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POR UM MUNDO EM QUE A POTÊNCIA DO HOMEM SEJA ACTO DE SI

PARA SI ATRAVÉS DE SI

Por Lucas Sabino, aluno 162393,

do curso de Licenciatura de Filosofia

pela orientação do Professor Pedro Alves

2023
RESUMO

O propósito deste ensaio é expor uma investigação sobre a possibilidade de vivermos no melhor mundo
possível, e caso não seja possível deduzir por conta da natureza metafísica da questão, abordaremos o
que poderíamos trazer ao acto na forma do imperativo humano a fim de melhorar o nosso mundo na
medida do fazível. Isto é, dado que o mundo já nos é provido, sendo ele o melhor ou não, a única ação
imposta sob o homem é seguir com o que foi dado e tentar aperfeiçoar ao máximo sua própria natureza
e a qualidade da existência que está contido. O percurso geral será fundamentar a tese leibniziana,
analisar a possível forma de arquitetura de um mundo (seja ele necessário ou contingente), analisar
historicamente o que acontece com o ser humano quando adicionamos a materialidade do mal, recolher
o resultado empírico disto, e por fim, transmutar esse escopo em forma de argumento para conduzir o
homem através de si mesmo em busca de um homem melhor em sua natureza enquanto houver o nunc
fluens, o tempo. Palavras-chave: Leibniz, Moral, Criador, Crença, Consciência, Transcendência, Fenômeno

O ser humano estima seu núcleo de crença existencial a partir de duas formas. A primeira é expressa pela
interioridade do homem que tem a si próprio como sujeito a fim de ser capaz de lidar com todas as
hesitações da vida, enquanto o segundo acredita que, além dele mesmo, ele precisa buscar uma razão de
ser e propósito externamente, isto é, que a natureza do seu ser não dá conta de todas as implicações da
realidade. Com base na ideia de uma entidade transcendente objetiva, uma parte significativa dos seres
humanos interpreta suas experiências existenciais concretas. A eles, é dado formular um sentido
abrangente e totalizante do percurso humano no universo e do próprio universo enquanto tal, afastando-
se assim de tendências niilistas e de sua perigosa suspeita sobre o sem valor, o sem-sentido, a inutilidade
e a vanidade de tudo o que existe sob o sol. Em termos filosóficos, denomina-se teísmo a doutrina que
sustenta a tese de que existe um ser transcendente que teve o poder e a vontade de criar o mundo atual
e que o mantém, podendo ser predicado de forma verdadeira os atributos de onipotência, onisciência e
perfeição moral a essa entidade. Enquanto acto psicológico ou fenômeno social, a crença não constitui
prima facie matéria filosófica. Ela passa a sê-lo, porém, no momento em que o adepto do teísmo pretende
justificar sua crença metafísica, explicitando seus comprometimentos ontológicos e implicações práticas.
Eliminado o dilema ontológico, devemos nos concentrar naquele que constitui, sem dúvida, um dos
tópicos mais controversos de toda e qualquer teoria teísta, a saber: como pode um Deus onisciente,
onipotente e sumamente bom ter criado um mundo, onde se encontram tantas imperfeições, tantas
catástrofes naturais, tanto sofrimento e infelicidade humanos? Se Deus criou o mundo e o mundo não é
bom, até que ponto podemos considerar que Deus, Ele mesmo, é bom? Trata-se aqui de investigar a
consistência interna do teísmo a partir da dificuldade lógica de compatibilizar a crença na existência de
um Deus Todo-Poderoso e Sumamente Bom com a existência do Mal no mundo. Leibniz denominou esse
problema de problema da Teodicéia, ou seja, o problema da defender a justiça e a bondade divinas diante
dos ataques céticos. Dado que os argumentos tanto de prova da existência de Deus quanto de negação de
sua existência não são conclusivos, muitos críticos do teísmo consideram esse de facto o calcanhar de
Aquiles do teísmo e a razão fundamental para sua rejeição filosófica. Para eles, o reconhecimento da
inegável existência do Mal no mundo seria a refutação mais radical da crença em Deus e uma
demonstração clara da inconsistência filosófica do teísmo. Leibniz não foi primeiro a pensar na questão.
Antes dele, talvez a primeira formulação do problema da teodicéia remonta à sofística grega, tendo sido
elaborada, primeiramente, por Trasímaco (frag. B8)[1], que argumentava que os Deuses deveriam ser,
indiferentes ao destino do gênero humano, pois do contrário se empenhariam mais decididamente pela
efetivação da justiça no mundo. Uma versão mais refinada foi atribuída a Epicuro por Lactâncio:

“Ou bem Deus quer eliminar o mal do mundo e não pode, ou Ele pode e não quer, ou Ele não quer
nem pode, ou Ele quer e pode. Se Ele quer e não pode, então Ele é impotente, o que é impossível.
Se Ele pode e não quer, então Ele é não é completamente bom, o que é estranho a Deus. Se Ele
não quer nem pode, então Ele é impotente e não completamente bom, logo Ele não é Deus. Mas
se Ele quer e pode, o que é o mais adequado pensar em se tratando de Deus, então de onde vem
o Mal e por que Deus não o elimina?” [2]

Por outro lado, temos Leibniz no Discurso de metafísica, §1:

(...) Deus é um ser absolutamente perfeito. (...) convém notar que há na natureza várias perfeições
muito diferentes, possuindo-as Deus todas reunidas e que em cada uma lhe pertence no grau
supremo. É preciso, também, conhecer o que é a perfeição. Eis uma marca bem segura dela, a
saber: formas ou naturezas insuscetíveis do último grau não são perfeições, como, por exemplo,
a natureza do número ou da figura; pois o número maior de todos (ou melhor, o número dos
números), bem como a maior de todas as figuras implicam contradição; mas a maior ciência e a
onipotência não encerram qualquer impossibilidade. Por conseguinte, o poder e a ciência são
perfeições, e enquanto pertencem a Deus não têm limites.

