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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
¿as

ANO XI — N? 128
AGOSTO DE 1970
ESTRANHO ENCONTRÓ

Revolvendo os documentos da sabedoria antiga a procura


de luz para nossos tempos, encontramos nao poucos textos cujo
valor é perene. Tal é o caso da conhecida lenda hindú que
Tagore coloca nos labios de um mendigo:
«Eu havia caminhado pela estrada da aldeia, a bater de
porta em porta, quando teu coche de ouro apareceu ao longe,
semelhante a um sonho espléndido. Eu admirava o que pode-
ria ser ésse Rei de todos os reis!

Minhas esperangas se exaltaram, e eu pensava: 'Acaba-


ram-se os meus días maus*. Eu me colocava na expectativa
de esmolas espontáneas e de riquezas esparsas por toda a parte
sobre o chao.

O coche parou onde eu me encontrava. Teu olhar se fixou


sobre mim, e desceste com sorriso. Sentí que a grande chance
de minha vida havia finalmente chegado. De repente, porém.
estendeste á máo direita e disseste: 'Que tens para me dar?'
Ah, que brincadeira de rei era essa: estender a máo ao
mendigo para mendigar! Vi-me confuso e permanecí perplexo;
por fim, de minha sacóla tirei vagarosamente um minúsculo
grao de trigo e o dei a ti.

Todavia qual nao foi minha surprésa quando, no fim do


dia, esvaziando a sacóla sobre o chao, vi um minúsculo grao
de ouro em meio aos graos de trigo. Chorei amargamente entáo
e pensei: 'Por que nao tive o coragáo aberto para te dar tüdo
que eu tinha?'»

Éste contó — sem dúvida, precioso á luz do pensamento


oriental — é mais valioso ainda em perspectiva crista. Des-
perta a consciéncia, abre os olhps: muitas vézes lidamos com
valores invisíveis, encobertos por aparéncias contraditórias ou
paradoxais; mal avaliamos o alcance de certos acontecimentos
da vida, principalmente daqueles que nos pedem doacáo, ge-
nerosidade. É Deus entáo quem pede, e pede para dar, para
se dar, para excitar abertura e receptívidade da parte da cria
tura. A respósta generosa ao Senhor vem a ser fonte de pro
funda alegría, como, reciprocamente, o fechar-se tímido e
mesquinho torna-se motivo de dolor-osa amargura.

— 325 —
O pensamento cristáo expressou de maneira pregnante
estas íderas:
„ «N°s nao possuimos realmente senáo aquilo que demos»
(Frederico Ozanam, grande amigo dos pobres no século pas-
sado).

«Aquéle que nao se dá, é um grao que aborta* (Sertíllan-

«Nossa civilizagáo crista nao é a soma de nossos juros


mas a soma de nossas dádivas» (Antoine de Saint-Exupéry
autor de «O Pequeño Principe»).
Mesmo grandes dentistas, por mais voltados que estives-
sem para o laboratorio e a matemática, fizeram eco a essas
verdades:
«O ideal nao é urna vida confortável; a única coisa para
a qual vale a pena viver, é o dom de si aos outros» (Pasteur).
«Sómente urna vida vivida para os outros vale a pena de
ser vivida» (Einstein).
E a quem há de se dar o cristáo?
— Ao seu irmáo, sem dúvida. Nenhum cristáo é táo pobre
que nao possa dar ao menos urna palavra boa, palavra que
seja a expressáo do Cristo que vive em cada um de seus mem-
bros. E, além da palavra, a acáo, o compromisso, sempre que
possível...
Mas o cristáo nao daría auténticamente ao próximo, se
nao se desse a Deus explícitamente reconhecido e amado. O
genuino amor cristáo procede de intimo contato com Deus
cultivado na oracáo e na vida interior. Deus pede também ao
cristáo que se dé a file na sua Santa Igreja, olhando para a
Esposa de Cristo com olhar de fé e espirito sobrenatural, assu-
mindo solidariamente as grandes intengóes e tarefas do Corpo
de Cristo. Deus quer precisar do homens; ninguém é inútil.
Felizes aqueles que vivem em tempos táo cheios de apelos,
apelos que tendem constantemente a sacudir a rotina e a
mediocridade! ... Tempos em que o Grande Rei nos vem fre-
qüentemente ao encontró, de máo aberta para «pedir», ou
melhor, para transformar e enriquecer.
Permita o Senhor tenhamos os olhos abertos para O re-
conhecer e Lhe dar todo o nosso ser, sem regateios!-
«Bis dat qui cito dat» (Dá duas vézes aquéle que dá sem
demora), reza o velho adagio romano.
E.B.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XI — N' 128 — Agosto de 1970

I. VALOR DO CORPO

1) «A doutrina da ressurreicáo dos morfcos é do.utrina


propriamente bíblica?

Bieve ser entendida rigorosamente aínda em nossos días?»

Resumo da resposta: O conceito de ressurreicSo da carne só aos


poucos se Xoi tornando consciente no povo de Israel. Nos últimos es
critos do Antigo Testamento ele Já é claramente formulado. O Senhor
Jesús e SSo Paulo ensinam a ressurreicáo de todos os ir ortos (justos
e pecadores) no dia «nal da historia.
Durante os primeiros sáculos da Igreja, tal doutrina fol ardua
mente escarnecida pelo mundo pagao. Todavía ela faz parte essencial
da mensagem crista, sendo conseqüencia da ressurreicáo corporal de
Jesús Cristo. Com eíoito; todos os homens, principalmente aqueles que
vivem fielmente a vocacao crista, estfio unidos em solidariedade a
Cristo; dai a sorte final que lhes cabera análoga & de Cristo. — O ma
gisterio da Igreja proíessou repetidamente a doutrina das Escrituras,
acentuando que ressurreicáo dos corpos nao se identifica com transml-
grac&o das almas ou metempslcose.
A filosofía impugnou a doutrina crista em nome do platonismo,
intenso ao corpo e á materia; ora o Cristianismo ensina que o corpo
é criatura de Deus, destinada a glorificar, o seu Criador como a auna
humana. Outro objecao se levanta: como poderá o corpo de um de-
funto ser reconstituido após se ter dissolvido em pó esparso pelo uni
verso? Em resposta, os teólogos afirmam que a mesma alma unida a
qualquer materia prima (no sentido da filosofía aristotélico-tomista)
lhe comunica os tragos característicos de seu corpo; alias, no decorrer
mesmo da vida humana o corpo muda toda a sua composicao material
de sete em sete anos.

Resposta: A doutrina da ressurreicáo dos corpos, clássi-


camente transmitida através dos sáculos, foi de novo formu
lada pelo Concilio do Vaticano n, que ensina: «O cristáo, asso-
ciado ao misterio de Páscoa e configurado á morte de Cristo,
irá ao encontró da ressurreigáo, fortalecido pela esperanca»
(Const «Gaudium et Spes» n« 22). Na Constituigáo «Lumen

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4 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 1

Gentium» n» 48, o Concilio apela para os dizeres de Jesús em


Jo 5, 28s a fim de corroborar a proposigáo.
Todavía a doutrina da ressurreigáo sempre encontrou opo
sitores através dos sáculos, pois de certo modo parece consti
tuir um desafío & experiencia comum eásá razáo dos homens.
Eis por que, ñas páginas que se seguem, procuraremos consi
derar os fundamentos bíblicos da mensagem da ressurreieáo
dos corpos, cujo significado será depois confrontado com as
tendencias do pensamento moderno.

1. O pensamento judaico

1.1. As premissas

A doutrina da ressurreigáo da carne nao se encontra ñas


manifestagóes mais antigás do pensamento de Israel. O Senhor
Deus nao a quis revelar senáo paulatinamente. Isto se explica,
em parte, pela necessidade de se manter puro o monoteísmo
em Israel, com exclusáo do culto dos mortos; concepgóes do
Além prematuramente desenvolvidas poderiam ter sido motivo
de tentagáo para o povo judeu (sabe-se que as nagóes pagas,
vizinhas de Israel, erróneamente cultuavam seus mortos).
Todavía pode-se dizer que a crenca na ressurreicáo dos
mortos foi lentamente preparada pela pedagogía divina,
É o que se depreende de certas afirmagóes das Escrituras
Sagradas de Israel como

1.1.1. O poder de Javé sobre o «sheol» (mansáo dos mortos)

Os judeus antigos julgavam que após a morte o ser hu


mano entra em estado de inconsciencia; bons e maus se en-
contrariam em um lugar subterráneo chamado «sheol», donde
ninguém volta K Contudo admitiam que o< Senhor goza de pleno
poder sobre a mansáo dos defuntos. Tenham-se em vista os
seguintes textos:

Am 9,2: «Ainda que éles descam á morada dos mortos, a minha


mSo os tirará de la. Ainda que subam até os céus, de lá os íarei
descer, palavra do Senhor».

1 Cf. Jó 7,9: «Como a nuvem se dissipa e passa, asslm aquéle que


desee ao sepulcro nSo subirá de novo. Nfio voltará outra vez á sua
casa; a sua morada jamáis o reconhecerá».

— 328 —
RESSURREigAO DOS MORTOS

SI 138,8: «Se subir aos céus, V6s ali estáis. Se descer á regiSo dos
mortos, lá vos encontráis», diz o Salmista. 8
Is 7,10s: «O Senhor falou de ndvo a Acaz, dizendo: 'Pede ao Se-
lá do lt £6US Um SÍníd> qUCr "° ÍUnd° da mansá0 dos m°rtos, quer
1 Sam 2,6: «O Senhor é que dá a morte e a vida; leva á hatitacáo
aos mortos e tira déla».

*.,,«Silb 16'J?: *yó?i Senhor» tendes o poder da vida e da morte. Con-


duzis as portas do Hades (mansáo dos mortos) e de lá tiráis».

O poder de Deus sobre a regiáo dos mortos veio a ser o


mais importante ponto de partida da doutrina da ressurreicáo.
Os homens piedosos, em Israel, foram aos poucos concebendo
a esperanga de que o Senhor os tiraría do «sheol» e os res
tauraría, dando-lhes o gozo de urna vida consciente e feliz.
Muito significativo é o SI 15,10: «Vos nao abandonareis a mi-
nha alma na mansáo dos mortos, nem permitiréis que o vosso
Santo sofra a corrupgáo».

1.1.2. Deus autor da vida

As Escrituras freqüentemente apresentam o Senhor como


o Deus vivo e doador da vida, A morte entrou no mundo, con
trariando a um designio de Deus:
«Deus nao é o autor da morte, nem se regozija com a
perdigáo dos vivos, porquanto Ele criou tudo para a existen
cia» (Sab l,13s).
«Deus criou o homem para a imortalidade, e fé-lo á ima-
gem da sua própria natureza. Por inveja do demonio é que a
morte entrou no mundo» (Sab 2,23s). Cf. Gen 2,17; 3,19.
Ora, já que a morte, na atual ordem de coisas, é conse-
qüéncia do pecado e se opóe ao estado original do homem,
compreende-se que judeus piedosos tenham concebido a idéia
de que Deus, de algum modo, restauraría o seu plano inicial,
dando ao homem a vitória sobre a morte.
Esta concepcáo podia ser corroborada por certas narra-
góes de triunfo sobre a morte ou de ressurreicáo de defuntos
esparsas pelas páginas do Antígo Testamento; tenham-se em
vista os feitos de Elias (1 Rs 17,17-24) e Eliseu (2 Rs 4,28-37).
Em 2 Rs 13, 21 lé-se que um cadáver ressuscitou em contato
com os ossos de Eliseu já falecido.
Merece atencáo também o texto de Ez 37,1-14: o profeta
vé urna multidáo de ossos ressequidos que voltam á vida...
Esta passagem prediz a restauragáo do povo de Israel destro-

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970. qu. 1

cado no exilio como se fósse urna ressurreigáo da carne! Assim


o profeta exprime a consciéncia de que Deus pode ressusdtar
os mortos; é porque o pode que Ele também pode restaurar o
povo de Israel.
Tem-se estudado a propósito o texto do profeta Oséias:
«Na sua angustia, procurar-me-áo, dizendo: 'Vinde, voltemos
para o Senhor; pois Ele nos dilacerou, mas nos curará; cau-
sou a ferida, mas nos pensará; dar-nos-á de novo a vida em
dois días; ao terceiro dia nos levantará e viveremos em sua
presenca» (6,ls). Verifíca-se, porém, que éste texto nao fala
própriamente de morte e ressurreigáo, mas, sim, de ferimento
e cura. Por conseguinte, nao pode ser enumerado entre as eta
pas preparatorias da crenca na ressurreicáo.

1.2. A afírmaselo explícita

Finalmente nos tempos próximos á vinda de Cristo a


literatura bíblica passou a afirmar claramente a ressurreicáo
pessoal de todos os homens. É o que se reconhece, por exem-
plo, em Dan 12,1-3:

«Naquele tempo surgirá Miguel, o grande cheíe que protege os


íilhos do teu povo. Será ésse um periodo de angustia tal que nao terá
havido outro semelhante desde que existem nagóes até aquéle tempo.
Ora dentre a populacao do teu povo serSo salvos todos os que se en-
contrarem inscritos no livro. Muitos dos que dormem no pó da térra
acordaráo, uns para a vida eterna, outros para a ignominia, para a
reprovacao eterna. E os sabios resplandecerao como a luminosidade
do firmamento, e os que tiverem levado muitos aos caminhos da jus-
tica brilharao como estrélas com um esplendor eterno» (Dan 12,1-3).

A expressáo ácima «Naquele tempo», vaga como é, apa


rece freqüentemente na literatura profética designando os tem
pos do Messias e o fim da historia. Os «muitos» equivalem a
urna multidáo ou ainda, na concepeáo israelita, a totalidade.
É de notar que a ressurreigáo predita, embora afete todos os
homens, terá a indole.de gloria ou de ignominia de acordó com
os méritos ou os deméritos de cada um.
Deve-se citar também a secgáo de 2 Mac 7,1-29, em que
se léem claros testemunhos dos irmáos macabeus:

«ó malvado, tu nos arrebatas'a vida presente, mas o Rei do uni


verso ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis as suas
leis» (2 Mac 7,9).
«Do céu recebi estes membros do corpo, mas agora desprezo-os
por amor as leis de Deus, e déle espero recebemos de nSvo um dia»
(v.ll).

