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Muçulmanos em Portugal:
Onde fica Meca quando se olha de Lisboa?
Lisboa: Público, 2005, p.n.n.
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humanidade com o divino, abrindo o Caminho para que, através Dele, todos
encontrem a Salvação. Os pontos fundamentais da doutrina cristã ficariam
desde logo claros: o dogma do pecado original, e a doutrina do pecado
contraído, de que pela desobediência de um, todos nascem pecadores; o
mistério da Encarnação, que a Igreja declara, aliás, como sinal distintivo da
fé Cristã; a concepção trinitária de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo; e a
crença na Crucificação, morte e Ressureição de Cristo como via da Salvação.
Estou a pensar nos católicos que conheço, hoje, entre nós. Na diversidade de
interpretações da narrativa da Queda, de posições perante o pecado original,
de leituras do termo Filho de Deus, da forma como é entendida a
Ressurreição, da compreensão da Trindade, do significado espiritual da
Crucificação, e de como cada uma destas questões se traduz na prática da
vida cristã. Mas mais fundamental ainda: algum cristão diria que ser cristão
se resume a estes dogmas? Que isto é sequer o mais importante quanto ao
seu ser cristão?
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No Islão, o está em causa é o reconhecimento de Deus, da dívida para com
Deus, que se paga sendo agradecidos a Deus. Taqwa, estar consciente de
Deus, é o que acima de tudo caracteriza o estado de crença, e que traz a paz
interior que reflecte a conformidade com a tal inclinação natural de todo o
ser criado. O esquecimento, o não reconhecimento do Criador, pelo contrário,
é uma ingratidão, um agravo contra o seu próprio ser, e um distanciar-se de
Deus. O mundo, a natureza, tudo são ayat, sinais de Deus, que apontam
para Ele, e orientam a Humanidade para consciência da Sua existência.
AKV: É exactamente essa questão das práticas que me traz de volta à sua
pergunta inicial, e ao que considero problemático nela. É que de certa forma
a pergunta, sendo sobre o Islão, contradiz um pouco a intenção e o espírito
do vosso livro, que é sobre os muçulmanos. Mas ainda bem que assim é,
porque ela permite tornar explicitas, por um lado, uma tensão que é
intrínseca à própria dinâmica do ser muçulmano, e por outro, uma
contradição que não é suficientemente reconhecida no olhar contemporâneo
sobre os muçulmanos. A questão, posta de forma um pouco simplista, é a
seguinte. A tradição orientalista e islamológica era uma tradição textualista e
histórica, que estudava o Islão pelos textos. Dar a conhecer o Islão consistia,
portanto, em duas coisas. Numa narrativa histórica centrada sobre a missão
do Profeta na Arábia do século VII, e, portanto, no contexto sociológico de
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uma Meca em rápido transformação social, e na psicologia, ou
psicopatologia, de Muhammad, que reduz e explica o Islão a um reformismo
social que se reclama de legitimidade religiosa. E na reconstrução expositiva
do sistema doutrinário do Islão pela leitura, cepticista, temática e analítica do
texto do Corão, das colecções de hadice, e da jurisprudência clássica.
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sobre a vida local, ela consistia de fotografias de cenas urbanas da vida
quotidiana de muçulmanos nestas cidades, e de filme e produções de arte,
murais, montagens, pinturas, escultura que são também formas de
expressão religiosa e cultural.
O problema, como ele confessa, começa pelo detalhe mais elementar, como
seja a legendagem das fotografias. Dizer o que a imagem mostra é já
interpretar o seu sentido, identificar um rito, classificar uma acção,
especificar um género, tudo isto implica já um trazer o Islão à leitura dos
muçulmanos. É isto que fazem também os antropólogos e os jornalistas que
dizem que deixam o Islão nas bibliotecas e vão aprendê-lo pela observação
dos muçulmanos.
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atribuída ao futebol de salão entre os jovens da comunidade declara nada
mais nada menos do que que a prática do futebol é considerada benéfica
para toda a comunidade islâmica! E daí transcrever em apêndice toda a
correspondência entre a Comunidade e as autarquias sobre a organização de
jogos de futebol! Bom, esse é obviamente um caso extremo, mas que se põe
quanto ao olhar externo sobre o que é que, do que os muçulmanos fazem, o
fazem por serem muçulmanos, o que é que no observável dos seus
quotidianos reflecte o ser muçulmano.