A ligação entre metafísica e moral em Leibniz aparece claramente à luz do curso desses dois princípios. O
princípio de não contradição limita desde a eternidade à criação. O criador não tinha a possibilidade de
agir independentemente das normas do principium: a sua necessidade, de facto, não diz respeito só ao
nosso intelecto, mas define também as margens do intelecto divino. Não é o divino a dispor da razão de
ser, mas é a razão de ser que lhe “permite” pensar, em termos não contraditórios, os diferentes mundos
possíveis. Nós partilhamos então com a estrutura divina, pelo menos, uma comum experiência do limite,
e não há alteridade ou transcendência que possa nos afastar dessa tomada de consciência. Ora, o facto
de que Deus não possa transgredir «a suprema necessidade das verdades eternas» não implica, segundo
Leibniz, a impotência divina; ao contrário, é o que preserva a racionalidade e a perfeição da natureza de
Deus, o que lhe permite exercer a sua liberdade de escolha e o que, ao mesmo tempo, nos consente
procurar a razão da sua criação, indicando uma motivação pela presença do mal no mundo. Aliás, se os
paradigmas morais fossem o resultado de uma vontade arbitrária, a dor e o sofrimento não teriam,
nenhuma razão, não sendo nada mais de que a consequência de um acto criador indiferente à condição
das suas criaturas.

____________________________
1 Cf. Diels/Kranz, Fragmente der Vorsokratiker, vol II, p. 319.

2 Citado por Lactâncio em De ira Dei, c 13, 20


É neste contexto que aparece a centralidade do segundo princípio leibniziano, o de razão suficiente. Há,
de facto, uma mútua exclusão entre a indiferença divina implicada pela doutrina de Descartes e o princípio
leibnziano. Se Deus fosse indiferente, não seria – necessariamente – um bom Deus; se Deus fosse
indiferente, não seria verdadeiramente ligado à sua criação, podendo, de acordo com Leibniz, alterar o
que criou; se Deus fosse indiferente, não existiria nem sequer a oportunidade de indicar uma razão
suficiente para as suas escolhas, não havendo nenhuma mediação entre o criador e as criaturas. Deus, em
suma, agiria «sem conhecimento», sem dispor de uma ordem metafísica e moral inerente à sua essência,
e não encontraria «as regras eternas da bondade e da justiça entre os seus objetos». Leibniz precisa então
afastar-se do espectro da indiferença cartesiana sem renunciar à contingência associada à criação divina.
A este respeito, se Deus não podia ignorar a necessidade regulada pelo princípio de não contradição, teria
podido, contudo, criar um outro mundo, mas não o fez, e não o fez por causa de uma necessidade de
ordem moral; se Deus tivesse criado um mundo diferente, de facto, a relação total entre o bem e o mal
teria sido mais desfavorável para as suas criaturas. Em suma, a sua necessidade moral o levou – na
realidade, o necessitou – a criar o melhor possível, com o máximo de ordem e variedade possível. A
moralidade que acompanha a criação divina permite a Leibniz recusar a indiferença cartesiana
preservando a liberdade de Deus. Com efeito, apesar de Deus não deixar de escolher o melhor, dada a
natureza moral que o define, não é necessariamente obrigado a fazê-lo.

A reflexão leibniziana articula-se segundo um duplo movimento: embora o bem e o melhor inclinem Deus
a agir, não o necessitam, já que para Deus teria sido logicamente possível criar um mundo diferente – a
liberdade de Deus é assim formalmente salva contra Espinosa; se Deus, porém, tomou a decisião de criar
justamente este mundo, isso é devido à ordem moral que inerva a sua essência. Para Leibniz não existe
um curto-circuito entre a onipotência de Deus e a sua necessidade moral, entre a sua liberdade e a sua
bondade. A necessidade moral não limita, de um ponto de vista formal, a ação da potentia Dei e não toca
o domínio da possibilidade lógica. As decisões divinas, portanto, não deveriam ser consideradas
necessárias por causa da intrínseca moralidade da sua natureza. Pelo contrário, se a necessidade
metafísica é compatível com a liberdade de Deus, «a necessidade moral é digna dele», já que é «uma feliz
necessidade que obriga o sábio a fazer bem, enquanto a indiferença em relação ao bem e ao mal seria a
marca de um defeito de bondade ou de sabedoria». Em suma, o acto criador revela-se proporcionado a
dois paradigmas criados já determinados: se não obrigam Deus a criar, eles circunscrevem a origem o raio
da sua criação.

A ARQUITETURA GERAL DA METAFÍSICA LEIBNIZIANA

Leibniz é o herdeiro do otimismo racionalista cartesiano, que por sua vez culmina em Hegel. O seu
pensamento metafísico articula “a ação divina, a liberdade humana e a facticidade do mal. Leibniz procura
fazer a mediação entre o racionalismo e a concepção voluntarista de Deus, isto é, em Deus coincidem o
entendimento, ou seja, fonte das essências possíveis e a vontade, isto é, fonte das existências. Seu
entendimento concebe a infinitude de mundos possíveis, que têm realidade nas idéias eternas de Deus,
ao passo que a vontade se decide e dá existência ao mundo real em que nós vivemos. A escolha de Deus
se baseia na ideia da perfeição. Sendo o arquiteto supremo do universo, Deus escolhe, dentre uma
infinidade de projetos, aquele que, no conjunto, é o melhor de todos. Leibniz faz referência a uma
diversidade de mundos possíveis como idéias divinas que lutam por existir, ou seja, que competem para
tornar-se realidade por intermédio do livre agir de Deus.

Deus é a razão primeira de todas as coisas […] Então, é preciso procurar a razão da existência do
mundo, que é a completa reunião das coisas contingentes, e é preciso procurá-la na substância
que traz em si mesma a razão de sua existência, a qual, portanto, é necessária e eterna […] que
essa causa seja inteligente […] é preciso que a causa do mundo tenha tido consideração ou relação
com todos esses mundos possíveis, a fim de determinar um deles […] Pode dizer que tão logo
Deus determinou criar algo, ocorre uma luta entre todos os possíveis, todos pretendentes à
existência, e que os que unidos entre si produzem mais realidade, mais perfeição, mais
inteligibilidade vencem (Teodicéia, n. 7; 201).

