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F Informativa -- 09/05/2022

Módulo 6 – A ação humana e os valores

Tema: A dimensão religiosa-Problema do mal- Leibniz

Leibniz introduziu o termo “teodiceia” a partir das raízes gregas teo, “Deus”, e dikê,
“justiça”. Uma teodiceia é uma tentativa de mostrar que a justiça divina é compatível
com o mal. Ora, Leibniz considera que da conceção teísta de Deus se conclui
corretamente que esta é uma divindade absolutamente perfeita: é maximamente
grandioso, como Anselmo também pensava. Mas Leibniz tem plena consciência de que
nem sempre há uma grandiosidade máxima, ou absoluta, tal como não existe um
número par que seja o maior de todos. Contudo, ele pensa que a divindade teísta tem
nesse grau máximo todas as características que não é contraditório considerar que têm
um máximo.
A ideia de Leibniz é que não há um número par que seja o maior de todos porque a
consideração dessa hipótese rapidamente conduz a uma contradição. Imagine-se que n é
por definição esse tal número par maior de todos. Mas n + 2 é outro número par,
certamente, e ainda maior que n. Logo, n é e não é o maior de todos. Chegámos a uma
contradição, e isso significa que a hipótese inicial era falsa — não existe o número par
maior de todos.
Contudo, Leibniz pensa que noutros casos, como no conhecimento, não se chega a esta
contradição. Ele pensa que a hipótese de um conhecimento maior que o qual nenhum
outro pode ser pensado não conduz a uma contradição — e por isso existe esse
conhecimento máximo. E essa é precisamente uma das características da divindade
teísta — é omnisciente, em absoluto, no sentido de ter o conhecimento mais perfeito ou
completo de todos. Eis as palavras do próprio Leibniz: 
A noção de Deus mais comummente aceite e a mais significativa que temos expressa-se
muitíssimo bem nestes termos: que Deus é um ser absolutamente perfeito; mas as
consequências disto não foram suficientemente bem pensadas. Para ir um pouco mais
longe é de notar que há várias perfeições completamente diferentes na natureza, que
Deus as tem todas em conjunto, e que cada uma lhe pertence no mais alto grau. É
também necessário entender o que é uma perfeição. Eis um indicador fidedigno: uma
forma ou natureza que não possa ser tomada no seu mais elevado grau não é uma
perfeição — por exemplo, a natureza do número ou da figura. Pois o maior de todos os
números (ou melhor, o número total de todos os números), tal como a maior das figuras,
implica uma contradição, ao passo que o maior conhecimento, e omnipotência, não
envolvem qualquer impossibilidade. Logo, o poder e o conhecimento são perfeições, e
na medida em que pertencem a Deus, são ilimitadas. (Leibniz, Discurso de Metafísica,
§1)
Assim, Leibniz considera que a divindade teísta tem no máximo grau todas as
características que é logicamente possível ter nesse grau. Não tem no máximo grau a
característica de ter a maior dimensão, porque é contraditório pensar que uma entidade
seja a maior de todas as possíveis — há sempre outra entidade possível ainda maior.
Porém, Deus tem o poder, o conhecimento e a bondade no maior grau porque, pensa
Leibniz, não é contraditório imaginar tal coisa.
Precisamente porque Deus é perfeito, pensa Leibniz, o Universo que criou é o melhor de
todos os possíveis. É isso que significa a sua conhecida expressão “O melhor de todos
os mundos possíveis”. Leibniz pensa que o Universo que Deus criou é o melhor que
poderia ser criado precisamente porque Deus é perfeito: é omnipotente, e por isso pôde
criar o melhor Universo; é omnisciente, e por isso sabia como criá-lo; e é sumamente
bom, e por isso queria criar o melhor Universo. E, portanto, criou-o.
Como explicar, porém, a existência de males aparentemente gratuitos?
Leibniz considera que os males que nos parecem gratuitos não o são de facto. São