— 330 —
RESSURREICAO DOS MORTOS

«É urna felicidade perecer pela máo dos homens com a esperanca


de que Deus nos ressuscitará, mas a tua ressurreicáo nao será para
a vida» (v. 14). Cf. w. 23 e 29.

Na descricáo da gloriosa morte de Razis, herói de Israel,


nota o autor sagrado: «Já exangüe, arrancou as entranhas
com as próprias maos, e lancou-as sobre os inimigos, pedindo
ao Senhor da vida e do espirito que Ihas restituísse um dia.
Desta maneira acabou a vida» (2 Mac 14,46).
Por último, é valiosa a observagáo: «Se Judas Macabeu
nao esperasse que os mortos ressuscitariam, teria sido váo e
supérfluo rezar por éles. Acreditava que urna bela recompensa
aguarda os que morrena pledosamente» (2 Mac 12,44s).
Foi em tais termos que a doutrina da ressurreicáo dos
mortos encontrou sua formulacáo no povo de Israel. Como se
vé, ela corresponde ao desabrochamento paulatino e fiel de
conceitos que Israel professava desde épocas remotas.
Passemos agora a

2. O testemunho do Novo Testamento

Distinguem-se afirmacóes do Senhor Jesús e do Apostólo


Sao Paulo.

2.1. Palavros de Cristo

O texto fundamental é o de Jo 5, 28s, no qual se pode


perceber urna alusáo ao de Dan 12,2. Com efeito, diz o Senhor:

«Chegará a hora em que todos os que estáo nos túmulos ouvírao


a sua voz (voz do FíJho do Homem), e os que tiverem pratfcado boas
obras sairáo, ressuscitando para a vida; os que tiverem cometido o
mal, nao de ressuscitar para a condenac&o».

Neste texto, a expressáo «muitos dos que dormem» de


Daniel é explicada: trata-se dos que estáo nos sepulcros, e...
de todos, tanto justos («os que tiverem praticado boas obras»)
como pecadores («os que tiverem cometido o mal»).
Em Jo. 6,55 promete o Senhor: «Aquéle que come a minha
carne e bebe o meu sangue, tem a-vida eterna e eu o ressusci-
tarei no último dia». Aqui é digna de nota a circunstancia:
«no último dia», que dá precisáo á expressáo «naquele tempo»
de Daniel 12,1.

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8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970. qu. 1

A título de complemento, acrescente-se Le 14,14: «Serás


feliz, porque éles (os pobres) nao tém com que retribuir. A
recompensa te será dada na ressurreicáo dos justos».

2.2. Os dizeres do Apostólo Sao Pauto

Em At 24,15, o Apostólo, perante o tribunal de Félix, pro


curador romano, e diante de um auditorio composto de roma
nos pagaos e judeus acusadores, professa a ressurreieáo de
todos os homens:

«Tenho a esperanga em Deus... de que haverá a ressur


reieáo tanto dos justos como dos pecadores».
No versículo seguinte, o Apostólo diz que, em conseqüen-
cia, se esforsa por «conservar sempre urna consciéncia irre-
preensível» — o que mostra o nexo existente entre ressurreieáo
e juízo.

É principalmente em 1 Cor 15 que S. Paulo desenvolve


suas conceptees atinentes 'á ressurreieáo, tendo em vista dire-
tamente a sorte dos justos. — É do fato de que Cristo ressus
citou que se deriva a certeza de que ressuscitaremos; a ressur
reicáo gloriosa dos cristáos tem o sentido de prolongar a de
Cristo. Em seu designio etemo, o Pai predestinou-nos a ser
conformes á imagem de seu Filho ressuscitado: «Os que de
antemáo Ele (o Pai) conheceu, também os predestinou para
serem conformes á imagem de seu Filho, a fim de que Éste
fósse o primogénito de muitos irmáos» (Rom 8, 29).
É, pois, a ressurreigáo de Cristo que dá fundamento firme
e indispensável a esperanca dos cristáos. Profissáo de fé em
Cristo e vida crista nao se justificariam se Cristo nao tivesse
vencido a morte; doutro lado, nao se pode conceber um cristáo
que nao admita a, sua própria ressurreieáo corporal. Com efeito,
é o que se deduz claramente de 1 Cor 15, 14.17-20:

«Se Cristo nao ressuscitou, é vá a nossa pregacao e va a vossa


fe... Se Cristo nao ressuscitou, é vá a vossa íé e permanecéis ainda
nos vossos pecados. Também aqueles que morreram em Cristo, pere-
ceram. Se colocamos nossa esperanga em Cristo sámente para esta
vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Nao, porém!
Cristo ressuscitou dentre os mortos, como primicias dos que ihor-
reram».

A sucessáo dos acontecimentos fináis é explicada pouco


adiante:

— 332 —
RESSURREICAO DOS MORTOS

«Em Cristo todos serSo vivificados. Cada qual, porém, na sua


ordem: Cristo, como primicias; a seguir, os que sao de Cristo, por
ocasiáo de sua vinda; depois vira o fim» (w. 22-24).

A mesma doutrina paulina recorre em 1 Tes 4,14-17.


Em suma, verifica-se que no Cristianismo a ressurreifiáo
dos mortos é concebida como decorréncia da profunda solida-
riedade que une Cristo a todos os homens? «Ele é o Primogénito
dentre os mortos» (Col 1, 18). Para os cristáos fiéis, essa soli-
dariedade significa habitacáo do Espirito de Cristo (Espirito
Santo) ñas almas dos justos; o dom do Espirito é o penhor de
que os cristáos teráo a sorte mesma do Cristo glorioso: «Se o
Espirito daquele que ressuscitou Jesús dos mortos, habita em
vos, file, que ressuscitou Jesús Cristo dos mortos, há de dar
igualmente a vida aos vossos corpos mortais por meio do seu
Espirito, que habita em vos » (Rom 8,11).

3. A ressurre¡$oo na Tradi;£o crista

1. A mensagem bíblica assim explanada foi sendo trans


mitida pelos antigos escritores cristáos, que redigiram tratados
sobre o assunto desde o sáculo H; procuravam explicar a dou
trina da fé aos seus numerosos adversarios greco-romanos (dos
quais adiante trataremos explícitamente):

Levem-se em consideracao os escritos de S. Justino (t 165 apro


ximadamente), cDe resurrectione»; Atenágoras (t 177 aproximada
mente), «De resurrectlone mortuorum»; S. Ireneu (t 202 aproximada
mente), «Adversus haereses» llvro 5; Tertuliano (t após 220), «De
resurrectione carnis»; «Orígenes (t 254/55), «Contra Cefsum» llvros 5
e 8; S. Metadlo (t 311), «De resurrectione»; S. Cirilo de Jerusalém
(t 386), Catequese 18; S. Gregorio de Nissa (t 394), «De anima et
resurrectione»; S. Joto Crisóstomo (t 407X, «De resurrectione mor
tuorum homilía»; S. Agosjtlnho (t 430), «De civitate Dei» 1. 22.

2. A arqueología crista atesta a fé na ressurreicáo. Assim


nos monumentos funerarios antigos encontram-se
— pinturas, que representara a ressurreicáo de Lázaro,
a cena de Joñas no ventre da baleia, a dos ossos da visáo de
Ezequiel...;

— símbolos, como o da fénix, que, segundo a lenda,


recomerá a viver a partir de suas próprias cinzas; o da prima
vera, que se segué ao invernó, oferecendo de novo as flores
que o invernó extinguiu; o do «Sol invicto», que sempre renasce
depois de haver desaparecido.

— 333 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 1

3. A nramasáo foi pelos cristáos preferida á cremacáo


em virtude do respeito devido ao corpo que ressuscitaráTdlv?-
-se notar, porém, que a moral crista nao se opoe a cremacáo
ctos cadáveres).

Merece atencáo também a expressáo «cemitério», derivada


do grego «koimetérion», dormitorio. Exprime a certeza crista
de que a morte nao é senáo um estado transitorio.
a *fÍL °- maSis*?rio & 'groja tem repetido constantemente
a afirmagao que ja se encontra no Símbolo Apostólico- «Creio
na ressurreigáo da carne». O Concilio do Vaticano n, em 1965
fez eco a tal aütude ñas suas Constituigóes «Lumen Gentium»
n' 48 e «Gaudium et Spes» n* 22 (ver texto á p. 327 (3) déste
fascículo). O «Credo do Povo de Deus», redigido pelo Papa
Pauto VI em 1968, professa que «a morte será por completo
destruida no día da ressurreicáo, quando as almas se reuniráo
aos respectivos corpos».

As dedaracóes do magisterio sintetizam-se nos seguintes


termos: na consumacáo dos tempos, todos os homens (bons e
maus) ressuscitaráo em um corpo material glorioso ou tene
broso segundo os méritos de cada um; ésse corpo nao será
um corpo qualquer da especie humana, mas terá os mesmos
tragos do corpo que agora trazemos (rejeita-se assim a reen-
carnacao ou a metempsicose ou a transmigragáo das almas de

Resta agora considerar mais um importante aspecto da


questáo, ou seja:

4. Ressurrei;5o da carne e Filosofía

1. A afirmacáo de que o corpo humano, urna vez morto,


voltará a vida, sempre suscitou forte oposigáo, ou mesmo es-
ctoiio, por parte de náo-cristáos. Considere-se, por exemplo, a
atitucte zombeteira dos filósofos pagaos a que se refere o livro
dos Atos 17,32; 26,24.

No século H, Tertuliano verificava: «É mais difícü crer


na ressurreigáo da carne do que na unidade de Deus» («De
resurrectione» 2). O mesmo, referindo-se aos anos anteriores
á sua conversáo, confessava: «Também nos cagoamos dessas
coisas (a ressurreigáo) em tempos passados» («Apologetícus»
Jo)

— 334 —
RESSURREICAO DOS MORTOS U

S. Agostinho, no século V, podía dizer: «Em nenhum outro


setor se levantam tantas contradicóes contra a fé crista como
no da ressurreicáo da carne» (In Ps 88, en, 2, n« 5).
2. Procuremos catalogar as objecóes que contra o dogma
da ressurreicáo tém sido levantadas, e refutamos sdbre elas.
1) Em nome do platonismo © do neoplatonismo. Estes
sistemas filosóficos repudiavam o corpo, tido como cárcere que
impede a alma de viver a sua verdadeira vida. Oompreende-se,
pois, que nao pudessem admitir novo «encarceramento» da
alma após a morte.

O filósofo neoplatónico Plotino (t 270 d. C.) parecia «ter


vergonha de estar em um corpo»; «esforcava-se para conseguir
que o que há de divino em nos suba até o que há de divino no
universo» (Porfirio, «De Elotini vita» 1 e 2).
S. Agostinho referia a respeito de outro filósofo neopla
tónico: «Porfirio afirma que é preciso fugir todo corpo, para
que a alma seja bem-aventurada» («De civitate Dei» 22,26).
— Em resposta, os antigos escritores cristáos salientavam
com énfase urna nova concepto do ser humano: éste nao é
alma apenas, mas corpo e alma. O Cristianismo propóe nova
valonzagáo do corpo, pois ensina que éste foi criado por Deus
e — mais aínda — santificado pelo misterio da Encarnagáo
do Verbo. Dizia Tertuliano em seu estilo forte que, quando
Deus criava o corpo do primeiro homem, Já antevia a Encar
nagáo de seu Filho. A Encarnacáo, por sua vez, pode ser
comparada a nupcias do Verbo nao somente com a alma, mas
também com a carne humana («De resurrectione carnis» 14).
De resto, S. Ireneu afirmava: «Se nao houvesse salvagáo para
a carne, de modo nenhum se teria feito carne o Verbo de Deus»
(«Adversus haereses» 5, 14, 1). Ora a idéia de salvagáo da
carne sugeíe a de ressurreicáo, pois sómente por esta chega a
carne á plena salvagáo.

2) Em nome do gnosticismo antígo, do maniqueísrao e


do catarismo, houve quem rejeitasse qualquer partícipagáo do
corpo na sorte final do ser humano. Tais sistemas eram dua
listas, concebendo a materia como algo de mau em si.
— Em resposta, deve-se recordar quanto acaba de ser
dito: o corpo humano é criatura de Deus, reflexo da Sabedoria
do Criador, o qual fez todas as coisas boas, destinando-as ao
louvor de Deus.

— 335 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 1

Diz muito enfáticamente o livro da Sabedoria:


«Amas tudo que existe, e nada aborreces do que ílzeste, por
que, se odiasses alguma coisa, nao a terias criado. Como poderla sub
sistir urna coisa, se tu nao a qulsesses, ou como se conservarla sem
tua ordem?» (ll,24s).

3) Em «orne da sá razao, pergunta-se: como poderá a


alma humana unir-se ao mesmo corpa no dia da ressurreigáo,
visto que o cadáver se dissolve na poeira da térra e vai entrar
na composigáo de outros organismos? Terá Deus que reoolher
todas as partículas do organismo defunto?
— Em resposta, deve-se notar que a doutrina católica
também rejeita esta última hipótese. Recorrendo a válidas
concepgóes filosóficas, muitos teólogos afirmam que, qualquer
que seja a materia donde provenha um corpo, ele será meu
corpo se estiver unido á minha alma. Com efeito, o que espe-
cifica o composto humano é a forma ou a alma; por conse-
guinte, desde que a alma seja a mesma, a materia que se lhe
una torna-se precisamente o corpo típico de tal alma. Sabe-se,
alias, que, em conseqüéncia do seu constante metabolismo, o
corpo humano renova por completo a sua materia de sete em
sete anos; nao obstante, com razáo é sempre considerado como
sendo o mesmo corpo. E por qué? — Porque a alma humana,
permanecendo a mesma, confere os seus tragos típicos á ma
teria que se lhe vai unindo.

4) Em nome do existencíalismo moderno, afirma-se que


o homem está fadado ao naufragio total de sua existencia, ou
seja, a cair no nada. A consciénda de que se encaminha para
o naufragio total sem poder deter-se, impele-o á angustia
(Heidegger) ou k náusea (Sartre).
— A esta posicáo se deve responder que o pessimismo
sistemático é atitude artificial ou mesmo inumana. Violenta a
pessoa, que só se encontra consigo mesma e desenvolve as suas
facilidades num clima de confianca e esperanga. A idéia de
salvacáo — e de salvagáo para o homem todo — é a única
que corresponde as aspiragóes inatas e auténticas da criatura
racional.

