Você está na página 1de 15

in Alexandra Prado Coelho (texto) and Daniel Rocha (fotografia)

Muçulmanos em Portugal:
Onde fica Meca quando se olha de Lisboa?
Lisboa: Público, 2005, p.n.n.

Alexandra Prado Coelho: Sendo religiões com vários pontos em


comum, qual é, na essência, a diferença entre Islão e Cristianismo?

AbdoolKarim Vakil: Enumerar diferenças é fácil. Há aliás toda


uma literatura – de apologética e de polémica, tanto cristã como muçulmana
– centrada sobre essas diferenças. Mas se a ideia é dar a conhecer melhor o
Islão a resposta fácil não será talvez a que melhor se presta a isso.

Mas o meu problema, e hesitação em responder, começa, para ser franco,


com a sua pergunta. O que é que ela nos pede para comparar?: “o
Cristianismo” e o “Islão”; e o que é que normalmente encontramos
comparado?: os sistemas doutrinários, isto é, os textos, os credos, as
instituições, destilados numa doutrina. O Islão e o Cristianismo que nos dão
a conhecer pouco mais são que as suas respectivas altas tradições, a versão
letrada e erudita, autorizada, oficial, autoritária, urbana... ou seja, a versão
no papel, a teórica.

Não estou só a referir-me ao problema de comparar ortodoxias; a questão


que estou a querer levantar é se a comparação das doutrinas reflecte o que é
existencialmente o mais importante, o mais íntimo, o mais válido e vital do
ser cristão ou muçulmano para os próprios crentes. E, ainda que as doutrinas
fossem realmente o mais importante para os crentes, o facto de as
compararmos pela perspectiva das diferenças reflectirá o lugar e importância
real desses elementos no sistema doutrinário do ponto de vista interno, da
sua hierarquia de valores?

Mas vamos então às diferenças. Por onde começar? O Cristianismo proclama


a Boa Nova da vinda de Jesus para a nossa Salvação, e a Igreja ensina que o
mistério de Jesus se prende com o pecado original. Comecemos então pela
narrativa da Queda e da Redenção. A estória é a que todos conhecemos:
seduzida pela Serpente, Eva leva Adão a desobedecer a Deus, comendo do
fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, e, em
consequência dessa transgressão, Adão e Eva são expulsos do Paraíso.

Condenada pela transmissão do pecado original, a sua descendência vive de


„alma morta‟, apartada de Deus. Mas Deus, na sua infinita bondade e amor,
envia o Seu Filho que, fazendo-se Homem, e por ele se sacrificando, chama a
si o pecado e qual Cordeiro Pascal, redime a humanidade na Cruz. Como
segundo Adão, Jesus expia o pecado do primeiro, e assim reconcilia a

1
humanidade com o divino, abrindo o Caminho para que, através Dele, todos
encontrem a Salvação. Os pontos fundamentais da doutrina cristã ficariam
desde logo claros: o dogma do pecado original, e a doutrina do pecado
contraído, de que pela desobediência de um, todos nascem pecadores; o
mistério da Encarnação, que a Igreja declara, aliás, como sinal distintivo da
fé Cristã; a concepção trinitária de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo; e a
crença na Crucificação, morte e Ressureição de Cristo como via da Salvação.

As diferenças fundamentais, então, seriam igualmente óbvias: à doutrina


cristã da Trindade contrapõe-se o conceito islâmico de Tawhid, ou Unicidade
de Deus; em lugar da divinidade e Encarnação de Jesus, Filho Unigénito, e da
Paixão de Cristo, temos o Jesus Profeta, do Corão, que repudia a ideia de um
Deus progenitor, e que em vez da Crucificado, morto e Ressurecto, Deus
chamou a Si.

Quanto ao dogma cristão do pecado original, assim como a concepção da


natureza „ferida‟ do homem, que enforma, por exemplo, a doutrina social da
Igreja, ela é inteiramente estranha às concepções teológica e antropológica
do Islão. Ou, seja, sem pecado original, nenhuma necessidade de um Cristo
Redentor. E pronto, aqui tínhamos as diferenças fundamentais entre o Islão e
o Cristianismo. Mas que Islão e que Cristianismo? Será, para voltar à minha
objecção inicial, que isto nos diz realmente alguma coisa de verdadeiramente
significativo acerca do ser, agir, pensar, e viver como muçulmanos e como
cristãos?

Estou a pensar nos católicos que conheço, hoje, entre nós. Na diversidade de
interpretações da narrativa da Queda, de posições perante o pecado original,
de leituras do termo Filho de Deus, da forma como é entendida a
Ressurreição, da compreensão da Trindade, do significado espiritual da
Crucificação, e de como cada uma destas questões se traduz na prática da
vida cristã. Mas mais fundamental ainda: algum cristão diria que ser cristão
se resume a estes dogmas? Que isto é sequer o mais importante quanto ao
seu ser cristão?

APC: E no caso dos muçulmanos coloca-se a mesma questão,


suponho…

AKV: De facto, a questão das diferenças levou-nos aqui quase a definir o


Islão pela não-Divindade de Jesus, e pela não-Crucificação e não-Ressureição
de Cristo. Mas quantos muçulmanos, definindo o Islão para si próprios,
fariam sequer referência a Jesus? Na visão islâmica, Deus criou o universo, a
natureza e a humanidade, e toda a Criação se orienta para Deus, e se
inclina, por natureza própria, para a adoração de Deus. De entre a Criação,
apenas o ser humano tem o dom de livre arbítrio, e embora a humanidade
tenha aceite a Aliança do monoteísmo, ela tende a esquecer-se do seu
criador.