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O problema está no “apenas” quando disse “apenas uma relação pessoal”. O
conceito islâmico de din, que normalmente se traduz por religião,
corresponde antes a um modo de vida, a um modo de ser e estar no mundo.
Como din o Islão implica uma relação com Deus e uma inter-relação na
comunidade, na sociedade, com os outros, com a natureza até. O zakat, por
exemplo, é um dos cinco pilares da religião, é uma obrigatoriedade do crente
face a Deus, mas que se exprime como obrigatoriedade para com os outros;
em reconhecimento da dimensão e responsabilidade da vida em comunidade.
Zakat significa purificação, e designa uma taxa de caridade, é por assim dizer
o reconhecimento do direito que os menos favorecidos têm sobre os bens e
rendimentos dos mais favorecidos.
Há uma frase de Ali Sharia„ti num livro muito conhecido que ele escreveu
sobre o Hajj que acho que reflecte bem a tensão dos dois pólos da sua
pergunta. Dirigindo-se ao leitor ele diz qualquer coisa como: se queres saber
como executar correctamente os ritos do Hajj então lê os tratados dos
juristas; mas se queres compreender o significado do Hajj procura-o antes
no sentido do Islão, e do ser humano nele. Temos então aqui os dois lados
do ser muçulmano. Por um lado, uma preocupação com a ortopraxia, que de
facto se traduz numa, por vezes quase que caricata, obsessão com o agir
correctamente até no mais insignificante dos gestos, públicos ou privados
(uma vertente jurisprudencialista da religião que parece completamente
estranha a um ocidental, mas perfeitamente reconhecível para um judeu, e
cujos excessos de formalismo tem os seus críticos dentro do próprio Islão). O
outro lado do ser muçulmano é o da interiorização dos sentidos, intelectuais,
espirituais, místicos da religiosidade. E quando Sharia„ti a seguir diz que o
Hajj é o Islão em movimento, representado em drama, tal como como o
Corão é o Islão em palavras (e o Imã Imam, na sua leitura xiita, é o Islão
feito homem), dá-nos uma imagem perfeita da síntese destes dois lados do
ser muçulmano.
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APC: O que é que, no Islão, é indiscutível e o que é que pode ser
interpretado?
AKV: Não sei se essa será a melhor maneira de pôr a questão, mas talvez a
forma mais simples de responder a esta pergunta seja por referência às duas
categorias da jusrisprudência islâmica, Ibadat e Muamalat. Ibadat, que rege
e se refere às relações entre o crente e Deus, não está aberto a discussão.
Aceitando o Islão, reconhecendo-se e testemunhando-se submisso à Sua
vontade, o muslim aceita os cinco pilares sobre os quais o Islão assenta.
O Corão regulou mas não aboliu a escravatura, por exemplo, mas ao citar a
manumissão como exemplo do esforço no caminho da fé, ao recomendá-la
como acção meritória, ao restringir a escravização, e ao nomear a libertação
de escravos como opção na remissão de infracções, o Islão claramente
estabeleceu a condição do escravo, assim como a dos pobres e oprimidos,
dos orfãos e das viúvas, como índice de injustiça na sociedade.
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direito civil e de família de forma a garantir a realização do impulso dado
pelo Profeta.
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Além disso, não só impõe incontornavelmente o facto e o confronto com a
diversidade do Islão, mas também uma melhor compreensão do que nele é
universal; cria laços de solidariedade, meios de mobilização social, e formas
de politização, inconcebíveis décadas atrás. Por exemplo, quando uma
mulher muçulmana no Canadá negada acesso à mesquita pela porta principal
lança um apelo numa das redes Norte Americanas de Muçulmanos
progressistas e uma semana depois tem camionetas de muçulmanos e
muçulmanas a entrar com ela por aquela porta. Ou quando a organização
transnacional de mulheres juristas muçulmanas se mobiliza em rede para a
acção local à escala global em todos os países muçulmanos.
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segundo aspecto, é que se realmente há uma crise dos países árabes, ou
uma crise da geração árabe de 67, isso é uma questão árabe, aliás, do
projecto de modernização nasserista e do nacionalismo árabe secularista!,
não é uma questão do Islão, não é uma questão religiosa, e não é uma
questão dos muçulmanos.
APC: Talvez por causa desse peso que a história e a cultura árabes
têm no Islão, há quem defenda a necessidade de o “desarabizar”.
AKV: Esta questão é fundamental mas há que precisar melhor o que está em
discussão. Haverá, talvez, uns três sentidos que podemos diferenciar.