5) Nos últimos tempos, vem-se insinuando ñas escolas


católicas estranha tendencia a renovar o platonismo. Trata-se
de pensadores que desejam eliminar o dualismo «corpo-alma»
(porque lhes parece ter sabor platónico), mas, ao mesmo
tempo, apresentam a evolugáo do universo como urna crescente
espiritualizacáo. O núcleo da pessoa humana, atrayés da morte,

— 336 —
: SÓCRATES E JESÚS CRISTO 13

chegaria ao máximo de espiritualizacáo; esta nova condicáo


de vMa chamaMria ressurreicáo (ressurreicáo... espirituali
zada) Um dos grandes mentores de tais idéias é Teilhard de
Oiardin, do qual varias afirmagóes poderiani ser aqui trans
critas. Tenham-se em vista, entre mitras, as seguintes:
«Quando reinar... a harmonía final, ... todo mal físico e moral
terá desaparecido, . OJUrHo tera absorvido a Matérll . A™sS
tencas do pnto
pensamento filosófico e as inslnuacees da experiencia dáo-
vp0™
0 efnSeVtf
verso» («Ecrits ?**+
enSeVf ?** VeZ m/ls>
du temps m/ls COmo
CO possIvel-
de guerre», Il ■ esplrituaílS
p. 31). líS do uníí
Estes dizeres de Teilhard podem ser tomados em sentido
propno? — Em caso afirmativo, observe-se que tais concep-
coes (que empalidecem ou anulam o valor da materia) tém
muito mais sabor platónico do que a distinga© (apregoada pela
Biblia mesma) entre corpo e alma. O auténtico pensamento
cristao distingue entre materia e espirito, todavía nao menos-
preza a materia. Desde que se reconhega o corpo como cria
tura de Deus, nao se pode deixar de Ihe atribuir, com a Biblia,
urna funcao ou um valor no grande plano do Criador. O corpo
glorioso será perpassado pela gloria da graca sobrenatural; nao
deixará, porém, de ser verdadeiro corpo humano.
Em conclusa©, verifica-se que a doutrina da ressurreicio
da carne é genuinaniente bíblica e crista; é mesmo urna das
mais típicas proposigóes do Cristianismo, como notavam os
antigos arautos da fé. Embora seja proposta únicamente pela
Reyelagáo divina, é capaz de se sustentar perante as variadas
objegóes que se Ihe fagam. O cristáo que percebe quanto tal
dogma tem de harmonía e grandeza, renova-lhe a sua adesáo
confiante e esperangosa.

II. CRÍTICA E EVANGELHOS

2) «Os críticos qui&eram equiparar Jesús Cristo e Só


crates, o sabio que despertxra as consdéncias dos grecos tío
século V ». C.
Haveria fundamento pava isto?»

Em sfntese: Sócrates (469-399 a. C.) é urna das figuras mais


taipressionantes da filosofía grega e de todos os tempos. Passava seus
cuas ñas pracas de Atenas a dialogar com os jovens e os homens em

— 337 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 2

geral, a fim de os levar a conceber nocGes claras a respeito da virtude


(justica, fortaleza, amor...); quería asslm induzir mudanca de costu-
mes entre os seus. Todavía fol acusado de contradlzer á religiáo e aos
costumes da patria; por isto vlu-se condenado á morte. Até o ílm
Sócrates respeitou as leis de Atenas; morreu sereno e intrépido após
haver bebido a cicuta.

Sócrates foi multo exaltado pelos pensadores cristáos. Nao resta


dúvida, porém, figura longe de Jesús Cristo, que trouxe urna mensa-
gem completa aos homens e deu testemunho á verdade em circuns
tancias muito mais duras e hostis do que o filósofo ateniense.

Besposta: Sócrates é, sem dúvida, um dos maiores filó


sofos da Grecia antiga e urna das mais marcantes personali
dades de todos os tempos. Justamente por éste motivo tem-se
prestado a ser confrontado com Jesús Cristo. Ainda recente-
mente o anglicano P. van Burén, um dos «teólogos da morte
de Deus», dizia que lhe era difícil explicar o que distingue
Jesús de Sócrates, ambos homens «livres» e «libertadores».
Abaixo veremos os traeos principáis da biografía e da
persorralidade de Sócrates, a partir dos quais se poderá esta-
belecer um confronto com o Senhor Jesús.

1. Sócrates, o «parteiro irónico». . .

1. Sócrates nasceu em Atenas no ano de 469 a. C, e lá


morreu em 399.
Era filho do escultor Sofronisco e da parteira Fenarete.
Parece ter aprendido a arte de seu pai; todavía deve té-la
abandonado em breve para obedecer 'á voz da consdéncia, que
o chamava a urna obra de renovagáo espiritual, obra á qual
ele se dedicou inteiramente até a morte. Esposou Xantipa, e
teve tres filhos. Participou corajosamente de expedientes mili
tares a Potidéia, Délio e Anfípolis, comportando-se sempre
como cidadáo exemplar.Atendendo & sua vocagáo pessoal, Só
crates exerceu o magisterio fora de qualquer escola, ao ar
livre, ñas rúas e ñas pracas, em contato com o povo, através
de diálogos e conversas cordiais. Nao participou da política,
mas formulou criticas duras a homens de seu tempo, o que
lhe atraiu o odio dos adversarios. Aos 70 anos de idade, foi
por tres concidadáos (Meleto, Anito e Licon) acusado de cor
romper a juventude e de énsinar crengas contrarias á Religiáo
do Estado (Sócrates dizia-se inspirado constantemente por um
«demonio» ou espirito divino).

— 338 —
SÓCRATES E JESÚS CRISTO 15

Levado a julgamento, recusou- defender-se das acusagóes;


fez a apología da sua missáo, á qual nao quis em absoluto
renunciar. Os juizes, por pequeña maioria de sufragios, decla-
raram-no culpado. Sócrates poderia entáo ter escolhido a pena
do exilio; declarou, porém, que se julgava digno de ser nutrido
no Pritaneu, á custa do erario público, como os cidadáos mais
beneméritos de Atenas. Em conseqüéncia, foi condenado á
morte. Os amigos e discípulos muito insistiram para que. fu-
gisse do cárcere — o que Sócrates recusou, a fim de nao ofen
der as leis da patria. Quis, com a morte, dar testemunho de
respeito á ordem pública, que durante toda a vida ele havia
ensinado a respeitar. Bebeu a cicuta com a serenidade de um
justo. Até o último momento recomendou aos amigos e discí
pulos que permaneciam ao seu lado, «estivessem atentos a si
mesmos», fóssem bons e nao pensassem néle, pois Esculapio,, o
deus-médico bom, se encarregava de o enviar ao empíreo
(mansáo) dos espíritos justos.

2. Sócrates soube impressionar os homens; o seu modo


de viver, de interrogar e de responder desconsertava interlo
cutores e ouvintes. Sócrates perturbava os espíritos, gerando
néles dúvidas; impelia-os assim á procura de nocóes claras e
conceitos bem definidos que tomassem o lugar das idéias tur-
vas e das teorías confusas geralmente instaladas na mente do
homem mediano. Sócrates fez seu o axioma do oráculo de
Delfos: «Conhece-te a ti mesmo (Gnoóthi seautón)>. Ésse
«conhecer a si mesmo», ele o entendía no sentido de «examina-
-te a ti mesmo em confronto com os outros; aprende o que de
bom te possam ensinar os outros». Refere Platáo os seguintes
dizeres de seu mestre Sócrates:

«Sou sequioso de aprender, mas os campos e as árvores nada me


querem ensinar; ao contrario, os homens ñas cidades me enslnam>
(«Fedro» 231d).

3. O método de Sócrates comportava duas etapas: a


ironía e a maiSutica.

Ironía. Sócrates, interpelando seus amigos e interlocutores,


tomava a atitude de um discípulo; declarava-se ignorante e
desejoso de saber; interrogava entáo o que possa ser a justica
ou a temperanga ou a fortaleza ou a beleza ... Os ouvintes
respondiam-lhe. Todavia, ao receber as respectivas respostas, ia
mostrando aos companheiros de diálogo que éles é que nada
sabiam ou tinham nocóes confusas e insuficientes.

— 339 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 2

Depois de ter usado da ironía para levar os interlocuto


res a reconhecer a própria ignorancia, Sócrates recorría á
maiéutica ou á tarefa da parteira (profissáo de sua máe). A
custa de interrogagóes sucessivas e hábilmente conduzidas,
fazia sair da mente de seus companheiros os auténticos con-
ceitos ou a verdade ai adormecida. A verdade era assim tra-
zida á vida consciente; era gerada pelos discípulos sob a agáo
maiéutica ou obstétrica de Sócrates.
4. A filosofía de Sócrates foi também a fé religiosa désse
pensador. O mestre se mostrou sempre respeitoso da religiáo
patria; cultuá-la seria deyer de todo bom cidadáo. Todavía
Sócrates nao cedía ao politeísmo e aos mitos, mas, sim, reco-
nhecia a Divindade cuja inspiragáo ele dizia perceber dentro
de si. Diante dos juízes declarou que «obedecía a Divindade
mais do que aos atenienses» (Apol. 29d). Ele quería asseme-
lhar-se á Divindade; ora «a Deus nos assemelhamos tornando-
-nos justos e santos, na clareza do espirito» (Teat. 176b).
As idéias de Sócrates sobre a imortalidade da alma nao
eram muito precisas; como quer que seja, ele nao excluía a
possibiiidade de ter urna alma imortal.

A personalidade de Sócrates impressionou profundamente


o discípulo Platáo, de tal modo que éste o tomou por prota
gonista de todos os seus Diálogos, apagándose por tras da
figura do mestre: «Um homem, podemos dizé-lo; dentre aque
les que entáo conhecemos, o melhor, o mais sabio, o mais
justo» (Platáo, «Fedon» 118; cf. epist. VII 324e).

2. ... e Jesús Cristo

Desde meados do século n os cristáos puseram-se a consi


derar a figura de Sócrates com muita atengáo.
S. Justino (t 165,. aproximadamente) admirava o filósofo
ateniense como se fóra um cristáo antes do tempo; deu teste-
munho á verdade a custo da própria vida (nao é isto que se
chama «martirio»?).

Atenágoras (t 177, aproximadamente), Taciano (t 172),


Apolónio (t 180, aproximadamente) repetiram elogios a Só
crates. Assim fizeram também os escritores cristáos de Ale-
xandria nos sáculos II e m: Clemente, Orígenes, Gregorio
Taumaturgo...

— 340 —
SÓCRATES E JESÚS CRISTO 17

Coisa notável: os pagaos tambán exaltaram a figura de


Sócrates; por exemplo, Celso, famoso adversario dos cristáos
no sáculo n, dado á filosofía eclética, acusava os cristáos de
haver colhido a melhor parte de seus ensinamentos na sabe-
doria de Sócrates. Luciano (t 190) censurava-os por haver
dado a um de seus heróis (S. Inácio de Antioquia?, t 107) o
nome de «novo Sócrates». O Imperador Marco Aurelio (t 180),
estoico, julgava Sócrates superior em méritos aos mártires
cristáos. Quanto ao médico Galeno (t 203), louvava os cristáos
por preferirem, como Sócrates, os bens da virtude aos valores
passageiros e á própria vida.
Entre os escritores latinos antigos, Sócrates nao encontrou
a mesma aceitagáo. Tertuliano (t após 220) e Latáncio (f após
317) nao lhe foram favoráveis, atestando, porém, quáo impor
tante e popular se tomara a figura do filósofo ateniense.
Esquecido na Idade Media, Sócrates voltou a ser muito
considerado e controvertido no século XVm. Os racionalistas
apresentavam-no como o tipo do homem que, para ser bom,
nao precisa de ser cristáo; a pregacáo do Evangelho, por con-
seguinte, nada teria trazido de novo sobre a térra.
Contra esta tese insurgiu-se um filósofo da época, Jean*
-Jacques Rousseau (t 1778), que pouco tinha de crfstao, mas
quis por em todo o relevo a grandeza única da figura de Jesús
Cristo. No livro IV do seu «Emilio», Rousseau propóe a «Pio-
fissáo de fé do cura da Savoia», onde se le o seguinte trecho:

«Onde está o homem, onde está o sabio que sabe agir, sofrer e
morrer sem fraqueza nem ostentagáo? Quando Platáo descreve o seu
justo imaginario, coberto de todo o opróbrio do crime e digno de todos
os premios da virtude, descreve trago por trago Jesús Cristo; a seme-
lhanca é táo impressionante que todos os Padres da Igreja a sentiram,
e nao é possivel enganar-se.
Que preconceitos, que cegueira nao se requerem para ousar com
parar o filho de Sofronisco com o filho de María? Que distancia nao
vai de um a outro? Sócrates, morrendo sem dor, sem ignominia, sus-
tentou fácilmente até o fim o seu papel; e, se essa morte suave nao
tivesse honrado a existencia de Sócrates, poder-se-ia perguntar se Só
crates, com todo o seu espirito, foi algo mais do que um sofista. Dizem
que inventou a moral; eis, porém, que outros antes déle já a tlnham
posto em prática; Sócrates apenas ensinou o que éles tinham vivido,
redigiu em licóes os exemplos alheios...
Onde, porém, Jesús teria encontrado entre os seus essa moral táo
elevada e pura de que Ele, Ele só, deu as ligOes e o exemplo? Do seio
' do mais furioso fanatismo, a mais elevada sabedoria féz-se ouvir; e a
simplicidade das mais heroicas virtudes honrou o mais vil dos povos.
A morte de Sócrates a filosofar tranquilamente com seus amigos é a
mais suave que se possa desejar; a de Jesús a expirar em tormentos.

— 341 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 3

injuriado, escarnecido, amaldicoado por todo um povo, é a mais hor-


rivel que se possa recear. Sócrates a tomar a taca envenenada abencoa
aquéle que lha apresenta e que chora; Jesús, em meio a suplicios
atrozes, ora por seus carrascos enfurecidos. Sim; se a vida e a morte
de Sócrates sao as de um sabio, a vida e a morte de Jesús sao as de
um Deus» («Profissáo de fé do cura da Savoia», 2* parte, n» 1).

