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FACULDADE DE TEOLOGIA DA ARQUIDIOCESE DE BRASÍLIA

BACHARELADO EM FILOSOFIA

A RESPOSTA NEOTOMISTA AO PROBLEMA DO MAL

BRASÍLIA/DF
2022
LUIZ FERNANDO GONTIJO DOS SANTOS
FIL000035

A RESPOSTA NEOTOMISTA AO PROBLEMA DO MAL

Artigo apresentado à Faculdade de Teologia


da Arquidiocese de Brasília, como requisito
para a aprovação na disciplina de Seminário
de Leitura em Filosofia.

Brasília
2022
RESUMO
O problema do mal, que afirma que há uma incompatibilidade entre a existência de um
Deus onipotente e onibenevolente com a presença do mal no mundo, é um tema
bastante discutido dentro de meio filosófico acadêmico. Dentre as várias respostas que
já foram propostas a esse paradoxo, uma que vem ganhando destaque na atualidade é
aquela elaborada pela filosofia neotomista, que defende que as ditas contradições
presentes na posição teísta têm origem numa má compreensão dos conceitos de mal e de
Deus. Esse artigo se propõe a expor a visão do filósofo contemporâneo Edward Feser
sobre o tema, que haurindo dos escritos de santo Tomás de Aquino, escreveu sobre o
conteúdo em questão.

Palavras-chave: Problema do mal. Edward Feser. Neotomismo. Tomás de Aquino.


1. INTRODUÇÃO

O problema do mal afirma que é incompatível a existência de um deus


onipotente e onibenevolente com a existência do mal no mundo. Esse dilema é um tema
que foi tratado por inúmeros pensadores ao longo dos séculos. No debate
contemporâneo, a solução mais popular apresentada é que a foi formulada pelo filósofo
cristão Alvin Plantinga, que evidenciou, a partir da lógica modal, que não há uma
contradição necessária entre a existência de Deus a presença do mal no mundo. Devido
à popularidade de sua resposta, a solução baseada na filosofia de santo Tomás de
Aquino tem passado de forma mais discreta diante da atenção da comunidade científica,
apesar de possuir grande relevância acadêmica. O presente artigo se propõe a expor a
resposta ao problema do mal se baseando na argumentação do filósofo neotomista
Edward Feser, de modo a fornecer uma perspectiva ainda pouco conhecida diante de
uma das maiores questões da filosofia.
Feser entende que a origem do chamado problema lógico do mal está em uma
compreensão errônea de Deus e da essência do mal, e que, uma vez esclarecidos
devidamente esses termos, fica claro que não há nenhuma incompatibilidade lógica
entre a existência do mal e a existência da divindade. O argumento do artigo será
dividido em três partes: na primeira, serão abordados os conceitos de bem e mal a partir
da chamada ordem natural; a segunda tratará da concepção de Deus e de suas relações
com o ordenamento do universo; já a terceira abordará mais diretamente o problema do
mal.

2. A ORDEM NATURAL

É impossível começar a discutir adequadamente o chamado problema do mal


sem antes tratar da natureza do mesmo, mas para compreender bem esse conceito dentro
da filosofia tomista, é preciso tratá-lo dentro de um tema mais amplo, que é o da ordem
natural, que pode ser entendida como o ordenamento geral da natureza e das relações
presentes na criação.
Segundo santo Tomás de Aquino, os seres naturais são substâncias – isto é, entes
que subsistem por si mesmos e que possuem uma essência definida – compostas de
matéria e forma. O aspecto material das substâncias garante que elas possuam
potencialidade, ou seja, sejam passíveis de sofrer mudanças. Contudo, uma