2
No Islão, o está em causa é o reconhecimento de Deus, da dívida para com
Deus, que se paga sendo agradecidos a Deus. Taqwa, estar consciente de
Deus, é o que acima de tudo caracteriza o estado de crença, e que traz a paz
interior que reflecte a conformidade com a tal inclinação natural de todo o
ser criado. O esquecimento, o não reconhecimento do Criador, pelo contrário,
é uma ingratidão, um agravo contra o seu próprio ser, e um distanciar-se de
Deus. O mundo, a natureza, tudo são ayat, sinais de Deus, que apontam
para Ele, e orientam a Humanidade para consciência da Sua existência.

Mas além desses sinais, da própria experiência humana e da história das


sociedades, que somos convidados a ponderar, Deus enviou continuamente e
a cada comunidade, mensageiros e profetas encarregados de os lembrar e
orientar, pela revelação ou pelo exemplo. Entre eles, Abrão, David, Moisés,
Jesus e, claro, Maomé, o último dos Profetas. Jesus, então, é honrado como
profeta e mensageiro, descrito como puro, e sem pecado, chamado Verbo e
Sinal de Deus, mas é um homem, se bem que concebido por mãe virgem, e
milagreiro. O que define o Jesus corânico, portanto, é a tradição profética da
revelação da mensagem monoteísta, que culmina e se completa na revelação
feita por Maomé.

Mas, além da tradição corânica, há também uma importante tradição


popular, sufi, do Jesus muçulmano. Um Jesus cujos ensinamentos, parábolas
e milagres são citados, lembrados e transmitidos como exemplares da
espiritualidade muçulmana e da via mística. E cuja existência nos faz mais
uma vez lembrar que para além das doutrinas e das escrituras, há todo um
mundo da espiritualidade, do misticismo, e das práticas populares, onde não
apenas as doutrinas mas até mesmo os conceitos estreitos de „religião‟ se
esbatem para revelar os crentes na sua relação com o Divino: como explicou
uma mulher hindu defendendo o frequentar o túmulo de um santo
muçulmano, a barakah, a benção divina, não conhece as fronteiras das
religiões.

APC: O que é que essas práticas populares nos revelam?

AKV: É exactamente essa questão das práticas que me traz de volta à sua
pergunta inicial, e ao que considero problemático nela. É que de certa forma
a pergunta, sendo sobre o Islão, contradiz um pouco a intenção e o espírito
do vosso livro, que é sobre os muçulmanos. Mas ainda bem que assim é,
porque ela permite tornar explicitas, por um lado, uma tensão que é
intrínseca à própria dinâmica do ser muçulmano, e por outro, uma
contradição que não é suficientemente reconhecida no olhar contemporâneo
sobre os muçulmanos. A questão, posta de forma um pouco simplista, é a
seguinte. A tradição orientalista e islamológica era uma tradição textualista e
histórica, que estudava o Islão pelos textos. Dar a conhecer o Islão consistia,
portanto, em duas coisas. Numa narrativa histórica centrada sobre a missão
do Profeta na Arábia do século VII, e, portanto, no contexto sociológico de

3
uma Meca em rápido transformação social, e na psicologia, ou
psicopatologia, de Muhammad, que reduz e explica o Islão a um reformismo
social que se reclama de legitimidade religiosa. E na reconstrução expositiva
do sistema doutrinário do Islão pela leitura, cepticista, temática e analítica do
texto do Corão, das colecções de hadice, e da jurisprudência clássica.

O ponto de vista muçulmano não era de confiar porque obviamente parcial, e


uma dose de islamofobia era até saudável e recomendável para o estudo
científico do Islão! O Islão vivido, o desenvolvimento doutrinário pós-clássico,
a diversidade global das sociedades muçulmanas, as práticas populares, os
sentimentos religiosos das massas, as próprias tentativas reformistas, tudo,
enfim, quanto não se enquadrasse no sistema reconstruído a partir dos
textos fundacionais e canónicos, quando conhecido, o que não era muito
frequente, era tido por infelizes aberrações, desvios, ignorância, sincretismo,
ou modernismo inautêntico. O único valor que tinha, se algum, era a medida
da degeneração do Islão puro, da contemporização com os costumes locais,
ou do impacto do Ocidente.

A reacção a esta atitude assenta sobre o método etnográfico da antropologia,


da convivência prolongada com os muçulmanos nas suas próprias
sociedades, procurando conhecê-las pelas suas próprias perspectivas, e fez
dos muçulmanos, das realidades concretas e vividas, da diversidade local, e
não dos textos, o seu objecto de estudo. A implantação de comunidades
muçulmanas nas sociedades ocidentais, em paralelo com o interesse pelos
fenómenos étnicos e de imigração, e uma renovada voga de interesse pelo
fenómeno religioso, suscitou uma nova atenção, já mais jornalística, e
respondendo ao interesse de um público mais geral, agora sobre os
muçulmanos „entre nós‟. O vosso livro partilha deste momento e abordagem.

APC: Essa forma de olhar os muçulmanos mais prática e menos


teórica, o que é que nos mostra, o que é que acrescenta, que novas
questões levanta?

