acha ser “Deus”, o
“Cristo”, a “Igreja”, está bem. Ninguém o molestará por
isso, porque ele é dono da sua consciência. Quanto a intro-
duzir nas sociedades e nos Estados este mesmo Deus e a
sua Igreja, seguir-se-ão as mesmas normas: se quiser.
Desde que o homem ocupa oficialmente o lugar de
Deus, quem quiser, porventura, devolver a Deus o posto de-
vido, tornar-se, por isso mesmo, adversário e inimigo do
homem, chefe do Universo e diretor da Ordem Social.
Deus é tratado de usurpador. A igreja, de usurpadora.
Todo o esforço que a Igreja fizer para cumprir sua missão na
Ordem Social será fatalmente taxado de ambição clerical. Di-
zem que é necessária a laicização completa e universal.
O indivíduo é laicizado. Conhecer-se-á nele so- mente a
grandeza humana, isto é, um conjunto de princí- pios naturais
de compaixão, de justiça, de bondade, etc.
Qualquer instituição pública é laicizada. Estados, cons-
tituição e legislação dos povos, governos, parlamentos, senados,
qualquer organismo oficial, qualquer repartição nacional, e até
estabelecimentoparticularqueentreemrelaçãocomautoridades,
deve prescindir, em absoluto, de Deus. Fique só o homem.
Nenhuma referência ao sobrenatural. É coisa que não
deve existir. A Igreja, caso não morra, conservada por vontades
isoladas, seja, quando muito, uma associação particular, sem ne-
nhum valor público. No ponto de vista social, gozará apenas dos
favores e privilégios que lhe outorgar o homem. Se os ministros
forem pessoas católicas, receberá talvez a Igreja um tratamento
mais apropriado com sua missão, mas será isto condescendên-
cia, favor, que o homem, por direito, pode conceder ou negar.
Vai nisto suprema injúria, insigne desfaçatez, porque despojam
dos seus direitos absolutos o próprio Criador. É loucura
inqualificável, e cinismo sem par, porque depois do
roubo censuram a Deus de usurpador.
69. Como é que as liberdades modernas
chegam a esta conclusão fatal?
Aqui está a fonte: a única verdade admitida é a existência
do homem e do que ele pensar. Portanto, não há sociedade, nem
Estado, que adote tais princípios, e seja capaz de reconhecer
e professar coisa nenhuma, de reconhecer e professar nenhum
culto. É a consequência lógica das grandes liberdades moder-
nas. Vamos a um exemplo. E seja a liberdade de ensino. Tal
professor emite os seguintes conceitos:“Deus existe” — “Jesus
Cristo é Deus” — “A Igreja Católica é obra divina”. Pois bem, o
Estado nada tem que objetar: seus princípios o proíbem.
Vem outro mestre, e diz aos seus discípulos o con-
trário: “Deus não existe” — “Jesus Cristo nem existiu, ou foi
um visionário” — “A Igreja é uma grandíssima burla”. Pois
bem, o Estado nada tem que objetar tampouco. Não lhe é
lícito. Deixa falar. Ou por outra, o Estado não ade- re nem
a isto nem a aquilo. A nada atribui o caráter de ver- dade. Está
obrigado a proteger ambos esses ensinamentos contraditórios.
A Constituição moderna assim manda.
Verdade aceita, neste ponto, é uma só: todo o mun- do
tem liberdade de ensinar. Deduz-se, em boa lógica, que o
Estado moderno é necessariamente ateu e livre pensa- dor,
porque as constituições são isso mesmo, ou mais exa-
tamente, porque desconhecem a Deus e à verdade, o que na
prática quer dizer que são contra Deus e contra a verdade.
Sim, porque achando-se o Estado moderno em pre-
sença de uma proposição certa, real, indubitável, como esta,
primordial: Deus é — que dirá e que fará, para permanecer fiel
a suas teorias? Está obrigado a ignorar que esta cláusu- la:
Deus é, encerra a verdade. Está obrigado a recusar a sua
adesão. Se concordasse, reconheceria a verdade, e mos-
traria que quer segui-la. Não pode nem uma coisa nem ou- tra.
Deve ter idêntico procedimento perante esses dois ensi- nos
antagônicos: “Deus existe” e “Deus não existe”. No ponto de
vista social, o Estado moderno deve ignorar se há uma
verdade. Deve impedir que entre nos seus domínios qualquer
ensino com foros de verdade. Porque esta intro- missão da
verdade constituiria uma superioridade, ofensiva e lesiva do
Estado e da Constituição. Seria um abuso.
Têm obrigação os Estados e as Constituições dos Po-
vos de combater a influência da verdade, de tolher-lhe os ca-
minhos, de embargar-lhe o passo. Isto porque eles são decla-
radamente ignorantes da verdade, ateus, inimigos de qualquer
princípio que lhes tirasse a livre escolha dos seus destinos, ini-
migos, portanto, na prática, de Deus, de Cristo e da Igreja.
Por outro lado, a todo o pensamento, que for unicamente
pensamento de homem, não pode ser vedado o propagar-se.
Terá o amparo do Estado. O motivo é peremptório. O Estado
conhe- ce o homem, só. O pensamento humano, qualquer
elucubração, provém do cérebro: pode-se ensinar sem perigo,
pois assim não se introduz na sociedade nada que seja superior
ao homem.
As teses: “Deus existe”, “É divina a Igreja Cató- lica”,
podem ser professadas, por direito, mas não porque são a
expressão da verdade objetiva, só porque súditos do Estado,
cidadãos há que julgam úteis essas ideias, e de van- tagem
particular ou pública. Os pensamentos: “Deus não existe”, “A
Igreja católica é uma impostura”, possuem exa- tamente os
mesmíssimos direitos de serem ensinados.
Vale este raciocínio para o roubo, a imoralidade, o as-
sassinato. Na verdade, se a legislação prende, condena e fere
o desgraçado que chega a praticar esses crimes, é porque
esta legislação desmente e renega os próprios princípios; mas
não condena, nem proíbe, o ensino que leva a tais desmandos.
Numa palavra, o Estado professa, por seus súditos, os pensa-
mentos dos seus súditos. E não pode ser de outra forma, por-
que conhece somente o homem, e o que for do homem.
Assim é que os Princípios e o Direi-
to Modernos vêm a ser, fatalmente, uma injusti- ça
pavorosa, e vil injúria contra Deus.
Eis como se exprime Leão XIII numa
carta ao Arcebispo de Bogotá.
“Em tratando-se da linha que devem seguir os cató-
licos, relativamente à constituição dos poderes da nação, há
opiniões divergentes, discussões azedas, degenerando em
discórdias violentas. Causa disso são interpretações errô-
neas da doutrina católica a respeito do liberalismo”.
O Sumo Pontífice demonstra que a essência, o cerne
do liberalismo, é a eliminação, a exclusão da lei divina.
“O que os adeptos do naturalismo, ou do racionalis-
mo, querem na filosofia, isto mesmo querem os liberais na or-
dem moral e civil. E para o conseguir impõem, na prática da
vida, as normas apregoadas pelo naturalismo. Ora, o núcleo e
fonte de todo racionalismo é a soberania da razão humana. A
razão humana recusa a obediência devida à razão divina e
eterna. Pretende ser independente, e considera-se a si própria
como origem, causa e árbitro da verdade. São estas as teorias
dos que se chamam liberais. Na opinião deles, não existe po-
der divino que lhes mereça atenção e submissão na prática da
vida. A consciência de cada um é que faz a lei. Daí, se deriva
esta moral de nova espécie, independente, sob a capa e apa-
rências da liberdade, desviando da observância dos preceitos
divinos as vontades, e outorgando, de fato, ao homem, uma li-
cença sem limites. É o primeiro grau do liberalismo. É o mais
nocivo. Por um lado rejeita, ou antes, aniquila completamente
qualquer autoridade e qualquer lei divina, natural ou sobre-
natural. Por outro lado, afirma que a organização da socieda-
de depende da vontade de cada um, e que o poder soberano
decorre da multidão, como origem primitiva”.
70. Não haverá, neste proceder do
liberalismo, in- justiça para com o homem?
Uma resposta completa exigiria que se desenvolvesse o
dogma da Redenção, que se expusessem de novo os direi- tos
de Jesus Cristo sobre toda a inteligência e toda a vontade.
Exigiria que se manifestasse como o liberalismo, arrogando-se
direitos divinos incontestes, peca contra Nosso Senhor Jesus
Cristo.

Entretanto, há outro aspecto desta injustiça. Des- de


que Jesus Cristo, por sua Redenção, resgatou a cria- tura,
granjeando, assim, direitos autênticos sobre ela,
tais direitos, por Cristo, tornam-se direitos do homem.
Vejamos como se entende isto.
Uma coisa qualquer é indispensável para minha santi-
ficação e salvação. Por exemplo: que Jesus Cristo seja procla-
mado Rei do Universo e Rei das almas, teórica e praticamente.
É direito meu, porque Jesus Cristo o conquistou para mim, que
seja a sociedade colocada debaixo do seu governo. Tenho em
Jesus Cristo e por Jesus Cristo o direito que a sociedade seja
cristã e católica, que sejam católicos os Estados.
Disse-o Luiz Veuillot numa fra- se
imortal: “Os povos têm
direito a Jesus Cristo”. E
tanto mais sagrado, e mais acatado, deve ser tal direi-
to quanto não pertence ao homem, senão na medida em que o
próprio Jesus Cristo lho houver concedido.
71. Que mentalidade vão formando, na
prática, os princípios liberais nos espíritos?
A resultante direta do liberalismo é a anarquia ou a
tirania. A anarquia decorre do liberalismo como o efeito de-
corre da causa. É claríssimo. Cem vezes se repetiu: consoan-
te os códigos modernos, todos têm liberdade de imaginar o que
querem, e de viver de acordo com estas imaginações. Ora,
sendo assim, partido o freio da verdade objetiva, é pa- tente
que caminhamos de passos largos para a balbúrdia total, a
desordem completa do espírito e da atividade.
Caminhamos, é outro fato estabelecido, para a
anarquia, fruto do
liberalismo. Com efeito, querendo o
liberalismo pôr um paradeiro aos excessos do espíri- to, do
coração e das paixões, teve que firmar-se no sofis- ma da
vontade geral, e no artifício das leis de emergência.
Ora, pois que a lei, e só a lei, cria o direito, e esta lei
é apenas a expressão da vontade geral do povo, desde que
esse povo seja dirigido por um sujeito mau, ateu, imo- ral e
ímpio, teremos logo a tirania do governo.
Mandar-se-á em nome do povo; e em
nome deste mesmo povo serão impostas as injusti-
ças mais flagrantes, mais indignas e fantásticas.
Não são outros os corolários do liberalismo. São seus
filhos legítimos a anarquia e o sovietismo. O liberalismo des-
trói, pela base, toda a ordem em qualquer sociedade.
72. Que influência terão os Princípios
Modernos
na salvação das almas?
Outra consequência tristíssima do liberalismo vem ex-
pressa por Leão XIII nos seguintes termos: “É incalculável o
número de almas que se perdem por causa da atmosfera cria-
da entre os povos pelos princípios do Direito Moderno”.
Vede, por exemplo, o contágio pestilento que gras- sa
espantoso só com a liberdade da imprensa. Quantas e
quantas almas não se vão, pela enxurrada abaixo, com a
leitura dos maus jornais, das publicações imorais e ímpias,
que se alastram e pululam por toda a parte!
Quantas e quantas almas se metem nos ca-
minhos da perdição, em consequência do am-
paro de que gozam por direito quaisquer pro- duções
literárias, pseudocientíficas, artísticas e outras!
Quantas almas, eternamente condena-
das hoje, não o seriam, caso não houvesse existido
essa nefanda e malsinada liberdade da imprensa!
Outro tanto se po-
derá afirmar a respeito da liberdade do ensino.
Por que proliferam as doutrinas perversas, e encontram
semeadores criminosos, propagandistas satânicos, que torcem,
estragam e envenenam os espíritos inexperientes da mocidade
incauta? Por quê? Senão graças ao apoio benévolo dessa liber-
dade absoluta?
73. Não importam estas considerações
numa cen- sura nova contra essa distinção
entre a tese e a hipótese?
Pois não. Quem quiser apreciar devidamente os pre-
juízos que acarreta o liberalismo católico, deverá colocar-se na
posição que exemplificamos, refletir nas explicações que
aduzimos. Em assim verá que o liberalismo católico em nada
tolhe a corrida louca e desabalada para os abismos, enquanto
paralisa e anula qualquer reação salutar.
DÉCIMA LIÇÃO
Castigos enviados por Deus aos países e às
nações que abandonam o Senhor