Jean-Jacques Rousseau talvez nao tenha valorizado sufi


cientemente o papel de Sócrates e os méritos de sua acáo tanto
entre os contemporáneos como entre os pósteros; talvez tenha
depreciado exageradamente o povo judeu. Todavia, com acertó
total, realcou a excelencia singular do Senhor Jesús, mártir
da verdade como nenhum pensador ou filósofo jamáis havia
sido.

III. VIVER O EVANGELHO HOJE

3) «A vida religiosa tem fundamento no próprio Evan-


gelho?
Pode-se dizer que Jesús mesmo a instituto?»

Em sfnfese: Nao poucos autores contemporáneos rejeltam a dis-


tlncao entre preceitos e conselhos evangélicos, distlncao sobre a qual
se fundarla a tese (ou a impressáo) de que sómente os fiéis chamados
a viver segundo os conselhos (pobreza, castidade e obediencia) esta-
riam destinados á perfeigáo crista. A rejeicáo é fundamentada pelos
estudiosos sdbre nova maneira de entender os clássicos textos do Evan
gelho que pareciam justificar a distincao entre preceitos e conselhos.
Sem entrar no mérito da nova exegese, deve-se observar que a
vida religiosa consagrada a Deus continua tendo pleno fundamento
no Evangelho; ela nao decorre dos dizeres de urna ou outra passagem
do texto sagrado, mas, slm, das exigencias de radicalismo e totalidade
que o Evangelho impSe a todos os cristáos. Qualquer discípulo de
Cristo é chamado a renunciar a tudo, até á própria vida, desde que
veja que os seus pertences ou a sua vida.corporal lhe dividem o cora-
gao ou sao obstáculos a realizagáo da perfeicao do amor (cf. Mt 5,29s;
16,24s; 18,8s); ora o Religioso, por graca de Deus, faz dessa renuncia
radical (que, em casos de emergencia, é obrigatória a todos os cris-
tfios) a lei permanente de sua vida; em vista disto, ele escolhe o qua-
dro de vida mais adequado, que a teología explicitou como sendo o da
pobreza, da castidade e da obediencia.
Ademáis a vida religiosa continua hoje a seqilela de Cristo de que
fala íreqüentemente o Evangelho: «deixar tudo» e «seguir a Jesús»
constituem um binomio nao raro no Evangelho.
Os Religiosos, alias, sempre viram na primeira comunidade crista
de Jerusalém, descrita pelos Atos dos Apostólos, o prototipo da seqüela

— 342 —
VIDA RELIGIOSA E EVANGELHO 19

de Jesús tal como ela pode ser vivida depois que o Senhor nos sub-
tralu sua presenca visível.
Desta forma se vé que a vida religiosa está arraigada no ámago
mesmo do Evangelho, do qual ela procede como sinal, sempre válido,
das exigencias contidas no Evangelho.

Resposta: A vida religiosa caracteriza-se classicamente


pela consagragáo a Deus mediante os tres votos de pobreza,
castidade e obediencia.

Para cada um désses tres votos os mestres de espirituali-


dade costumam apontar textos do S. Evangelho que lhe sirvam
de fundamento. De modo particular, o episodio do jovem rico
(Mt 19,16-22) é utilizado para se demonstrar que Jesús dis-
tinguiu entre «mandamentos» e «conselhos»:- es mandamentos
valeriam para todos os cristáos, ao passo que os conselhos
evangélicos (pobreza, castidade e obediencia) seriam dirigidos
a certa categoría de fiéis cristáos chamados por Deus á vida
perfeita *. — Veja-se o texto de Mt 19,16-22 transcrito á p. 345
(21) déste fascículo.

Acontece, porém, que a distingáo entre «mandamentos»


(válidos para todos os fiéis) e «conselhos» (reservados a pou-
cos) vai sendo hoje em dia mais e mais rejeitada. Para isto
concorrem

— urna nova maneira de entender os textos evangé


licos. Nao poucos exegetas afirmam que as palavras de Jesús
aduzidas para fundamentar os conselhos (pobreza, castidade e
obediencia) na verdade se dirigem a todos os cristáos sem
excegáo;
— a consciéncia cada vez mais viva de que todos os
discípulos de Cristo sao chamados á perfeigáo ou á santidade
(cf. Mt 5,48: «Sede perfeitos como vosso Pai Celeste é per-
feito»); nao há estado de vida (matrimonial, secular ou nao)
em que o cristáo se deva contentar com a mediocridade; qual-
quer que seja o caminho por que enverede, ele é chamado a
chegar á santidade, como lembrou o Concilio do Vaticano n

1 A distincáo entre dois tipos de atos e, conseqüentemente, dois


modos de vida — um obrigatório (preceito) e outro de livre esco-
lha — na vida crista é esbocada desde tempos antigos na literatura
crista. Cf. S. Joáo Crisóstomo, In 1 Cor 21,5 (PG 61,176); S. Ambrosio,
«De viduis» lis (PL 16,255-257); S. Agostinho, «De sancta virginitate»
14s; S. Gregorio Magno, «Moralia in lob» 26, 15 (PL 76, 380).

— 343 —
20 <PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 3

(Const. «Lumen Gentium» c. 5). Com outras palavras, nao


há cristáos de categoría superior e cristáos de segunda classe K
Em conseqüénda, pergunta-se: entáo a vida religiosa ca
rece de fundamento no Evangelho? A sua instituigáo nao pode
ser atribuida a Jesús? Será obra humana, devida a místicos
que tiveram sua época? Desaparecerá em breve?
A propósito, veja-se o artigo de Fr. Lepargneur: «Novos
impactos da teología renovada sobre a vida religiosa», na
revista «Convergencia» III (1970), n* 22, pp. 2-6. Escreve o
autor:

«Alguns acham que a vida religiosa pode desaparecer (pelo menos


em grande parte e no tocante á vida religiosa ativa), se o Cristianismo
exigir novamente amanha heroísmo do pequeño resto que confessaria
a fé crista. Nao há motivo para admirar: se os cristáos, a Igreja
visivel, se tornarem no mundo um sinal suficientemente forte da vida
escatológica, da transcendencia do Reino, a Igreja precisará menos no
seu próprio seio de um sinal da mesma polarizagáo» (ib., p. 4).

Frente las questóes assim postas, procuraremos estudar a


problemática com toda a objetividade, pedindo desde já ao
leitor nao leia apenas a primeira parte déste artigo, mas tome
conhecimento exato também do que se diz na segunda parte.
Vejamos, antes do mais, como se apresenta

1. A nova exegese de clássicos textos

Nao nos deteremos senáo sobre dois dos textos do Evan


gelho mais evocados para fundamentar a vida segundo os con-

i Para comprová-lo, podem-se citar as seguintes palavras de Sao


Joto Crisóstomo (t 407), grande mestre de espiritualidade, que procura
dissipar a impressáo de que haja vocacSo para a mediocridade:
«É erro grosseiro crer que as exigencias sao diversas para quem
vive no mundo e para o monge... As Escrituras nao sugerem essa
diferenca... Todos devem elevar-se a mesma altura. Foi erro funesto
crer que sdmente o monge está obrigado a maior perfeicao, enquanto
aos outros se permitirla viver na tibieza... Quando Jesús manda
seguir a vía estreita, nao é aos monges apenas que file íala, mas a
todos os homens. Também quando pede que odiemos nossa própria vida
neste mundo e enuncia outros preceitos semelhantes, todos ésses pre-
celtos sao para todos os cristáos. Quando acontece que file dirija ou
destine suas leis a um número restrito de fiéis, Ele o diz claramente.
O cristao que vive no mundo, e o monge devem tender a Igual per
feicao; a queda expQe um e outro a ferimentos de igual gravidade...
Eis algumas verdades que o mais audacioso contestador nao pode
negar» («Adv. opp. vitae monast.» 3,14 PG 47,372-375).
VIDA RELIGIOSA E EVANGELHO 21

selhos: Mt 19,16-22 (o episodio do jovem rico) e Mt 19,10-12


(«eunucos por causa do Reino»).

1.1. O episodio do ¡ovem rico (Mt 19, 16-22)

Eis o texto em questáo:

«10 Chegou-se a Ele (Jesús) um jovem e Lhe disse: 'Mestre,


que devo fazer de bom para ter a vida eterna?'
17 Respondeu-lhe Jesús: '... Se queres entrar na vida,
observa os mandamentos'.
18 'Quais?' perguntou ele.
Jesús lhe disse: 'Nao matarás, nao cometerás adulterio...'
20 Diz-lhe o jovem: 'Tudo isto tenho observado. Que me
falta aínda?'
21 Acrescenta Jesús: 'Se queres ser perfeito, vai, vende o
que possuis e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Vem
depois, e segue-me'».
No estudo desta seccáo distinguiu-se recentemente o Padre
Simón Légasse, que publicou o livro: «L'appel du riche. Con-
tribution á l'étude des fondements scrlpturaires de l'état reli-
gieux» (París 1966). É. para esta obra que os mestres vém
apelando em seus artigos sobre vida religiosa.
O P. Légasse, após minucioso confronto de numerosos
textos bíblicos, chega á conclusáo de que «bom» (agathón, em
grego) e «perfeito» (télefon), na tradicáo escrituristica, signi-
ficam a mesma coisa; portanto identificam-se entre si. Nao se
pode, pois, dizer que as duas sucessivas respostas de Jesús ao
jovem rico (Mt 19,17.21) significam dois niveis sucessivos na
moral do Evangelho: um, para todos, que seria o dos manda
mentos; outro, para os perfeitos, que seria o dos conselhos.
Jesús, no dito «sermáo sobre a montanha» do Evangelho de
S. Mateus, dirige a todos os fiéis veemente exortacáo a que
tendam á perfeigáo: «Se a vossa virtude nao superar a dos
escribas e fariseus, nao entrareis no Reino dos céus... Sede,
pois, perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5,20.47).
Segundo o sermáo sobre a montanha, «ser perfeito» quer dizer
«observar os mandamentos ou a Lei de Deus» por amor e no
amor (o amor é a característica essencial da Lei renovada por
Cristo).

Por conseguinte, a segunda resposta dada ao jovem rico


(«Se queres ser perfeito, télelos einai, vai, vende...») enuncia

— 345 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970. nu. 3

apenas urna aplicacáo concreta da anterior resposta: com


efeito, a fídeüdade aos mandamentos de Deus pode assumir
tal modalidade que é a venda de todos os bens, para que os
discípulos mais livremente sigam a Jesús. Para confirmar esta
sua proposicao, o P. Légasse observa que o Evangelho, tomado
em seu conjunto, pode exigir generosos sacrificios; cada vez
que o cristáo se sinta colhido em armadilha ou ameagado por
bens que em si sao lícitos, ele é obligado a se libertar déles
sem titubear. É o que Jesús mesmo incute, usando de hipérboles
caras aos orientáis:

«Se o teu ólho fór para ti origem de pecado, arranca-o e


lanca-o fora, pois é melhor perder-se um dos teus membros
do que todo o corpo ser atirado á geena. E, se a tua máo di-
reita fór para ti origem de pecado, corta-a e lanca-a fora,
porque é melhor perder-se um so dos teus membros do que
todo o teu corpo ser Iancado na geena» (Mt 5, 29s; cf. 18,8s).
Está claro, Jesús, assim falando, nao intenciona ser tomado
ao pé da letra; o que Ele quer lembrar, é que o Evangelho pode
apresentar exigencias de vida e morte.
Por cónseguinte, em sua segunda resposta ao jovem o
Senhor quis dizer que o cumprimento da Lei de Deus pode
implicar despojamento total. Quem aceita o convite para en
trar no caminho da perfeigáo — tal é o caso de todo e qualquer
cristáo — deve estar pronto a aceitar essa extrema eventua-
lidade, desde que ela se aprésente concretamente; o cristáo há
de fazer tudo para conservar-seu coragáo livre de afetos des-
regrados; quando a divisáo e a mediocridade o ameagam, ele
nao pode hesitar, mas há de se desvincular daquilo que o torna
mediocre e, se fór necessário, ... de tudo, até mesmo de sua
vida terrestre. Eis o comentario de Légasse:
«A pobreza nao representa urna via melhor e mais segura que
a pessoa possa livremente rejeitar e que Jesús apenas recomenda;
mas a pobreza vem a ser a condicáo absoluta da obrlgatórla perfeicao
todas as vézes que a conservacáo dos bens se torne obstáculo á sal-
vacao» (ob. cit., n. 207).

O mesmo autor confirma sua interpretagáo explicando o


sentido da expressáo «se queres» (ei théleis) ocorrente ñas
duas respostas de Jesús. Em Mt 19, 17 diz o Senhor: «Se queres
entrar na vida, observa os mandamentos»; o que significa: «Nao
tens escolha: para entrar no Reino, eis o que é necessário
fazer». Em Mt 19, 21, as palavras «Ss queres ser perfeito, .. »
equivalem as seguintes: «Para tornar-te perfeito — segundo a
lei mesma da tua vocagáo crista —, eis o que deves fazer...»

— 346 —
VIDA RELIGIOSA E EVANGELHO 23

A repetigáo de «Se queres...», conforme Légasse, indica


urna só tarefa segundo duas modalidades.
Em sintese, o segundo meio de perfeigáo proposto por Jesús
em Mt 19, 21 («vai, vende... e segue-me») nao é um conselho
ou urna via facultativa aberta a quem deseje mais livre e
fácilmente chegar á perfeigáo, mas é algo que se impóe a todo
cristáo sempre que o exija a perfeigáo a que o Evangelho chama
todo e qualquer discípulo de Cristo.
A interpretagáo de Légasse certamente merece atengáo.
Será .dirimente, definitiva? — £ difícil responder; nem vem
necesariamente ao caso tentar aqui urna resposta. Como quer
que seja, muitos leitores da nova sentenga, aceitando-a, julgam
que com ela desmorona urna das mais sólidas pilastras da vida
religiosa ou da «vida segundo os cansemos evangélicos». Será
válida tal conclusáo?
A resposta seguir-se-á mais adiante. Por enquanto, é pre
ciso examinemos outro texto básico do Evangelho.