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característica necessária das mudanças é que elas possuem uma direcionalidade, e essa
direcionalidade está relacionada com a essência da substância, porque algo só pode
sofrer mudanças compatíveis com a própria natureza. Por exemplo, uma árvore não
pode sofrer mudança de modo a se tornar um golfinho, mas pode mudar de modo a
aprofundar as suas raízes no chão, isso porque a primeira mudança não é compatível
com a sua essência, mas a segunda sim.
Entendidos esses termos, finalmente podemos prosseguir para a definição
neotomista de bem e mal. De acordo com Feser, o bem seria a atualização das potências
às quais uma substância é inclinada naturalmente pela sua essência. Dessa maneira, o
bem de uma árvore pode ser exemplificado como o desenvolvimento de raízes que
penetrem o chão de modo a garantir sua sobrevivência, porque essa é a finalidade à qual
a sua essência a inclina. Por outro lado, o mal seria justamente a não atualização de tais
potências, o que no nosso exemplo consistiria na incapacidade da árvore em criar uma
raiz profunda o suficiente. Essas noções permitem compreender o significado de bem e
mal, mas ainda não são capazes de explicar o mal moral, porque ainda que possamos
dizer que uma árvore que não possua raízes profundas seja má, não é possível dizer que
ela seja moralmente má. Para entender como a maldade pode se dar no campo da moral,
é preciso compreender anteriormente a natureza humana.
Duas características que diferenciam o ser humano das outras substâncias
naturais são a inteligência e a vontade. Devido a ambas, eles são capazes de fazer
escolhas livres. Por esse motivo, os homens são naturalmente inclinados a adquirir
conhecimento e a agir de acordo com o seu entendimento de modo a buscar para si
aquilo que entendem como sendo o bem. A capacidade de escolher é o que faz com que
os atos de uma pessoa, ao contrário dos de uma árvore, possam ser classificados como
moralmente bons ou maus. Além disso, os seres humanos também são naturalmente
inclinados à vida em sociedade, motivo pelo qual a moralidade também diz respeito às
escolhas deles em relação às atitudes para com outras pessoas. Assim é possível
compreender que o bem moral é apenas uma instância particular do bem natural, que
por sua vez é dado pela ordem natural.

3. A RELAÇÃO DE DEUS COM A ORDEM NATURAL

Entendido o significado da ordem natural, surge então a questão: onde Deus se


encaixa dentro dela? E a resposta para tal pergunta é que Ele não se encontra de modo
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algum dentro da ordem natural, pois não está submetido a ela, pelo contrário, Ele é a
própria origem dela. Deus não é parte da ordem natural, da mesma forma como um
autor não é um personagem de seu livro.
Feser defende que a concepção contemporânea de Deus difere muito da
concepção clássica, e argumenta que a causa disso encontra-se em uma visão
antropomorfizada da divindade. O problema do mal surge principalmente de duas
compreensões errôneas a respeito de Deus: uma que entende o atributo da onipotência
como a capacidade de fazer qualquer absurdo lógico, e outra que pretende colocar Deus
como um sujeito que está obrigado a cumprir às mesmas leis naturais às quais os
homens estão submetidos. Para desfazer tais equívocos, analisemos a concepção tomista
de Deus.
Santo Tomás de Aquino entende que a existência do mundo só é possível devido
à ação divina, que conserva constantemente o ser das coisas. Deus causa o universo em
todos os instantes, e se Ele por um único momento deixasse de sustentar a realidade,
todas as coisas simplesmente desapareceriam. A afirmação tomista da onipotência de
Deus faz referência precisamente ao poder causal de Deus, pois o que é significado com
o termo onipotência é que todo o poder causal que existe é dependente do poder causal
divino, e não a capacidade de realizar qualquer absurdo lógico, tais como criar
triângulos redondos ou solteiros casados. Muitos erros argumentativos surgem dessa
compreensão errônea de tal atributo.
Alguns filósofos já chegaram a argumentar que se Deus não é capaz de realizar
absurdos lógicos, ele não seria onipotente. Feser não trata dessa questão, mas seria
aplicável aqui a resposta de Plantinga, que diz que se absurdos lógicos são possíveis
para Deus, então tampouco existe problema do mal, porque nesse caso, Ele poderia
permitir que o mal no mundo fosse até mesmo infinito que isso não implicaria na
impossibilidade de ser também onibenevolente.
Essa compreensão da onipotência em Deus pode ajudar a entender a origem do
mal, mas ainda deixa intocada questão da aparente não intervenção divina no mundo. Se
Deus é onipotente e onibenevolente, por que não intervém para que o mal não se
concretize? Essa pergunta será respondida de modo mais completo no próximo item,
mas antes é preciso corrigir a visão antropomorfizada da divindade.
Como já foi dito no início da presente seção, Deus não está submetido à ordem
natural, antes, é a origem dela. Deus é a própria medida de bondade à qual toda bondade
particular se refere, não apenas uma instância mais elevada do que é ser bom. Para as