74. Será que Deus castiga, neste mundo, as


nações
culpadas?
Não faz dúvida. Mas, é bem de ver que os tais católi-
cos, que timbram de liberais, negam esta intervenção da Provi-
dência contra os países culpados.
75. Que base têm os que professam a
expiação so- frida pelas sociedades neste
mundo?
Assim argumentam:
O indivíduo que cometer faltas poderá saldar, mesmo
nestavida, o seu débito. Mas se nãoofizeraquinaterrahádepagar
na eternidade. Deste modo, sempre ficará satisfeita a justiça: ou
no Purgatório, com pena temporal, ou no inferno, com padeci-
mentos eternos, conforme os pecados que tiver cometido.
As sociedades na eternidade são desmanchadas.
Não aparecem. Os vínculos dissolvem-se na morte. Logo,
a sanção que houverem merecido, só neste mundo poderá ser
aplicada. E não ofenderam a Deus? E não pecaram contra a
justiça? E não exige isto reparação?
Portanto, os países que renegaram ao Senhor hão de
sofrer, cá na terra, as consequências dos seus desvarios. Hão
de cá na terra expiar e reparar. É da Sabedoria Divina infligir
aos povos as sanções determinadas pelos desígnios eternos.
76. Que se deve entender com isso: sanções
deter-
minadas pelos desígnios eternos?
Quer dizer que, sendo culpados os países e
os povos, e qualquer sociedade, devem a Deus, se-
gundo a justiça rigorosa, reparação e expiação.
Quanto aos modos, qua- to à
qualidade dos castigos, o homem pou- co
entende das vias que escolhe a divina Providência.
Quando julgamos que isto ou aquilo merece puni- ção,
não quer dizer que o flagelo social cai logo da forma que
prevemos. Não. Também em Deus está a misericórdia, e está o
amor. E sua Sabedoria infinita sempre ministra o re- médio
adequado, que será medicina amargosa e salutar.
Não há castigo social enviado por Deus que não encerre
esta intenção misericordiosa de salvar as al- mas. O fim
de todo castigo social é este mesmo: espancar as trevas do
espírito e trazê-lo ao redil do Bom Pastor.
Por isso é que são falhas, muitas vezes ou
sempre, as previsões e as interpretações dos ho-
mens quanto aos castigos sociais que Deus inflige.
O que é certo, e só isto importa, é que Ele pode punir, e
de fato pune, sendo que para evitar o castigo tem de ser sub-
metida a Ele toda a Ordem Social.
77. Não serão confirmadas essas teorias por
ensi- nos emanados da autoridade
eclesiástica?
Pois não. Os Papas e os Bispos deram a conhe-
cer, de modo claro e insofismável, a sua opi- nião.
Na primeira encíclica de Pio XI, lemos:
“Muito antes que conflagrasse a Europa pela guerra, já
ia avultando a causa fatal de tamanhas desgraças, e eram as
culpas, tanto dos indivíduos como das nações, e é bem cer- to
que o próprio horror à carnificina houvera removido esta
causa fatal, e a houvera suprimido, caso tivessem podido ima-
ginar todos o alcance destes desastres medonhos... É porque
os homens, miseravelmente, voltaram as costas a Deus e a
Nosso Senhor Jesus Cristo, é por isso que eles foram preci-
pitados do Éden de sua ventura extinta para este báratro de
males. Pelo mesmo motivo, revelam-se improfícuos, estéreis,
ou quase, todos os planos que se arquitetam para ressarcir os
danos, e salvar o que ainda sobre de tanta ruína. Por haverem
sido Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo excluídos da legisla-
ção social e dos negócios públicos, vemos as leis, inermes,
desprovidas da garantia de sanções reais eficientes...”
Na sua alocução consistorial de 24 de dezembro de
1917, declara solenemente Bento XV: “Assim como o des-
regramento dos sentidos lançou um dia a um mar de fogo
cidades afamadas, assim hoje, a impiedade da vida pú-
blica, o ateísmo arvorado em sistema de pretensa civili-
zação, atiraram o mundo a um dilúvio de sangue...”
O mesmo Papa, na mesma alocução, diz mais: “Não
podem ter fim as calamidades da hora presente, enquanto não
vier outra vez para junto de Deus o gênero humano”.
Não é outra a linguagem de Leão XIII, de Pio
X, de Pio XI. Entre os Bispos, ressoa a voz do
Cardeal Mercier, em carta pastoral para sem- pre
memorável: A lição dos acontecimentos. Aí se lê:
“Cedo ou tarde, hão de ser vingados os crimes pú-
blicos...” E mais: “Certo é, Irmãos, que o desprezo do
descanso dominical, os abusos no matrimônio, ofendem
a Deus e provocam a sua ira. Mas o maior crime do mun- do,
não o duvideis, o crime que está se expiando agora, é a
apostasia oficial dos Estados e da opinião pública”.
Mais ainda: “Hoje em dia, vemos que os homens en-
carregados do governo dos povos são, todos, ou mostram-se,
com pouquíssimas exceções, oficialmente indiferentes para
Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo. Não quero culpar, é claro,
as personalidades respeitáveis que se conformam lealmente,
no intuito de evitar piores males, com a situação mesquinha a
eles imposta. Considero e julgo esta própria situação. E em
nome do Evangelho, na Luz das encíclicas dos quatro últimos
Papas, Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, Pio X, não trepido em
declarar que esta indiferença religiosa, igualando a fé de
origem divina com os credos mentirosos das invenções huma-
nas, envolvendo assim a todas no mesmo sudário do ceticis-
mo desprezador, é esta indiferença religiosa que é a blasfêmia
execrável a provocar, mais ainda que as faltas dos indivíduos
das famílias, contra a Sociedade, o castigo de Deus”.
78. Quais são as punições de Deus que ferem
as nações culpadas?
São muitas. São variadas. Basta que excitem a reflexão,
o arrependimento: assim servirão para a rea- lização dos
planos divinos. Guerras, epidemias, catás- trofes, qualquer
calamidade, e melhor ainda, as que forem de ordem
intelectual e moral: tudo pode impressio- nar as nações e
apontar-lhes o caminho da salvação.
No Evangelho vemos Jesus aludindo a todos es- tes
flagelos. Lamenta, sobretudo, a cegueira voluntária. Diz aos
Judeus: “Este povo não entenderá porque não pode
entender, e não pode entender porque não quer”.
Este oráculo tem aplicação ao castigo social. Nada mais
horrendo do que ser causador da própria desgraça, por falta de
compreensão. Os Judeus, censurados nisso por Jesus Cristo,
não compreendem que é Ele o Messias, Filho de Deus. Ora,
haveria para a nação judaica um meio único de salvação:
reconhecer e professar que Jesus Cristo é o Messias, que
Jesus Cristo é Deus. No entanto, teima o povo judaico nesta
vontade obstinada, de não entender que é esta a verdade. E
Deus, assim lhe fala: “Ó Povo, Povo meu, só te fica um meio
de Salva- ção: Jesus Cristo. Aceita-o, que senão estás
perdido”.
E o povo responde: “Não, se- nhor,
não quero entender isto”.
EDeuscontinua:“Nãoqueresentender?Estácerto.Seja .
Não entenderás. Há de ser, este mesmo, o teu castigo”.
É o que sucede na Sociedade Católica hodierna. Para
salvar a Ordem Social e os Povos, devem estes entender pri-
meiro que Jesus Cristo, só, é a Salvação. Ora, não querem en-
tender isto. Deus deixa que se aferrem nessa vontade rebelde
e cega. Não compreendem, não enxergam, nem podem mais
divisar em Jesus Cristo, só, a salvação. E ali está o castigo.
Este ponto de vista geral abran-
ge todos os outros, de caráter mais particular.
Não entendem que seja possível e necessá- rio
apagar dos Códigos da Ordem Social os tais princi- pais do
Direito Moderno, as grandes liberdades.
Não entendemque seja possívele
neces- sário refrear
e amordaçar a liberdade
de opinião. Não
entendem que
seja preci-
so lutar contra a invasão das doutrinas falsas, e
favorecer, exclusivamente, a verdade católica.
Uma quantidade de coisas eles não entendem. É o
castigo que fere as nações e as leva à ruína.
Leão XIII escreve em 1881: “É consequência fa- tal
da guerra movida à Igreja achar-se, atualmente, a so- ciedade
civil exposta aos perigos mais graves, porque es- tão
abalados os alicerces da Ordem pública, e os povos e seus
condutores nada mais avistam que não sejam amea- ças e
calamidades”. E ainda: “De todos os atentados co- metidos
contra a religião católica, já vieram, e hão de vir mais, sobre
as nações males atrozes em grande número”.
Já servem este documentos a respeito do importantíssi-
mo tópico dos castigos sociais.
79. Então, deve-se acreditar que por meio
dos acontecimentos, da balbúrdia, e do
descalabro social, Deus inflige penas às
nações.
É muito certo. Deus lança mão destes meios to- dos
para dar a entender ao homem que Ele, o Ser In- finito, o
Criador, não precisa de ninguém, absoluta- mente,
enquanto o homem não pode prescindir de Deus.
Desta forma, a marcha dos negócios de ordem econô-
mica contribuirá eficazmente a mostrar, pelos revezes e cata-
clismos que assolarem uma região, qual é o fim das riquezas na-
turais: adorar a providência e servir a Deus com amor: qual é o
valor e a utilidade moral do desapego destes bens efêmeros.
O papel da fortuna é realçar o culto e as homenagens da
sociedade para com Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo. Deve,
portanto, ser aproveitada esta fortuna para estabelecer e
conso- lidar a Realeza social de Jesus Cristo no universo
inteiro.
DÉCIMA PRIMEIRA LIÇÃO
Remédios para os males atuais

80. Quais são os remédios contra os


males enor- mes que flagelam o mundo inteiro,
e cada na- ção em particular?
Leão XIII é quem no-los apresenta, soberanos, radicais:
“Aí vai a solução do problema. Quando está depauperado um
organismo, e periga, é porque já não obedece às causas que
lhe haviam comunicado a própria forma e constituição. Para
sal- vá-lo, para fazê-lo, de novo, forte e vigoroso, urge restituir-
lhes o impulso vivificante dessas mesmas causas. Certíssimo.
Ora, a sociedade contemporânea, numa cabeçada
estulta, afastou-se de Deus, enjeitou a ordem sobrenatural e a
revelação divina. Furtou-se desta maneira ao influxo salu- tar
do Cristianismo, isto é, da garantia mais inabalável da ordem,
do liame mais inquebrantável da fraternidade, e do manancial
inesgotável das virtudes particulares e públicas... Desta
separação nasceu o distúrbio que lavra in-
tenso atualmente. Portanto, só regressando ao seio do
cristianismo é que esta sociedade tresmalhada pode recu-
perar, se quiser, o bem-estar, o sossego e a salvação”.
Em outro lugar, diz ainda o mesmo Papa: “Isto de vol- tar
aos princípios cristãos, pautando por eles a vida toda, os
costumes e as instituições dos povos, é uma necessidade que
se torna cada dia mais evidente. São tão pavorosos os males
resultantes do abandono desses princípios, que só um espírito
desvairado, um louco, deixaria de sentir uma ansiedade te-
merosa ao contemplar o que vai pelo mundo, e as medonhas
perspectivas do porvir”.
81. Quais serão os meios eficazes para a
aplicação
destes remédios?
Jesus Cristo, ao baixar à terra, Deus, ao confiar-lhe a
sua missão salvadora, tinham em mira a salvação dos povos no
decorrer de todos os séculos. É palavra do Divino Mestre: “Eis
que estarei convosco até à consumação dos séculos”.
Ora, quando nasceu Jesus Cristo em que situação jazia
o mundo?
Excetuando-se o povo judaico, estavam todos os demais
afundados no erro, na impiedade, na imoralidade, no paganis-
mo. Numa palavra, o gênero humano agonizava, vítima do pe-
cado. Estava perdido, o homem arruinado, devedor a Deus de
adoração, de amor, de reparação e reconhecimento, que podia
esperar senão os raios, as vinganças da justiça divina?
Como procede então Nosso Senhor?
Quer comunicar aos homens riquezas fabulo- sas
que os habilitem a saldar o seu débito para com Deus.
Ora, quem é, entre as criaturas, que possui tão
colossal fortuna? Jesus Homem, e mais ninguém.
Por isso, toma a responsabilidade inteira do pecado do
gênero humano, repara-o. E faculta ao homem os meios de
adorar, desagravar, agradecer e orar condignamente. Jesus é
fulminado por Deus. Mas a justiça está satisfeita, e o Mundo
está salvo. Ajoelhar-se-ão os povos aos pés de Jesus Cristo.
O imperador Constantino o reconhece, e com ele ve-
mos a Cruz tomando posse do tronos, e vemos Jesus Cristo,
Rei dos Povos, a reger o destino das nações como aos indiví-
duos.

Quem livrará das pragas hodiernas o universo? Nosso


Senhor Jesus Cristo somente, aplicando às nações como aos
indivíduos os merecimentos da sua Paixão e Morte.
82. Como se fará esta aplicação, segundo as
inten-
ções divinas?
Sabemo-lo pelas palavras do Apóstolo São Paulo, que
têm aqui todo o cabimento: “Adimpleo ea quae desuni Pas-
sionum Christi in carne mea, pro corpore suo quod est Eccle-
sia”— “Eu preencho, na minha carne, o que está faltando à
Paixão de Jesus Cristo. Preencho-o a favor do seu Corpo Mís-
tico que é a Igreja”. São sugestivas estas palavras do Grande
Apóstolo.

83. Mas então qual é o sentido exato


destas pala- vras? Será que não está completa
a Paixão de Jesus Cristo? Que lhe falta alguma
coisa?
Nada disso. Está completa. Completíssima. Jesus Cris-
to satisfez plenamente por todos os homens, passados,
presen- tes e futuros.
Não se contentou, assumindo a responsabilidade do pe-
cado individual dos homens. Não se contentou com a respon-
sabilidade do enorme pecado social, que já estudamos.
Tomou verdadeiramente sobre si o pecado da huma-
nidade, o pecado total. Conforme ensina São Paulo, Deus
considerou Jesus, feito pecado. “Eum qui non noverat pecca-
tum, pro nobis peccatum fecit”. Deus o constituiu, realmen- te,
pecado, em substituição da humanidade culpada. Fulmi- nou-o,
porque via nele o pecado de que fora revestido.
Pela Imolação e pelo Sacrifício, Jesus Cristo rematou a
obra Redentora. Mas, a vontade dele é unir a esta ação, a das
almas que quiseram com Ele resgatar o mundo. E é neste sen-
tido que se há de entender a palavra do grande Apóstolo.
84. Quer isto dizer que haverá certas
almas mais especialmente unidas à obra
redentora de Je- sus Cristo?
Sim, senhor. É o Apóstolo São Paulo quem nos desven-
da esses arcanos. Diz que realiza a favor da Igreja uma obra
relacionada com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ora, a Paixão de Jesus Cristo converteu o Universo.
Agora, se Jesus Cristo me pedir que eu lhe ofereça meus sofri-
mentos, ou melhor ainda, se quiser que eu tome parcialmente
sobre meus ombros o pecado da humanidade, terei, porventu-
ra, coragem de negar esta minha contribuiçãozinha na salva-
ção das nações?
85. Então seria necessária à obra de
Cristo a in-
tervenção da sua criatura, isto é, da alma fiel?
Nada de exagero: trata-se de doutrinas que o Apóstolo
ensinou, inspirado pelo Espírito Santo. É como segue:
“Por amor de Deus e dos homens, Jesus Cris- to
se fez pecado, em lugar da humanidade. E Deus dei- xou
de ferir aos homens, e feriu a Jesus Cristo”.
Nisto, intervém o Apóstolo São Paulo. Decla- ra
que o desejo de Nosso Senhor é que se apresentem al- mas
para corredentoras. Vem a ser almas que, por amor de
Deus, de Jesus e dos homens, queiram fazer-se peca- do
com Jesus Cristo para se submeterem como Jesus Cris- to e
com Jesus Cristo, aos sofrimentos da sua Paixão.
Ficam como que o canal por onde passa, indo remir o
mundo culpado a Paixão de Jesus Cristo.
86. Não será preciso, para esta imolação com
Cris- to, possuir uma vida espiritual muito
intensa?
É claro que, para reparação de um falta cometida pelo
homem culpado, devem apresentar-se diante de Deus almas
que lhe sejam intimamente unidas pela graça e pelo amor.
Tais almas, imitando Jesus Cristo nos padecimentos e na
morte, devem associar-se do modo mais estreito às três Pes-
soas divinas. Por isso é que essas almas, chamadas à
correden- ção da humanidade, hão de levar à maior perfeição o
exercício da vida espiritual e sobrenatural. Sua existência toda
cumpre que seja de união divina e imolação.
87. Então não basta a ação para conseguir o
restabelecimento da harmonia social?
Não basta. É indispensável, sem dúvida. Mas não é
menos necessária a obra da alma que se une a Deus e se
imola em Jesus Cristo.
LIÇÃO DÉCIMA SEGUNDA
Da ação