1.2. Os eunucos em Mt 19,10-12

Outro texto do S. Evangelho muito citado para fundamen


tar, desta vez, o conselho de castidade perfeita é o seguinte:
«Os discípulos disseram a Jesús: 'Se é essa a condigáo do
homem perante a mulher, nao é conveniente casar-se!1 Res-
pondeu-lhes Jesús: 'Nem todos compreendem esta linguagem,
mas apenas aqueles a quem isso é dado. Há eunucos que nas-
ceram assim do seio materno; há os que se tornaram eunucos
pela interferencia dos homens; e há aqueles que se fizeram
eunucos por amor do reino dos céus. Quem puder compreender,
compreenda!» (Mt 19,10-12).
Éste trecho faz parte, como se vé, do mesmo cap. 19 de
Mateus, capítulo das exigencias do Reino. Em Mt 19, 1-9 Jesús
incute a indissolubilidade do casamento. Observam entáo os
Apostólos quáo arduo é o estatuto do matrimonio no Reino de
Cristo. O Senhor responde, aludindo aos eunucos K — Note-se
que nesta sua frase Jesús fala no indicativo, como que verifi
cando um fato; nao propóe um imperativo ou um optativo: «há
eunucos...; há eunucos...; há eunucos...»
A clássica exegese entende a mencionada castragáo volun
taria no sentido de «castidade perfeita livremente abragada».

1 O eunuco, na antiguidade, era o servo encarregado da guarda


dos aposentos das mulheres; por eíeito de urna mutilagáo, era tornado
inepto para o ato conjugal.

— 347 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 3

Todavía o P. Jacques Dupont, seguido por outros comentado


res, julga que o «eunuco voluntario» de Mt 19,21 nao é senáo
o marido que se separou da esposa e que compreende, diante
das exigencias do Evangelho, que ele nao se pode casar de
novo (cf. «Mariage et divorce dans l*Évangile». Paris 1959,
pp. 202-207). Esta nova exegese tem em seu favor o contexto
respectivo: ela salvaguarda a homogeneidade ou a unidade de
tema da seccáo Mt 19, 1-12, mostrando que o matrimonio é
algo de muito serio. Assim Jesús terá feito aos Apostólos urna
observacáo análoga á que Ele faz ao jovem rico: o Reino de
Deus é exigente, a ponto de que um homem casado, em certas
circunstancias, tenha que viver em continencia perfeita. Nem
todos entendem a profundidade déste estatuto; há homens,
porém, que recebem a graga de compreender o que é o Reino
e, conseqüentemente, se tornam capazes de nao contrair novas
nupcias após se separarem da esposa. Vivem como os eunucos
vivem, por causa do absoluto do Reino de Deus.
A nova posicáo exegética pode ser confirmada se se levam
em conta os episodios paralelos do jovem rico e do final de
Mt 19. Jesús assim terá lembrado que todo cristáo deve estar
pronto a tomar as decisóes mais radicáis sempre que o misterio
do Reino esteja em causa. Em conseqüéncia, aquele que é ca
sado poderá ter que viver como eunuco, como outros cristáos
«vendem tudo o que tém para dar aos pobres», outros «cortam
a própria máo», outros «arrancam o ólho» (cf. Mt 5,29s), ou
tros «carregam a cruz» (Mt 16,24), outros «perdem a vida»
(Mt 16, 25). Todas estas expressSes designam de maneira ora
mais, ora menos hiperbólica e figurada, o absoluto do Reino
de Deus.
Vé-se, pois, que Mt 19, 10-12 nao. pode ser tomado como
base incontestável de um conselho evangélico (conselho que
seria urna via nao imposta, mas sugerida pelo Senhor aos cris
táos que livremente desejem chegar a maior perfeicáo).
Sem pretender julgar a sentenca de J. Dupont, apenas
notamos que ela causa perplexidade em muitos leitores, os quais
concluem que realmente a vida religiosa passa a carecer de
todo fundamento no Evangelhol.

i O Padre Thaddée Matura O.F.M., embora afirme que os con-


selhos de pobreza e obediencia nao tém fundamento no Evangelho,
assevera que a castidade perfeita encontra sua íonte inspiradora em
Mt 19,12. Este texto constituiría a base para a castidade consagrada a
Deus mediante a profissao religiosa. Cf. Th. Matura, «Celibato e comu-
nldade». Petrópolis 1969.

— 348 —
VIDA RELIGIOSA E EVANGELHO 25

Os dizeres de S. Paulo em 1 Cor 7 (conselho de virgin-


dade) tém sido postos de lado por nao poucos estudiosos da
vida religiosa, pois exprimem um conselho do Apostólo, nao
um mandamento do Senhor (gnóme, nao epitagé; cf. 1 Cor
7,25); esta modalidade parece-lnes debilitar o argumento dedu-
zido de 1 Cor 7. Abstemo-nos de fazer consideragóes ao caso
(por motivo de brevidade).
As idéias até aqui propostas, colhidas em fontes modernas,
parecem realmente revolucionarias. Tenderáo a extinguir a
vida religiosa na Igreja?

2. Visño mais profunda

O recente modo de entender os textos bíblicos que pare-


ciam fundamentáis para a vida religiosa, longe de prejudicar
a esta, tornou-se ocasiáo para que os estudiosos aprofundassem
a questáo e viessem por em foco novas perspectivas e auténti
cas (talvez mesmo: as mais auténticas) dimensóes evangélicas
da vida consagrada a Deus.

2.1. Radicalismo do Evangelho

Abalizados autores notam que, se a vida religiosa nao


repousa própriamente sobre estes dizeres de Jesús, ela, nao
obstante, se inspira de todo o Evangelho, que interpela o
homem, propondo-lhe exigencias de absoluto. Observam tam-
bém que a vida religiosa nao consiste apenas na prática de
pobreza, castidade e obediencia (como se fóssem comparti
mentos-estanques) , mas que a pobreza, a castidade e a obedi
encia religiosas vém a ser as expressóes de urna resposta de
totalidade ao Evangelho.
Com üutras palavras: ao comentar os textos de Mt, vimos
que Cristo propóe a perfeigáo do amor como meta a que todos
os cristáos deyem tender, sem excegáo, dispostos mesmo a usar
de meros radicáis e absolutos todas as vézes que as situagóes
o exijam. Pois bem; após ler e reler, sob a agáo do Espirito
Santo, ésses e outros textos do Evangelho, muitos cristáos,
desde os primeiros tempos da Igreja, resolveram escolher livre-
mente um estado de vida totalmente norteado pelo radica
lismo * e o absoluto; na vida religiosa o cristáo recusa condi-

1 «Radicalismo» aqui, longe de ter sentido pejorativo, significa


«plenitude ou totalidade na entrega».

— 349 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 3

donar o uso dos meios radicáis as situacóes que os exijam;


ele faz do radicalismo evangélico algo de continuo ou a lei
mesma de sua existencia1.
Essa livre escolha nao póe em xeque a obrigacáo que todo
cristáo tem, de ser radical sempre que necessário. Nao há, pois,
conselhos evangélicos ou atos radicáis reservados apenas aos
Religiosos. O que há de específico na vida religiosa, é a esco
lha de um tipo de vida em que o radicalismo do Evangelho
possa desabrochar plenamente. A historia mostra que as gran
des figuras de seguidores de Cristo que foram S. Antáo (f 356),
S. Pacomio (t 346), S. Basilio (t 379), S. Francisco de Assis
(t 1226), S. Domingos (f 1211), nao foram motivados pela
opgáo entre «preceitos» e «conselhos», mas desejaram, sob o
influxo da graca, seguir urna via enérgica e categórica em
demanda da perfeicáo evangélica; éles nao optaram por tal
conselho expresso por tal texto evangélico ou bíblico, mas, sim,
pelo radicalismo evangélico como tal. Aos poucos os teólogos,
refletindo sobre essa vida categórica, distinguirán! nela tres
grandes afirmagóes: pobreza, castidade e obediencia. Fsfas
porém, nao esgotam o conteúdo da vida religiosa, que aínda é
mais profunda e radical.
As mesmas idéias podem ser expressas aínda de outra
forma:

2.2. «Seguir o Crista»

O Evangelho fala de homens e mulheres que «seguiam


Jesús» durante o seu ministerio público. Ésses discípulos ado-
tavam um género de vida próprio, que se caracterizava por
«deixar tudo»; na verdade, é freqüente na Escritura o binomio
«deixar tudo — seguir Jesús». Vejam-se os seguintes textos:
A resposta de Jesús ao jovem rico termina com o convite:
«Se queres ser perfeito, vai, vende o que possais, dá-o ans
pobres e terás um tesouro no céu; depois vem, segue-me» (Mt
19,21). Esta frase de Jesús significa, segundo Légasse: «Vende
para, me seguir» (ob. cit., p. 207).
Pouco depois, Pedro afirma: «Nos debíamos tudo e Te
seguimos» (Mt 19,27).
Simio, Tiago e Joáo, «depois de terem reconduzido as
barcas para a térra, deixaiam tudo e seguiram-No» (Le 5, 11).

1 Muito interessante é que o P. Légasse, embora proponha nova


exegese do episodio do jovem rico (Mt 19,16-22), formula essa ulterior
íundamentagáo da vida religiosa. Cf. ob. cit., p. 255.

— 350 —
VIDA RELIGIOSA E EVANGELHO 27

A respeito de Mateus, lé-se «Jesús viu... um publicano


chamado Lévi e disse-lhe: 'Segue-me'. Ele, defecando tudo, le-
vantou-se e segniu-O» (Le 5,27s).
O Evangelho também narra que santas mulheres seguiam
a Jesús, servindo-Lhe com os seus bens; cf. Le 8, 1-3.
Assim «seguir a Jesús», no Evangelho, implica a adocáo
de um estilo de vida marcado pelo absoluto ou pela imitacáo
de Cristo. A palavra de Jesús exerce um impacto sobre toda
a personalidade e a vida de quem a ouve.
_ Depois da Ascensáo, compreende-se que o «seguir o Cristo»
nao tenha podido assumir as mesmas expressóes; faltava a
presenca sensivel do Senhor, ponto de convergencia do grupo
de seguidores. A entrega a Cristo teve que se externar de
novas formas. Fundamentalmente, o conceito de «discípulo de
Cristo» passou a designar todo homem (ou mulher) que, per-
tencendo a Cristo pelo Batísmo, se deixa apreender pelo Senhor
no mais íntimo de sua existencia e vive corajosamente as
conseqüéncias désse impacto; isto... tanto no matrimonio
como no celibato, tanto no exercício de uma atividade religiosa
como numa profissáo secular.
Como se compreende, ésse conceito de «discípulo de Cris
to», ampliado, correu o risco de se atenuar com o passar do
tempo ou mesmo de perder alguns de seus tragos significativos.
Por isto, periódicamente no decorrer da historia da Igreja,
houve cristáos que procuraram viver, mesmo depois de Pente
costés, algo do radicalismo concreto daqueles que seguiram
Jesús físicamente presente antes de Páscoa: tais foram Antáo,
Pacómio, Bento, Francisco de Assis e outros tantos, que dei-
xaram tudo á semelhanga dos Apostólos e atrairam para seu
ideal geracóes de cristáos. Verdade é que em tais grupos de
seguidores de Cristo já nao há a presenga física do Senhor;
todavía ésses discípulos sabem que Cristo continua vivo entre
éles mediante a sua Palavra e, principalmente, mediante a
celebracáo eucarística. Nao lhes importa copiar servilmente o
que fizeram aqueles e aquelas qué outrora «seguiam Jesús»
na Palestina em 30 d. C, mas desejam viver no «hoje» do
povo de Deus a sua adesáo radical á pessoa de Jesús Cristo.
O atrativo que Cristo exerce sobre éles, leva-os a deixar
valores do mundo, valores em si positivos, conciliáveis com o
Reino, mas valores aos quais, em certas circunstancias, o
cristáo pode ser chamado a renunciar, porque sao capazes de
dividir o coragáo do homem. Para pertencer inteiramente e
sem divisáo ao Senhor Jesús, pode alguém sentir-se chamado

— 351 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 3

a abragar o estado de renuncia permanente; foi éste certa-


mente o ideal que guiou os grandes heróis da vida monástica
ou religiosa. O Evangelho com suas exigencias totais era, para
éles, a grande regra ou a regra primeira, como, alias, incute
o Concilio do Vaticano II (decreto «Perfectae caritatis» n* 2).
Tenha-se em vista, por exemplo, o prólogo da Regra de
Grandmont, que, escrito em 1076, faz eco a tradicáo anterior:
«A casa do Pal Supremo, em que exlstem múltiplas mansSes,
como diz o Filho, levam caminhos diversos, entre os quais é lícito es-
colher, caminhos tragados em direcoes diferentes, escaldes diversos...
Por éles o cristao passa de virtude era virtude á contemplacáo de Deus
em Siáo. Varios Padres nos recomendaran! essas vias em documentos
que chamamos Regra de S. Basilio, Regra de S. Agostinho, Regra de
S. Bento. Mas estas nao sao a fonte da vida religiosa; elas sao deri
vados da fonte. Elas nao sao a raiz da mesma; elas sao os seus ramos.
Elas nfio sao a cabeca; sao os membros. Com efeito, para a fé e a
salvagáo, há apenas urna primeira e principal Regra das regras, da
qual decorrem todas as outras, como os córregos procedem de suas
fontes: tal é o S. Evangelho, que Deus transmitiu aos Apostólos e
que estes anunciaram fielmente ao universo inteiro... Néle, sem ex-
cecáo, estSo as prescricOes gerais que os preceitos' particulares esmiu-
Cam» («Coop. Christ., Continuado Mediaevalis» vn, 65-67).

Sao Francisco de Assis, por sua vez, escrevia em sua


«Regra Segunda»: «A Regra e a vida dos Menores consiste
em observar <o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesús Cristo,
vivendo na obediencia, sem propriedade e em castidade»
(n« 1).
Vé-se, pois, que,.se a vida religiosa nao tem fundamento
explícito em determinado texto do Evangelho, ela procede
deste: nao da periferia, mas, sim, do ámago mesmo do Evan
gelho, pois ela tenta transpor para os dias atuais o género de
vida totalizante daqueles que outrora seguiam Jesús.
Resta ainda mencionar outra fonte inspiradora dos Reli
giosos de todos os tempos.