AKV: Estou a lembrar-me de duas iniciativas recentes: duas exposições, uma


em Amesterdão em Dezembro de 2003 outra em Paris em Novembro de
2004, que conjugavam texto e imagem, as palavras dos próprios
muçulmanos, e o contexto das grandes cidades como ponto de enfoque. A de
Amesterdão chamava-se Islão Urbano, e incidia sobre as vidas e quotidianos
de muçulmanos jovens de Amesterdão, Dakar, Istambul, Marraquexe e
Paramaribo (Suriname), apresentadas através das suas histórias de vida,
contadas pelos próprios, contextualizadas pela reprodução das páginas dos
jornais do dia, que dão a conhecer os acontecimentos e polémicas religiosas
do momento, em que essas vidas são vividas.

A de Paris chamava-se Muçulmanos e Muçulmanas no Cairo, Teerão,


Istambul, Paris e Dacar. Mais atenta à globalização e aos seus impactos

4
sobre a vida local, ela consistia de fotografias de cenas urbanas da vida
quotidiana de muçulmanos nestas cidades, e de filme e produções de arte,
murais, montagens, pinturas, escultura que são também formas de
expressão religiosa e cultural.

Um aspecto interessante da exposição de Amesterdão, foi a integração do


público nela, captando em vídeo as opiniões e testemunho dos visitantes
acerca da presença muçulmana na Holanda e exibindo-as lado a lado com as
histórias de vida dos muçulmanos.

O vosso livro é sobre os muçulmanos de Lisboa, são as palavras deles que


aqui importam, e as fotografias deles que aqui aparecem, mas vale a pena
lembrar que o leitor delas faz parte da mesma história; que o mesmo olhar
de curiosidade, de interesse, de hostilidade, de ignorância, de escárnio ou
identificação com que lê o livro, está já reflectido nas faces e modos de vida
dos muçulmanos aqui fotografados, porque foi o olhar e atitude com que
ontem tratou ou não tratou connosco.

APC: Como é que se equilibram esses olhares, o exterior, sobre os


muçulmanos, e o “de dentro”, das próprias comunidades?

AKV: A exposição de Paris levanta aí uma questão de particular interesse. O


seu texto de apresentação da responsabilidade do organizador, Olivier Roy,
tem o mérito de colocar frontalmente a questão melindrosa e fundamental
que já referi: qual é o sujeito da exposição, o que é que ela procura ou dá a
conhecer, o Islão ou os muçulmanos? Que relação estabelecer entre as
práticas vividas, apreensíveis, e a doutrina e os textos normativos?

O problema, como ele confessa, começa pelo detalhe mais elementar, como
seja a legendagem das fotografias. Dizer o que a imagem mostra é já
interpretar o seu sentido, identificar um rito, classificar uma acção,
especificar um género, tudo isto implica já um trazer o Islão à leitura dos
muçulmanos. É isto que fazem também os antropólogos e os jornalistas que
dizem que deixam o Islão nas bibliotecas e vão aprendê-lo pela observação
dos muçulmanos.

Mas quando trocamos o Corão e os textos pelas pessoas só pomos um novo


problema em lugar doutro. Ainda que arriscando ser ridiculamente simplista,
a questão, no essencial, é esta: o que é que nos comportamentos, nas
acções, nos gestos, nas práticas, nas palavras, desses muçulmanos
representa a sua muçulmanidade, o que é que nelas é islâmico? Sei que
arrisco que se confunda o que a pergunta tem de realmente importante, diria
até de profundo, mas não resisto a citar um caso que me lembro de uma
tese de Mestrado em Estudos Interculturais (precisamente portanto, quem
por obrigação profissional devia estar particularmente sensibilizada para
estes problemas), em que a autora, notando o interesse e importância

5
atribuída ao futebol de salão entre os jovens da comunidade declara nada
mais nada menos do que que a prática do futebol é considerada benéfica
para toda a comunidade islâmica! E daí transcrever em apêndice toda a
correspondência entre a Comunidade e as autarquias sobre a organização de
jogos de futebol! Bom, esse é obviamente um caso extremo, mas que se põe
quanto ao olhar externo sobre o que é que, do que os muçulmanos fazem, o
fazem por serem muçulmanos, o que é que no observável dos seus
quotidianos reflecte o ser muçulmano.

Bem mais problemática é a questão do testemunho interno, do que os


próprios muçulmanos dizem, explicam, defendem ou proíbem como sendo ou
não sendo islâmico. Porque um muçulmano, ao ser entrevistado, diz que ter
barba de um certo feitio e cumprimento é “islâmico”, ou que vestir-se de
uma certa forma é “islâmico” e obrigatório, ou que demonstra uma crença
mais forte; ou porque um muçulmano defende que a circuncisão feminina é
islâmica, ou que as visitas aos túmulos dos santos e a procura de intercessão
e as promessas, não o são, assim é? Aceita-se algo como islâmico porque um
muçulmano lhe atribui um significado religioso? E quando é contestado?
Quando é a opinião de muitos? Mas quantos são „muitos‟? Ijma, o consenso
da comunidade é um príncipio islâmico, mas o que constitui hoje em dia a
comunidade, quem a define e aos seus limites? Quando é dito por alguém
com autoridade? Mas quem a confere, e por quem tem que ser reconhecida?
A pluralidade jurisprudencial e na interpretação corânica é também um
principio consagrado na tradição islâmica. Mas como reconhecer a
diversidade válida e a inválida nas práticas observadas? E caberá a um
entrevistador não muçulmano pôr-se a corrigir a explicação que um
muçulmano dê da sua própria crença? Há uma dimensão fundamental de
poder nestas questões. Levantá-las não oferece respostas, mas problematiza
as respostas fáceis.