Conforme o pensamento de Leibniz, Deus não pode mudar sua natureza, nem agir fora da ordem
(Teodicéia, n. 327). Ele sempre age em vista de determinadas razões. Para Leibniz, “Deus vê de uma só vez
toda a sequência desse Universo quando o escolhe; […] não tem necessidade da ligação dos efeitos com
as causas para prever esses efeitos” (Teodicéia, n. 360). Deus vê uma parte da sequência na outra. O
presente está prenhe do futuro (Idem). Nesta perspectiva, tudo é escolhido por Deus de acordo com o
princípio da razão suficiente, ou seja, Ele age de maneira necessária. O sistema metafísico leibniziano é
perfeitamente integrado, em que a parte acarreta o todo sem dissonâncias nem paradoxos. Assim, Leibniz
sustenta que não há incoerência lógica entre a existência de Deus e a do mal, como esclarece os motivos
pelos quais ele existe. Para Leibniz, Deus criou o melhor dos mundos possíveis, Ele escolhe
voluntariamente o melhor, pois do contrário não seria perfeito: a vontade antecedente de Deus (que
considera o bem como tal, tomado em si mesmo) é complementada com o princípio de perfeição da
vontade consequente (Deus tem em vista a possibilidade concreta, relacionando-a com outras
possibilidades e integrando-a em uma série (Teodicéia, n. 22-23)). Leibniz defende algo próximo a uma
espécie de utilitarismo e pressupõe que Deus sempre cria o melhor. Leibniz estabelece uma conexão das
duas vontades, a antecedente e a consequente, com a propensão para o bem e a permissão do mal. Pode-
se afirmar que a sabedoria divina corrige sua bondade. Entretanto, não se pode aceitar que Deus tenha
criado um mundo globalmente mau, pois isso invalidaria a combinação escolhida: “Deus é infinitamente
poderoso […] seu poder é indeterminado, a bondade e a sabedoria unidas o determinam a produzir o
melhor” (Teodicéia, n. 130). Leibniz afirma também que “Deus não poderia estabelecer um sistema ligado
de maneira imperfeita e repleto de dissonâncias” (Idem). Algo notável que não deve ser ignorado é que
há certos caminhos comuns que a mente faz quando falamos de qualquer entidade que possui tais
atributos conjugados. Parece-me que somos condicionados a ter uma concepção fechada sobre a entidade
de Deus ou do Ser-superior – talvez o que Jung chamaria de inconsciente coletivo em sua categorização.
Sujeito este que conjuga tudo que sabemos e o que não sabemos, exponencia tudo isso à uma existência
que nunca teremos acesso para conhecê-la, muito menos validá-la conforme nossa razão. O panorama
demonstrado até aqui nos fornece uma pitada do que foi a mente de Leibniz e de pensadores do seu
tempo. A realidade exige que aumentemos a complexidade do discurso a fim de dar conta de toda a
capilaridade dela. Obter o extrato do que Deus significa através da revelação seria de responsabilidade
teológica. Mas examinar o conjunto de crenças e sua epistemologia na forma do campo filosófico
conhecido como Filosofia da Religião – fundada sobre a metafísica, antropologia e ética. O facto de estudo
aqui é o homem, suas crenças, sua dimensão espiritual e a essência de como a religião atinge o homem
em seu “Eu”. Interessantemente o conjunto de premissas sobre Deus através da religião é o mesmo, pois
sua fonte é primária e única, todavia as ramificações das crenças sobre essas premissas são paradoxais
entre si. Por qual razão? Porque o divino quando é objetificado e transmutado em fenômeno é apreendido
pela mente humana em suas faculdades finitas, e por isso, cada ser humano irá desenvolver o seu modelo
de crenças baseado em seu esquema racional – que por sua vez, muitas vezes será totalmente
contraditória com os modelos principais. Um exemplo autoevidente disso é Espinosa em sua releitura
formidável de uma substância infinita totalmente distinta.

Há diversas histórias da cultura judaico-cristã que demonstram um Deus que não aparenta ser o mesmo
quando o comparamos com a idéia de Deus de outros pensadores. Uma vez que cada homem tenta ler o
divino como pode, temos inúmeras interpretações possíveis, e a única maneira que temos de isolar a
incógnita é verificando o que ocorre com maior frequência nas mentes humanas. Ou seja, o que é o
universal? Ali estará nossa concepção do Ser-Superior e criador de tudo. O que temos feito é tentar varrer
todas as permutações possíveis de pensamento a fim de detectar que Ser externo é esse que habita em
nossas mentes, mesmo que só em conceito de potência, sem efetividade da fé em si ao Ser.

Um clássico para ilustrar isto é a história judaico-cristã de Jó. Homem que em tudo foi íntegro, pleno e
perfeito, todavia experimentou o caos do desfavor. Justiça? Bondade? Bem? Como ler essa história com
os critérios corretos, na intensidade correta, de modo correto? – parafraseando Aristóteles (Ética a
Nicômano) quanto ao meio termo virtuoso adquirido pelo hábito do tentar. O mal, ou o sofrimento em Jó,
não é moral. Mas é um mal viral. Uma metástase que se alastra sem deixar vestígios de sua próxima
atuação. Por que sofrem os homens? — eis aí um problema sobre o qual Jó se debruça e para o qual
canaliza suas energias. O livro de Jó é uma meditação de um sábio sobre o sofrimento. A universalidade
desse personagem nos permite analisá-lo sem teologias pré-definidas, mas sim como agente da moral e
dos costumes de um grupo social. O sábio que está narrando esse conto vê-se na sua pele e formula a
seguinte indagação: “Que significa esse mal de que sofro?” Como me sobreveio se não o mereço? Como
pode um homem piedoso e sincero sofrer tanto enquanto os maus e perversos não são atingidos por
nenhum flagelo? Que lógica é essa? Absurda ou pedagógica? Se for pedagogia, então como ensinar as
pessoas boas o que devem fazer se a priori já o fazem? Não pela busca do conceito pré-estabelecido pela
teologia, mas da simples hermenêutica do texto moral universal a fim de extrair seu teor filosófico,
podemos trazer uma estrutura leibniziana à história desse homem. Nós, seres humanos, sempre lemos
histórias de uma maneira antropológica. Geralmente achamos que tudo se trata de nós, por nós e para
nós. É um vício do sujeito que somos. Talvez seja nossa linguagem que nos condiciona quando
frequentemente impõe que o lugar do sujeito é no início da frase. Talvez isso tome força exponencial em
nossa mente e nos force a analisar tudo sob a tentativa opressora de achar um sujeito antes de qualquer
outra existência material. Vemos o mundo, e queremos saber onde está o sujeito. Ouvimos as histórias
focando sempre em um sujeito principal, e com isso, perdemos a capilaridade pedagógica da alternância
dos múltiplos “Eus” de todos os sujeitos. Mas e se a estrutura pedagógica e hierarquia fosse alterada,
colocando assim o homem como objeto e não sujeito. Isto é, os actos de criação são transversais a todos
os seres viventes do cosmo, e claro, o homem. Por que esquecemos das outras criaturas? Talvez o ego
humano vigore mais do que deveria neste quesito. E se a substância que cria, a fim de produzir um mundo
possível melhor do que o outro tivesse de utilizar aquele homem para transmitir sabedoria ao resto do
cosmos. Como outros seres podem conhecer, se não pelas realidades criadas no vigor da existência? Então,
podemos decorrer que talvez a história de Jó tenha sido um meio para atingir um fim maior – que não
temos a menor astúcia em decompor e traduzir para a nossa epistemologia de facto. Podemos entrar na
história, falar sobre moral, justiça e bondade para com Jó, porém assim perderíamos a perspectiva do
quem é causa de si. Apenas o ser que é causa em si, como criador, sabe o que criou, todavia as outras
criaturas não têm capacidade para conhecer integralmente o que não criaram. Ou seja, todos os entes
precisam necessariamente de uma manifestação cósmica como a presente na história de Jó para ver algo
na materialidade da existência como um palco de potencialidades se transformando em actos de facto.
Tudo isso a fim de realmente apreender sobre o homem, sobre si, e finalmente, sobre o criador. Na
história, talvez uma extração filosófica mais universal se encontre no argumento que o criador se utiliza
da vida de Jó para compartilhar a compreensão a todos os entes que não são as condições de existência
que definem uma criatura, mas sim a essência a qual Deus definiu como predicativo intrínseco da criatura.
Jó sofre, se questiona e reflete. Por quê? Deus responde com a definição do melhor mundo possível à
maneira leibniziana.