características indissociáveis de bens que Deus promove. Do mesmo modo que Deus
não pode fazer o maior número par — porque isso é logicamente impossível — também
não pode criar um universo maximamente perfeito sem criar ao mesmo tempo coisas
que, aos nossos olhos, nos parecem males gratuitos, apesar de não o serem de facto.
Leibniz usa duas analogias para explicar o que tem em mente.
Considere-se qualquer quadrado com dois centímetros de lado. O quadrado é
matematicamente perfeito, no sentido em que cada lado é rigorosamente igual aos
outros três, assim como os seus ângulos; e a área do quadrado exprime-se também de
uma maneira matematicamente perfeita: 2 cm × 2 cm = 4 cm2. Porém, não há maneira
de criar este quadrado sem ao mesmo tempo criar a imperfeição da hipotenusa dos dois
triângulos em que o quadrado se divide. A linha diagonal que une os vértices opostos do
quadrado é incomensurável relativamente à dimensão dos lados do retângulo. É isto que
se sabe pelo teorema de Pitágoras: o quadrado da diagonal é igual à soma do quadrado
dos dois lados. Mas isto significa que a diagonal não tem qualquer medida perfeita. O
quadrado da diagonal tem 22 + 22 = 8 cm, o que significa que a diagonal em si é igual à
raiz quadrada de oito: 2,82842712475… Ou seja, não há qualquer número perfeito que
seja a medida da diagonal. Assim, ao criar a figura perfeita do quadrado, Deus cria
também o que parece uma imperfeição gratuita. Mas não é gratuita; é uma condição da
existência do próprio quadrado. Eis as palavras de Leibniz:
Não é verdadeiro que se a ordem das coisas, ou a sabedoria divina, exigiu que Deus
fizesse quadrados perfeitos, então Deus, tendo resolvido fazê-lo, não poderia deixar de
fazer linhas incomensuráveis, apesar de terem a imperfeição de não poderem ser
expressas de maneira exata? Pois um quadrado não pode deixar de ter uma diagonal,
que é a distância dos seus ângulos opostos. (Leibniz, “Diálogo sobre a Liberdade
Humana e a Origem do Mal”, pp. 116–117)
A segunda analogia de Leibniz é a ideia de que quando os seres humanos vêem apenas
uma parte insignificante da realidade, ficam com a ilusão de estar a ver males gratuitos;
na verdade, são componentes fundamentais de bens mais grandiosos que Deus criou. O
mesmo acontece se um ser humano estiver perante uma pintura maravilhosa, mas que
mede tantos quilómetros que os seres humanos só são capazes de ver as partes que têm
sombras e outros aspectos que não parecem belos — mas que fazem parte de uma
totalidade de beleza superlativa. Eis as suas palavras:
Acredito que Deus criou coisas em perfeição última, apesar de não nos parecer isso
ao considerar partes do Universo. É um pouco como o que acontece na música e na
pintura, pois as sombras e dissonâncias melhoram verdadeiramente as outras
partes, e o autor sábio de tais obras obtém destas imperfeições particulares um
benefício tão grandioso para a perfeição total do seu trabalho que é muito melhor
dar-lhes espaço do que tentar passar sem elas. Assim, temos de acreditar que Deus
não teria permitido o pecado nem teria criado coisas que sabe que irão pecar, se
não tivesse obtido delas um bem incomparavelmente maior que o mal que daí
resulta. (Leibniz, “Diálogo sobre a Liberdade Humana e a Origem do Mal”, pp.
115)
Em suma, Leibniz considera que não há afinal qualquer mal gratuito. Os muitos males
que parecem fazer parte do Universo são afinal constituintes de bens muitíssimo mais
importantes. Leibniz admite, pois, que existem males, mas nega que sejam gratuitos —
e é por isso que são compatíveis com a bondade, omnipotência e omnisciência de uma
pessoa divina que criou o Universo e tudo o que ele contém. Contudo, o conhecimento
imperfeito dos seres humanos não lhes permite ver a totalidade do Universo, e por isso
não vêem os bens associados aos males a que assistem; e é por isso que lhes parece
erradamente que são gratuitos.