APC: Há ao mesmo tempo a ideia de que o Islão é uma religião muito


rígida e a de que existe uma grande liberdade porque, em última
análise, existe apenas a relação pessoal com Deus.

AKV: É verdade que o Islão não reconhece instituições e entidades como


Igreja e Clero, prescinde de mediadores religiosos, de autoridade
centralizadora e decretante da ortodoxia; desconhece os sacramentos (o
casamento, por exemplo, é um contrato, oficiado por qualquer muçulmano,
que apenas requer testemunhas); a terra inteira é declarada pura para
efeitos da oração, e qualquer espaço limpo serve, e o único critério na
escolha do líder das orações em grupo é a qualidade da recitação; o crente
comunga com Deus pela leitura do Corão ao qual tem acesso directo e livre;
presta-Lhe culto e suplica comunicando através do salat e duá; sente-O mais
perto de si do que a sua veia jugular; e sabe que no Dia do Juízo Final só ele
próprio responderá pelas suas acções e intenções: ela é, portanto,
realmente, uma relação directa, pessoal, simples entre crente e Deus.

6
O problema está no “apenas” quando disse “apenas uma relação pessoal”. O
conceito islâmico de din, que normalmente se traduz por religião,
corresponde antes a um modo de vida, a um modo de ser e estar no mundo.
Como din o Islão implica uma relação com Deus e uma inter-relação na
comunidade, na sociedade, com os outros, com a natureza até. O zakat, por
exemplo, é um dos cinco pilares da religião, é uma obrigatoriedade do crente
face a Deus, mas que se exprime como obrigatoriedade para com os outros;
em reconhecimento da dimensão e responsabilidade da vida em comunidade.
Zakat significa purificação, e designa uma taxa de caridade, é por assim dizer
o reconhecimento do direito que os menos favorecidos têm sobre os bens e
rendimentos dos mais favorecidos.

O problema começa pela redução do conceito de „religião‟ à noção de uma


relação meramente „espiritual‟ e individualista, entre o crente e Deus,
ignorando a dimensão da vida religiosa vivida em comunidade. E é nesta
dimensão que a questão da „rigidez‟ a que a sua pergunta se refere se põe.
Esta tem duas vertentes: o direito, e a tradição.

Há uma frase de Ali Sharia„ti num livro muito conhecido que ele escreveu
sobre o Hajj que acho que reflecte bem a tensão dos dois pólos da sua
pergunta. Dirigindo-se ao leitor ele diz qualquer coisa como: se queres saber
como executar correctamente os ritos do Hajj então lê os tratados dos
juristas; mas se queres compreender o significado do Hajj procura-o antes
no sentido do Islão, e do ser humano nele. Temos então aqui os dois lados
do ser muçulmano. Por um lado, uma preocupação com a ortopraxia, que de
facto se traduz numa, por vezes quase que caricata, obsessão com o agir
correctamente até no mais insignificante dos gestos, públicos ou privados
(uma vertente jurisprudencialista da religião que parece completamente
estranha a um ocidental, mas perfeitamente reconhecível para um judeu, e
cujos excessos de formalismo tem os seus críticos dentro do próprio Islão). O
outro lado do ser muçulmano é o da interiorização dos sentidos, intelectuais,
espirituais, místicos da religiosidade. E quando Sharia„ti a seguir diz que o
Hajj é o Islão em movimento, representado em drama, tal como como o
Corão é o Islão em palavras (e o Imã Imam, na sua leitura xiita, é o Islão
feito homem), dá-nos uma imagem perfeita da síntese destes dois lados do
ser muçulmano.

Quanto à relação interpretativa, e de prática, particularmente para um


muçulmano sunita, ela passa não apenas pela leitura da escritura sagrada,
mas pela tradição comentarista; não apenas pelo fiq contemporâneo, mas
pela acumulação histórica do corpo de jurisprudência. Colocando as coisas
um pouco simplisticamente, a tal liberdade na relação com Deus a que se
referiu, assenta, nutre-se e dialoga com uma comunidade interpretativa que
também a condiciona. O Islão não é uma religião da privatização da
religiosidade individualista.

7
APC: O que é que, no Islão, é indiscutível e o que é que pode ser
interpretado?

AKV: Não sei se essa será a melhor maneira de pôr a questão, mas talvez a
forma mais simples de responder a esta pergunta seja por referência às duas
categorias da jusrisprudência islâmica, Ibadat e Muamalat. Ibadat, que rege
e se refere às relações entre o crente e Deus, não está aberto a discussão.
Aceitando o Islão, reconhecendo-se e testemunhando-se submisso à Sua
vontade, o muslim aceita os cinco pilares sobre os quais o Islão assenta.

Muamalat, que compreende as relações na sociedade, não só é susceptível


de ser repensado mas deve-o ser continuamente para acompanhar as
mudanças de contexto, ou de tempo. Esta necessidade de se mover com o
tempo decorre da fidelidade ao princípio ético, ao espírito, e à razão
legislativa que gere essa relações sociais.

Onde a questão se torna mais complicada é, primeiro, na determinação


(discutível quanto a uma ou outra questão) do que é que cai sob a alçada de
ibadat. E, em segundo lugar, na definição de em que é que consiste esse
princípio ou espírito ao qual se deve fidelidade, e como actualizar a sua
expressão em cada novo contexto temporal ou cultural.