2.3. A comunidade des Atos dos Apostólos

Os documentos da vida religiosa através dos sáculos sem-


pre insistiram em ver na comunidade dos primeiros cristáos
em Jerusalém a norma e o modelo, por excelencia, da seqüela
de Cristo após Pentecostés. Essa comunidade vivia fraternal
mente, em comunháo de bens, consolidada pela leitura da
palavra de Deus e pela fraeáo do pao (Eucaristía), pro
curando constituir um so coragáo e urna só alma; cf. At 2,
42-47. Ésse ideal pairou constantemente ante os olhos dos cris-

— 352 —
VIDA RELIGIOSA E EVANGELHO 29

táos, como se pode ver através dos seguintes testemunhos esco-


lhidos entre outros varios:
S. Basilio (t 379), grande legislador da vida cenobítica,
escrevia:

«A coabitagáo dos irmños é... vía para um progresso seguro...


Ela tem por objetivo a gloria de Deus... e ela observa a forma de
vida dos santos, de que falam os Atos dos Apostólos ao dizer: Todos
os fiéis habitavam conjuntamente e possuiam tudo em comum'. E
adiante: 'A multidáo dos crentes tinha um só coracáo e urna só alma;
ninguém dizia ser seu o que lhe pertencia, e tudo era comum'»
(Regr. fus. 7, PG 31, 933).

S. Jerónimo (f 420), mestre de muitos ascetas, observava:

«A Igreja dos primeiros fiéis foi o que agora os monges se esfor-


cam por realizar: ninguém tem algo de próprio, ninguém é rico ou
pobre entre éles; os bens sao distribuidos entre os indigentes; entre-
gam-se á oragao e aos salmos, estudam e vivem na continencia; é
assim que Lucas nos descreve o que foram os primeiros fiéis em
Jerusalém» («De viris illustribus» 11 PL 23, 658).

Na Idade Media, Guilherme de S. Thierry volta ao mesmo


tema:

«Os Apostólos instituirán! para si essa maneira comunitaria de


viver, segundo a qual a multidáo só tinha um coracáo e urna alma,
tudo era comum, e freqüentavam continuamente o templo em senti-
mento de unanimidade. Muitos homens, levados por intenso amor a
essa forma de vida instituida pelos Apostólos, já nao querem outra
casa ou mansáo a nao ser a casa de Deus, que é a casa de oracSo.
Realizam tudo dentro de um horario comum e sob urna regra comum.
Habitam sob o mesmo teto, em nome do Senhor; nada possuem de
próprio, nem mesmo seus corpos; nao sao senhores da sua vontade
pessoal; dormem no mesmo lugar; levantam-se juntos, oram juntos,
salmodiam juntos, estudam juntos. Exprimiram um desejo forte e
imutável de obedecer a seus superiores e de lhes permanecer sub-
missos. Reduziram ao mínimo suas necessidades para viverem de
pouco; trajam-se pobremente, alimentam-se sobriamente» («Líber de
natura et dignitate amoris» IX 24, PL 184, 395s).

Referindo-se á tradifiáo anterior, S. Tomás de Aquino


(t 1274) dizia que «toda vida religiosa tem sua origem nos
Apostólos» (cf. Suma Teológica U/U 188, 7).
No sáculo XVI, os Teatinos afirmavam que «a forma de
vida religiosa que é a nossa, é inspirada pelos Atos dos Apos
tólos» (Holstenius, «Codex Regularum» V. Augsburg 1759,
p. 348).
Enfim o Concilio do Vaticano II, nos últimos anos, quis
fazer eco a tal tradigáo, nos seguintes termos:

— 353 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970. qu. 3

«A vida a ser levada em comum, a exemplo da Igreja primitiva,


em que a multidao era um só coragáo e urna só alma, alimentada
pela doutrina evangélica, a Sagrada Liturgia e sobretudo a Eucaristía,
persevere na oragáo e na comunhao de um mesmo espirito» (n» 15).

3. Conclusao

Se bem que nao se possa encontrar na Escritura Sagrada


a distincáo explícita entre preceitos e conselhos, pode-se afir
mar que a vida religiosa é evangélica ou inspirada pelo Evan-
gelho em toda a fórca da expressáo. Ela nao constitui urna
faccáo dentro do povo de Deus, mas ela dá expressáo a urna
tensáo que existe em todo ésse povo. Seja lícito tentar ilustrá-
-la mediante a imagem da chapa radiográfica.
A chapa radiográfica póe muitas vézes em relevo a ossa-
tura ou a estrutura óssea de um membro, deixando em pe
numbra os tecidos e vasos que fazem parte désse membro e
lhe sao necessários. Assim a vida religiosa, fixando-se sobre
certas atitudes radicáis, póe em relevo as exigencias de abso
luto do Evangelho que todo cristáo experimenta de algum
modo na sua vocacáo pessoal (mesmo no sáculo e no matri
monio). Assim fazendo, o Religioso tem que deixar na pe
numbra bens auténticos, que nem por isto ele despreza e que
outros cristáos póem, do seu modo, em realce.

Concebida uestes termos, a vida religiosa tem, e terá


sempre, o seu lugar — lugar de escol — na Igreja de Deus.

Éste artigo inspirou-se no estudo de J. M. R. Tillare! O.P.: «Le


íondement évangélique de la vie rellgleuse», publicado em «Nouvelle
Revue Théologique» t. 91 (1969) n' 9, pp. 916-955.
Vejam-se também:

J. M. R. Tillard, «Religiosos hoje». S. Paulo.


E. Gambari, «O meu viver é a Igreja». S. Paulo 1970.
R. M. Roxo, «Os Religiosos no Senhor e na Igreja». Sao Paulo
1969.
Ir. Jeanne d'Arc, «As religiosas na Igreja e no mundo atual».
S. Paulo 1969.
Card. Renard, «A adaptada renovac&o da vida religiosa». Caxias
do Sul 1968.
J. Galot, «Renovac&o da vida consagrada». S. Paulo.
J. Galot, «Os religiosos e a Igreja». S. Paulo.
Th. Matura, «Celibato e comunidade». Petrópolis 1969.
K. Rahner, «Teología da pobreza». Caxias do Sul 1969.

— 354 —
«VOCACAO PROVISORIA» _31

A. Schulz, «Discípulos do Senhor». Sfio Paulo 1969.


P. R. Regamey, «L'exigence de Dieu>. Paris 1969.
H. Schummann, «Le groupe des disciples de Jésus, signe pour
Israel et prototype de la vie selon les conseils», em «Christus» 50
(1966), pp. 184-209.
T. Aerts, «Suivre Jésus, évoluüon d'un théme biblique dans les
évangiles synoptiques>, em «Ephemerides Theologicae Lovanlenses»
-1966, 476-512.
Q. Quesnell, «Made themselves Eunuchs for the Kingdom of
Haeven», em «Catholic Biblical Quarterly» 1968, pp. 335-358.

IV. DESIGNIOS DE DEUS

4) «Hoje em día £ala-ae nraito de vocagao provisoria.


Que quer dizer?»

Em sintese: Pode-se admitir sem dificuldade que Deus chame


alguém a determinada tarefa e depols lhe assinale outro designio,
desde que a primeira tarefa nao seja, por sua própria índole, definitiva.
Há, porém, tarefas que, por sua natureza mesma, Implicara enga-
Jamento definitivo. Se, depois de assumir o respectivo compromisso.
alguémJulga que n3o deve continuar a exercé-lo, talvez nunca tenhá
«do auténtico chamado de Deus ou talvez esteja sendo vitima de urna
crise (que poderá ser superada mediante revigoramento de fé e espi
rito sobrenatural, sem abandono da vocacáo originaria)

Resposta: Por «vocagáo» entende-se um chamamento.


Geralmente éste termo designa o chamado que Deus dirige ao
homem (ou á mulher) através de sua personalidade e das cir
cunstancias em que vive, para exercer determinada missáo ou
abracar certa profissáo ou carreira.
Pode haver vocagáo provisoria?
1) A rigor, deve-se responder afirmativamente. Deus
pode chamar alguém a cumprir alguma tarefa ou dedicar-se
a certo mister para depois dar-lhe o chamado para outra ta
refa: assim pode alguém ser vocacionado para fazer estudos
superiores (de medicina, engenharia, advocada...) e, a se
guir, receber a evidencia de que deve abandonar sua profissáo
liberal já em exercício, e dedicar-«e la criacáo de gado ou á
agricultura numa fazenda. Pode alguém fazer brilhantes cursos

— 355 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 4

de matemática e depois devotar-se ao comercio, á arte publi


citaria, á psicología, ao esporte profissional, etc.

2) Mas nem t6da vocacáo é suscetível de provisoriedade.


Algumas tém caráter absoluto, definitivo. Tal é, por exemplo,
o chamado á vida religiosa consagrada por votos perpetuos.
Quem faz profissáo religiosa que seja por seus próprios termos
perpetua, entra num caminho que, por si, é irrevogável. A vida
religiosa, no sentido pleno, é por sua própría definigáo algo
de radical, totalizante; é urna doacáo ele tudo por todo o
tempo de vida do Religioso. Se Deus realmente chama alguém
a isso, é de crer que o faga de maneira definitiva, pois os
designios de Deus nao sao «Sim» e «Nao» (cf. 2 Cor 1, 19s);
Deus nao se retrata, mas é fiel a Si e aos homens.
Pode-se também dizer que o chamado ao sacerdocio mi
nisterial é, por si, algo que nao incluí provisoriedade em seu
conceito; o presbítero nao recebe apenas disposigóes psicoló
gicas e gracas atuais para exercer urna funcáo, mas recebe o
caráter sacramental que Ihe marca a alma indelévelmente; o
padre é padre para sempre, consagrado em todo o seu ser para
exercer o ministerio sacerdotal.

3) Nos casos de dúvida ou crise de vocacáo religiosa


(perpetua) ou sacerdotal, pode-se admitir alguma das seguin-
tes hipóteses:

— a pessoa se «engajou» em termos definitivos sem,


de fato, ter recebido de Deus a respectiva vocagáo. Ter-se-á
engañado, ao avaliar as suas aptidóes ou os sinais de Deus;
— a pessoa terá sido moralmente constrangida por
pressáo ora mais, ora menos explícita, de parentes, superio
res, amigos que a queriam ver na vida religiosa ou no sacer
docio;
— ou nao terá sido devidamente esclarecida por seus
mestres (ou suas mestras) a respeito de todo o alcance dos
compromisso a assumir; em conseqüéncia, engajou-se um tanto
inconsciente.
Pode entáo acontecer que anos depois a pessoa tome cons-
ciénda do erro cometido e pega legítimamente a dispensa de
seus compromissos; assim fazendo, nao comete infidelidade.
É preciso, porém, nao admitir com facilidade tais erros;
antes de os declarar, a pessoa interessada deve ponderar aten
tamente o seu caso na presenga de Deus, procurando com
intengáo pura reconhécer exatamente qual a vontade precisa

— 356 —
FICHAS CATEQUÉTICAS DA «SONO-VISO» 33

de Deus a seu respeito. Nesse exame, preconceitos, cansago,


esmorecimento, afetos secundarios podem fácilmente perturbar
o julgamento; a fím de os evitar, é importante colocar-se sob
o olhar de Deus, a quem se háo de pedir as luzes necessárias
para acertar, e a quem se prestará» coritas no dia do juízo.
Hoje em dia novas concepgóes de vida religiosa e de ideal
sacerdotal inquietam pessoas que se julgavam chamadas a
tanto. É para desejar que essas pessoas ponderem cuidadosa
mente a vaJidade de tais concepgóes inovadoras, aparentemente
revolucionarias; vejam se realmente sugerem mudanga de vo-
cagáo ou apenas ofuscam momentáneamente o olhar; um revi-
goramento da visáo de fé poderá ser o remedio adequado para
a crise, em vez de se recorrer a um pedido de dispensa dos
compromissos. Pode-se admitir que muitos e muitas daqueles
que, após a profissáo perpetua ou a ordenagáo presbiteral,
julgam nao ter vocagáo, na verdade tém auténtico chamado
de Deus; mas acham-se combalidos ou solapados em sua fé;
o naturalismo pode bafejar qualquer cristao, e torná-ío espi-
ritualmente anémico.
«O justo vive da fé» (Rom 1, 17). Eis palavras do Apos
tólo que nunca é demasiado lembrar e repetir, principalmente
aqueles que, chamados a servir mais diretamente ao Senhor,
só podem perseverar se mantiverem bem acesa a chama da fé.

V. EDUCACAO NOVA

5) «As fichas catequéticas da 'Sonó-viso* tém estado em


foco, provocando pareceres contraditérios.
Sao. marxistas ou cristas?»

Em sintese: Os fascículos da «Sono-viso> distinguem-se pela sua


esmerada apresentac&o técnica e pedagógica. Foram concebidos de
acordó com o processo de amadurecimento psicológico do estudante.
Os íichários se interessam multo pela formacáo humana do aluno,
procurando torná-lo consciente de seus deveres para com o próximo
e engajado na luta por um mundo melhor. — Nao se pode dizer que
essas fichas tenham colorido político. O que se nota, porém, é que no
afá de apresentar o sobrenatural (ou a mensagem evangélica) como
consumacao do plano natural ou meramente humano, os autores das
fichas nao deram o devido realce ao ensinamento das verdades da fé
própriamente dita; estas aparecem, principalmente nos tres primeiros
graus, quase como complementos da formacáo do jovem. Por Isto

— 357 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 5

seria para desejar que os álbuns da «Sono-viso» fdssem muito mais


explícitos na transmissáo do que há de típico na mensagem crista.
FormacSo humana e formacáo crista nao devem ser consideradas
como duas etapas da educacáo do jovem, mas como um so todo, em
que o elemento de fé deve ser táo expllcitado quanto os elementos de
brío, honestidade, compreensáo do próximo, desinstalacao...