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substâncias naturais, o bem foi definido em termos da capacidade de atualização de suas
potências, mas Deus é entendido no tomismo como puro ato, sem nenhuma potência, o
que não apenas é melhor do que aquilo que se diz bom para as criaturas, como também
é propriamente a referência à qual todas elas podem ser ditas boas.
Para melhor entender a relação entre a bondade de Deus e a bondade das
criaturas, convém utilizar a distinção entre limite simpliciter e limite paradigma,
conforme proposta pelo filósofo Barry Miller. O chamado limite simpliciter se refere a
um elemento que ocupa um extremo de uma determinada série, mas sem ser
essencialmente diferente dos outros elementos dela, assim como a velocidade da luz é o
máximo de velocidade que um corpo pode atingir, mas é uma velocidade tanto quanto
outros elementos da mesma série. Já o chamado limite paradigma se refere a um ponto
de convergência ao qual a série tende, mas que não pode ser contado entre os elementos
da mesma. Também essa definição pode ser exemplificada com a velocidade: 0 km/h é
o limite máximo para quão lentamente um corpo pode se mover, mas esse valor não
pode simplesmente ser contado entre os elementos da série, porque não se trata de
apenas mais um exemplo de velocidade, mas sim de algo que se encontra fora dela. A
concepção teísta clássica entende a bondade divina como um tipo de limite paradigma,
porque a coloca como o ápice ao qual todas as bondades particulares convergem, não
apenas como um elemento melhor do que os outros. Por essa razão diz-se que Deus é de
fato a referência segundo a qual todas as outras coisas podem ser ditas boas.
Entendida como se dá a bondade em Deus, compreende-se finalmente que não se
diz que Deus é bom no mesmo sentido que se diz que um homem é bom. A bondade
moral do homem diz respeito às suas escolhas diante da ordem natural, enquanto que a
divina é o padrão último ao qual todas as bondades se referem. Além disso,
compreende-se que Deus não está submetido, assim como o homem, a cumprir a lei
natural. O argumento típico daqueles que propõem o problema do mal já pressupõe que
a divindade estaria obrigada seguir os critérios humanos para poder ser dita boa. É uma
perspectiva que enxerga Deus como um tipo de super-herói cósmico, que por ser
onipotente, deveria prevenir todos os tipos possíveis de maldade. A partir dessa
compreensão, percebe-se que o assim chamado problema lógico do mal logo deixa de
ser um problema, mas ainda assim a resposta neotomista vai mais além e pretende dizer
algo a respeito do sentido do mal no mundo.