88. Será necessária a ação para se restaurar


a Or- dem Social?
Não faz dúvida. Lembremos, para provar, o que orde-
nou a seus apóstolos Nosso Senhor: “Ide pelo mundo inteiro.
Ensinai todos os Povos”. Não disse Jesus Cristo “Ficai num
lugar, quietinhos, fazendo penitência”. Falou: “Ide, ensinai”.
Quer dizer: pregai, usai de todos os meios próprios para que
entre nas almas a verdade.
89. Então haverá outros meios, além da
palavra, para propagar a verdade?
Há. Quantos não manejam os inimigos de Cristo para
espalhar seus ódios infames? O que querem é o fim. Não se
importam com os meios. Para melhor enganar o operário, por
exemplo, mascaram seus fins, com toda a qualidade de orga-
nizações adequadas: cooperativas, sindicatos, conselhos de
usina, irradiações e células comunistas, e mais e mais obras:
jornais, folhetos, brochuras, cartazes, conferências, cursos no-
turnos, etc., etc.
90. Quem é competente para prescrever a
escolha desses meios?
Antes e acima de todos, às autoridades eclesiásticas é
que cabe este papel. E desde Pio VI não falharam os Papas à
sua missão. Multiplicaram os apelos ao clero e ao povo, re-
memorando-lhes os únicos princípios de Salvação Social. Não
foram atendidos.
Poucos são na Europa os Bispos que aplicaram nas
respectivas dioceses os ensinos e as doutrinas dirigidas à co-
letividade. Concentravam suas atividades nas necessidades
locais, deixando de considerar as diretivas e normas gerais que
os Sumos Pontífices enviavam ao mundo inteiro. Mui- to
menos podia o clero consagrar esforços práticos à res-
tauração de Cristo na sociedade, e em todos os países.
Competentes para dirigir o movimento, pregar e ensi-
nar, é evidente que são o Papa, os bispos e o clero.
91. E os leigos não terão nada que fazer?
Como não? Têm. Devem espalhar a luz, a verdade, o
bem. Devem ser apóstolos, tanto na ordem social como na or-
dem individual. É obrigação de caridade, urgente e premente.
Leão XIII o diz: “Tão oportuna e fecunda julgaram os
Padres do Concílio do Vaticano a cooperação de todos, que
não hesitaram em fazer este apelo: ‘A todos os fiéis, so-
bretudo aos que dirigem e ensinam, a todos suplicamos, pelas
entranhas de Jesus Cristo, e ordenamos, em virtude deste
mesmo Deus Salvador, que envidem o máximo zelo e
máximos esforços para afastar tantos horrores, e dester- rá-
los da Santa Igreja (Const. Dei Filius, sub.fine)”.
Pio XI, igualmente, apela para a colaboração dos lei-
gos. Na encíclica Ubi Arcano Dei, o Papa, tendo chamado a
postos todas as Obras, manda aos Bispos: “Tende o cuidado,
também, de representar aos fiéis que o meio de merecerem o
título soberbo de raça eleita, sacerdócio real, nação santís-
sima, povo redimido, é lidarem, debaixo da vossa direção e
do vosso clero, nas obras de apostolado privado e público,
para desenvolver-se, o conhecimento de Jesus Cristo e dila-
tar-se o reino do seu amor. Unidos assim mui estreitamente a
nós e a Cristo, a fim de magnificarem e ampliarem os domí-
nios de Nosso Senhor, hão de empenhar-se com maior eficácia
no restabelecimento da paz geral entre os homens”.
Acaso será possível aos Papas expor, com mais clare-
za, a doutrina? Ditar mais energicamente ordens precisas?
Numa remodelação, que tão de perto os interessa, da
Ordem Social em Cristo é intuitivo que incumbe aos leigos se-
rem o braço direito do Episcopado. Em outras épocas a Igreja
podia contar, no desempenho de sua missão, com o auxílio do
braço secular, isto é, da autoridade civil e do Estado. Retirou-
-se o braço secular. Enquanto não volta a servir Nosso Senhor,
é preciso que os leigos católicos supram esta falta, e pelejem
em socorro da Santa Madre Igreja, contribuindo especialmente
para que se devolva, quanto antes, a Ela, como a Jesus Cristo
e a Deus, o lugar que lhes cabe na terra.
92. Qual é o fim imediato da ação?
Mudar a orientação dos espíritos. Nada mais urgente.
Reformar.
Consoante a mentalidade atual, não há nem pode haver
verdade ou erro.
Ora, a quem chegou a esses extremos é preciso forçosamente
inculcar as noções elementares da existência real da Verdade,
dos seus direitos. Noções também da injustiça do erro.
93. Então será necessário travar luta de morte
contra as teorias modernas de liberdade e le-
gislação, teorias abonadas, aliás, por diversos
teólogos?
É fato que já frisamos. Há, na verdade, muitos ca-
tólicos que aceitam, de olhos vendados, as teses espúrias
da sociedade desgarrada. Aceitam-nas por ignorância, ou quiçá
por deferência e cortesia mal entendida. A fim de res- guardar
a fé católica, dizem que, na prática, podem por di- reito
coexistir todas as opiniões. É esta a apologética deles. Parece
que estão solicitando dos incréus: “Vede que respei- tamos
vossas ideias, respeitai também vós as nossas”.
Olvidam esses católicos de água de cheiro tanto as con-
denações de bom senso que vêm até aqui expandidas neste
catecismo, como as sentenças de autoridade formuladas pe-
los Sumos Pontífices contra os princípios modernos.
Numa carta ao Bispo de Troyes, Pio VII censura aber-
tamente a inserção das liberdades modernas na constituição
francesa. Em termos angustiados, externa ele a sua mágoa:
“Outro motivo de aflição, que mais ainda nos punge o
coração, e que singelamente o confessamos, nos atormenta,
nos acabrunha, e nos dói imenso, é o artigo vigésimo segundo
da constituição. Não somente se estabelece aí a liberdade dos
cultos e a liberdade de consciência, como rezam as
expressões do dito artigo, mas ainda vem prometido aí
amparo e auxí- lio a essa liberdade, e mais aos ministros disto
que chamam ‘cultos’. Desde que nos dirigimos a um bispo
como vós, temos por escusado discorrermos longamente para
explanar-vos que ferida mortal este artigo vibrou contra a
religião católica na França. Estatuindo assim liberdade para
todos os cultos sem distinção, confundem a verdade e o erro,
rebaixam ao nível das seitas heréticas, e mesmo da perfídia
judaica, a Esposa santa e imaculada de Cristo, a Igreja fora da
qual não pode haver salvação. Além disso, prometer
consideração, favor e proteção às seitas dos hereges e a seus
ministros é tolerar e avantajar não somente as suas pessoas,
mas também as suas doutrinas. Renova-se, implicitamente, a
desastrada e eterna- mente nefanda heresia mencionada nas
seguintes palavras de Santo Agostinho: “Afirma que todos os
hereges trilham o bom caminho, e estão com a verdade.
Absurdo tão monstruoso que não posso crer que alguma seita
o aceite realmente”.
Não foi menor, o nosso assombro, ao lermos o arti- go
23º da Constituição, que consagra e autoriza a liberdade da
imprensa, liberdade esta que expõe aos maiores perigos, à
ruína certa. Quem alimentasse dúvidas a respeito, bastaria,
sozinha, para desenganá-lo a experiência dos tempos passa-
dos. É fato por demais averiguado: esta liberdade da impren-
sa tem sido o instrumento principal que primeiro corrompeu os
costumes dos povos, depois atacou e derrubou a sua fé, e
finalmente provocou distúrbios, revoltas, desordens sangren-
tas. E o mesmo sucederia ainda hoje, com a perversidade do
espírito do mal, se concedessem o que Deus não queira, a li-
berdade para cada um de imprimir o que bem lhe apraz”.
Gregório XVI, por sua vez, escreve:
“Dessa fonte envenenada do indiferentismo, proma- na
esta máxima falsa, absurda, ou antes este delírio: é pre- ciso
oferecer e assegurar a todos a liberdade de consciência. Erro
dos mais contagiosos. Facilitado pela liberdade desbra- gada,
insana, das opiniões, que vai sendo a ruína da Igre- ja e do
Estado, e medra por toda a parte, estimulada mesmo por
certos homens cínicos, os quais, com o maior desplante, a
proclamam vantajosa à religião. E ‘que morte mais funes- ta
pode haver para as almas, do que soltar o erro!’, excla- mava
Santo Agostinho. Quando vemos que se suprime assim todo o
freio capaz de conservar os homens nas sendas da verdade,
nós, que os sabemos arrastados em demasia para a
perdição por uma natureza originalmente viciada, nós, na
verdade, cogitamos que já se abriu esse polo dos abismos,
donde vislumbrou São João se erguia uma fumaça que tapava
o sol, e saíam gafanhotos para devastação da terra.
Daí, com efeito, provém a mobilidade dos espíritos; daí
a corrupção sempre crescente da mocidade; daí, entre o povo,
o desprezo dos direitos mais sagrados e indiscutíveis, das coi-
sas e das leis mais santas; daí, enfim, a praga mais daninha
que possa acometer os Estados. Porque é a lição da
experiência, lição corroborada pela antiguidade mais remota:
para produ- zir o desmoronamento de Estados riquíssimos,
poderosíssimos, no apogeu da glória e da prosperidade, foi o
bastante esta li- berdade sem freio nas opiniões, esta licença
despudorada nos discursos públicos, este ardor insofrido nas
inovações.
Como esta, a liberdade da imprensa, liberdade extre-
mamente funesta, liberdade execranda contra a qual todo o
ódio é pouco, e que certos homens ousam reclamar com tan-
ta veemência, com tanto alarido e pertinácia, querendo que
impere em todo o lugar. Sentimos frêmitos de horror, Venerá-
veis Irmãos, quando consideramos os monstros de doutrina,
os prodígios de erros que nos submergem. Erros levados ao
longe, e de todos os lados, por esta massa imensa de livros,
de brochuras e outros escritos, menores na verdade quanto ao
peso, volumosos, porém, assustadores na perversidade, don-
de brota a maldição que envergonha a face da terra, e nos
arranca lágrimas de dor. Mesmo assim, encontram-se, ai de
nós! Espíritos desnorteados e impudentes, apregoando, con-
victos e aferrados, que essa aluvião, esse dilúvio de mentiras
está equilibrado, e fartamente compensado, pela publicação
de alguns livros impressos para defender a verdade e a re-
ligião, neste montão de imundícies de vilezas, de trapaça e
iniquidades. Aliás é crime, e crime qualificado por todos os
Direitos, praticar de caso pensado um mal certo e grande, na
esperança de algum bem que talvez daí possa advir. E qual
é o homem de juízo que toleraria a difusão de venenos, a
sua venda pública, o seu tráfico, e mais, sua absorção ávi- da,
a pretexto de que há também vidros de remédio que têm
salvado, às vezes, a existência dos que os tomaram?”
Os ensinamentos de Pio IX são muito conhecidos. Re-
cordemos apenas as proposições condenadas no Syllabus:
Prop. 77. – “Em nossa época, já não é bom que seja
a religião católica considerada como única reli- gião do
Estado, excluindo-se os outros cultos.” (Alloc. NEMO
VESTRUM, de 26 de julho de 1855.)
Prop.78. – “Porquanto tem razão a legislação de al-
guns países católicos, quando proporciona, aos estrangeiros
que os visitam, a facilidade do exercício público dos seus cul-
tos particulares”. (Alloc. ACERBBISSIMUM, de 27 de se-
tembro de 1852.)
Prop.79. – “É falso que a liberdade civil de todos os
cultos, e a plena faculdade deixada a todos de manifestarem
aberta e publicamente quaisquer pensamentos e quaisquer
opiniões, acarretem mais facilmente a corrupção dos costu-
mes e do espírito e propaguem a peste do Indiferentismo”.
(Alloc. NUNQUAM FORE, de 15 de dezembro de 1856).
Leão XIII dá um ensino igualmente explícito. “A liber-
dade é para o homem um elemento de perfeição, e deve apli-
car-se ao que é bom, ao que é verdadeiro. Ora, a essência do
bem e da verdade não pode variar ao arbítrio do homem. Per-
manece inalterável sempre. Assemelha-se à natureza das coi-
sas: é imutável. Se a inteligência adere a opiniões errôneas,
se a vontade escolhe o mal, e a ele se apega, nem uma nem
ou- tra poderá alcançar a perfeição: ambas aviltam-se,
perdem a dignidade nativa, deturpam-se. Logo, não é lícito
trazer à luz e expor às vistas do homem o que for contrário à
virtude e à verdade, e muito menos ainda se deve conceder a
estes abusos o amparo, a proteção das leis. Não há duas
estradas que levem ao Céu, onde todos temos de chegar: há
um só estrada real. Logo, divorcia-se o Estado das regras e
prescrições da natu- reza quando ele facilita a divulgação das
opiniões, e a prática de atos culpados, a ponto de se
desviarem impunemente da verdade os espíritos, e da virtude
as almas. Quanto à Igreja estabelecida pelo próprio Deus,
quem a exclui da vida pública, das leis, da educação da
mocidade, da verdade doméstica, co- mete um erro
gravíssimo, de consequências ameaçadoras.
Não será morigerada nunca uma sociedade que abs-
trair da religião, e já se vê, de sobejo mesmo, quanto vale, em
si e nos seus resultados, essa pretensa moral civil”.
Na encíclica “Libertas”, Leão XIII conde- na
como segue as mesmas liberdades:
“Outros há que não chegam a esses extremos, ain- da
que espezinhando por igual a lógica e a coerência. Eles
admitem a ingerência de leis divinas na vida e na conduta dos
indivíduos, não porém na vida dos Estados. Nas coisas
públicas, dizem eles, nada têm que ver os mandamentos de
Deus. Pode-se legislar fora disto, sem fazer caso. Daí, a con-
sequência lastimável da separação da Igreja e do Estado.
São absurdas, tais opiniões. E é fácil prová-lo. O pri-
meiro dever da sociedade, natural e essencial, é proporcionar
a seus membros os meios, a facilidade de levar uma existên-
cia honesta, regulada pela vontade de Deus, porque Deus é o
princípio de toda a honestidade, de toda a justiça. Repugnaria
por isso, em absoluto, que fosse lícito ao Estado prescin- dir
dessa vontade divina, e até contrariá-la, seja no que for. É
também obrigação estrita de quem governa os po-
vos facultar-lhes, pelo acerto da gerência, pela sabedoria das
leis, não apenas vantagens e benefícios materiais, mas ainda,
e principalmente, os bens da alma. Ora, para desenvolver e
acrescer estes tesouros nada mais eficaz do que os Manda-
mentos de Deus. É justamente por isso que, governando-se
os Estados sem fazer caso das leis divinas, desvia-se verda-
deiramente do seu fim e da ordem natural o poder político.
Mas, outro reparo de mais importância, que já temos feito
alhures diversas vezes, é que o poder civil e o poder religioso,
se bem que visem fins diferentes, e não perlustrem as
mesmas sendas, terão de encontrar-se, harmonizar-se, não
raro, em terreno comum. Com efeito, a autoridade de um e de
outro tem, muitas vezes, o mesmo objeto, ainda que sob
pontos de vista diferentes. Se houvesse, então, conflito,
antagonismo, teríamos um absurdo que repugna
invencivelmente à infini- ta sabedoria dos altos conselhos
divinos. É forçoso, portanto, que haja algum recurso, algum
meio de conciliação, evitando as causas de atritos e
discórdias, e realizando, na prática, a harmonia. Esta
harmonia tem sido comparada, com acerto, à união existente
entre a alma e o corpo, com proveito máxi- mo de ambas as
partes, e máxime do corpo, porque em dan- do-se a
separação, tira esta ao corpo a própria vida.
Mas, para que apareçam mais lúcidas estas verdades,
não será ocioso considerarmos, separadamente, as várias es-
pécies de liberdades apregoadas como conquistas gloriosas
desta nossa época. Primeiro, o que é em relação aos indiví-
duos esta tão gabada liberdade, diametralmente contrária à
virtude de religião, e que denominam liberdade dos cul- tos?
O princípio que lhe serve de base é o seguinte: é lícito a todo
o homem escolher a religião que lhe agrada, ou ne- nhuma,
se assim prefere. Mas a verdade é o contrário disso,
exatamente porque é certíssimo que o homem tem como obri-
gação primordial mais imperiosa e sagrada prestar a Deus um
culto de piedade e adoração. Esta obrigação é natura- líssima,
pelo fato de estarmos perpetuamente sob a depen- dência de
Deus, governados pela Vontade e Providência de Deus, e de,
tendo saído dele, termos que voltar a ele.
Acresce que não pode haver nenhuma virtude digna
deste nome sem a religião, porque virtude moral é aquela
cujos atos têm, como objeto, tudo quanto nos leva a Deus,
nosso fim supremo e soberano bem. Por isso é que a religião
‘praticando atos, direta e imediatamente ordenados para a
honra divina’ (S. Th., 2.ª 2ª, qu. LXXXI, a.6), é, no mesmo
tempo, rainha e regra de todas as virtudes. E se pergunta-
rem que religião se deve seguir, havendo tantas e contradi-
tórias, podemos ouvir a resposta do bom senso e da própria
natureza: deve-se observar a religião que Deus prescreveu, e
é fácil conhecer. É fácil, por meio dos distintivos exteriores
que a Providência divina pôs, evidentíssimos, patentíssimos,
como convinha em matéria de tanta relevância. Convinha,
porque o erro nisso traria consequências pesadas em dema-
sia. E, portanto, quem oferece ao homem a liberdade neste
assunto, dá-lhe uma arma traiçoeira, o poder de desvirtuar,
impune, a mais sagrada das suas obrigações, o poder de lhe
fugir, de largar o bem imutável e eterno, para entregar-se ao
mal. Isto já não é liberdade senão depravação da liberdade, e
ignóbil escravidão da alma nos grilhões do pecado.
No ponto de vista social, este dogma da impiedade mo-
derna exige que o Estado não preste a Deus culto nenhum, ou
não autorize nenhum culto social; que não se mostre prefe-
rência pública de alguma religião; que se reconheçam a to-
das direitos iguais, sem mesmo atender à vontade do povo,
quando este povo professe o catolicismo. Ora, para que isso
fosse aceitável seria preciso que a comunidade civil não tives-
se nenhum dever para com Deus, ou, tendo deveres, pudesse
menosprezá-los impunemente: duas hipóteses falsas. Falsís-
simas. Quem duvidará, com efeito, que a reunião dos homens
em sociedade seja obra da vontade de Deus, considerando-se
a sociedade, quer nos seus membros, quer na sua forma que
é autoridade, quer na sua causa, quer na importância e
número das vantagens que proporciona ao homem. Foi Deus
quem fez o homem para viver em sociedade, quem uniu o
homem a seus semelhantes, para que fossem satisfeitas
tantas necessidades da natureza, às quais não poderiam
prover esforços isolados. Logo, não pode a sociedade civil
como sociedade desconhecer a Deus, seu princípio e seu
amor. Deve, necessariamente, ado- rá-lo, prestar à onipotência
e à autoridade divina a homena- gem de seu culto — não, em
nome da justiça o negamos. Não, em nome da razão, o
negamos. O Estado não pode ser ateu. Não pode tratar da
mesma forma todas as religiões, como se diz, e conceder a
todas os mesmos direitos.
94. Mas, neste caso, para que servem as
eleições?
Sendo bem feita, leal e livre, a eleição ser- ve
muito. Na Igreja, por exemplo, o Chefe tem que ser eleito.
Usa-se o mesmo processo em muitíssimos casos.
Na verdade, aqui também se manifesta o câncer. Pela
eleição que fornece às nações, aos Estados, às cida- des,
legisladores e governadores, chegam a esses altos pos- tos
indivíduos iníquos, perversos ou ignorantes, que se tornarão
malfeitores públicos e corruptores das almas.
Temos demonstrado, irrefutável e peremptoriamente, a
obrigação de instaurar a Ordem Social com Deus e Nosso
Senhor Jesus Cristo como base, arcabouço e remate. O ins-
trumento desta regeneração são as eleições. Logo, o primeiro
critério do eleitor, que queira conformar-se com as intenções
divinas, é que manifeste o seu voto, a sua escolha, a vontade
firme de viver por Cristo, servir a Cristo, e amar a Cristo Se-
nhor Nosso.
95. Neste caso, ficará a política submissa a
Deus e
a Jesus Cristo?
Ficará. Sofisma algum poderá abalar esta tese: toda a
política depende completamente de Deus e de Jesus Cristo; a
eles, portanto, deve obediência total e perfeita. A obrigação
essencial de qualquer política é tomar em consideração, acima
de tudo, o fim supremo da vida, e de todos os atos privados ou
públicos: Deus.
96. Não provocaria isto a acusação de abusar
do púlpito para manobras políticas, de utilizar,
para intrigas, a religião?
Provocará, certamente. Estas e outras acusa-
ções, mais ou menos malévolas e espalhafatosas. Mas
que tem isso? Que nos importam, a nós, as calúnias
contra a verdade, e a missão que lhe cabe neste mundo?
Como é natural, deve a prudência acompanhar to- dos
os nossos passos. Entretanto, cuidemos que esta virtu- de
cardeal não se transforme em covardia, em aprovação tácita
do erro, e vergonhosa traição contra a verdade.
Foi esta mesma a origem dos males da atualidade.
Demasiada consideração e deferência para com os rebeldes
que ousaram contestar a dependência inteira da política para
com Deus. Sofismaram, e calamos! Agiram, e dormimos!
Devera ter sido tema habitual de todos os púl- pitos,
de todas as cátedras de ensino, cátedras da ver- dade,
este aforismo e divisa da nossa fé: toda a políti- ca a
Deus e por Deus, a Jesus Cristo e por Jesus Cristo.
O silêncio dos arautos da verdade: é isso mes- mo
que almejam os partidários da desordem, os amantes das
trevas. Assim, espalham melhor as suas mentiras.
É oportuno que se convençam disso todos os membros
das Congregações, das Confrarias e Irmandades; que aprovei-
tem de todas as circunstâncias para instruir os ignorantes, para
que dirigidos e dirigentes se inteirem do grande dever políti- co-
social. E em vez de se amedrontar, com receio de ofender
melindres duvidosos e injustificados, sirva-nos de incentivo o
proselitismo do adversário.
DÉCIMA TERCEIRA LIÇÃO
Organização de uma Liga apostólica