O MÉTODO DA ARQUITETURA

Existem algumas áreas que se destruiriam se pudessem, arquitetura e engenharia, por exemplo. Enquanto
o engenheiro força para que todas as variáveis do sistema sejam performáticas, sem se importar com a
perda da elegância, o arquiteto trabalha ao negativo disto. Para o arquiteto a forma é relevante, e está em
primeiro lugar. Forças contrárias querendo se ampliar só podem gerar uma verdadeira guerra. Para criar o
melhor mundo possível, Deus tem de criar uma sequência gigantesca de eventos a fim de certificar as
implicações de cada evento de cada mundo. Assim como um computador calcula todos os movimentos
possíveis em um jogo de xadrez e determina suas chances de êxito ou fracasso, Deus o faz. Claro, que essa
seria apenas a natureza matemática de Deus, e, portanto, não estamos colocando outras premissas na
equação. Deus aqui é um mainframe quântico apenas, uma máquina com incrivelmente capacidade em
probabilidade matemática. Mas apenas dizer que Deus calcula, ao meu ver, é muito simplista. Devemos
investigar o “como” e “quais critérios Deus poderia utilizar para escolher seu futuro mundo necessário
dentro de múltiplas contingências de possíveis”.

Podemos nos inspirar no modelo de arquiteto da franquia do filme Matrix. Neste título, temos uma
essência do que é ser realmente um arquiteto que tudo pode e que cria mundos. A primeira pergunta a
ser posto é “Por que eu estou aqui”. Aqui temos a primeira indagação filosófica do diálogo, que qualquer
humano faria para o seu criador. A resposta é como uma faca: “Sua vida é a soma do saldo de uma equação
desequilibrada inerente à programação da Matrix. Você é o desenlace de uma anomalia, que, a despeito
de meus mais sinceros esforços, fui incapaz de eliminar daquela, caso conseguisse, seria uma harmonia
de precisão matemática.” A definição fria permeia a resposta numa tônica quase mecanicista da vida. A
vida são só relações de idas e vindas de um sistema fechado que por inércia se mantém afetando a si
próprio visto que sofreu uma primeira ignição. Com essa resposta imprecisa, Neo continua e há no diálogo
a inferência que a incógnita que gera uma anomalia no sistema é a escolha. Isto é, quanto mais escolhas
possíveis mais anomalias sistêmicas dentro do modelo matemático. Aqui podemos ter uma iluminação e
concatenar esse raciocínio com a física quântica dos nossos tempos em que a observação das partículas
são uma forma de alterar o que acontecerá. Isto é, a intenção do sujeito altera o fenômeno em si. Digamos
que movimento pode ser parafraseado como escolha para conectar o cenário do filme com o da física
contemporânea. No filme, temos que a primeira versão projetada – em nossa leitura, primeiro mundo
matematizado por Deus - era evidentemente perfeita, uma obra de arte, impecável, sublime. Um triunfo
equiparado apenas ao seu fracasso monumental. A inevitabilidade de sua ruína é tão evidente agora
quanto é uma consequência da imperfeição inerente a todo ser humano. Assim sendo, a versão foi
redesenhada com base na história dos seres humanos para refletir com maior precisão as variações
grotescas de sua natureza. Todavia, mais uma vez, o arquiteto foi frustrado pelo fracasso. Desde então,
compreende que a resposta lhe escapava, pois a realidade do mundo criado necessitava de uma mente
inferior como mestre, ou talvez uma mente menos resignada aos parâmetros da perfeição. Portanto, a
resposta foi encontrada, por acaso, por outrem, um programa intuitivo, inicialmente criado para investigar
certos aspectos da psiquê humana. Se o arquiteto é o pai da Matrix com seu escopo racional matemático,
a entidade responsável pelos parâmetros no que tange as escolhas seria o Oráculo – responsável pela
estrutura intuitiva da vida. Claro que a natureza do filme não é idêntica ao pensamento lebniziano, pois
no filme recebemos a idéia sequencial de aprimoramento numa estrutura linear ao longo do tempo
enquanto seus agentes criadores vão modificando o arranjo de incógnitas a fim de ter o melhor mundo
possível para que o ser humano se sinta confortável, e por fim, forneça energia para as máquinas. Já em
Leibniz temos que o criador não se utiliza da realidade numa tentativa longínqua de acertos e erros. Como
substância primeira, e causa de si, o Deus de Leibniz computa todas as realidades e instancia apenas uma
delas dentro de muitas. Salva esta observação que destoa, podemos voltar ao método da criação da
relação máquina-homem. O arquiteto prossegue dizendo que as reações de Neo são interessantes. Uma
vez que ele é o sexto escolhido a desempenhar aquele papel, os anteriores estavam baseados em uma
mesma premissa: a afirmação contingente responsável por criar um profundo vínculo com o resto da
humanidade, fazendo com que o ente escolhesse mais facilmente seu destino. Todos os anteriores
necessariamente foram forçados a sentir isso através da genética. Enquanto o sexto é a primeira potência
em acto que experimenta o amor.