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4. O MAL DENTRO DA CRIAÇÃO

A partir da compreensão tomista de bem e mal, pode-se enfim prosseguir ao


problema do mal mais propriamente. Por que existe mal no mundo? Uma característica
presente na ordem natural é que os indivíduos possuem bens particulares que estão em
conflito entre si. O bem de um leão, que é sua nutrição e crescimento, envolve o mal de
uma gazela, que morre para servir de alimento para ele. Inúmeros exemplos de bens
conflitantes poderiam ser citados na natureza, pois o choque de interesse entre as
substâncias naturais é algo evidente, mas o mais importante é entender como isso se
encaixa na resposta neotomista ao problema do mal. Santo Tomás defende que essa
maldade presente na criação não é incompatível com a bondade divina, pelo contrário, a
manifesta de modo ainda mais claro, porque mostra que Deus é capaz de produzir um
bem maior a partir de um mal. Assim, o mal particular de uma criatura específica pode
resultar em um maior bem geral. Essa regra, assim como se aplica a uma gazela, pode
ser aplicada também a um ser humano.
O argumento ateu tipicamente compara Deus a um pai que, com um esforço
muito pequeno, poderia evitar que seu filho passasse por algum sofrimento.
Normalmente admite-se que de alguns sofrimentos é possível tirar algum bem maior,
mas o que se afirma em relação a Deus é que ele permite sofrimentos que são tão
grandes que não podem ser reparados por maior que seja o bem a ser tirado deles. Essa
comparação falha ao ser aplicada a Deus por duas razões. A primeira é que essa noção
cai por terra diante da visão filosófica cristã que coloca uma recompensa infinita para a
bem-aventurança após a morte, conforme já afirmara São Paulo: “os sofrimentos da
vida presente nem merecem sem comparados à glória da vida futura” (Rm 8,18). Desse
modo, a filosofia tomista afirma que o critério de julgamento entre bem e mal não pode
levar em conta unicamente a vida terrena, porque a finalidade última do homem consiste
em participar de uma felicidade que supera infinitamente todos os tipos de males.
Segundo santo Tomás, Deus permite o mal precisamente porque tira dele um bem
infinitamente maior e não há males que possam ser maiores do que a reparação divina,
isto é, que não possam ser compensados por Ele. Essa resposta pode parecer um tanto
fria diante dos sofrimentos atuais e presentes do homem, mas racionalmente, não há
nenhum problema com ela. O segundo motivo é que, caso Deus interviesse
milagrosamente para impedir todas as ações malignas do homem, a ordem natural
criada por Ele resultaria em um projeto inútil. Seria uma contradição dar ao homem o

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poder de moldar o próprio destino e ao mesmo tempo sistematicamente impedi-lo de
fazê-lo.
Contra esse argumento, poder-se-ia objetar que, ao restringir a liberdade de
indivíduos malignos, garantir-se-ia a liberdade de outros seres humanos. Feser responde
que, de fato, uma pessoa pode restringir a liberdade de outra ao cometer uma maldade,
mas é impossível que um indivíduo restrinja a liberdade alheia em sentido realmente
relevante, isto é, de modo a impedir alguém de fazer escolhas morais que o levem a
cumprir a sua finalidade última, que é a própria salvação. Os seres humanos de fato
estão moralmente obrigados a impedir um mal horrendo na medida de suas
possibilidades, e isso não é contrário à ordem natural, porque uma das funções da
liberdade humana é justamente agir em sociedade, mas o mesmo não se aplica a Deus.
Em síntese, o esclarecimento da concepção filosófica tomista sobre o bem, o
mal, o ser humano e Deus conduzem a uma explicação do chamado problema do mal
que não conduz a uma contradição. Os argumentos ateus que para a inexistência divina
baseados no mal normalmente pressupõem uma visão antropomorfizada de Deus, que o
enxerga apenas como mais um indivíduo que está sujeito à ordem natural. Essa
perspectiva, ainda que popular atualmente, não é aquela endossada por santo Tomás
nem pelo teísmo clássico. Por esse motivo, o argumento do mal não apresenta obstáculo
para a filosofia tomista ou neotomista.

5. CONCLUSÃO

Edward Feser demonstra que o chamado problema do mal é um dilema que se


dissolve diante da reta compreensão dos termos filosóficos utilizados por santo Tomás
de Aquino. O entendimento da moralidade como um aspecto particular dentro da ordem
natural, aliado com a concepção teísta clássica de Deus são suficientes para demonstrar
não apenas que Deus não está obrigado a intervir milagrosamente em todos os atos
malignos que acontecem no universo, como também que, se o fizesse, Ele estaria
entrando em contradição consigo mesmo, porque estaria frustrando o próprio propósito
que conferiu aos seres humanos ao criá-los. A linha argumentativa neotomista, apesar
de ainda ser menos conhecida no meio acadêmico do que outras, certamente pode
agregar muito ao debate contemporâneo sobre o problema do mal.

REFERÊNCIAS

8
FESER, Edward. The Thomistic Dissolution of the Logical Problem of Evil.
Disponível em: <https://www.mdpi.com/2077-1444/12/4/268>. Acesso em:
26 abr. 2022.
FESER. Edward. A Última Superstição: Uma Refutação do Neoateísmo. Belo
Horizonte: Cristo Rei, 2017.
MILLER, Barry. The fullness of being: a new paradigm for existence. Indiana:
University of Notre Dame, 2002.
PLANTINGA, Alvin. Deus, a liberdade e o mal.. São Paulo: Vida Nova, 2012.

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