97. Existe algum organismo devidamente


constituí- do para promover a restauração em
Cristo de toda a Ordem Social?
Existe. Abençoado, louvado, e altamente aprovado pelo
Sumo Pontífice Bento XV. Chama-se “Liga Apostólica”, para o
regresso das nações, dos povos e da ordem social inteira a
Deus e a seu Cristo, pela Santa Igreja. O próprio Papa é quem
lhe pôs o nome “Liga Apostólica”. Fez mais. Externou o dese- jo
de ver todos os católicos entrando nesta associação.
98. Quais são os requisitos para entrar?
Os requisitos são dois, no mínimo:
1º Crer e professar as verdades fundamentais da Asso-
ciação, destinadas a reformar as mentalidades transviadas do
mundo inteiro.
Essas verdades vêm a ser: a) Não têm, nem o erro, nem
o mal, direito nenhum, quer na Ordem Social, quer na Ordem
individual; b) A Verdade e o Bem, só, é que possuem todos os
direitos; c) É preciso suprimir nas normas da Constituição dos
Povos e da legislação os supostos direitos que impam na fronte
das nações, com a designação de grandes liberdades moder-
nas, ou Direitos do homem; d) É preciso substituir esses tais
Direitos usurpados pelos verdadeiros e legítimos Direitos de
Deus, de Jesus Cristo e da sua Igreja; e) Qualquer Sociedade
tem para com Deus dependência soberana e absoluta, e a Ele
deve ser submissa.
2ºSegundorequisitoparaosaderentesàLigaéoferecerem,
cada dia, parte das suas orações e sacrifícios para alcançar a
Volta
a Jesus Cristo das nações e de toda a sociedade, ou rezarem
com esta intenção, diariamente, Pai-Nosso, Ave-Maria, Gloria
Patri.
Isto é o mínimo.
99. Que outros graus haverá?
Algumas almas experimentam com maior intensidade os
convites da graça divina, e por isso procuram outros meios ain-
da para a consecução dos mesmos fins da Liga Apostólica.
Aspiram por uma união íntima com a Santíssima Trin-
dade. Querem seguir a palavra do Apóstolo São Paulo “com-
pletando, em si próprias, o que falta à Paixão de Jesus Cristo”.
Para isto, agrupam-se, e observam regimentos particulares.
100. Não concedeu o Sumo Pontífice favores espiri-
tuais próprios?
Concedeu. Numerosíssimos
Os membros da Liga Apostólica podem lucrar:
I. – Indulgência de sete anos e sete quarente- nas,
sempre que praticam um ato prescrito pelos Esta- tutos, ou
cada vez que, espontaneamente, sob o impul- so da
graça, se impuserem uma oração especial, uma mortificação,
um sacrifício ou uma obra de Apostolado para conseguir o
regresso da sociedade para Jesus Cristo.
II. – Indulgência plenária nas condições ordinárias: 1º o
dia em que se alistarem na Associação, ou qualquer dos oito
dias a seguir; 2º igualmente, nas principais festas que nos
lembram que Jesus Cristo é o Rei imortal dos Povos e dos
séculos: Natal, Epifania, Páscoa, Ascensão, Pentecostes,
Corpo de Deus, Sagrado Coroação, Imaculada Conceição,
São Pedro e São Paulo; 3º igualmente, um dia cada mês, à
escolha que for por eles, nas suas intenções, inteiro e mais
especialmente consagrado ao benefício da Santa Igreja, sendo
dirigidas, para este fim, todas as suas preces e boas obras.
III. – A faculdade, para quem é Sacerdote, de
dar a Benção Apostólica duas vezes por ano na oca-
sião das reuniões mais solenes dos membros da Liga.
Deve-se chamar a atenção especialmente para o fa- vor
insigne da indulgência de sete anos e sete quarentenas, que
todo o membro pode lucrar “toties quoties”. É tão fá- cil
oferecer a Deus um trabalho, uma dor com o intuito de obter o
regresso de todas as nações a Deus! Tão depres- sa se
faz uma oração jaculatória para as mesmas intenções!
Que tesouros de indulgências não amontoam assim, em
pouco tempo, os amigos das almas do Purgatório, que oram às
intenções da Liga, e querem beneficiar as almas estremecidas,
presenteando-as com as indulgências que a Igreja lhes conce-
de!
DÉCIMA QUARTA LIÇÃO
A festa do Cristo Rei