Nunca colocamos o amor como variável principal na relação que julgamos ser seca, puramente formal, do
criador com a criatura – o que, por sua vez, é muito contraintuitivo. Somos dotados de um grau enorme
de amor e satisfação quando criamos algo, isto é, quando nos colocamos na posição de criador. Por que é
tão raro pensarmos nessa mesma relação quando implicamos ela a Deus? A composição do amor sentida
pelo protagonista do filme é criadora de ramificações de possibilidades. É o cálculo humano em que são
postas todas as variáveis a fim de reduzir o máximo possível o dano. Curiosamente, todos nós, ao longo
de nossa evolução aprimoramos nossos sistemas de recompensa e análise de risco a fim de evitar danos.
Será isso algum presente pré-definido por Deus à nós? O facto é, sempre fazemos isso através da nossa
razão. Talvez esse utilitarismo divino seja um otimista em demasia para o nosso gosto contemporâneo. A
exposição leibniziana exige um movimento, que quase tende à uma fé conciliadora que busca unir ao invés
de dividir em seu percurso, quando nos apresenta os seus princípios, sejam eles da perfeição, razão
suficiente ou da graça. Muitos, seja esta realidade existente no passado com Voltaire seja em pleno
presente, têm exposto que o pensamento é muito ingênuo e não dá conta de todos os males da realidade.
Talvez o fundo do poço da humanidade tenha sido cenários como a escravidão e genocídios. Nesses
expoentes de peso em que o mal tem o poder absoluto para instrumentalizar sua vontade como quiser,
nos perguntamos onde está o criador justo, bondoso e poderoso. Poderíamos inserir histórias de
escravidão e massacres para instanciar a posição de Voltaire e outros, todavia optamos por seguir pelo
nazismo. Pelo viés da confirmação, talvez seja tendencioso olhar para Leibniz e dizer que há elegância e
verdade nisso, admitindo a máxima que a simplicidade é o último grau de sofisticação a la Leonardo da
Vinci. Então, onde Deus e sua natureza perfeitamente absoluta estavam quando houve o genocídio
antissemita? Pior, o que houve com a fé em Deus como instância do “eu” interno de cada oprimido pelo
regime nazista? Quais foram as formas de existência drenadas das vítimas? O que acontece com a crença
em um criador bom quando a realidade não é boa, mas sim um massacre pior do que a tônica de Jó?
CAMPO DE APLICABILIDADE: NAZISMO E IMPLICAÇÕES ÀS COMUNIDADES AFETADAS

Para essa resposta, precisamos buscar por pessoas que passaram por esses cenários a fim de extrair o que
suas mentes cogitaram como possibilidade de existência e sobrevivência e verificar se eles realmente
acreditam que o melhor dos mundos é esse através do qual eles foram dilacerados pela escolha prévia de
Deus. O dilema humano aqui é: como a criatura pode amar seu criador que escolhe um mundo em que a
criatura é esmagada pela existência e ainda continuar a amar seu criador quase de maneira masoquista, e
não considerando sob hipótese alguma que seu criador é um sádico tirano que deseja seu mal apenas por
crueldade – como Nietzsche em sua obra “Genealogia da Moral”.

Devemos separar a análise em duas vertentes. Enquanto temos um movimento de natureza externa,
representado pelas reflexões geradas pelo nazismo, também temos uma resultante do movimento interno
do nazismo. Isto é, devemos separar quem refletiu sobre o nazismo sem ter passado por ele na pele, e
quem foi afligido verdadeiramente pelas ações do nazismo. O primeiro grupo se perfaz em teólogos,
filósofos e pessoas religiosas no geral que tentam explicar Deus ou o pensamento que o envolve em suas
relações de causa-efeito ou simplesmente seu relacionamento com o homem, sua criatura diferenciada
pelos dons especiais assim fornecidos. O pensamento externo é derivado a partir de três especialistas do
tema circunscritos em uma pesquisa de doutorado de Ariel Finguerman cujo título da tese de 2008 é “A
Teologia Judaica do Holocausto – Como os pensadores ortodoxos modernos enfrentaram o desafio de
explicar a Shoá”. Nesse trabalho formidável temos uma análise impressionante sobre a crença humana em
algo em situações devastadoras. Não há um consenso unificador e simples, mas destacaremos e
analisaremos em resumo dos argumentos de: Joseph Soloveitchik, Eliezer Berkovits e Irving Greenberg.

Sobre a aliança: Eles dizem que o Holocausto não abala o que foi prometido. Apenas, na inserção
de Greenberg o pacto deixa de ser obrigatório, e passa a ser voluntário. Podemos inferir que ele
analisa a estrutura pelo prisma contratualista. Logo, se uma cláusula não foi cumprida, a outra
parte é livre.

Sobre o martírio: Todos concordam que foi uma possibilidade para que os judeus da melhor forma
possível, isto é, “santificando o nome de Deus”.

Sobre o afastamento de Deus: Neste tópico temos dois pensamentos distintos. O primeiro diz que
o afastamento de Deus é consequente do pecado do homem e é uma punição. O segundo é que
Deus oscila sua “presença” em diversos momentos da história. Não sabemos o porquê, contudo
é como acreditam.

Livre-Arbítrio: Soloveitchik não defende nenhuma tese. Enquanto os outros dois rabinos vão pela
linha Agostiniana ao dizer que o livre-arbítrio é dado ao homem, e que após isso ser concedido, o
homem ao pecar, entra numa espiral de decaimento em que se o bem não estiver presente, o mal
aparece como forma de negação substancial.
Após a exposição externa, podemos seguir para a interna com Reeve Robert Brenner, responsável por nove
anos de pesquisa realizada entre sobreviventes do holocausto em Israel, elaborou em sua obra de natureza
estatística “The Faith and Doubt of Holocaust Survivors” um relacto detalhado a fim de analisar como os
judeus interpretaram o Holocausto. O resultado em resumo foi que um terço das pessoas do estudo
estatístico já eram não-religiosos antes do Holocausto. A outra parte (outro terço), eram religiosos com
intensidade fraca e média. Por fim, o terço faltante expressava sua religião como forma intrínseca do seu
eu de maneira intensa. O estudo conclui que as formas mentais humanas das pessoas que passaram pelo
Holocausto se mantiveram as mesmas. Ou seja, não há alteração nas crenças mesmo com o ocorrido – o
que é um contra-senso para qualquer intuição.