O ponto fundamental, porém, é a aceitação de que o Islão não é estático,


mas sim dinâmico, e com ele a lei islâmica. Não é o que o Corão especifica e
regulou que é vinculativo, mas o princípio que lhe preside, e cujo sentido foi
sempre o de maior justiça e igualdade social. A intervenção reformista do
Islão, revolucionária e emancipatória no contexto de então, não impôs os
limites, deu o impulso que cabe seguir; não concluiu, iniciou.

O Corão regulou mas não aboliu a escravatura, por exemplo, mas ao citar a
manumissão como exemplo do esforço no caminho da fé, ao recomendá-la
como acção meritória, ao restringir a escravização, e ao nomear a libertação
de escravos como opção na remissão de infracções, o Islão claramente
estabeleceu a condição do escravo, assim como a dos pobres e oprimidos,
dos orfãos e das viúvas, como índice de injustiça na sociedade.

Ao mesmo tempo, o Corão estabeleceu a emancipação e igualdade como o


ideal e a meta da sociedade islâmica e dignificou a condição da mulher,
decretando os seus direitos face ao homem, e as responsabilidades do
homem devidas à mulher. O Corão não só introduziu o princípio de absoluta
igualdade do homem e da mulher perante Deus, o que está explicita,
inequivoca e repetidamente afirmado na escritura revelada, mas também o
princípio da reivindicação de igualdade de direitos perante a lei e na
sociedade.

Mas o que ficou estipulado, e que na altura representava um avanço, está


hoje ultrapassado; ser fiel à ética do Islão é hoje redefinir as relações de

8
direito civil e de família de forma a garantir a realização do impulso dado
pelo Profeta.

Voltando à pergunta, para responder agora em termos mais gerais mas


também, num registo mais pessoal, para mim, o que não é discutível é que o
Corão é revelação Divina, que é Palavra de Deus, inalterada e inalterável; e
que Maomé é o Seu Mensageiro, o selo dos Profetas, e o melhor dos
exemplos de como viver o Islão. Mas o Corão e a Sunna, só adquirem
sentidos quando interpretados.

APC: Fala-se frequentemente numa época áurea do Islão e depois


num período de decadência que duraria até hoje. Concorda com esta
visão?

AKV: Época áurea e estagnação, concretamente, não têm qualquer sentido


objectivo. São construções discursivas, fazem parte de um discurso; a
questão está em saber a natureza desse discurso. No discurso religioso, por
exemplo, o período áureo, quase por definição, era o tempo do profeta;
perdida a autoridade única, o árbitro último das disputas, o veículo da
Palavra de Deus, o exemplo vivo da crença na prática, ficámos sujeitos à
condição humana do engano e do faccionalismo. Num discurso histórico-
político, é o esplendor civilizacional do Islão clássico, que se contrasta com o
presente suspirando pela regeneração futura.

Mas o que é que estão a comparar, e o que é que se propõem regenerar? O


Islão? Os muçulmanos? Os países árabes? As sociedades muçulmanas? A
umma? A filosofia? A ciência? A literatura?... E aí está, mais uma vez, o
cerne do problema: identificar o discurso, para saber o que está em causa. A
paranética, por exemplo, é o discurso religioso da lamentação por excelência.
A sua força retórica funciona pela exortação à fé: quando é que foi a última
vez que ouviu um padre cujo sermão não lamentasse o decréscimo do
número de crentes na missa, o declínio do fervor da fé, a perda da crença na
sociedade materialista, a corrupção dos costumes, etc, etc.?

Para destabilizar um pouco as ideias feitas sobre a questão, podemos talvez


começar por perguntar que estagnação é essa? O que é que estamos a
medir? Qual é o critério? Afinal de contas, o número de muçulmanos hoje é
maior do que jamais foi: há mais países muçulmanos, e muçulmanos em
mais países do mundo do que alguma vez na história. Depois, há maior e
melhor comunicação, interrelacionamento e contacto entre comunidades
muçulmanas do que era possível anteriormente; a revolução digital não
apenas proporciona formas de acesso às Escrituras, aos comentários, ao
corpo documental de debates, de leis e de tradições, mas revoluciona as
próprias metodologias democratizando o acesso, a exegese e a
interpretação; permite maior auto-didactismo, um melhor conhecimento da
história do Islão.

9
Além disso, não só impõe incontornavelmente o facto e o confronto com a
diversidade do Islão, mas também uma melhor compreensão do que nele é
universal; cria laços de solidariedade, meios de mobilização social, e formas
de politização, inconcebíveis décadas atrás. Por exemplo, quando uma
mulher muçulmana no Canadá negada acesso à mesquita pela porta principal
lança um apelo numa das redes Norte Americanas de Muçulmanos
progressistas e uma semana depois tem camionetas de muçulmanos e
muçulmanas a entrar com ela por aquela porta. Ou quando a organização
transnacional de mulheres juristas muçulmanas se mobiliza em rede para a
acção local à escala global em todos os países muçulmanos.

Em termos geopolíticos, também, os países muçulmanos podem hoje estar


ainda sob a sombra do neocolonialismo, quando não sob ocupação, mas há
cinquenta anos eram poucos os que não estavam sob domínio colonial
estrangeiro. E, por último, se em lugar de uma narrativa linear de fundação,
expansão, apogeu e declínio, pensarmos antes em termos dos fluxos e
refluxos da civilização islamítica, na sua pluralidade geográfica e temporal, e
do próprio Islão, transformando-se ao longo dos tempos por ciclos de
revivalismo e reforma, não só ficamos com uma perspectiva muito diferente
sobre o passado, como podemos talvez ver o presente com outros olhos; ao
contrário de estagnação, poderá talvez até falar-se antes de um revivalismo
contemporâneo.