101. Como se podem resumir as principais verdades


expostas neste catecismo?
Podem resumir-se como segue:
1º Deus é o Ente supremo, independente e so-
berano. Tudo quanto existe fora d’Ele tem sido cria- do
por Ele, e d’Ele depende absolutamente. Ele é que tem,
único, poder ilimitado e total sobre todas as coisas.
Enãosomentetudodependedele,mastemquevoltaraEle,
como a seu fim último. Isto é, todas as sociedades, nações e
Esta- dos pertencem a Deus como a seu Criador e Fim
Supremo.
2º Jesus Cristo recebeu por parte de Deus, na
sua Humanidade, plenos poderes no Céu e na Ter-
ra. É superior a toda a autoridade. Possui verdadei-
ra realeza. A Igreja e o Papa participam desta realeza.
3º É claro que, segundo estas doutrinas, todas as
constituições dos povos e sua legislação têm como funda-
mento e arcabouço: Deus, Jesus Cristo e a Missão da Igreja.
4º Com a Declaração dos Direitos do homem, can- celaram
das Constituições e dos Códigos: Deus e tudo quanto é
divino: substituíram-no pelo homem deificado. 5º Consequência
desta substituição é o desconheci-
mento de qualquer Direito Divino, e a profissão dos direitos
humanos, só. É o triunfo da laicidade, e de todos os erros resul-
tantes logicamente da Declaração dos Direitos do homem.
6º Logo, por direito, goza o homem de inde- pendência
soberana. Deve desfrutar todas as liber- dades:
liberdade de consciência, liberdade do ensi- no,
liberdade da imprensa, liberdade de associação, liberdade
dos cultos. E possui, aberração estranha, a faculdade
de confeccionar leis e impor à força sua observância.
7º Se quisermos evitar os castigos divinos e ca-
tástrofes tremendas, cumpre que trabalhemos por su- primir
nas Constituições dos Povos o chamado Direito moderno, e as
“grandes liberdades” aludidas.
Neste intuito, precisamos aproveitar das li- berdades
que temos para conseguirmos a destrui- ção destas
mesmas liberdades, no sentido moderno da palavra, e
para realizarmos o maior bem possível.
Precisamos aproveitar da liberdade de ensino para
pregarmos a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Precisamos aproveitar da imprensa para
difundirmos a Verdade divina que salva.
Precisamosaproveitardaliberdadedeassociaçãoparafor-
marmos grupos, que melhor promovam o bem das almas.
Enfim, é preciso professarmos ostensivamen- te
o culto do verdadeiro Deus. Ensinarmos a todos que só a
verdade e o bem têm direitos, o erro e o mal não têm.
8º Desta maneira, há de voltar tudo aos eixos, na paz e
na ordem, porque ficará tudo obediente a Deus e a seu Cristo,
pela Santa Igreja. As nações permanecerão unidas pelos víncu-
los da justiça e da caridade em Cristo, sob a direção sobrenatu-
ral do Papa. Todos os Povos constituirão uma verdadeira Liga
Apostólica das Nações. O Mundo será salvo.
102. Quais foram as intenções de Pio XI
ins- tituindo uma festa em honra de Cristo Rei?
Foi intenção do Sumo Pontífice comemorar num festa
especial, em honra da Realeza de Jesus Cristo, a lem- brança
de todos os benefícios trazidos ao gênero huma- no pelo
Homem Deus, sobretudo o benefício da Ordem Social,
condição da paz interna e externa dos povos.
Basta ouvir a voz do Sumo Pontífice, sem comen- tário
que só lhe diminuiria a força e a clareza:
“É muito para desejar, e nunca demais, que a sociedade
cristã aufira largamente vantagens tão preciosas, e as conserve
permanentemente. É preciso, para isso, propagar o mais
possível a doutrina da dignidade real de nosso Salvador.
Nenhum outro meio nos parece mais idôneo para este fim do
que a instituição de solenidade própria, especial, em honra de
Cristo Rei.
É óbvio que as festividades litúrgicas anuais, com suas
pompas e seus ritos, muito mais eficazmente comovem o povo,
e o fazem partícipe das verdades da fé e consequentes
alegrias da vida interior, muito mais do que todos os
documentos, ainda os mais graves e enérgicos do magistério
eclesiástico. Estes, com efeito, mal atingem geralmente o
reduzido número dos mais cultos, enquanto aquelas alcançam,
formam e instruem a universalidade dos fiéis. Uns fazem-se
ouvir uma só vez, e emudecem por assim dizer. As outras
repetem-se, anualmente, sempre. Uns apelam, sobretudo, para
a inteligência. As outras exercem sua influência benéfica sobre
o coração também.
Composto de corpo e alma, o homem precisa das
manifestações imponentes dos dias festivos para sentir-se
impressionado, abalado, conquistado. Pela variedade e o
resplendor das cerimônias litúrgicas, satura-se-lhe, a men- te
dos ensinos católicos. Transmutam-se nele em seiva, em
sangue, para o incremento da sua vida espiritual.
Aliás, é lição da história que todas as solenidades li-
túrgicas sugiram, umas após outras, no decorrer dos sécu-
los, a fim de atender a necessidades ou precisões espirituais
que se verificavam no povo cristão. Descortinava-se um pe-
rigo comum, e havia necessidade de precaver e fortalecer os
ânimos. Armava a heresia as suas ciladas, e urgia preve- nir e
resguardar os espíritos. Esmorecia a devoção, e fazia-
-se necessário despertar a piedade, abrasar os corações, para
que se celebrasse com mais ardor algum mistério esqueci- do
de nossa fé, ou algum benefício da bondade divina.
É o que vemos, já logo nos primórdios da era cris- tã.
Os fiéis, vítimas de perseguições bárbaras desalma- das,
inauguram o costume piedoso de comemorar, pe- los ritos
sagrados, a lembrança dos Mártires, para que,
segundo o testemunho de Santo Agostinho, fossem tais co-
memorações outras tantas “exortações ao martírio”.
Maravilhosamente contribuíram, mais tarde, as honras
litúrgicas prestadas aos Confessores, às Virgens e às
Viúvas santas para estimular, entre os cristãos, o zelo da
virtude tão necessário mesmo em tempo de paz.
Frutos mais férteis e saborosos ainda deram as fes-
tividades em honra da Bem-Aventurada Virgem: não so- mente
o povo católico tributou à Mãe de Deus, Prote- tora insigne
e Refúgio seguro, um culto mais assíduo e fervoroso, mas teve
amor mais filial e entranhado para a mãe que o Redentor nos
legou num como testamento.
Entre os benefícios que auferiu a Igreja do culto pú- blico
e legítimo à Mãe de Deus e aos Santos do Céu, não é menor a
vitória constante que ganhou, sempre rechaçando para longe a
peste da heresia e do erro. Admire-se aqui, uma vez mais, a
sabedoria dos planos da Providência divina, que cos- tuma tirar
do mal, o bem. Permite, com efeito, de tempos a tempos, que
fraquejam e se entibiem a fé e a piedade popular, que doutrinas
suspeitas despontem nos arraiais católicos. E o resultado é que
sempre, no fim, brilhe a verdade, com novo fulgor, e os fiéis,
arrancados ao torpor, pelejem mais animo- sos para galgar os
cumes da perfeição e da santidade.
Origem idêntica têm as solenidades recentemente in-
troduzidas no rol das festas litúrgicas. E frutos idênticos.
Como seja, a de Corpus Christi, estabelecida quan- do
afrouxavam o respeito, a veneração, o amor para com o
Santíssimo Sacramento. Celebrou-se com magnificên- cia
inaudita, prolongada por oito dias de preces coleti- vas. E
viram-se os povos prostrados outra vez, reveren- ciando e
adorando publicamente os altares do Senhor.
Como seja ainda, a festa do Sagrado Coração de Jesus.
Instituiu-se quando os fiéis se sentiam desfalecer, resfriados,
desanimados, com as doutrinas pessimistas, e o rigorismo som-
brio dos jansenistas. Quando seus corações enregelados, mor-
tos, baniam escrupulosamente todos os sentimentos de amor
desinteressado de Deus, ou de confiança no Redentor.
Chegou nossa vez de atendermos às necessidades dos
tempos presentes, de ministrarmos o remédio eficaz contra a
peste que lavra gigantesca, e corrompe a sociedade humana. É
isto que fazemos promulgando no universo católico o culto a
Cristo Rei. A peste da nossa época é o laicismo, como o deno-
minaram, conjunto de erros e de tentativas criminosas.
Bem o sabeis, Veneráveis Irmãos, não explo- diu
feito bomba, de um dia para outro, este flagelo. Longa
incubação teve a praga, no âmago das nações.
De começo, negou-se a soberania de Jesus Cristo sobre
todas as nações. Não consentiram à Igreja o direito — que ela
tem do próprio Cristo — de ensinar o gênero humano, de legis-
lar, de nortear os povos, em função da sua salvação eterna.
Depois, aos poucos, foram assimilan- do
a Igreja de Cristo às seitas da mentira. Equipa- raram-nas
com maior desbrio e sem vergonha.
Mais tarde, algemaram-na, dobran- do-a ao
poder civil, sujeitando-a, por assim dizer ao arbítrio
dos príncipes e governadores.
Houve mesmo quem se arvoras-
se em fundador de certa religião natural, ou sim- ples
religiosidade, substituindo a religião divina.
Estados houve, até, que julgaram poder viver bem sem
Deus. Arredaram-no como traste dispensável, e a religião de-
les foi irreligião e o esquecimento de Deus, voluntário e cons-
ciente.

Que de frutos amargosíssimos não deu, tão con-


tinuamente, essa apostasia dos indivíduos e dos Estados
renegando a Cristo! Já os temos assinalado e deplorado
na encíclica Ubi arcano. De novo hoje os deploramos.
Frutos desta apostasia são os germens de ódio,
profusamente semeados por toda a parte; a inveja e as
rivalidades mesquinhas entre as raças, alimentando con- tendas
internacionais, obstando, ainda hoje, ao esta-
belecimento da paz de reconciliação; as ambições de-
senfreadas, ocultas amíude sob a máscara do interesse
público ou do amor à pátria, e multiplicando os estragos: dis-
córdias civis, egoísmo cego e cruel que nada enxerga, além
das vantagens pessoais imediatas, e dos lucros avultados.
Frutos também desta apostasia: os transtornos na paz
dos lares, pelo esquecimento das obrigações, pelo relaxamento
das consciências; a união e estabilidade da família, destruída ou
cam- baleante; enfim, a sociedade inteira combalida e prestes
a ruir. Será anual, de agora
em diante, a festa do
Cristo Rei. E com ela, temos a esperança mais fa-
gueira de apressarmos o tão desejável regresso
da humanidade junto do seu afetuosíssimo Salvador.
Assistiria aos católicos, é certo, a obrigação de prepa-
rar e acelerar este regresso, diligente e ardorosamente. Entre-
tanto, muitos deles, quer Nos parecer, não ocupam na socie-
dade a devida posição ou não têm a devida autoridade como
fôra para desejar e conviria aos defensores da verdade.
Talvez seja a culpa da indolência ou do acanha- mento
dos bons. Não querem resistir, ou resistem mui- to
pouco. Com que recrudesce, fatalmente, a audácia, as
pretensões, o descaramento dos inimigos da Igreja.
Desponte, porém, o dia em que o conjunto dos fiéis
entenderão a necessidade de combaterem, destemidos, sem
es- morecimento nem tréguas, debaixo da bandeira de Cristo
Rei, e então, ver-se-á o entusiasmo do apostolado inflamando
os corações, e todos, esforçando-se para a reconciliação com o
Senhor, das almas desgarradas, ignorantes ou apóstatas, e to-
dos, procurando manter, na íntegra, os direitos de Jesus Cristo.
Outro fim ainda. A festa que se celebrar cada ano en-
tre todos os povos em honra de Cristo Rei será muito própria
para, de algum modo, ferretear e reparar esta apostasia públi-
ca, tão desastrada para a sociedade, e oriunda do laicismo.
Nas conferências internacionais, como nos Par-
lamentos, não se ouve o nome suavíssimo do nosso que- rido
Redentor. Encobre-o a lousa pesada do silêncio. E
por isso mesmo e quanto mais indigno isso, tanto mais alto
devem reboar as nossas homenagens e ovações, tan- to
mais intensa a nossa propaganda dos direitos que outor- gam
a Cristo, a sua dignidade e sua autoridade real...
Por consequência, em virtude do Nosso poder apos-
tólico, estabelecemos a festa de Nosso Senhor Jesus Cristo
Rei. Ordenamos que seja celebrada no mundo inteiro, cada
ano, o último domingo de outubro, isto é, o domingo que pre-
cede imediatamente a solenidade de Todos os Santos.
Prescrevemos, igualmente, que todos os anos, nesse
mesmo dia, se renove a consagração do gênero humano ao
Sagrado Coração de Jesus, renovação anual já ordenada por
Nosso predecessor Pio X, de santa memória. Todavia, este
ano, queremos que esta renovação se realize a 31 do corrente
mês. Nesse dia, havemos de celebrar a missa pontifical em
honra de Cristo Rei. E faremos ler, em Nossa presença, a dita
consagração. Julgamos ser este o meio mais adequando e feliz
de encerrarmos o Ano santo, meio mais eloquente de mani-
festar a Cristo, “Rei imortal dos séculos”, o Nosso reconheci-
mento — e o do universo católico, de quem nos fazemos tam-
bém intérprete — pelos benefícios concedidos neste período
de graça a Nós mesmo, à Igreja, e a todo orbe católico.
Temos por escusado, Veneráveis Irmãos, expli- car-vos
nos seus pormenores os motivos de uma fes- ta especial
do Cristo Rei quando tantas outras sole- nidades enaltecem
e sublimam, até certo ponto, a sua dignidade real. Convém,
todavia, lembramos que, se todas as festas de Nosso Senhor
têm o mesmo objeto material, na ex- pressão consagrada
pelos teólogos, que é o Cristo, nenhuma tinha, como objeto
formal, o poder e o título real de Cristo.
Se designamos um dia de domingo foi para que, não so-
menteoclero, pela oferta do Santo Sacrifício e salmodia do Ofício
divino, celebrasse a festa, e prestasse sozinho suas
homenagens a Cristo Rei, senão também o povo, livre dos
afazeres habituais, e entregue à Santa alegria, pudesse vitoriar e
ovacionar a Cristo, reconhecendo-o publicamente como Mestre
e Soberano.
Finalmente, escolhemos, entre outros, o último do-
mingo de outubro. Foi porque Nos pareceu mais próprio esse
tempo em que se está encerrando mais ou menos o ci- clo do
ano litúrgico. Assim, os mistérios da vida de Jesus Cristo,
comemorados no decorrer do ano a findar, terão na solenidade
de Cristo Rei como que seu complemento e seu remate, e logo
antes de celebrar a glória de todos os Santos, a liturgia
proclamará, e exaltará, a glória daquele que vive, impera e
triunfa, em todos os Santos, em todos os eleitos. É obrigação
vossa, Veneráveis Irmãos, e de vossa al-
çada, instituirdes, logo antes da festa anual, uma série de ins-
truções a serem dadas em dias determinados nas paróquias. O
povo aprenderá assim, perfeitamente, a natureza, a significa-
ção e a importância desta solenidade. Os fiéis serão levados a
nortear e pautar, doravante, a sua vida, de modo que seja digna
de súditos cavalheirescos, leal e amorosamente obedientes à
soberania do Rei divino.

NIHIL OBSTAT
S. Pauli, 16 Martii 1927
Can. Dor. M. Ladeira Censor.

IMPRIMMATUR
Mnr. Pereira Barros,
Vigário Geral.
APÊNDICE
DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS

Pio XI
Sobre Cristo-Rei
Encíclica
“Quas Primas”

4ª Edição. Vozes, Petrópolis, 1961


IMPRIMATUR
POR CONCESSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR.
DOM MANOEL PEDRO DA CUNHA CINTRA, BISPO DE
PETRÓPOLIS.