Basposta: Sob o título geral «Educagáo Nova» tém sido


divulgados no Brasil pela empresa alema «Sono-viso» oito fi
charlos destinados á formacáo humana e crista de alunos do
primeiro e do segundo ciclos. Os autores da obra trabalharam
sob a orientagáo do Comité Latino-Americano da Fé (CLAF).
Os fascículos trazem a aprovagáo eclesiástica conferida
por Mons. Joáo d'Ávila Moreira Lima, Vigário Geral da arqui-
diocese de S. Sebastiáo do Rio de Janeiro. Trazem também
os nomes (sem alguma declaragáo anexa) dos Srs. Arcebispos
e Bispos que constituem o Conselho Superior da «Sono-viso»
do Brasil. A primeira edigáo das fichas, publicada há dois anos
no Rio Grande do Sul, suscitou contradigóes, pois realmente
estava pouco madura e se expressava em termos ambiguos
ou pouco felizes. Após revisáo e ampliagáo do texto, as fichas
catequéticas reapareceram no mes de fevereiro de 1970. To-
davia ainda deixam dúvidas na mente dos comentadores. Eis
por que abaixo tentaremos analisá-las e julgá-las sucinta
mente.

1. Rápida análise

O curso «Educagáo Nova» compóe-se de quatro graus,


havendo para cada um o fascículo do professor e o do aluno.
Nao se trata própriamente de compendios de doutrina,
mas, sim, de «livros de trabalho», ou seja, de fichas onde há
sugestóes para que o professor incentive a reflexáo do aluno
e éste descubra paulatinamente a verdade. Utilizando as indi-
cagóes propostas, o aluno exercerá atividades escolares, com-
porá novas fólhas e assim irá formando o «seu livro».
Tanto o fascículo do professor como o do aluno apresen-
tam numerosos exemplos tirados da vida concreta; partem da
experiencia cotidiana; citam cangdes modernas, frases de filó-
. solos e pensadores famosos, de modo a interessar e motivar
muito vivamente os alunos. Os desenhos ilustrativos sao insi
nuantes. Em suma, toda a obra atesta um trabalho de prepa-
ragáo muito atento e minucioso.

— 358 —
FICHAS CATEQUÉTTCAS DA «SONO-VISO» 35

Os quatro graus do curso correspondem a quatro etapas


do amadurecimento psicológico do jovem, e podem ser assim
apresentados:

1) Rumo a Terna Prometida, fichário destinado á pré-


-adolescentes, isto é, meninos de 12 a 14 anos e meninas de
11 a 13 anos, que supostamente entáo freqüentam a 1» e a
2» series ginasiais. Nessa idade desmoronam os valores da
infancia para dar lugar aos da juventude. O jovem perde a
seguranca e a tranqüilidade que a «terrinha» da infancia lhe
proporcionava, para se tornar criativo, entrando em nova térra
du na «Térra Prometida».

2) Mondo Novo. Também se destina a pré-adolescentes


da 1» e da 2» series ginasiais. Enquanto «Rumo la Térra Pro
metida» leva em conta o microprocesso individual ou a evo-
lucáo do próprio Eu, «Mundo Novo» auxilia o jovem a pen
sar sobre o macroprocesso histórico ou a vocacáo universal
(o Nos).

3) üm lugar ao Sol, fichas para a 3» e 4» series gina


siais, tendo em vista a adolescencia pubertária (14-16 anos).
Esta é a idade em que o jovem se busca, se admira e se
avalia: procura saber com que foreas pode contar na luta
pela vida dentro da sociedade humana, onde vai escolher «o
seu lugar ao sol». As fichas correspondentes tendem a ajudar
o jovem na reflexáo sobre as perguntas: «Quem sou eu?» e
«Que posso fazer?»

4) Os caminhos do Amor. Fichas destinadas ao 2» ciclo


ou á adolescencia adulta, que é a idade do amor. «Depois de
um periodo de infancia em que era o centro das atengóes dos
adultos e déles recebia tudo; depois de dois periodos de ado
lescencia (pré-adolescéncia e adolescencia pubertária), em
que testou sua capacidade de troca através de urna amizade
profunda com colegas de mesma idade e de ambos os sexos,
o jovem sente-se agora com urna capacidade de doacáo muito
grande»; ressoa o apelo a dar-se totalmente a urna pessoa (cón-
juge) ou a varias pessoas (comunidade), escolhendo sua profis-
sáo na vida (cf. Apresentacáo de «Rumo á Térra Prometida»,
livro do Professor, p. IV).
Os quatro fascículos se concatenam de tal modo que
desenvolvem fortemente a personalidade do educando com seus
predicados, para assentar nela os elementos da fé. Pretendem
assim corrigir o método antigo, que apresentava os dados reli
giosos sem preparagáo psicológica ou humana do aluno.

— 359 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970. gU. s

Em suma, os fíchanos sao extremamente vivos, insinu


antes e dinamizadores, o que torna fácil e agradável a sua
Jeitura.

P5e-se agora a pergunta:

2. Que ¡ulgar ?

Um julgamento sereno sobre o assunto parece exigir que


se focalizem dois aspectos do tema.

2.1. Sim!

Inegávelmente as novas fichas catequétícas tém em vista


as difículdades que experimentam todos quantos labutam no
ensmo da Religiáo em nossos dias. Verifica-se que falta por
vezes, aos jovens a motivacáo para as aulas de Religiáo; estas
tem nao raro fama de ser abstraías, desatualizadas é enfa-
donhas. Ora os fascículos da «Educacáo Nova» sao aptos a
fazer que se dissipe qualquer objecáo désse tipo i bem elabo
rados, de modo a se adaptar á psicología do jovem em suas
diversas fases, fartamente enriquecidos com fatos e dizeres
da vida contemporánea, usando linguagem e vocabulario da
juventude contemporánea, despertam a curiosidade e a apli-
cagáo do estudante. A equipe que elaborou tais fichas fez
paulatinamente suas experiencias, que lhe permitiram chegar
a bons resultados. O mestre que utilize tais subsidios para
suas aulas, terá válido instrumento para chamar e deter a
atencáo de seus ouvintes.

As fichas de «Sono-viso» estáo impregnadas de entusias


mo, que elas tendem a comunicar. O seu tema dominante é
«crescer»: crescer no plano moral, como também no sobre
natural ou cristáo. Os seus dizeres mais freqüentes dissipam
0 espirito de covardia e acomodacáo nos jovens leitores. Des
pertam a consdSncia de que estamos envolvidos num processo
histórico, devendo construir algo neste mundo; estimulam
também a nogáo de que somos solidarios com todos os homens,
máxime com os mais desamparados. Os ensinamentos religio
sos (quando ocorrem) aparecem enxertados dentro da vida
cotidiana e Intimamente relacionados com ela.
Eis alguns espécimens désse relacionamento:

1(«Mundo
M*DlU\TAerfi *?ído para ü> pois Éle é tud0 Maquilo de que gostas>
N6vo>, livro do aluno, p. 27). e

— 360 —
FICHAS CATEQUÉTICAS DA «SONÓ-VISO» 37

«Derramo minha alegría, Senhor, como um pássaro no céu. Um


ndvo dia que brilha e palpita, explode e canta teu amor. Criaste cada
dia, como criaste os cachos sobre minha cabeca. Aleluia, Senhor, por
Jesús Cristo, aleluia». Proposta esta prece, pergunta o texto do ficha
rlo: «No amanhecer de sua vida, qual é a sua oracáo?» («Mundo
Ndvo», livro do aluno, p. 27).
«O cristáo é aquéle que vive. Por isto néle tudo é Páscoa, isto
é, passagem da morte para a vida» («Caminhos do Amor», livro do
aluno, p. 22).
«É preciso que eu saiba ler minha vida, minha época, como sendo
Cristo em acáo, no trabalho da unidade.
E eis-me entáo engajado nesta claridade: tenho que agir como
Ele, manter acesa a minha lampada e dedicar-me as tarefas á minha
altura...» (ib. p. 42).
«Nao somos o que deveriamos ser.
Nao somos o que queríamos ser.
Nao somos o que iremos ser.
Mas, gracas a Deus,
NSo somos o que éramos».
(«Rumo á Térra Prometida», livro do aluno, p. 54).

Numa palavra: a didática que os ficharlos utilizam, me


rece pleno aplauso; beneficiando-se amplamente dos recursos
modernos, é de crer que tomem as aulas de formagáo religiosa
muito interessante.

Nao obstante, há motivos para que surjam dúvidas a res-


peito da validarte das fichas de «Educagáo Nova».

2.2. As reservas

Tem-se a impressáo de que o ensino da fteligiáo ou das


verdades da fé é pobre nos fascículos em foco. Estes estáo
concebidos para formar homens de elevadas qualidades mo
ráis, engajados na construgáo de urna patria melhor e de um
mundo mais feliz. Tudo que é humano e natural, é visto ñas
fichas com otimismo incontestado ou mesmo exagerado, como
se o cristáo pudesse conquistar os valores sobrenaturais culti
vando simplesmente os naturais. A Religiáo em «Educagáo
Nova» aparece, as vézes, como complementacáo de urna dou-
trina antropológica; é esta a impressáo que se tem, máxime
nos fascículos para os alunos dos tres primeiros graus. Os
livros do professor, assim como os do quarto grau (ambos),
sao mais religiosos, isto é, tratam mais direta e explícitamente
dos temas da fé; SS. Trindade, misterio de Cristo, sacramentos,
Eucaristía, morte, céu, inferno, purgatorio...

— 361 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 5

Os autores dos fascículos tiveram em vista, como atrás


foi dito, desenvolver as bases humanas ou a personalidade do
educando, para comunicar-lhe oportunamente as proposigóes
da fé. — Na verdade, é indispensável, em qualquer curso,
levar-se em conta o desenvolvimento psíquico e humano do
aluno, mas nao se deve, por isto, postergar o ensinamento da
fé própriamente dita. Éste deve ser, com clareza e habilidade,
comunicado ao educando desde as primeiras aulas de formacáo.
Caso nao se faga isto, as nogóes de Deus e de vida sobrenatural
poderáo vir tarde demais, encontrando bloqueado ou embotado
o ánimo do aluno ou, quando menos, poderáo parecer comple-
mentagáo mais ou menos arbitraria. Na realidade, também a
crianga, desde que dé sinais do uso da razáo, manifesta um
genuino senso religioso, que necessita de ser educado e desen
volvido.
Vé-se, pois, que, se o professor deseja levar os seus alunos
a ser homens de fé e de vivencia sobrenatural, deverá, desde
o principio de suas aulas, complementar os ensinamentos das
fichas com a exposigáo clara e segura da doutrina sagrada.
Ser cristáo nao é apenas ser um homem de bem, dedicado
ao próximo e as tarefas seculares, mas implica, antes do mais,
urna vida sobrenatural; a fé comunica ao discípulo de Cristo
o modo de ver próprio de Deus, enquanto a graga santificante
o torna participante da vida trinitaria: «Vede com que amor
nos amou o Pai, ao querer que fóssemos chamados filhos de
Deus. E, de fato, nos o somos... Caríssimos, agora somos
filhos de Deus, e ainda nao se manifestou o que havemos de
ser. Mas sabemos que, quando Ele se manifestar, seremos se-
melhantes a Ele, porque O veremos como Ele é» (1 Jo 3,ls).
O cristáo sabe que o homem nao se consuma simplesmen-
te na vida presente nem na construgáo da cidade do homem.
Colaborando, sim, com os seus semelhantes, ele jamáis pode
esquecer que a plenitude da vida só será obtída no termo desta
peregrinagáo terrestre.
Em conclnsáo, é preciso reconhecer nos autores de «Edu
cacáo Nova» a louvável intengáo de tornar a catequese mais
eficiente e fecunda em nossos días; quem nao toma cons-
ciéncia da mentalidade dos jovens de hoje, nao lhes pode
comunicar a verdade do Evangelho; por isto, os equipistas
de «Educacáo Nova» se preocuparan! com urna apresentagáo da
doutrina pela qual os jovens se pudessem interessar. Deve-se
também reconhecer o preparo pedagógico e psicológico dos au
tores do Fichário. — Doutro lado, porém, é de lamentar que
ésses mestres se tenham voltado mais para a formacáo humana

— 362 —
«O LOBO DA ESTEPE> 39

do pupilo do que para a sua formacáo na fé e no espirito sobre-


fichas, o que as torna ineptas para a catequese.
Digamos que os autores deixaram ao mestre a tarefa de
dar o cunho genuinamente sobrenatural e cristáo as suas li-
Qóes. Melhor, porém, seria que o tivessem feito diretamente
no texto das fichas.

A propósito vejam-se duas cartas circulares da CNBB em «Sedoc»


maio 1970, 1418-1422.

VI. NO MUNDO DO ROMANCE

6) «'O Lobo da Estope'. Eis um dos mais famosos ro


mances de Hermann Hesse.
Que dizer a propósito?»

Em stntese: A obra de Hermann Hesse apresenta um homem


de cerca de 50 anos de idade que vive solitario e melancólico por
julgar a presente sociedade artificial e hipócrita. Dal apelidar-se ele
mesmo «Lobo da Estepe». Fensa em suicidar-se, quando, vagueando
pela cidade, entra em casas de diversOes, onde contra! amlzade com
duas bailarinas. Estas, despudoradas, transformam o «Lobo» em figura
mals humana, afetiva o risonha. — Hermann Hesse parece querer
asslm combater a atltude misantrópica e atediada de muitos dos
nossos contemporáneos, incutindo-lhes a aceltacáo da vida e o otimis-
mo. Todavía essa intencao de Hesse nao é claramente perceptivel; o
«Lobo da Estepe» é urna figura ambigua até o fim do romance; as
pessoas que lhe sugerem afeto e euforia, sao pessoas de vida desre-
grada e má. O que mais impressiona, na leitura do romance, sao os
traeos de cetlclsmo do «Lobo» e as cenas de erotismo que ele apre-
senta. Nao se pode, porém, deixar de reconhecer que a fantasía do
autor se exerceu. brilhantemente na redacao do romance, cujo estilo é
original.