Agora, quanto ao discurso do „O Que Correu Mal?‟, e da „Crise do Islão‟, que


implicita ou explicitamente está por trás da sua pergunta, se não vou
obviamente fazer aqui a crítica ao Bernard Lewis, há um ou outro aspecto
que é relevante mencionar. E é tão mais relevante porque à força da
adopção acrítica e da repetição da narrativa Lewisiana pelos seus porta-vozes
na intelectualidade mediática portuguesa, ela passa hoje por senso comum.
Ora, Lewis é o expoente máximo do orientalismo de que falámos antes. Não
se coíbe minimamente de se pronunciar autoritativamente, sobre “o Mundo
Islâmico” embora na realidade só fale do Médio Oriente (de um Médio
Oriente, e de um mundo muçulmano de que tem muito pouca experiência
própria, tendo apenas feito trabalho de arquivo mais prolongado na Turquia),
e faz assentar essa autoridade no conhecimento da “mentalidade árabe” e
logo a muçulmana porque islâmica, ou seja determinada pela história
islâmica e pelo Islão.

Ora, que há a explicar são os problemas económicos, sociais, políticos,


ecológicos, demográficos, culturais e tecnológicos dos países do Médio
Oriente árabe, que devem ser analisados nos seus contextos e histórias
específicas e que de forma alguma se poderão compreender sem referência
ao impacto do colonialismo, por exemplo, ou às interferências do
intervencionismo britânico e americano, a que Lewis mal alude sequer.

O erro e a má fé de Lewis, e o que possivelmente há de enganador na sua


pergunta, é o pôr esta questão em termos do Islão, como se fosse o factor
religioso, a mentalidade religiosa, que explicasse estes problemas. O

10
segundo aspecto, é que se realmente há uma crise dos países árabes, ou
uma crise da geração árabe de 67, isso é uma questão árabe, aliás, do
projecto de modernização nasserista e do nacionalismo árabe secularista!,
não é uma questão do Islão, não é uma questão religiosa, e não é uma
questão dos muçulmanos.

APC: Talvez por causa desse peso que a história e a cultura árabes
têm no Islão, há quem defenda a necessidade de o “desarabizar”.

AKV: Esta questão é fundamental mas há que precisar melhor o que está em
discussão. Haverá, talvez, uns três sentidos que podemos diferenciar.
Primeiro, suponho que não será propriamente o uso de um vocabulário e
terminologia do discurso religioso islâmico, e menos ainda o árabe corânico,
que está a ser posto em causa. A sê-lo é uma falsa questão. O árabe é a
língua em que foi revelado o Corão, e o Corão em árabe é Palavra de Deus.
O árabe era também a língua em que se exprimiu o Profeta, cujas tradições
complementam a revelação. Haverá sempre, portanto, um elemento
irredutível de filologia em todo o debate islâmico. Toda e qualquer tradução
será já uma interpretação, um trabalho humano, histórica e culturalmente
específico, mais ou menos literal, ou fiel, mas só o texto árabe pode
constituir a base e a autoridade última, na resolução de qualquer questão de
interpretação.

Quanto ao estatuto da língua árabe, e ao uso de uma terminologia árabe no


discurso religioso islâmico em geral, há diferentes aspectos a ter em conta.
Quando dizemos que o árabe é a língua litúrgica do Islão, há que entender o
que isto implica: a oração, salat, a recitação do Corão (não a leitura do Corão
como texto de referência, ou objecto de estudo) o zikr, ou rememoração de
Deus pela entoação dos Seus nomes, que são os Seus atributos, ou de
ladaínhas, estes são actos de devoção cuja essência é o acto de comungar
com o Divino pela vocalização da Sua Palavra.

Ora, não é o sentido, que é o que uma tradução dá a conhecer, que é


sagrado, é a Palavra de Deus, na sua enunciação, o que portanto, por
definição, não é traduzível. Recitar o Corão em árabe é orar; ler o Corão em
português, pode permitir um melhor conhecimento do texto Sagrado (e o
estudo e o conhecimento da Mensagem Divina são também actos de devoção
a Deus), mas não é comungar com o Divino pela enunciação da Sua Palavra.

O mesmo diria das fórmulas que desde criança os muçulmanos aprendem 


bismillah (em nome de Deus), insha’allah (Deus queira), al-hamdulillah (
louvado seja Deus), subhanallah (glorificado seja Deus), astagfirullah (Deus
me perdoe), masha’allah (graças a Deus), a’uzubillah (Deus me dê refugio e
proteção), etc e que constituem simultaneamente uma aprendizagem e
uma aculturação na mundivisão islâmica, e uma forma de revestir o
quotidiano de sentido islâmico, de, para me servir de uma frase muito citada,

11
estampar o nome de Deus no mundo à nossa roda. Como o cumprimento da
paz, As-Salaamu Aleikum, que funciona como o elemento mais básico de
comunicação e vinculação entre todos os muçulmanos, também estas frases
criam e reforçam linguisticamente um traço de união na comunidade
umática universal.