FREI DESIDÉRIO KALVER KAMP, O.F.M. PETRÓPOLIS,


30-9-1961
CARTA ENCÍCLICA
Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, arcebis-
pos, Bispos e Outros Ordinários em paz e comunhão com
a Sé Apostólica: sobre Cristo Rei.
PAPA PIO XI
Veneráveis Irmãos, saúde e benção apostólica.

INTRODUÇÃO
1. Na primeira Encíclica, dirigida em princípios do nosso
Pontificado aos Bispos do Mundo inteiro, indagamos a causa íntima das
calamidades que, ante os nossos olhos, avas- salam o gênero humano,
Ora, lembra-nos haver abertamente declarado duas coisas: uma que este
aluvião de males sobre o universo provém de terem a maior parte dos
homens removi- do, assim da vida particular como da vida pública, Jesus
Cris-
to e sua lei sacrossanta; a outra que baldado era esperar paz
duradoura entre os povos enquanto os indivíduos e as nações
recusassem reconhecer e proclamar a Soberania de Nosso Sal-
vador. E por isso, depois de afirmarmos que se deve procurar
“a paz de Cristo no reino de Cristo”, manifestamos que era
intenção nossa trabalhar pra este fim, na medida de nossas for-
ças. “No reino de Cristo”, dizíamos, porque para restabelecer e
confirmar a paz, outro meio mais eficiente não deparávamos do
que reconhecer a Soberania de Nosso Senhor. Com o correr do
tempo, claramente pressentimos o raiar de dias melhores,
quando vimos o zelo dos povos em acudir, uns pela primeira
vez, outros com renovado ardor, a Cristo e à sua Igreja, única
dispensadora da salvação: sinal manifesto de que muitos ho-
mens, até o presente como que desterrados do reino do
Reden- tor, por desprezarem sua autoridade, preparam, ainda
bem, e levam a efeito sua volta à obediência.

PREPARAÇÃO PROVIDENCIAL DA NOVA FESTA O ANO


SANTO
2. Quanto ao depois sobreveio, quanto aconteceu no decorrer do
“Ano Santo”, digno, na verdade, de eterna me- mória, porventura não
concorreu eficazmente para a honra e glória do Fundador da Igreja, de
sua soberania, de sua suprema realeza?
Exposição missionária
Realizou-se primeiro a “Exposição Missionária”, que nos
corações e nos espíritos dos homens produziu tão profunda
impressão. Ali vimos os incansáveis trabalhos empreendidos
pela Igreja, para dilatar cada vez mais o reino de seu Esposo,
em todos os continentes, em todas as ilhas, até nas mais lon-
gínquas, perdidas no oceano. Vimos quantos países conquis-
taram ao catolicismo à custa de seus suores, de seu sangue,
nossos heroicos e destemidos missionários. Vimos as imensas
regiões que ainda ficam por sujeitar ao domínio benfazejo de
nosso Rei.
Peregrinações jubilares
Realizaram-se, em seguida, romarias, vindas a Roma,
durante o Ano Santo, de todas as partes do mundo, e guia- das
por seus Bispos ou sacerdotes. Que motivos impeliam esses
peregrinos senão o desejo de purificarem suas almas e de
proclamarem, junto ao Sepulcro dos Apóstolos e em Nossa
presença, que estão e querem permanecer sob a autoridade
de
Cristo?
Canonizações
Por fim, conferimos a seis Confessores ou Virgens as
honras dos Santos, depois de cabalmente provadas suas ad-
miráveis virtudes. Não brilhou nesse dia, com novo fulgor, o
reino de Jesus? Que gozo, que consolação não foi para Nossa
alma, depois de proferirmos os decretos definitivos, ouvir no
majestoso recinto de S. Pedro a imensa multidão dos fiéis acla-
mar com uma só voz, entre cantos de ação de graças, a
realeza gloriosa de Cristo — “Tu Rex gloriae, Christe!” Num
tempo em que indivíduos e Estados, joguetes das sedições
nascidos do ódio e discórdias civis, se precipitam para a ruína e
a morte, a Igreja de Deus, prosseguindo a dar ao gênero
humano o ali- mento da vida espiritual, gera e continua a educar
para Cristo gerações sucessivas de Santos e Santas, e Cristo
por sua vez não cessa de chamar à eterna felicidade do seu
reino celeste quantos se Lhe demonstraram súditos fiéis e
submissos de seu reino terrestre.
Centenário do Concílio de Nicéia
Com o grande jubileu coincidiu o 16º centenário do
Concílio de Nicéia. Mandamos festejar este aniversário secu-
lar, e Nós mesmo o comemoramos na Basílica Vaticana, com
tanto melhor grado que este Concílio definiu e proclamou
dogma de fé católica a “consubstancialidade” do Unigênito de
Deus com seu Pai, e, inserindo em sua fórmula de fé, ou “Cre-
do”, as palavras: “cujo reino não terá fim, cujus regni non erit
finis”, com isto mesmo afirmou a dignidade real de Cristo.
Súplica em favor de Cristo-Rei
3. Portanto, já que este ano jubilar em mais de uma ocasião
contribuiu para pôr em realce a realeza de Cristo, jul- gamos comprimir
um dos anos mais próprios do Nosso ofí-
cio apostólico, acedendo às súplicas, assim individuais como
coletivas, de numerosos Cardeais, Bispos ou fiéis, e encerrar
este ano com introduzir na liturgia da Igreja uma festa especial
em honra de Nosso Senhor Jesus Cristo-Rei. Este argumento
temo-lo tanto a peito, Veneráveis Irmãos, que desejamos entre-
ter-nos dele convosco alguns instantes. Empenho vosso será,
depois, tornar acessível à inteligência e aos sentimentos popu-
lares quanto dissermos sobre o culto de “Cristo-Rei”, de modo
que a nova festa anual produza agora e no porvir múltiplos
frutos.

FUNDAMENTO DOUTRINAL DA NOVA FESTA


Cristo-Rei no sentindo metafórico
4. Muito há que a linguagem corrente dá a Cristo o nome de “Rei
em sentido metafórico e transposto”. “Rei” é Cristo, com efeito, atesta a
eminente e suprema perfeição com que sobrepuja a todas as criaturas.
Assim, dizemos que “rei- na sobre as inteligências humanas” por causa da
penetração do seu espírito e da extensão de sua ciência, mas sobretudo
porque é a própria Verdade em pessoa, de quem, portanto, é força que
recebam rendidamente os homens toda verdade. Di- zemos que “reina
sobre as vontades humanas”, porque n’Ele se alia indefectível santidade
do divino querer com a mais reta, a mais submissa das vontades
humanas; e também porque as inspirações entusiasmam nossa vontade
livre pelas causas mais nobres. Dizemos, enfim, que é “Rei dos corações”,
por causa daquela inefável “caridade que excede a toda humana
compreensão” (Ef 3, 19); e porque sua doçura e sua bondade atraem os
corações: pois nunca houve, no gênero humano, e nunca haverá quem
tanto amor tenha ateado como Cristo Je- sus.
Cristo Deus-Homem Rei da Humanidade em sentido pró-
prio
5. Aprofundemos sempre mais o nosso argumento. É
manifesto que o nome e o poder de “Rei”, no sentido próprio da
palavra, competem a Cristo em sua Humanidade, porque só de
Cristo enquanto homem é que se pode dizer: do Pai rece- beu
“poder, honra e realeza” (Dn 7, 13-14). Enquanto Verbo,
consubstancial ao Pai, não pode deixar de Lhe ser tudo igual e,
portanto, de ter, como Ele, a suprema e absoluta soberania e
domínio de todas as criaturas.
Testemunho ao Antigo Testamento
6. Que Cristo seja Rei, não o lemos nós na Escritura? Ele é o
“Dominador oriundo de Jacó” (Nm 24, 19), Ele o “Rei, dado pelo Pai a
Sião, sua Santa Montanha, para receber em he- rança as nações. E
dilatar seu domínio até os confins da Terra” (Sl 2, 6-8), Ele o verdadeiro
“Rei vindouro” de Israel, que o cântico nupcial nos representa sob os
traços de um soberano opulento e poderoso, a quem se dirigem estas
palavras: “O teu trono, ó Deus, subsistirá por todos o séculos: a vara da
retidão é a vara do teu reino” (Sl 44, 7). Omitindo muitos passos aná-
logos, deparamos além, como, para delinear com maior nitidez a
fisionomia de Cristo, vem predito que seu reino desconhece- rá fronteiras
e desfrutará os tesouros da justiça e da paz. “Nos dias d’Ele, aparecerá
justiça e abundância de paz... E dominará de mar a mar, e desde o rio
até os confins da Terra” (Sl 71, 7-8). A esses testemunhos, juntam-se
mais numerosos ainda os oráculos dos Profetas, e notadamente a tão
conhecida profecia de Isaías: “Já um Pequenino se acha nascido para
nós, e um filho nos foi dado, e foi posto o principado sob o seu ombro; e o
nome com que se apelide será Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai
do futuro século, Príncipe da Paz. O seu império se estenderá cada vez
mais, e a paz não terá fim; assentar-se-á sobre o trono de Davi e sobre o
seu reino, para o firmar e forta- lecer em juízo e justiça, desde então e
para sempre (Is 9, 6-7).
7. Não é outro o modo como se expressam os demais Profetas.
Assim fala Jeremias, quando prenuncia à descendên- cia de Davi “um
germe de justiça”, esse filho de Davi, que reinará como Rei, “será sábio e
obrará segundo a equidade e justiça na Terra” (Jr 23, 5). Assim Daniel,
quando prediz a constituição por Deus de um reino “que não será jamais
dissi- pado... e que durará eternamente” (Dn 2, 44). E pouco depois
acrescenta: “Eu considerava estas coisas numa visão de noite, e eis que vi
um, como o Filho do Homem, que vinha com as nuvens do Céu, e que
chegou até o Antigo dos dias; e eles o apresentaram diante d’Ele. E Ele
Lhe deu o poder, e a honra, e o reino; todos os povos, e tribos e línguas o
servirão: o seu poder eterno, que lhe não será tirado, e o seu reino tal,
que não será jamais corrompido” (Dn 7, 13-14). Assim Zacarias, quan-
do profetiza a entrada em Jerusalém, entre as aclamações do povo, do
“Justo e Salvador”, do Rei cheio de mansidão “mon- tado sobre uma
jumenta, e sobre o potrinho da jumenta” (Zc 9, 9). E não apontaram os
Evangelistas o cumprimento desta profecia?
Testemunho do Novo Testamento
8. Esta doutrina de “Cristo Rei”, que acabamos de es- boçar
segundo os livros do Antigo Testamento, bem longe de apagar-se nas
páginas do Novo, bem ali, ao invés, confirma- da do modo mais esplêndido
e em termos admiráveis. Bastará lembrar apenas a mensagem do
Arcanjo à Virgem, a anunciar-
-lhe que dará à luz um Filho; a este Filho, Deus outorgará “o
trono de Davi, seu pai, e reinará eternamente na casa de Jacó,
e seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33). Ouçamos agora o tes-
temunho do próprio Cristo no tocante à sua soberania. Sempre
que se Lhe oferece ensejo, em seu último discurso ao povo
sobre a recompensa e os castigos que, na vida eterna, aguar-
dam os justos e os maus, em sua resposta ao governador
roma- no que Lhe perguntará se era Rei; depois de sua
ressureição, quando confia aos Apóstolos a missão de
instruírem e batiza-
rem todas as nações, reivindica o título de “Rei” (Mt 25, 31-
40), e publicamente declara que é “Rei” (Jo 18, 37) e que “todo
poder Lhe foi dado no Céu e sobre a Terra” (Mt 28, 18). Que
entende com isto, senão afirmar a extensão de sua potência, a
imensidade do seu reino? À vista disto, deverá fazer-nos estra-
nheza que S. João o proclame “Príncipe dos reis da Terra” (Ap
1, 5)? Ou que, aparecendo o próprio Jesus ao mesmo Apóstolo
em suas visões proféticas “traga escrito no vestido e na coxa:
Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 19, 16)?. O Pai, com
efeito, constituiu a Cristo “herdeiro de todas as coisas” (Hb 1,
1). Cumpre que reine até o fim dos tempos, quando “arrojará
todos os seus inimigos sob os pés de Deus e do Pai” (I Cor 15,
25).
Testemunho da Liturgia
9. Desta doutrina comum a todos os livros santos, natu- ralmente
dimana a seguinte consequência: justo é que a Igreja Católica, reino de
Cristo na Terra, chamada a estender-se a todos os homens, a todas as
nações do universo, multiplicando os preitos de veneração, celebre, no
ciclo anual da Liturgia Santa a seu Autor e Instituidor como a Rei, como a
Senhor, como a Rei dos reis. Com admirável variedade de fórmulas,
estas homenagens expressam um e o mesmo pensamento; desses
títulos servia-se a Igreja outrora no divino ofício e nos antigos
sacramentais; repete-os ainda agora, nas preces públi- cas que todos os
dias dirige à Infinita Majestade e na oblação da Hóstia Imaculada. Nesse
louvor ininterrupto de Cristo-Rei, nota-se para logo a formosa harmonia
dos nossos ritos com os ritos orientais, verificando-se aqui também a
verdade, do pro- lóquio: “as normas da oração confirmam os princípios da
Fé”.
Argumento teológico
10. O fundamento sobre que pousa esta dignidade e poder
de Nosso Senhor, define-o exatamente S. Cirilo de Ale- xandria, quando
escreve: “Numa palavra possui o domínio de
todas as criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, se-
não em virtude de sua essência e natureza” (in Lucam, 10).
Esse poder dimana daquela admirável união que os teólogos
chamam de “hipostática”. Portanto, não só merece Cristo que
anjos e homens O adorem como seu Deus, senão também
homens e anjos devem prestar-Lhe submissa obediência como
a Homem. E assim, só em força dessa união, a Cristo cabe o
mais absoluto poder sobre todas as criaturas, posto que
durante sua vida mortal renunciasse ao exercício desse
domínio.
Mas haverá, outrossim, pensamento mais suave do que
refletir que Cristo é nosso Rei não só por direito de natureza,
mas também a título de Redentor? Lembrem-se os homens es-
quecidos de quanto custamos a nosso Salvador. “Não fostes
resgatados a preço de coisas perecíveis, prata ou ouro, mas
com o sangue precioso de Cristo, como de cordeiro sem ma-
cha nem defeito” (I Pd 1, 18-19). Já nos não pertencemos, pois
que deu Cristo por nós “tão valioso resgate” (I Cor 6, 20). Até
nossos corpos são “membros de Cristo” (I Cor 6, 15).