AS PROJEÇÕES DA MENTE: FREUD

Para Freud, conforme fundamentado em sua obra “O futuro de uma ilusão”, a conjunto de crenças em
uma projeção externa do super-ego é uma ilusão – uma busca por desejos do homem apenas.

Desejos que são as "realizações dos desejos mais antigos, mais fortes e mais urgentes da
humanidade. "(cap. 6 pg.38). Entre eles estão a necessidade de agarrar-se a existência do pai, o
prolongamento da existência terrena por uma vida futura e da imortalidade da alma humana. Para
diferenciar entre uma ilusão e um erro, Freud enumera as crenças científicas, tais como " a crença
de Aristóteles de que os parasitas se desenvolvem do esterco "(pg.39), como um erro, mas" a
afirmativa feita por alguns nacionalistas de que a raça indo-germânica é a única capaz
de civilização "é uma ilusão, simplesmente por causa do desejo envolvido.” Isso dito de uma forma
mais explícita: o que é característico das ilusões é que elas são derivadas de desejos humanos.
(pág. 39) Ele acrescenta, porém, que, "Ilusões não precisam ser necessariamente falsas." (pg.39)
Ele dá o exemplo de uma menina de classe média ter a ilusão de que um príncipe vai se casar com
ela. Enquanto isso é improvável, não é impossível. o facto de que baseia-se em seus desejos é o
que faz com que seja uma ilusão.

Portanto, para Freud a religião é um desdobramento do complexo de Édipo e representa o desamparo do


homem no mundo, tendo que enfrentar o destino final da morte, a luta da civilização e as forças da
natureza. Ele vê Deus como uma manifestação de um desejo da criança por um pai. Os deuses do homem
retêm a tarefa tripla: devem exorcizar os terrores da natureza, devem reconciliar os homens com a
crueldade do Destino, particularmente, como é mostrado na morte, e devem compensá-los pelos
sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum impôs a eles. Talvez Freud esteja certo, talvez
Deus seja apenas uma projeção da nossa mente. Mas isso não importa muito no que tange ao metafísico
da situação. O essencial para as pessoas que passaram por essa experiência do holocausto e mantiveram-
se com sua identidade intacta é que eles foram capazes de se autoprojetar, consolidando a energia do seu
Ser para outro receptáculo, algo externo e protegido, na forma de exportação de consciência. Enquanto
seu presente executado, nunc fluens, desmoronava-se, sua consciência estava intacta. Há uma ausência
de consciência nesse ser pensante para espanto de Descartes. Se a consciência é exportada para um
espaço metafísico no nunc stans ou apenas há um desligamento mental - tal coisa nunca saberemos a
princípio. Contudo, podemos analisar os eventos externos ao processo e refletir sobre eles. De qualquer
modo, a religião, mesmo que seja uma ilusão, oferece-nos um espaço em que podemos treinar nossa
consciência e nos expandir nessa natureza. Assim como a pedagogia e psicologia infantil já
compreenderam que crianças precisam das fantasias para ativar suas potências, talvez o homem precise
de ilusões, planos metafísicos em que consiga amplificar suas capacidades, para se desenvolver – sejam
estas a pura promessa do homem que promete de Nietzsche responsável pela auto-superação do homem
necessariamente em busca de boa consciência, sejam ilusões religiosas, verdadeiras ou não, que nos
fazem idealizar algo que não apenas as implicações da matéria. Claro que aqui não há defesa de apenas
estar na ilusão, a materialidade da existência demanda movimento, devir, passagem de potência ao ato. E
o homem deve realizar sua função imperativamente.

Freud expõe que quando as necessidades básicas do homem são retiradas, ele se torna menos homem.
Ou seja, há um declínio de sua capacidade pensante. Logo, há debandada da natureza racional para uma
natureza animal que controlará todos os impulsos humanos em suas pulsões em busca de retorno do
prazer. Seria a base da hierarquia de necessidades de Maslow em seu artigo “a teoria da motivação
humana, 1943), também chamada de camada da fisiologia em que elementos como respiração,
alimentação, água, sono, sexo, excreção e homeostase são privados ao homem. Ao reduzir o homem a um
animal, Freud não considera a capacidade resiliente do homem no que tange sua consciência e instinto de
auto-preservação da própria. Nesta matéria não podemos generalizar, pois alguns seres humanos, de
facto, podem perder sua razão quando privados do básico, contudo alguns possuem esse primado como
sua obra-prima - o que lhes permite reintegrar seu sujeito como se fosse um fluxo energético. Dissipa-se
quando é viável, integra-se quando é necessário. Esse “eu” transcendental não teve nada a ver com Deus
ou crença em Deus. Isso é uma capacidade da ordem do intelecto humano, não do campo da fé. É a
resiliência do ser. Na verdade, podemos confundi-lo com frases de efeito. Interpretamos o dizer como se
Deus fosse a potência metafísica do nosso acto real. Fazemos essa conexão e transcendemos Deus, mas
esvaziamos o homem de qualquer significado e função, além de manter uma crença.