Primeiro, suponho que não será propriamente o uso de um vocabulário e
terminologia do discurso religioso islâmico, e menos ainda o árabe corânico,
que está a ser posto em causa. A sê-lo é uma falsa questão. O árabe é a
língua em que foi revelado o Corão, e o Corão em árabe é Palavra de Deus.
O árabe era também a língua em que se exprimiu o Profeta, cujas tradições
complementam a revelação. Haverá sempre, portanto, um elemento
irredutível de filologia em todo o debate islâmico. Toda e qualquer tradução
será já uma interpretação, um trabalho humano, histórica e culturalmente
específico, mais ou menos literal, ou fiel, mas só o texto árabe pode
constituir a base e a autoridade última, na resolução de qualquer questão de
interpretação.
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estampar o nome de Deus no mundo à nossa roda. Como o cumprimento da
paz, As-Salaamu Aleikum, que funciona como o elemento mais básico de
comunicação e vinculação entre todos os muçulmanos, também estas frases
criam e reforçam linguisticamente um traço de união na comunidade
umática universal.
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Por último, o sentido verdadeiramente desafiante da questão da
desarabização do Islão é o da discussão do que é que é específico e
contingente ou acidental, e o que é universal na história e na tradição
religiosa do Islão. Nada nesta questão, seja em termos históricos, filosóficos,
teológicos, estéticos, sentimentais, é simples ou consensual. Muito pelo
contrário. Tomemos o caso da sunna, a tradição vinculativa e normativa
baseada no exemplo do Profeta constituído a partir da sirah ou biografia de
Maomé, e dos hadice, que compilam as suas palavras e acções, os seus
pronunciamentos, decisões, opiniões, o que o Profeta aprovou, o que proibiu,
e o que tacitamente aceitou.
APC: Há, por outro lado, quem defenda que é preciso “mais Islão e
menos Profeta”. Qual é a sua opinião?
AKV: Por tudo o que já disse sobre o facto de o Profeta representar o Islão
vivido em complemento do Corão, essa ideia é para mim incompreensível. A
própria definição mínima de um muçulmano é aquele que proclame a
shahada, ou seja, que testemunha que Maomé é o Mensageiro de Deus.
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historiografia, os hadice. Mas estes apresentam vários problemas, de
autenticidade, por exemplo. O Corão, por outro lado, é uma autoridade
inquestionável. Neste sentido, o de repôr a prioridade do Corão sobre os
hadice, já a proposta terá um sentido mais válido.
Para uns o Islão é uma religião universal, não é uma cultura, e como religião
será sempre vivida em contextos culturais específicos aos quais se adapta.
Quando a cultura, a linguagem, os ritos, as práticas, a inter-relação local,
geram características fortes e reconhecíveis na vivência ou no discurso
islâmico, como no caso do Islão africano, do Islão do sub-continente Asiático,
do Sudeste Asiático, do Irão, da Turquia, por exemplo, é comum designá-lo
por esses termos. Neste sentido, a questão em aberto neste momento é a da
formação de um Islão Europeu, com características próprias comuns aos
muçulmanos da diáspora.
Mas não devemos esquecer que há nesta questão também uma dimensão de
relações de poder. Ou seja, não podemos esquecer que os muçulmanos são
uma minoria aqui, e uma minoria relativamente marginalizada sem grande
acesso ou conhecimento dos meios e técnicas de auto-representação na
esfera pública, nos discursos académicos e no mundo político-partidário.
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confiança para uma auto-afirmação, havia duas outras pressões em jogo: a
tentativa de dar a conhecer uma religião sobre a qual se sabia muito pouco
em Portugal, em linguagem acessível; e, talvez mais significativo, a tentativa
de combater a noção do Islão como religião estrangeira, e mais precisamente
árabe – a procura, por outras palavras, de normalizar o Islão na cultura
portuguesa.
Daí, por exemplo, a insistência sobre o uso da palavra Deus em vez de Alá,
para enfatizar que Alá é apenas o vocábulo árabe que designa o um e mesmo
Deus dos Cristãos, logo seguido da lembrança de que os cristãos árabes
dizem Alá e rezam a Alá. Eram outros tempos, diria agora, não fosse o facto
de ainda se fazerem programas sobre os muçulmanos com o título „filhos de
um Deus diferente‟! Na minha opinião aquela foi uma fase, necessária ou não
é questão que já não interessa; certamente compreensível, mas que deve
agora ser superada.
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