ÍNDOLE DA REALEZA DE CRISTO


A Cristo-Rei cabe o poder legislativo, judicial, executivo
11. Para dizer, em poucas palavras, a importância e índole
desta realeza, será apenas necessário asseverar que abrange o tríplice
poder constitutivo, essencial de toda realeza verdadeira. Provam-no de
sobejo os testemunhos de toda a Es- critura no tocante à dominação
universal de nosso Redentor, e é artigo de fé católica: Cristo Jesus foi
dado aos homens não só como Redentor, que lhes merece toda
confiança, mas também como Legislador, a quem devemos prestar
obediência (Conc. Trid., Sess. 6, can.21). E com efeito, não dizem os
Evange- lhos tão só que promulgou leis, mas no-lo representam no ato de
promulgar as leis. A quantos observarem os seus precei- to, declara o
Divino Mestre, em várias ocasiões e de diversos
modos, que com isto mesmo Lhe hão de provar o seu amor e
permanecer em sua caridade (Jo 14, 15; 15, 10). Quanto ao
“poder judicial”, declara o próprio Jesus havê-lo recebido de
seu Pai, em resposta aos judeus, que o haviam acusado de vio-
lar o descanso do sábado, curando milagrosamente neste dia
a um paralítico. “O Pai”, disse-lhes o Salvador, “não julga a
ninguém, mas deu todo juízo ao Filho” (Jo 5, 22). Esse poder
judicial igualmente inclui o “direito”, que não se pode dele
separar, de “premiar” e “punir” aos homens, mesmo durante a
vida. A Cristo compete o “poder executivo”, porquanto devem
todos sujeitar-se ao seu domínio, e quem for rebelde não pode-
rá evitar a condenação e os suplícios, que Jesus prenunciou.
Realeza espiritual
12. Esta realeza, porém, é principalmente interna e respeita
sobretudo a ordem espiritual. Provam-no com toda evidência as palavras
da Escritura acima referidas, e, em mui- tas circunstâncias, o proceder do
próprio Salvador. Quando os Judeus, e até os Apóstolos, erradamente
imaginavam que o Messias libertaria seu povo para restaurar o reino de
Israel, Jesus desfez o erro e dissipou a ilusória esperança. Quando,
tomada de entusiasmo, a turba que O cerca O quer proclamar rei, com a
fuga furta-se o Senhor a estas honras, e oculta-se. Mais tarde, perante o
governador romano, declara que seu rei- no “não é deste mundo”. Neste
reino, tal como no-lo descreve o Evangelho, é pela penitência que devem
os homens entrar. Ninguém, com efeito, pode nele ser admitido sem a fé
e o ba- tismo; mas o batismo, conquanto seja um rito exterior, figura e
realiza uma regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de Satanás
e ao poder das trevas; de seus adeptos exige o des- prendimento não só
das riquezas e dos bens terrestres, como ainda a mansidão, a fome e
sede de justiça, a abnegação de si mesmo, para carregar com a cruz. Foi
para adquirir a Igreja que Cristo, enquanto “Redentor”, verteu o seu
sangue; para isto é que, enquanto “Sacerdote”, se ofereceu e de contínuo
se
oferece como vítima. Quem não vê em consequência que sua
realeza deve ser de índole toda espiritual, e participar da natu-
reza deste seu duplo ofício?
13. Todavia, fora erro grosseiro denegar a Cristo Ho- mem a
soberania sobre as coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai
recebeu Jesus o mais absoluto domínio das cria- turas, que Lhe permite
dispor delas todas como Lhe aprouver. Contudo, enquanto viveu sobre a
Terra, absteve-se totalmente de exercer este domínio temporal, e
desprezou a posse e o re- gimento das coisas humanas, que deixou, e
deixa ainda, ao ar- bítrio e domínio dos homens. Verdade graciosamente
expressa no conhecido verso: “Não arrebata diademas terrestres, quem
distribui coroas celestes” — Noneripit mortalia, qui regna dat caelestia
(Hino Crudelis Herodes, Of. da Epif.).
Realeza universal
14. Assim, pois, a realeza do nosso Redentor abraça a totalidade
dos homens. Sobre este ponto, de muito bom grado fazemos Nossas as
palavras seguintes de Nosso Predecessor Leão XIII, de imortal memória:
“Seu império não abrange tão só as nações católicas ou os cristãos
batizados, que juri- dicamente pertencem à Igreja, ainda quando dela
separados por opiniões errôneas ou pelo cisma: estende-se, igualmente e
sem exceções aos homens todos, mesmo alheios à fé cristã, de modo
que o império de Cristo Jesus abarca, em todo rigor da verdade, o gênero
humano inteiro” (Encícl. Annum Sacrum, 25 de maio de 1899). E, neste
particular, não cabe fazer distin- ção entre os indivíduos, as famílias e os
Estados; pois os ho- mens não estão menos sujeitos à autoridade de
Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual. Cristo é fonte única
de salvação para as nações como para os indivíduos. “Não há sal- vação
em nenhum outro; porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado
aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos” (At 4, 12). Dele provém
ao Estado como ao cidadão toda pros- peridade e bem estar
verdadeiro. “Uma e única é a fonte da
ventura, assim para as nações como para os indivíduos, pois
outra coisa não é a cidade mais que uma multidão concorde de
indivíduos” (S. Aug., Epist, ad Macedonium, c.3). Não podem,
pois, os homens de governo recusar à soberania de Cristo, em
seu nome pessoal e no de seus povos, públicas homenagens de
respeito e submissão. Com isso, além de sustentarem o próprio
poder, hão de promover e aumentar a prosperidade nacional.

BENEFÍCIOS SOCIAIS DESTA REALEZA

Crise da autoridade
15. Ao subirmos à cátedra pontifical, deplorávamos o
lastimável decaimento em que vemos abatido o prestígio do direito e a
reverência à autoridade. Quanto então dizíamos não é hoje menos atual
ou oportuno. “Excluídos da legislação e dos negócios públicos, Deus e
Jesus Cristo, e derivando, os que regem, o seu poder, não já do alto, mas
dos homens, aconteceu que ruiu o próprio fundamento da autoridade, em
consequên- cia de estar removida a razão fundamental do direito que a
uns assiste de mandar, e da obrigação consequente que têm outros de
obedecer. Seguiu-se daí forçosamente um abalo na huma- na sociedade
inteira, falha assim de amparo e sustentáculo fir- me” (Encícl. Ubi arcano,
DP 19). Se soubessem resolver-se os homens a reconhecer a autoridade
de Cristo em sua vida particular e pública, para logo deste ato dimanariam
em toda a humanidade incomparáveis benefícios: uma justa liberdade, a
ordem e o sossego, a concórdia e a paz.
No interior dos Estados
16. Com dar à autoridade dos príncipes e chefes de go-
verno certo caráter sagrado, a dignidade real de Nosso Senhor enobrece
com isto mesmo os deveres e a sujeição dos cidadãos.
Tanto assim que o Apóstolo S. Paulo, depois de prescrever às
mulheres casadas e aos escravos de reconhecerem a Cristo na
pessoa de seus maridos e senhores, lhes recomendava, ainda
assim, de obedecerem não servilmente, como a homens, mas
tão só em espírito de fé como a representantes de Cristo, por-
que é indigno de uma alma resgatada por Cristo obedecer com
servilismo a um homem. “Fostes resgatados com grande preço:
não estejais sujeitos já como escravos a homens” (I Cor 7, 23).
Se os príncipes e governos legitimamente constituídos tives-
sem a persuasão de que regem menos no próprio nome do que
em nome e lugar do Rei Divino, é manifesto que usariam do seu
poder com toda a prudência, com a toda a sabedoria pos-
síveis. Em legislar e na aplicação das leis, como haveriam de
atender ao bem comum e à dignidade humana de seus súditos!
Então floresceria a ordem, então víramos difundir-se e firmar-
-se a tranquilidade e a paz; embora o cidadão reconhecesse nos
príncipes e chefes de governo homens iguais a si pela natureza
ou mesmo, por algum respeito, indignos ou repreensíveis, não
por isto deixará de lhes obedecer, por depreender neles a ima-
gem e autoridade de Cristo, Deus-Homem.
Vantagens sociais para as nações
17. Pelo que respeita à concórdia e à paz, é manifesto que
quanto mais vasto é um reino, quanto mais largamente abraça o gênero
humano, tanto é maior a consciência em seus membros do vínculo de
fraternidade que os une. Esta cons- ciência, assim como remove e
dissipa os frequentes conflitos, assim também atenua e suaviza os
amargores que dos confli- tos nascem. E se o reino de Cristo abarcara de
fato, como de direito abarca, as nações todas, por que deveríamos
perder a esperança dessa paz que à Terra veio trazer o Rei pacífico,
esse Rei que veio “para reconciliar todas as coisas” (Cl 1, 10), “que não
veio para ser servido, mas para servir aos outros” (Mc 10,
45) e que, embora “Senhor de todos” (Gl 4, 1), deu exemplo de
humildade e principalmente inculcou esta virtude, de envolta
com a caridade, acrescentando: “Meu jugo é suave, e é leve
minha carga” (Mt 11, 30)? Oh! que ventura não pudéramos go-
zar, se os indivíduos, se as famílias, se a sociedade se
deixasse reger por Cristo! “Então”, finalmente para citarmos as
palavras que, há 25 anos, Nosso Predecessor Leão XIII dirigia
aos Bis- pos do mundo inteiro, “então fora possível sanar tantas
feridas; o direito recobrara seu antigo viço, seu prestígio de
outras eras; então tornaria a paz com todos os seus encantos e
cairiam das mãos armas e espadas, quando todos de bom
grado aceitassem o império de Cristo, Lhe obedecessem, e
toda língua procla- masse que “Nosso Senhor Jesus Cristo está
na glória de Deus Pai” (Enc. Annum Sacrum).

A FESTA DE JESUS CRISTO-REI


18. E a fim de que a sociedade cristã goze largamente de
tão preciosas vantagens e para sempre as conserve, é pre- ciso que se
divulgue quanto possível o conhecimento da dig- nidade real de Nosso
Salvador. Ora, nada pode, pelo que Nos parece, conseguir melhor este
resultado do que a instituição de uma festa própria e especial em honra
de Cristo-Rei.
Influência da liturgia na vida cristã
19. Com efeito, para instruir o povo nas verdades da fé e
levá-lo assim às alegrias da vida interna, mais eficazes que os
documentos mais importantes do Magistério eclesiástico são as
festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos do
Magistério, de fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos
mais cultos, ao passo que as festas atingem e instruem a universalidade
dos fiéis. Os primeiros, por assim dizer, falam uma vez só, as segundas
falam sem intermitência de ano para ano; os primeiros dirigem-se,
sobretudo, ao entendimento; as segundas influem não só sobre a
inteligência, mas também no coração, quer dizer, no homem todo.
Composto de corpo e
alma, precisa o homem dos incitamentos exteriores das festi-
vidades, para que através da variedade e beleza dos sagrados
ritos recolha no ânimo a divina doutrina, e, transformando-a em
substância e sangue, tire dela novos progressos em sua vida
espiritual.
Origem histórica e providencial das festas na Igreja
20. Além disso, ensina-nos a própria história, que es- tas
festividades litúrgicas foram introduzidas, no decorrer dos séculos, umas
após outras, para responder a necessidades ou vantagens espirituais do
povo cristão. Foram-se constituindo para fortalecer os ânimos em
presença de algum perigo co- mum, para premunir os espíritos contra os
ardis da heresia, para mover e inflamar os corações a celebrar com mais
ardente piedade algum mistério de nossa fé ou algum benefício da divi-
na graça. Assim é que, desde os primeiros tempos da era cristã, quando
acossados das mais cruentas perseguições os fiéis co- meçaram, com
sagrados ritos, a comemorar os mártires, para que, como diz S.
Agostinho, “as solenidades dos mártires fos- sem exortação ao martírio”
(Sermão 47, de Sanctis). As honras litúrgicas, mais tarde decretadas aos
confessores, às virgens, às viúvas contribuíram singularmente para
promover nos fiéis o zelo pela virtude, indispensável mesmo em tempo de
paz. Especialmente as festas em honra da Virgem Beatíssima fize- ram
com que o povo cristão não só tributasse à Mãe de Deus, sua Protetora
por excelência, culto mais assíduo, senão que ao mesmo tempo fosse de
contínuo crescendo seu amor filial à Mãe que o Redentor lhe deixara como
que em testamento. Dentre os benefícios que dimanaram do culto público
e legiti- mamente prestado à Mãe de Deus e aos Santos do Céu, não é
menor a vitória constante com que a Igreja se cobriu de louros, ao
debelar e repelir a heresia e o erro. E nisto devemos admirar os
desígnios da Divina Providência, que segundo costuma tira o bem do mal.
Permitiu que, de tempos a tempos, entibiasse a fé e a piedade popular;
permitiu que doutrinas errôneas armas-
sem insídias à piedade católica, mas sempre com o intuito de
fazer finalmente fulgir a verdade com novo esplendor e mover
os fiéis, despertos da tibieza, a tenderem com novo zelo a graus
mais elevados de santidade e perfeição cristã. Idêntica é a ori-
gem, idênticos os frutos que produziram as solenidades recen-
temente introduzidas no calendário litúrgico. Tal é a festa do
“Corpus Christi”, instituída quando se esfriava a reverência e o
culto para com o SS. Sacramento; celebrada com brilho sin-
gular por oito dias de suplicações coletivas, a nova solenidade
devia reconduzir os povos à adoração pública do Senhor. Tal é a
festa do Coração Santíssimo de Jesus estabelecida na época
em que, abatidos e desalentados pelas tristes doutrinas e o ri-
gorismo sombrio do jansenismo, os fiéis sentiam seus corações
regelados e com escrúpulo deles excluíam todo sentimento de
amor de Deus e a esperança de conseguirem a eterna
salvação.
Oportunidade da festa
21. Para Nós também soou a hora de provermos às ne-
cessidades dos tempos presentes e de opormos um remédio eficaz è
peste que corrói a sociedade humana. Fazemo-lo, pres- crevendo ao
universo católico ao culto de Cristo-Rei. Peste de nosso tempo é o
chamado “laicismo”, com seus erros e atenta- dos criminosos.
Excessos do laicismo
22. Como bem sabeis, Veneráveis Irmãos, não é num dia
que esta praga chegou à sua plena maturação; há muito, estava latente
nos Estados modernos. Começou-se, primeiro, a negar a soberania de
Cristo sobre todas as nações; negou-se, portanto, à Igreja o direito de
doutrinar o gênero humano, de legislar e reger os povos em ordem à
eterna bem-aventuran- ça. Aos poucos, foi equiparada a religião de Cristo
aos falsos cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo nível. Sujei-
taram-na, em seguida, à autoridade civil, entregando-a, por assim dizer,
ao capricho de príncipes e governos. Houve até
quem pretendesse substituir à religião de Cristo um simples
sentimento de religiosidade natural. Certos Estados, por fim,
julgaram poder dispensar-se do próprio Deus e fizeram con-
sistir sua religião na irreligião e no esquecimento consciente e
voluntário de Deus.
Frutos perniciosos do laicismo
23. Os frutos sobremodo amargosos que, tantas vezes e com
tanta persistência, produziu esta apostasia dos indiví- duos e dos Estados,
que desertam a Cristo, expendemo-lo na Encíclica “Ubi arcano”.
Tornamos a lamentá-los hoje. Frutos desta apostasia são os germes de
ódio esparsos por toda parte, as invejas e rivalidades entre nações, que
alimentam as dis- córdias internacionais e dificultam ainda agora a
restauração da paz; frutos desta apostasia as ambições desenfreadas,
que muitas vezes se encobrem com a máscara do interesse público e do
amor da pátria, e suas tristes consequências: dissensões civis, egoísmo
cego e desmedido, sem outro fito nem outra regra mais que vantagens
pessoais e proveitos particulares. Fruto desta apostasia a perturbação da
paz doméstica, pelo es- quecimento e desleixo das obrigações familiares,
o enfraque- cimento da união e estabilidade no seio das famílias, e por fim
o abalo na sociedade toda, que ameaça ruir.
Pusilanimidade de certos católicos 24. A festa, doravante
anual, de “Cristo-Rei” dá-nos a mais viva esperança de ace-
lerarmos a tão desejada volta da humanidade a seu Salvador
amantíssimo. Fora, com certeza, dever dos católicos apressar
e preparar essa volta com diligente empenho; a muitos de- les,
contudo, pelo que parece, não toca, na sociedade civil, o posto
e a autoridade que conviriam aos apologistas da fé. Tal- vez
deva este fato atribuir-se à indolência e timidez dos bons que
se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde
provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de
pretensões e de audácia. Mas, desde que a massa dos fiéis se
compenetre de que é obrigação sua combater com valentia e
sem tréguas sob os estandartes de Cristo-Rei, o zelo apostólico
abrasará seus corações, e todos se esforçarão de reconciliar
com o Senhor as almas que o ignoram ou dele desertaram; to-
dos, enfim, se esforçarão por manter inviolados os direitos do
próprio Deus.
Protesto e reparação
25. Mas não basta. Uma festa anualmente celebrada
por todos os povos em homenagem a Cristo-Rei será sobre-
maneira eficaz para condenar e ressarcir, de algum modo, esta
apostasia pública, tão desastrada para as nações, gerada pelo
laicismo. Com efeito, quanto mais vergonhosamente se pas- sa
em silêncio, quer nas conferências internacionais, quer nos
Parlamentos, o nome suavíssimo do nosso Redentor, tanto
mais alto o devemos aclamar, tanto mais devemos reconhecer
os direitos que a Cristo conferem sua dignidade e poder real.