Terá Leibniz razão?


A primeira dificuldade da posição de Leibniz é que a sua resposta ao problema lógico
do mal limita-se a explicar genericamente, mas não em particular, como os males são
compatíveis com a divindade teísta. Considere-se um caso particular de sofrimento: uma
criança de cinco anos, com uma doença grave e incurável, morre, depois de dois anos de
sofrimento intenso. Não só sofreu ela, como sofreram os pais e familiares da criança,
assim como os seus amigos; além disso, foram gastos recursos imensos que poderiam
ter sido usados para fazer coisas criativas, como pintar quadros, praticar desportos ou
escrever sonatas. Leibniz não nos diz em pormenor qual é o bem maior do qual todo
este sofrimento é uma componente fundamental. Claro que podemos imaginar alguns
desses bens: o estoicismo da própria criança, a abnegação dos pais e familiares, o
profissionalismo e empatia profunda de médicos e enfermeiros. Contudo, é pura e
simplesmente falso que, do nosso ponto de vista, estes bens superem o mal daquele
sofrimento — basta pensar que nenhum progenitor que não seja perverso provocaria
aquela doença no seu filho só porque daí resultam alguns bens. 
Esta dificuldade, porém, tem uma resposta óbvia da parte de Leibniz. Claro que não
sabemos em pormenor quais são os bens maiores que fazem parte dos males que nos
parecem gratuitos, diria ele; não o sabemos porque somos limitados. Porém, dado que se
prova facilmente que a divindade teísta é logicamente incompatível com males
gratuitos, levar a sério a existência dessa divindade obriga a levar a sério a ideia de que
não há realmente males gratuitos. Esta ideia tem de ser levada a sério, por mais que isso
nos pareça estranho e por mais que sejamos incapazes de explicar em pormenor que
bens são esses que são constituídos por males aparentemente gratuitos. Tem de ser
levada a sério porque não há outra maneira de tornar a divindade teísta compatível com
o mal.
A primeira dificuldade recebe uma resposta óbvia, e perfeitamente razoável, mas acaba
por levantar uma dificuldade muitíssimo mais importante e aparentemente fatal.
Muito humildemente, Leibniz considera que somos demasiado limitados para saber em
pormenor quais são os bens que superam e tornam necessários os males evidentes.
Porém, se somos limitados para saber isso, também somos limitados para saber se Deus
existe ou não. É incoerente, ou pelo menos arbitrário, aceitar que não há a possibilidade
de erro quando consideramos que sabemos que Deus existe, mas que somos demasiado
limitados para saber quais são os bens que dão sentido aos males e os anulam. Ou
somos demasiado limitados nos dois casos, ou em nenhum, porque é tão difícil saber se
Deus existe, como difícil é saber quais são os bens que superam e anulam os males
evidentes, caso Deus exista.
Em suma, a resposta de Leibniz ao problema do mal parece epistemicamente incoerente,
ou pelo menos arbitrária.
A resposta de Leibniz ao problema do mal está longe de ser satisfatória. Mostrar a
compatibilidade lógica entre a existência de males aparentemente gratuitos e a
existência da divindade teísta é um exercício frívolo porque com suficiente imaginação
consegue-se defender que quaisquer duas coisas aparentemente incompatíveis são afinal
perfeitamente compatíveis. Quem quiser continuar a insistir que a Terra está imóvel no
centro do Universo, consegue continuar a insistir que as observações e medições
aparentemente incompatíveis com essa hipótese são afinal perfeitamente compatíveis. É
preciso ter a boa vontade de considerar as duas hipóteses de maneira imparcial, para
determinar então qual é a mais razoável face ao que sabemos ou temos boas razões para
pensar que sabemos. E foi isso precisamente que Leibniz não fez

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