Agora quanto aos sermões de sexta-feira nas mesquitas, que não só


constituem actos de vinculação da comunidade, mas acima de tudo,
plataformas únicas para homilías aos crentes; nas aulas das crianças nas
madrassas; no estudo e nos debates, na meditação pessoal e, claro, no duá,
as orações de petição, aí não só já se pode como, na minha opinião, se deve
empregar a língua mais acessível para a maioria dos crentes, e, por cada
indivíduo, a que mais íntima e mais expressivamente lhe permite sentir e
comunicar com Deus.

Um segundo sentido da questão da desarabização é o que diz respeito ao


arabocentrismo, e ao contexto árabe histórico e contemporâneo na história e
no discurso islâmico. A melhor forma de pôr o ponto mais óbvio desta
questão é citando alguns números: os árabes constituem quanto muito uns
15 por cento dos cerca de 1,3 mil milhões de muçulmanos no mundo; a
população muçulmana dos países árabes conjuntos não chega sequer à
população muçulmana da Índia, Paquistão e Bangladesh. Aliás, dos seis
países de maior população muçulmana, que entre si representam mais de
metade dos muçulmanos do mundo, só o Egipto, que com a Nigéria ocupa o
último lugar, é um país árabe.

Talvez menos óbvio, mas mais significativo, é o facto de a civilização


islamítica (o termo, que já há pouco usei, foi cunhado pelo historiador
americano Marshall Hodgson para diferenciar o Islão, propriamente dito, a
religião, da civilização que a toma por referência cultural), ter sido, na
realidade, mais extensa, profunda e duradouramente moldada pela sua
vertente Persa e particularmente Turco-Índica, do que árabe.

Há, portanto, que quebrar a identificação prevalente no imaginário popular


ocidental (popular e não só!) de que o Islão é a religião dos árabes, ou do
Médio Oriente. Pelo que toca aos muçulmanos, a questão é mais de um certo
autoritarismo religioso, que faz dos países árabes, particularmente do Egipto
e da Arábia Saudita, os centros doutrinais. Neste sentido, a autonomização
crescente da diáspora muçulmana ocidental é francamente desejável, se bem
que dificilmente realizável sem autonomia financeira. Mas também aqui há
que introduzir uma nota de caução. A demonização actual do wahhabismo,
que tantas vezes abusivamente se generaliza e transborda num discurso
sobre a incultura, o extremismo, e a medievalidade dos muçulmanos e do
Islão árabe, não deve ser acriticamente aceite pelos muçulmanos. Temos
ainda demasiado viva a demonização do xiismo iraniano após a revolução
iraniana, e a do sunismo no Iraque actual, para nos lembrar os interesses e
perigos dessas representações e desses discursos.

12
Por último, o sentido verdadeiramente desafiante da questão da
desarabização do Islão é o da discussão do que é que é específico e
contingente ou acidental, e o que é universal na história e na tradição
religiosa do Islão. Nada nesta questão, seja em termos históricos, filosóficos,
teológicos, estéticos, sentimentais, é simples ou consensual. Muito pelo
contrário. Tomemos o caso da sunna, a tradição vinculativa e normativa
baseada no exemplo do Profeta constituído a partir da sirah ou biografia de
Maomé, e dos hadice, que compilam as suas palavras e acções, os seus
pronunciamentos, decisões, opiniões, o que o Profeta aprovou, o que proibiu,
e o que tacitamente aceitou.

A questão é a seguinte: no Corão, Deus diz que Maomé é o melhor dos


exemplos, e no seu sermão na última peregrinação que realizou, o Profeta
disse deixo-vos o Corão e o meu exemplo. O exemplo do Profeta é o
complemento directo do Corão, é o Corão vivido, a sua explicação pelo
exemplo. É o Corão que decreta o salat como dever, mas é pela sunna que
sabemos que as orações são cinco, e como executá-las. A sunna procura
preservar tudo acerca do Profeta até ao mais minucioso. Mas como discernir
o que é acidental e o que era intendido como exemplo religioso: o
comprimento da barba, o traje, o uso da bengala, o uso do miswak? A
questão é a mesma que se põe em relação ao Corão e ao Islão em geral. Por
um lado, claramente, como muçulmanos temos por inquestionável que a
Revelação islâmica é universal, e o que interessa é extraír a mensagem, o
espírito e a aplicabilidade universal de incidentes contingentes. Mas por
outro, sendo que Deus revelou a Mensagem neste contexto e tempo
específicos, poder-se-á realmente dizer que estes são meramente
contingentes e acidentais, desprovidos de significado e importância
específica? Pela minha parte, é na hermenêutica corânica de uma Amina
Wadud, por exemplo, ou de uma Asma Barlas, nos seus exercícios de leitura
crítica para destrinçar o que é contingente, específico de uma sociedade
patriarcal, como era a do Hejaz do século VII, e o que é universal, reflectindo
o espírito corânico e o princípio ético válido para todos os tempos – a
interpretação dinâmica a que já me referi quando há pouco falávamos das
mulheres –, que encontramos um começo de resposta a esta questão.

APC: Há, por outro lado, quem defenda que é preciso “mais Islão e
menos Profeta”. Qual é a sua opinião?

AKV: Por tudo o que já disse sobre o facto de o Profeta representar o Islão
vivido em complemento do Corão, essa ideia é para mim incompreensível. A
própria definição mínima de um muçulmano é aquele que proclame a
shahada, ou seja, que testemunha que Maomé é o Mensageiro de Deus.