O CONTRAPONTO PELA TRANSCENDÊNCIA DEFENDIDA POR FRANKL NA BUSCA POR SENTIDO

O conceito de auto-transcendência é exposto por Viktor Emil Frankl – escritor do “Em Busca de Sentido”.
A partir das suas experiências nos campos de concentração nazis, Viktor Frankl criou um novo método
terapêutico, a logoterapia, segundo a qual o ser humano por necessidade inconsciente de sobrevivência
física e mental precisa de dar um sentido à vida. Para Frankl, o homem é um ser livre, cuja motivação
principal não é o instinto do prazer (Freud), nem a vontade do poder (Adler), mas sim a vontade de
encontrar um sentido para a vida. Para alcançá-lo, Frankl considerou que o percurso de vida passava por
três grandes domínios: os valores experienciais, isto é, viver algo ou com alguém que se valoriza através
do amor; os valores criativos, ou seja, o homem deve comprometer-se com o seu próprio projeto de vida,
integrando ainda, na sua vida, a beleza da arte, música, escrita, entre outras artes; os valores atitudinais,
que incluem virtudes, tais como a compaixão, a valentia, o sentido de humor e o sofrimento. Frankl
entendia ainda que havia um outro sentido para a vida que não dependia daqueles domínios, nem dos
projetos de vida de cada homem - o sentido espiritual. A logoterapia é apontada, nas ciências psicológicas,
como equivalente a “Crítica da Razão Pura” de Immanuel Kant. Contrariamente ao Freud, Frankl considera
que a neurose individual seria uma recusa à espiritualidade. Frankl, médico e doutor em filosofia, diz que
quando preenchemos o vazio existencial não temos mais neuroses, mas sim a manutenção da razão em
sua plena função. Neste caso, o sentido transcendental da vida traz paz até no holocausto, e o homem se
mantém homem mesmo em situação extrema de privação. Não devemos apreender, em Frankl pelo
menos, espiritualidade como religião, no entanto devemos esvaziar o conceito para que sejamos livres
para continuar. Estamos no campo da noológica – disciplina cujo objeto material é o facto psíquico e que
etimologicamente conecta o Lógos ao espírito. O objeto formal é esse facto psíquico examinado pelo
campo antropológico e da noesis humana – habilidade humana de sentir e perceber algo em sua
imediatez. Em suma, a noesis, pela fenomenologia, é o acto de tomar a consciência. Kant irá se utilizar do
termo noologia para explicitar pensadores racionais na Crítica da Razão Pura:

A respeito da questão sobre a origem do conhecimento – se ele deriva da razão, ou da experiência


– Aristóteles pode ser considerado como o chefe dos empiristas e Platão dos noologistas. Sendo
assim, John Locke seguiu Aristóteles e Leibniz seguiu Platão. - Kant, Immanuel (2009). Crítica da
Razão Pura (em inglês) reimpressão ed. [S.l.]: Cosimo. p. 211.

Quando eliminamos arestas e removemos os ruídos, o sistema de Kant e Frankl são similares. Em ambos,
o homem observa um fenômeno, objetifica-o, suas instâncias de entendimento capturam-no, formando
juízos e fornecem esse material coletado e refletido para o sujeito – o sujeito transcendental. Podemos
dizer que no caminho, Frankl utiliza-se de uma fenomenologia de Husserl no que tange significados e sua
importância para a constituição desse homem auto-transcendente, mas não o suficiente para
comprometer coisa alguma em relação ao aspecto kantiano. Extrapolando um pouco mais na reflexão, o
sistema de auto-transcendência de Frankl tem um quê de filosofiana hegeliana, mas para isso devemos
remover o Espírito absoluto, ou pelo menos, substituir pelo homem em potência que será acto após o
tempo ser capilarizado pela existência. Contudo é óbvio que ao fazer isso, destruiremos todo o idealismo
absoluto de Hegel – mesmo que o signo semiótico do Espírito Absoluto seja interessante em seu caráter
de potência em si que tem a intenção de conhecer-se através da objetivação do seu próprio Ser pelo Lógos
em que a materialidade do tempo e da história são palco para o desenvolvimento da Idéia.

O homem e suas crenças. Estas foram construídas desde a mais tenra idade, e possuem uma força
formidável que as mantém bem alimentadas através da fonte que é o inconsciente. Quando o homem
deixa de ser passivo, a razão passa a captar a realidade para justificar essas crenças, pois harmonicamente
não quer se destruir. Existe uma ordem no universo, não o caos. A psiquê não deseja a negação dela
mesma, ela exige conforto do seu sujeito. Se Leibniz postula que o universo funciona harmonicamente
dentro de um conjunto de possibilidades, se segue que é aceitável que compreendamos que, se ele estiver
certo, nós funcionemos de tal modo também. Há uma harmonia no intelecto humano que mantém seu
sujeito ao longo do tempo seja por princípio da unidade, seja por conectividade psicológica, pelo conceito
de substância em Aristóteles, de consciência da coisa que pensa em Descartes, pela perpetuabilidade da
conatus e os afetos em Espinosa, na relação id-ego-super-ego de Freud, nos juízos e as categorias do
entendimento em Kant, no sujeito significante de Husserl ou em Leibniz pela a harmonia e graça que são
fornecidas como dádivas ao universo como ente metafisicamente vivo – suas Mônadas.
O que podemos extrair de conteúdo reflexivo desses filósofos anteriormente citados, Frankl, Brenner,
entre outros é que o problema da teodicéia é inútil e não estrutura de nenhuma forma uma resposta real
e efetiva a fim de dar conta da realidade, dos actos humanos e da ausência de Deus. O que aparenta é que
o criador utilizou seu intelecto para trazer à existência um mundo necessário dentro ofertas de mundos
contingentes. E seguindo o pensamento de David Hume, não é porque algo foi dado no passado que
podemos inferir que será dado no futuro necessariamente, mesmo que exista a chance disso acontecer.
Além disso, se as nossas escolhas já foram previamente pensadas, logo quem as pensou não precisa agir
na história desse mundo contingente, uma vez que, na sua concepção já foi visto o que seria. Portanto,
por que trazemos Deus para a nossa mesa filosófica sempre que temos um problema? O que aparenta é
que o homem, mesmo com toda a idade evolucionária que tem, ainda é uma criança metaforicamente.
Criança esta que diz-se criança quando convém, porém diz-se adulto quando é viável. A Filosofia, seja na
época medieval – em que assuntos teológicos eram de natureza filosófica – seja atualmente deve tratar
de assuntos do homem. É simplesmente imaturo andarmos pelas ruas da existência nos auto-entitulando
donos de nós mesmos e do mundo, e depois, ao primeiro tsunami causado por alterações derivadas de
ações que tomamos previamente, perguntamo-nos por que Deus não nos ajuda.

Comecemos por investigar as razões pelas quais somos feitos e suas implicações através do pensar
filosófico. Sem importar ou exportar a moral e a epistemologia, contudo mantê-las sob o domínio e poder
do próprio homem cujo resultado pode ser considerado meritocrático verdadeiramente. Com grandes
poderes se vem grandes responsabilidades. No momento em que nos colocamos em posição de poder
absoluto, devemos ser responsáveis pelas consequências dessa posição. Utilizando-me novamente da
filosofia hegeliana e seu progresso otimista, se o homem é um facto histórico e a relação da evolução do
Lógos na história ocorre através do homem, então estruturas como teodicéias deveriam ter sido
ultrapassadas – assim como a compreensão do mal, não mais ingenuamente como a ausência do bem
defendida por filósofos medievais, mas como instância da própria extensibilidade da vontade do homem
pela relação causa-efeito.