CONVENIÊNCIAS ATUAIS DA INSTITUIÇÃO DA FESTA


Precedentes da festa de Cristo-Rei
26. E quem não vê que, desde os últimos anos
do século passado, se ia de modo admirável preparando o
caminho à ins- tituição desta festa? Ninguém, com efeito, ignora
como, com livros que se escreveram nas várias línguas do
mundo inteiro, este culto foi explicado e doutamente defendido.
Sabem todos que a autoridade e realeza de Cristo foi já
reconhecida pela piedosa prática de se consagrarem e
dedicarem ao Sagrado Co- ração de Jesus famílias
inumeráveis. E não só as famílias, mas também Estados e
reinos praticaram o mesmo ato. Antes, por iniciativa e direção
de Leão XIII, o gênero humano inteiro foi felizmente
consagrado a este Coração Santíssimo, no correr do Ano
Santo de 1900. Não podemos preterir os congressos
eucarísticos que nossa época viu multiplicar-se em tão grande
número. Tão bem serviram à causa da solene proclamação hu-
mana. Reunidos para apresentar à veneração e às
homenagens populares de uma diocese, de um província, de
uma nação, ou mesmo do mundo inteiro, Cristo-Rei, oculto sob
os véus eucarísticos, esses congressos, em conferências
realizadas nas suas assembleias, em sermões proferidos nas
igrejas, por meio da exposição pública ou da adoração em
comum do Santíssi- mo Sacramento e de grandiosas
procissões, enaltecem a Cristo como a Rei que de Deus
receberam os homens. Este Jesus, que os ímpios recusaram
acolher quando veio a seu reino, pode-se dizer, com toda a
verdade, que o povo cristão, movido de uma inspiração divina,
vai arrancá-Lo ao silêncio e, por assim di- zer, à obscuridade
dos templos, para levá-Lo, qual triunfador, pelas ruas das
grandes cidades e reintegrá-Lo em todos os di- reitos de sua
realeza.
Excelentes disposições dos fiéis ao saírem do jubileu
27. Para a realização deste Nosso desígnio, de que
acabamos de falar, oferece-Nos ensejo sumamente oportuno o
“Ano Santo” que finda. Este ano veio relembrar ao espírito e ao
coração dos fiéis os bens celestes que sobrepujam todo
sentimento natural. Em sua bondade infinita, Deus restitui a uns a
sua graça, e confirma a outros no bom caminho, infundindo-
lhes novo ardor para aspirarem a dons mais perfeitos. Quer
atendamos às numerosas súplicas que nos foram dirigidas,
quer consideremos os acontecimentos que se deram no correr
do “Ano Santo”, sobeja razão nos assiste de pensarmos que
deveras para Nós soou a hora de proferirmos a sentença tão
ansiosamente de todos aguardada e que decretemos uma festa
especial em honra de Cristo, Rei de todo o gênero humano.
Durante este ano, com efeito, como a princípio dissemos, este
divino Rei, deveras admirável em seus Santos, conquistou no-
vos triunfos, com elevação às honras dos altares de mais um
punhado de soldados seus. Durante este ano, uma exposição
extraordinária pôs ante os olhos do mundo as fadigas e, de al-
gum modo, os próprios trabalhos dos arautos do Evangelho, e
todos puderam admirar as vitórias ganhas por esses campeões
de Cristo, para a extensão do seu reino; durante este ano, final-
mente, com o centenário do Concílio de Nicéia, comemora-
mos, contra os seus detratores, a defesa e definição do dogma
da consubstancialidade do Verbo Humano com seu Pai, ver-
dade na qual descansa, como em fundamento, a soberania de
Cristo sobre todos os povos.
Data e modalidade da festa
28. Portanto, em virtude de Nossa autoridade apostó-
lica, instituímos a festa de “Nosso Senhor Jesus Cristo-Rei”,
mandando que seja celebrada cada ano, no mundo inteiro, no
último domingo de outubro imediato à solenidade de Todos os
Santos. Prescrevemos igualmente que cada ano se renove,
nesse dia, a consagração do gênero humano ao Coração de
Jesus, que já Nosso Predecessor de saudosa memória Pio X
ordenara se fizesse anualmente. Contudo, queremos que neste
ano a renovação se faça a 31 de dezembro; nesse dia, cele-
braremos missa pontifical em honra de “Cristo-Rei”, e man-
daremos proferir, em Nossa presença, o ato de consagração.
Quer parecer-Nos que não pode haver melhor encerramento do
“Ano Santo”, e que destarte daremos a “Cristo, Rei Imortal dos
séculos”, o testemunho mais eloquente de nossa gratidão e do
reconhecimento do universo católico, de quem Nos faze- mos
intérpretes, pelos benefícios que neste período de graças
concedeu a Nós mesmo, à Igreja, à cristandade toda.
Objeto formal da nova festa
29. É escusado, Veneráveis Irmãos, explicar-
vos longa- mente os motivos de uma festa especial em honra
de “Cristo-
-Rei”. Pois, conquanto outras festas já existentes enalteçam e
de algum modo glorifiquem sua dignidade real, basta, contudo,
observar que se todas as festas de Nosso Senhor têm a
Cristo,
segundo a linguagem dos teólogos, por “objeto material”, de
modo algum é o poder apelativo de Rei “objeto formal” das
mesmas.
Seu lugar no ciclo litúrgico
30. Fixando a nova festa em um domingo, quisemos que
não só o clero fosse o único em prestar suas homenagens a
“Cristo-Rei”, com a celebração do Santo Sacrifício e a reza do
Santo Ofício, mas que o povo, desimpedido de suas ocupações
ordinárias, e animado de santa alegria, pudesse dar a Cristo,
como a seu Senhor e Soberano, um manifesto testemunho de
obediência. Finalmente mais apropriado Nos pareceu o último
domingo de outubro, porque este domingo, em certo modo,
encerra o ciclo do ano litúrgico; destarte, os mistérios da vida
de Jesus Cristo, comemorados no decorrer do ano que finda,
terão na solenidade de “Cristo-Rei” seu como termo e coroa, e
antes de celebrar a glória de todos os Santos, a liturgia procla-
mará e enaltecerá a glória d’Aquele que em todos os Santos e
em todos os eleitos triunfa. É dever, é direito vosso, Veneráveis
Irmãos, fazer preceder a festa por uma série de instruções que
se deem em dias determinados nas diferentes paróquias, para
instruir acuradamente o povo da natureza, significado e im-
portância desta festa, por onde os fiéis regulem a sua vida em
modo a torná-la digna de súditos leais e submissos de coração
à soberania do Divino Rei.
Esperanças e augúrios
31. Ao fecharmos esta carta, quiséramos ainda, Vene-
ráveis Irmãos, expor-vos brevemente os frutos, que, tanto para
a Igreja e a sociedade civil, como para cada um dos fiéis, espe-
ramos deste culto público prestado a Cristo-Rei.
Melhor compreensão dos direitos da Igreja
32. A obrigação de tributar à soberania de Nosso Se-
nhor as homenagens a que nos referimos relembra juntamente
aos homens os direitos da Igreja. Instituída por Cristo, que lhe
deu a forma orgânica de sociedade perfeita, exige, em virtude
deste direito, que dimana de sua origem divina e que ela não
pode abdicar, a plena liberdade, a independência absoluta do
poder civil. No desempenho de sua divina missão de ensinar,
reger e conduzir à eterna felicidade todos os membros do rei-
no de Cristo, não pode, de modo algum, depender de vontade
estranha. Antes, idêntica liberdade deve o Estado conceder às
ordens e congregações religiosas de ambos os sexos, pois são
os auxiliares mais firmes dos Pastores da Igreja, os que mais
eficazmente se empenham em difundir e confirmar o reinado de
Cristo, primeiro debelando em si, com a profissão religio- sa, o
mundo e sua tríplice concupiscência, e depois, pelo fato de
haverem abraçado uma profissão de vida mais perfeita, fa-
zendo resplandecer aos olhos de todos, com fulgor contínuo e
cada dia crescente, esta santidade de que o divino Fundador
quis fazer uma nota distinta de sua Igreja autêntica.
Restauração do culto público e oficial
33. Com a celebração anual desta festa hão de
relem- brar-se, outrossim, os Estados que aos governos e à
magistra- tura incumbe a obrigação, bem assim como aos
particulares, de prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às
suas leis. Lem- brar-se-ão também os chefes da sociedade civil
do juízo final, quando Cristo acusará aos que o expulsaram da
vida pública, e a quantos, com desdém, o desprezaram ou
desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o Supremo
Juiz a mais terrível vingança; seu poder real, com efeito, exige
que o Estado se reja totalmente pelos mandamentos de Deus e
os princípios cristãos, quer se trate de fazer leis, ou de
administrar a justiça, quer da educação intelectual e moral da
juventude, que deve respeitar a sã doutrina e a pureza dos
costumes.
Grande impulso à piedade dos fiéis
34. Que energias, além disso, que virtude não pode- rão
os fiéis haurir da meditação destas verdades, para amol- dar
seus espíritos aos princípios verdadeiros da vida cristã! Se
todo o poder foi dado ao Senhor Jesus, no céu e na terra, se
os homens, resgatados pelo seu sangue preciosíssimo, se
tornam com novo título súditos de seu império, se finalmente
este po- der abraça a natureza humana em seu conjunto, é
claro que nenhuma de nossas faculdades se pode subtrair a
essa realeza. É preciso, pois, que reine em nossas
inteligências: com plena submissão, com adesão firme e
constante, devemos crer as ver- dades reveladas e os ensinos
de Cristo. É preciso que reine em nossas vontades: devemos
observar as leis e os mandamentos de Deus. É preciso que
reine em nossos corações: devemos mortificar nossos afetos
naturais, e amar a Deus sobre todas as coisas. É preciso que
reine em nossos corpos e em nossos membros: devemos
transformá-los em instrumentos, ou, para falarmos com São
Paulo (Rm 6, 13), “em armas de justiça, ofe- recidas a Deus”,
para aumento da santidade de nossas almas. Eis os
pensamentos que, propostos à reflexão dos fiéis e aten-
tamente ponderados, hão de facilmente levá-los a mais elevada
perfeição.
Augúrio final
35. Praza a Deus, Veneráveis Irmãos, que os ho- mens,
afastados da Igreja, procurem e aceitem, para salvação de
suas almas, o jugo suave de Cristo. Quanto a nós todos, por
divina misericórdia, súditos e filhos seus, queira Deus que
levemos este jugo, não de má vontade, mas com pra- zer, mas
com amor, mas santamente. Assim, no decorrer de uma vida
pautada pelas leis do reino do céu, recolheremos, alegres,
grande cópia de frutos, e mereceremos que Cris- to,
reconhecendo-nos por bons e fiéis servidores de seu rei- no
terrestre, nos admita depois a participar com Ele da eter- na
felicidade e da glória sem fim em seu reino celeste.
Aceitai, Veneráveis Irmãos, ao decorrerem as festas na-
talícias do Senhor, este presságio e este augúrio, como prova
de Nosso paternal afeto, e, como penhor de divinos favores,
rece- bei a bênção apostólica, que com toda a alma vos
concedemos a Vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso clero e à
vossa grei.
Dada em Roma, junto a S. Pedro, aos 11 de dezembro
do Ano Santo de 1925, quarto do Nosso Pontificado.
PIO PP. XI

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