Agora, onde aquela proposição pode ter um outro sentido, de interesse, é na


questão da relação entre a sunna e o Corão como pontos de referência que
se iluminam mutuamente. A sunna tem como bases além da sira e da

13
historiografia, os hadice. Mas estes apresentam vários problemas, de
autenticidade, por exemplo. O Corão, por outro lado, é uma autoridade
inquestionável. Neste sentido, o de repôr a prioridade do Corão sobre os
hadice, já a proposta terá um sentido mais válido.

APC: Existe um Islão português?

AKV: A resposta dita “fundamentalista” sairía rápida e firme: só existe um


Islão, “O Islão”, pelo que, se se pode falar de Islão em Portugal, é ilegítimo
falar de Islão português. Até certo ponto há aqui uma questão de semântica
e de ideologia.

Para uns o Islão é uma religião universal, não é uma cultura, e como religião
será sempre vivida em contextos culturais específicos aos quais se adapta.
Quando a cultura, a linguagem, os ritos, as práticas, a inter-relação local,
geram características fortes e reconhecíveis na vivência ou no discurso
islâmico, como no caso do Islão africano, do Islão do sub-continente Asiático,
do Sudeste Asiático, do Irão, da Turquia, por exemplo, é comum designá-lo
por esses termos. Neste sentido, a questão em aberto neste momento é a da
formação de um Islão Europeu, com características próprias comuns aos
muçulmanos da diáspora.

Num sentido fraco, a cultura portuguesa dos muçulmanos em Portugal


diferencia os muçulmanos portugueses, mas não justificaria por si só falar de
Islão português. Num sentido mais forte, porém, uma comunidade, ou
melhor, comunidades são moldadas pelas relações com a sociedade
dominante, a sua cultura política, religiosa, jurídica, por um lado, e pela
composição interna, (chamemos-lhe étnica, por conveniência, embora o
termo seja problemático, mas chamar-lhe cultural seria aqui confuso), ou
seja pela diversidade dos muçulmanos e seu inter-relacionamento, por outro.

Com o tempo, e as gerações, essas comunidades começam a produzir uma


literatura, comentarista, sermonistica, apologética, primeiro à base de
traduções, depois original, que serve as necessidades da sua comunidade.
Neste sentido, haverá um Islão português, mas que está ainda em fase de
desenvolvimento.

Mas não devemos esquecer que há nesta questão também uma dimensão de
relações de poder. Ou seja, não podemos esquecer que os muçulmanos são
uma minoria aqui, e uma minoria relativamente marginalizada sem grande
acesso ou conhecimento dos meios e técnicas de auto-representação na
esfera pública, nos discursos académicos e no mundo político-partidário.

Em tempos, quando éramos poucos aqui em Portugal, houve uma tendência


para traduzir o Islão para um vocabulário cristão: falava-se de Igreja para
designar mesquita, de padres para falar de ulema, etc. Além da falta de

14
confiança para uma auto-afirmação, havia duas outras pressões em jogo: a
tentativa de dar a conhecer uma religião sobre a qual se sabia muito pouco
em Portugal, em linguagem acessível; e, talvez mais significativo, a tentativa
de combater a noção do Islão como religião estrangeira, e mais precisamente
árabe – a procura, por outras palavras, de normalizar o Islão na cultura
portuguesa.

Daí, por exemplo, a insistência sobre o uso da palavra Deus em vez de Alá,
para enfatizar que Alá é apenas o vocábulo árabe que designa o um e mesmo
Deus dos Cristãos, logo seguido da lembrança de que os cristãos árabes
dizem Alá e rezam a Alá. Eram outros tempos, diria agora, não fosse o facto
de ainda se fazerem programas sobre os muçulmanos com o título „filhos de
um Deus diferente‟! Na minha opinião aquela foi uma fase, necessária ou não
é questão que já não interessa; certamente compreensível, mas que deve
agora ser superada.

A verdadeira aculturação do Islão na cultura portuguesa não passa pela sua


assimilação linguística, mas pela sua integração através da familiarização de
certos termos islâmicos. O uso que venho fazendo nestas respostas de
termos em árabe, reflecte este princípio. Taqwa, jihad, duá, khutba, zakat,
iman, din, shari’a, Qur’an, Muhammad, são termos que estruturam a
construção discursiva do ser muçulmano e da identidade e mundivisão
islâmica, e na minha opinião os muçulmanos não devem abandonar o seu
uso.

Mas há um outro lado da questão do Islão português. A que se prende com a


lógica do Estado Nação. A que se orienta pela ideologia da assimilação. A que
entende e exige que o Islão tem que ser português, e que lê isto em termos
de nacionalização e de “lealdade”. Um discurso populista, islamófobo,
securitário, ensombrado pelos fantasmas das quintas-colunas. E há
muçulmanos que o interiorizam, que proclamam que nos cumpre a nós
provar a nossa lealdade, exibir a nossa assimilação, proclamar a nossa
“moderação”. Eu recuso esta lógica em absoluto. Ela é a lógica do imigrante,
da minoria, a interiorização de um viver sob suspeita, e de um estatuto de
cidadania de segunda classe. A cidadania não é isto. Não é uma igualdade
merecida pela conformidade. A cidadania plena é uma cidadania crítica. Ela
é, entre outras coisas, a contribuição da e pela diferença; e reconhece o
direito à dissidência . Pela minha parte assumo a minha cidadania sendo e
afirmando-me muçulmano, português e transnacional; pensando umma e
agindo localmente.

15

Você também pode gostar