As crianças nascem absolutamente dependentes e devem evoluir. Com o passar espera-se evolução
necessariamente pela consolidação de conceitos e sensações que a existência proporciona. Conforme o
tempo age, a dependência deve diminuir e a liberdade é aberta de forma inversamente proporcional.
Utilizando-me da linguagem freudiana, Deus como superego na figura paterna se afasta para que o homem
possa agir. Ao invés de perguntar onde estava Deus, deveríamos nos perguntar onde estávamos nós.
Paremos de instanciar a moral externa, e olhemos para nós mesmos a fim de demonstrar uma moral
interna que é responsável e ciente do que acontece no mundo. Onde estava a moral do homem, que em
sua liberdade, não manteve a ordem do mundo? A responsabilidade de ser, em Leibniz, é compartilhada
no ser de cada Mônada, de cada estrutura vivente. Assim o esquema se dá ao homem também. Tal é a
Mônada, tal é o homem. Devemos ser responsáveis pelo mundo contingente que nos foi dado, pois ele é
o melhor que podemos ter. A ação da operação inicia quando a criação termina. A obra do melhor mundo
possível é entregue na transformação da potência em acto, e deve continuar, deste ponto em diante, como
ação contínua. O movimento imperativo deve ser posto na existência de novo e de novo na forma da
renovação temporal a fim de estruturar sua continuidade. O nunc fluens começa quando o nunc stans
entrega à realidade a natureza de uma particularidade do tempo perpétuo pleno em sua universalidade.
A teodicéia não faz diferença assim como o nazismo não fez diferença aos dilemas filosóficos morais
humanos conforme as pesquisas previamente mencionadas neste ensaio. Somos o que somos por
acreditar no que acreditamos. À luz de Hume, criamos pseudo-necessidades através do hábito e crença.
Estas fincam em nosso “Eu” de tal modo que não conseguimos seguir sem elas. Construímos tudo em cima
destas. Mas qual a finalidade que permeia tudo isso? O próprio homem e seu “Eu”. O homem é fim em si
mesmo. Ele não necessita de metafísicas para virtualizar sua existência, ele significa a si mesmo pela
realidade dos fenômenos. O imperativo de agir é essencial para a construção de um novo homem à luz de
Nietzsche. Deus só está morto se pudermos seguir sem os axiomas referentes a Ele que criamos. Um
homem só é livre quando mata seu pai, quando se torna simultaneamente referência de si para si através
de si, quando larga as correntes da dependência intelectual. Um homem só é verdadeiramente livre
quando se vê não-dependente de estruturas previamente construídas. A liberdade em Kant é dada não
pelo que se deseja fazer. Isto seria dependência do desejo. Somos livres quando não projetamos nossa
existência para outra existência por carência. Só seremos verdadeiramente livres quando formos capazes
de atribuir as consequências dos actos, que deliberadamente trouxemos à existência, à nossa própria
responsabilidade. Entender que o melhor mundo possível não depende de ninguém além do próprio
homem. Este que é capaz de pensar, conjeturar, julgar, agir, criar, moldar e manter o mundo conforme sua
própria razão, consciência e transcendência não mais ao externo, mas sim uma transcendência de si para
si através de si.

O homem deve instrumentalizar o nunc fluens através do seu ser – seja o que isso for. Ao homem só é
dado o nunc fluens, então o imperativo é que se trabalhe sobre esta realidade e que deixemos as
implicações do nunc stans por enquanto ao menos. Ainda temos muito a desenvolver no presente que
fluí. Foquemos nisto primeiro. Sejamos inspirados por Descartes em seu método para resolver problemas
complexos – cortemo-lo em partes. E tudo que o homem é, ele o é por transbordar seus conceitos em
instâncias que lhe são externas, todavia a ele retornam na forma de retroalimentação de seus significados
constituintes a partir dos fenômenos. Quando o homem evoluir sua consciência a este expoente deixará
de projetar suas carências, portanto, teodicéias serão reflexões menores ou inexistentes dentro da
Filosofia.

Professor Pedro Alves, espero que tenha gostado do ensaio. Caso tenha ou não tenha, agradeceria se puder fazer comentários
sobre o que está bom e críticas construtivas no que eu posso melhorar. Tentei usar no ensaio todo o conhecimento passado nesses
3 semestres. Sei que ousei por abordar temas centrais de seu âmbito de expertise, mas fui conduzido a isso devido as leituras que
fiz. Por isso, provavelmente, tenha errado ao reduzir algum conceito complexo. Faz parte do risco de escrever.

Caso tenha tempo para me enviar um email com os comentários do que eu fiz bem e do que eu não fiz bem, segue meu email:
Lsabino@outlook.com ou sabino@edu.ulisboa.pt.

Muito obrigado pelo semestre! Não torço para que não tenha o seu merecido sabático, mas espero o senhor em Ética e Teorias da
Justiça para o ano se assim for!
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

______. ABRIL CULTURAL (org.) Os Pensadores: Sir Isaac Newton – G. W. Leibniz. São Paulo: Abril Cultural,
1974.

Brenner, Reeve Robert. (2014). The Faith and Doubt of Holocaust Survivors.
https://books.google.pt/books?id=CfH-AgAAQBAJ&

FINGUERMAN, ARIEL. (2008). A teologia judaica do holocausto [Tese de doutoramento, Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8152/tde-12012009-172012/publico/ARIEL_FINGUERMAN.pdf

Frankl, V. E. (2012). Logoterapia e análise existencial: textos de seis décadas. Rio de Janeiro, RJ: Forense
Universitária.

Frankl, V. E. (2018). Em busca de sentido. (43ª ed.) Editora Sinodal: Vozes. (Trabalho original publicado em
1984).

FRANKL, Viktor E. (2015) O Sofrimento de Uma Vida Sem Sentido: Caminhos Para Encontrar a Razão de
Viver. Tradução Karleno Bocarro. São Paulo: É Realizações.

FREUD, Sigmund. O ego e o id, 1923. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).

FREUD, Sigmund (1996). O futuro de uma ilusão. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud:
edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago.

LEIBNIZ, G.W. (2004), Discurso de metafísica e outros textos, trad. LACERDA, T., M., CHAUI, M., & BONILHA,
A., São Paulo Martins Fontes, São Paulo.

LEIBNIZ, G. W. (2013), Ensaios de Teodicéia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem
do mal, trad. PIAUÍ, W., & SILVA, J.,São Paulo.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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