Besposta: Hermann Hesse é um romancista alemáo con


temporáneo que, em suas diversas obras, aborda questóes
ligadas á filosofía e á sabedoria da vida. O estilo e a pujanga
ousada de seu genio de escritor valeram-lhe o Premio Nobel
de Literatura. O livro do autor que mais tem impressionado
o público, é «O Lobo da Estepe», romance ambiguo, pois sugere,
como padróes, atitudes antitéticas (odio e amor, ceticismo e
crenffa, agressividade animal e graciosidade humana), deixando
o leitor um tanto perplexo ou suspenso. — Abaixo tentaremos
penetrar no significado de «O Lobo da Estepe».

— 363 —
40 «rPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 6

1. «O Lobo da Estepe»

O escritor apresenta-nos a figura de um homem, Harry


Haller, de pouco menos de cinqüenta anos de idade, que nutre
em si disprézo e repudio pela sociedade contemporánea. Esta
lhe parece convencional e hipócrita, mais dada ao gozo sen-
sível do que aos valores da inteligencia. Por isto vive solitario,
entregue a Ieituras e estudos. Harry, porém, senté que tal vida
isolada e misantrópica vem a ser insusteñtável; o tedio o
acabrunha; em conseqüéncia, concebe a idéia de suicidar-se,
quando chegar aos 50 anos ou mesmo antes. Entrementes, a
fim de suavizar a vida, cede a bebida; tem urna amante que
de vez em quando ele visita. De resto, seu ritmo de vida é
desregrado, sujeito as oscilagóes de seu estado psíquico.
Justamente para exprimir sua agressividade iníensa aos homens,
Haller mesmo se intitula «o Lobo da Estepe»; ele se senté animal
no deserto, embora reconheca, de vez em quando, que é homem e
humano.

Acontece que, enquanto vive na perspectiva do suicidio


próximo, Haller, vagueando pelas rúas, os restaurantes e os
«dancings», entra em contato com certas pessoas — bailarinas
e cantoras de má vida — que lhe despertam a atengáo para
outra face da realidade; dedicam-lhe simpatía, ensinam-lhe a
danga, convidam-no para festas e bailes. Harry, diante dessas
figuras humanas, sente-se atraído, mas, ao mesmo tempo,
aborrecido; o homem e o lobo (além de outras múltiplas pegas
do próprio en) se chocam dentro déle. Mesmo assim Haller
concebe amor por duas jovens; chega a deixar-se apaixonar por
urna danqarina, que adquire o completo dominio sobre o
«Lobo». Essa jovem, Herminia, modifica-lhe a vida, tornando-o
mais humano e afetivo. Todavía ela lhe sugere que mate essa
sua amante; Haller executa o homicidio...

Em conseqüéncia, é julgado por um tribunal fantástico,


ao qual preside o músico Mozart. O iúri consegue finalmente
convencer Harry Haller de que deverá ser mais compreensivo
para com os homens e as instituigóes da sociedade, mais dado
ao «jógo da vida», menos misantrópico e odiento.
As cenas fináis do enredo de Haller se processam num
teatro mágico («só para loucos»), em cujos diversos compar
timentos o «Lobo» encontra figuras humanas que o despertam
para o otimismo e a paz.
O romance se encerra por duas páginas em que Hermann
Hesse, o autor do livro, reconhece ter escrito algo de miste-

— 364 —
«O L6BO DA ESTEPE>

rioso e ambiguo, ficando ab criterio do leitor julgar a obra.


Inegávelmente é difícil entender o sentido exato das cenas
vividas por Harry Haller no seu teatro para loucos; nao há
concatenacáo muito lógica entre ésses diversos quadros, que
fogem aos termos do real ou do verossímil. Nao obstante,
procuraremos avaliar o conjunto do romance de Hermann
Hesse.

2. Que dizer ?

1. Em numerosas passagens do livro, o leitor pode ter


a impressáo de que Hermann Hesse quis recomendar a figura
do «Lobo da Estepe»; o que significa: o ódfc> á sociedade, o
asco e o tedio pela vida, o vazio da existencia terrestre...
Dir-se-ia que Sartre (o autor do axioma «O inferno sao os
outros» e o arauto da náusea...) assim como Marcuse (o
filósofo da contestagáo por excelencia) inspiraran! o autor de
«O Lobo da Estepe».
Parece, porém, que outro é o sentido do romance. Com
efeito, pode-se crer que a auténticaintencáo do autor do livro
se manifesta ñas suas frases fináis:Hesse nao pretende propor
a figura do «Lobo» como modelo a ser imitado pelo leitor,
mas, ao contrario, como tipo a ser contraditado. Nao foi para
incutir pessimismo e contestagáo que Hesse escreveu o seu
romance, mas, sim, para sugerir reagáo contra toda atitude
derrotista e cética perante a vida. Hesse recomendaría assim
ao seu leitor, aceite a realidade social como ela é; nao fuja
déla, mas procure aproveitar o que oferece de bom, colabo
rando com os demais homens.
Eis algumas das últimas passagens do epílogo do romance:

«Éste livro trata, sem dúvida alguma, de soírimentos e necessida-


des, mas mesmo assim nao é o livro de um homem em desespero, mas
o de um homem que eré.
É claro que nao posso nem pretendo dizer aos meus leitores como
devem entender a minha historia. Que cada um néle encontré aquilo
que lhe possa íerir a corda intima e o que lhe seja de alguma utili-
dade! Mas eu me sentiría contente se alguns désses leitores pudessem
perceber que a historia do Lobo da Estepe, embora retrate enfermi-
dade e crise, nao conduz & destruicáo e a morte, mas, ao contrario, á
redencao» (p. 200).

Pode-se admitir, portante, que Hermann Hesse tenha pro


curado dissipar a depressáo, o tedio e o desespero que acome-
tem tantos de nossos contemporáneos.

— 365 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 6

2. Todavía a crenca e a «redencáo» que o escritor deseja


propor em lugar de desespero e morte, sao precarias, constí-
tuindo base muito fraca para reerguer o ánimo dos leitores.
Com efeito. Hermann Hesse insinúa a crenga na imorta-
lidade ou na vida postuma como esteio do homem peregrino
sobre a térra — o que é muito sabio. Mas a vida postuma
que o autor tem em vista, ficá sendo algo de vagor nao é o
encontró com a Beleza Infinita vista face-a-face (como ensina
o Cristianismo), mas talvez urna especie de nirvana, em que
o individuo se perde na substancia divina neutra. Hermann
Hesse é propenso ao panteísmo («tudo é Deus») dos hindus
e budistas (como se depreende do seu outro livro intitulado
«Sidarta»).

Mais ainda: a vida postuma de Hesse parece nao ser mar


cada pelo comportamento da pessoa aqui na térra; a prática do
bem e do mal nao é decisiva para a sorte definitiva do individuo;
as prostitutas, os amantes, os homicidas e suicidas podem pre
tender chegar a ésse repouso postumo, em que os espiritos
imortais exclamam:

<Já nos vivemos


no gélo etéreo transluminado de estrélas,
nao conhecemos os días nem as horas,
nao temos sexo nem idade...
fría e imutável é nossa eterna esséncia,
frígido e astral o nosso eterno riso».
(p. 191)

Eis o trecho que mais ilustra a eternidade apregoada por


Hesse:
Diz Herminia, a bailarina impúdica, ao «Lobo da Estepe»:

«O que chamo de imortalidade, os piedosos o chamam de reino


de Deus. Pensó comigo: todos nos, ... os que temos urna dimensao
a mais, n&o pederíamos yiver se nao existisse urna outra atmosfera
onde respirar além da atmosfera déste mundo, se a eternidade n&o
existisse além do tempo; e ésse é o reino da Verdade. A ele pertencem
a música de Mozart e os poemas dos grandes poetas que vocé admira;
a ¿le pertencem os santos que operam mllagres, os que sofreram
martirios e deram um grande exemplo aos homens».

Tendo ouvido tais palavras, reflete o «Lobo»:

«Naquele instante estava-lhe muito grato por haver expressado o


pensamento da eternidade. Eu necessitava déle; sem ele nao poderla
viver e; muito menos, morrer. O bendito além, tora do tempo, o mundo
do eterno valor, da substancia divina me fóra presenteadp hoje por

— 366 —
«O LOBO DA ESTOPE» 43

aquela amiga, que me ensinara a dancar... A eternidade nao era


outra coisa senao a libertagáo do tempo; era, de certo modo, a volta
á inocencia, o regresso ao espaca» (p. 138-140).

Como se vé, é assaz ambigua a nocáo de sobrevivencia


que Hesse sugere no seu livro.
De resto, a distincáo entre o bem e o mal moral é tenue
em todo o decorrer da obra: Herminia e María, que ganham
a vida galanteando os homens, e Pablo, músico dado a entor-
pecentes, sao os porta-vozes da boa mensagem que faz sair o
Lobo Harry da sua estepe!

3. Em suma, o livro «O Lobo da Estepe» é apto a im-


pressionar o leitor, porque póe em relevo importantes atitudes
da alma humana: o idealismo frustrado, o ceticismo daí de-
corrente, o estado de repulsa e odio em relagáo á sodedade;
o otimismo e a confíanga na vida, por parte de jovens artistas.
As cenas que descrevem tais atitudes, sao literariamente beirí
elaboradas (embora, as vézes, um pouco longas) e falam pro
fundamente ao leitor. A fantasía déste é interpelada e excitada
pelas cenas do «Teatro só para loucos», que é apresentado com
requintes estilísticos. As cenas de erotismo sao assaz fortes
(será Isto um valor?).
Embora o autor tenha intencionado comunicar ao público
urna mensagem positiva, talvez poucos leitores a percebam.
O que mais se incute a mente do leitor, é a figura atormen
tada, desregrada e cética do «Lobo da Estepe»; é também o
seu relacionamento debochado com Herminia e María, baila
rinas despudoradas, das quais Herminia chega a praticar o
lesbismo (cf. p. 151). Em conseqüéncia, a mensagem do livro
é assaz atenuada; o romance «O Lobo da Estepe» vale como
obra literaria, como produto da imaginacáo, que deixa o leitor
mais perplexo e confuso do que realmente alentado e esti
mulado.
Em conclusáo: Hermann Hesse tem toda a razáo ao ten
tar mostrar que só mediante a fé na eternidade se pode jus
tificar e sustentar a vida do homem sobre a térra. Justamente
por terem perdido tal fé tantos e tantos de nossos contempo
ráneos sofrem de inseguranca psíquica ou angustia («a neurose
é a doenga do sáculo XX», tem-se dito com razáo).

A propósito podem-se citar interessantes declaracSes de Cari June,


famoso analista:
«Parece-me que, com o declínlo da Religiáo, as neuroses se tém
aumentado conslderávelmente. — Es scheint mir, ais ob parallel mlt

— 367 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 128/1970, qu. 6

dem Niedergang des religiosen Lebens die Neurosen sich betrachtlich


vermehrt hatten».
«Durante os últimos trlnta anos, pessoas de todas as térras civi
lizadas vieram-me consultar. Tratel de centenas de pacientes, a maio-
ria sendo de protestantes, número mais reduzido de judeus, e cinco
ou seis católicos fiéis. Ora... pode-se afirmar que todos haviam caido
doentes porque todos tinham perdido aquilo que qualquer religlao
sempre deu a seus adeptos através dos sáculos; nenhum déles foi ver-
dadeiramente curado sem ter encontrado de novo as suas idéias reli
giosas» («L'homme & la découverte de son ame»).

O «Lobo da Estepe» é precisamente o retrato do homem


que tem nobres aspiracóes, mas nao coloca Deus em sua vida;
so percebe o vazio das criaturas. Teria sido para desejar que
Hesse fosse mais explícito na sua profissáo de fé em Deus e
na eternidade; ter-se-ia desvencilhado dos tragos do panteísmo
que o caracterizan!, para aderir á crenga num Deus distinto
do mundo, transcendental, mas Criador e Consumador do
homem.
Estéváo Bettencourt O.8.B.

RESENIIA DE LIVKOS

Meditacoes sdbre Sao Paulo, por Piero Rossano, vol. I: I e II aos


Tessalonicenses, I e II aos Corintios; traduc3o de Belchior Cornélio
da Silva. Edicfies Paulinas, Sao Paulo 1969, 130 x 200 mm, 539 pp.

Os comentarios da S. Escritura, principalmente os do Ndvo Tes


tamento, vém geralmente preencher urna lacuna na nossa bibliografía
teológica, desde que bem orientados. Eis que mais um acaba de apa
recer, com o titulo ácima.

«MeditacOes», nessa designado, nao significa apenas reflexSes


piedosas, mas, slm, consideracOes histórico-lingüisticas e doutrinárias
colocadas a servigo da oracáo e da piedade. O autor tem em vista
facilitar a compreensao do pensamentó paulino, nao ficando, porém,
no plano do estudo apenas, mas levando o leitor á prece. As páginas
de Rossano fazem eco aos estudos de grandes exegetas contemporá
neos, transmitindo em forma acessivel a grande público o que éles
tem de melhor.

A obra completa compreenderá varios volumes; cada qual, porém,


pode ser utilizado de per si. O prlmeiro volume abre-se com um esbóco
da vida e da personalidade de S. Paulo. Cada carta é precedida de
urna introduc&o especial (circunstancias de origem, circulo de leitores,
problemas abordados...); segue-se o texto mesmo da epístola com
sen comentario.

— 368 —
NO PRÓXIMO NÚMERO :

O homem moderno e a morte

Balismo das crianzas

Imprensa escrita e falada e Consciéncia Crista

«Sidarta» de Hermann Hesse

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

{porte comum NCr$ 20,00

porte aéreo NCrS 25,00

Número avulso de qualquer mes e ano NCr$ 2,00

Número especial de abril de 1968 NCr$ 3,00

Volumes encadernados: 1957 a 1968 (prego unitario). NCr$ 17,00

índice Geral de 1957 a 1964 NCr$ 10,00

Índice de qualquer ano NCr$ 1,00

Encíclica «Populorum Progressio» NCr$ 0,50

Encíclica «Humanae Vitae» (Regulagüo da Natalidade) NCr$ 0,70

EDITORA BETTENCOÜRT LTDA.

REDA^AO ADMINISTRACAO
Caixa postal 2.666 Rúa Senador Dantas, 117, sala 1134
ZC-OO Tel.: 232-2628
liio de Janeiro (GB) Rio de Janeiro (GB) ■ ZC-06

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