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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS


Programa de Pós-Graduação em Direito

Bruno Rodrigues Leite

O MANDADO DE SEGURANÇA COMO PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAL DE


EXECUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS LÍQUIDOS E CERTOS DA
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Belo Horizonte
2016

Bruno Rodrigues Leite

O MANDADO DE SEGURANÇA COMO PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAL DE


EXECUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS LÍQUIDOS E CERTOS DA
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito.

Orientador: Dr. Ronaldo Brêtas de Carvalho


Dias

Área de concentração: Direito Processual







Belo Horizonte
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Leite, Bruno Rodrigues


L533m O mandado de segurança como procedimento constitucional de execução
dos direitos fundamentais líquidos e certos da população em situação de rua /
Bruno Rodrigues Leite. Belo Horizonte, 2016.
205 f.

Orientador: Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias


Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito.

1. Pessoas desabrigadas – Direitos fundamentais. 2. Mandado de segurança.


3. Estado democrático de direito. 4. Direitos e garantias individuais. 5. Certeza. I.
Dias, Ronaldo Brêtas de Carvalho. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 342.76

Bruno Rodrigues Leite

O MANDADO DE SEGURANÇA COMO PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAL


DE EXECUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS LÍQUIDOS E CERTOS DA
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito.

_________________________________________________________________________
Professor Doutor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (Orientador) – PUC Minas

_________________________________________________________________________
Professor Doutor Gregório Assagra de Almeida – Universidade de Itaúna

_________________________________________________________________________
Professor Doutor André Cordeiro Leal – PUC Minas

_________________________________________________________________________
Professor Doutor Adilson de Oliveira Nascimento – PUC Minas

Belo Horizonte, 8 de março de 2016.



À memória de Tereza Guimarães Reis Leite e João Henrique Antunes da Costa,


fontes de bênçãos em vida e, agora, de eternas saudades

AGRADECIMENTOS

Às pessoas em situação de rua, por sempre gritarem para quem tem ouvidos.
Aos meus pais Cláudio e Neuza, pelo amor sem medidas e, principalmente,
pelo exemplo de vida. Aos meus irmãos Leonardo e Michel, pelo companheirismo e
amizade. À minha namorada Priscila Silveira, pelo apoio e carinho incondicionais.
Ao orientador Professor Brêtas, pelas lições, incentivos e indispensável
amparo na pesquisa e elaboração dessa dissertação. Eis aqui os alicerces da
catedral científica interminável que o senhor me exortou a construir. Ao Professor
Rosemiro, pelas inestimáveis aulas, arguições e pela teoria que elaborou e serve de
referencial teórico para o presente trabalho. Ao Professor André Leal, maior
incentivador e destinatário da minha gratidão. Aos demais professores do Programa
de Pós-Graduação em Direito, Vicente de Paula Maciel Júnior, Dierle Nunes, Lucas
Gontijo, Bruno Wanderley Júnior e Lusia Ribeiro Pereira, pelos ensinamentos.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Direito e da Biblioteca
Pe. Alberto Antoniazzi, pelo trabalho diário sem qual o ensino não seria possível.
Aos amigos do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas,
especialmente Alexandre Ferrer, Pedro de Abreu Peixoto, Francisco Dourado, Fábio
Roque, Lauro Mendonça, André Del Negri, Igor Soares, Flávia Penido, Jordânia
Gonçalves, Gil Morato, Luiz Sérgio dos Santos e Evelyn Mendonça.
Aos companheiros de pesquisa no grupo Trabalho da População em Situação
de Rua do Programa Cidade e Alteridade, especialmente Egidia Maria de Almeida
Aiexe, Ana Paula Santos Diniz e Ely Fernandes, pela sincera amizade, apoio,
reflexões e trabalho de campo.

“OUTRO: Ora!… Quem é que precisa de um mendigo?


MENDIGO: Todos! Eles precisam muito mais de nós, do que nós deles. O mendigo
é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: ‘Quem dá aos
pobres, empresta a Deus’, confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a
Deus… Não há generosidade na esmola: há interesse. Os pecadores dão para
aliviar seus pecados; os sofredores, para merecer as graças de Deus. Além disso, é
com a miséria de um níquel que eles adiam a revolta dos miseráveis…
OUTRO: Mas quando agradecem a Deus, revelam o sentimento de gratidão.
MENDIGO: Não há gratidão. Só agradece a Deus quem tem medo de perder a
felicidade. Se os homens tivessem certeza de que seriam sempre felizes, Deus
deixaria de existir, porque só existe no pensamento dos infelizes e dos temerosos da
infelicidade. Quem dá esmola pensa que está comprando a felicidade, e os
mendigos, para eles, são os únicos vendedores desse bem supremo.
OUTRO (Desanimado): A felicidade é tão barata…
MENDIGO: Engana-se. É caríssima. Barata é a ilusão. Com um tostãozinho,
compra-se a melhor ilusão da vida, porque quando a gente diz “Deus lhe pague…”,
o esmoler pensa que no dia seguinte vai tirar cem contos na loteria… Coitados! São
tão ingênuos… Se dar uma esmola, um mísero tostão, à saída de um “cabaret”,
onde se gastaram milhares de tostões em vícios e corrupções, redimisse pecados e
comprasse a felicidade, o mundo seria um paraíso! O sacrifício é que redime.
Esmola não é sacrifício! É sobra. É resto. É a alegria de quem dá porque não
precisa pedir”1

“Tu, caro amigo,


Que tão elegante és
O que faria se não tivesses nada a teu pés?
Se fosse a pedir esmolas?
A vagar pelas esquinas perdido
Sem um olhar amigo?
Tendo como moradia
As praças frias, pontes amargas e ásperas escadas?
O que farias?
Diz-me!
Coloca-te no lugar deles.
Imploro-te!
Pensa e sofre como eles,
E asseguro-te
A indiferença
Não mais faria morada
Em teu coração”2


1
CAMARGO, JORACY. Deus lhe pague, p. 4-5.
2
MENEZES, Letícia Lima de Aguiar. Trocas.

RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo estudar a utilização do procedimento do


mandado de segurança na execução dos direitos fundamentais líquidos e certos da
população em situação de rua segundo o marco teórico da teoria neoinstitucionalista
do processo. Não obstante a Constituição de 1988 disponha sobre o princípio da
aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais, a população em situação de rua é privada da fruição jurídico-
econômica. Grande parte da doutrina brasileira ainda trabalha com ideologias que
reforçam o autoritarismo dos juízes em detrimento do ordenamento jurídico e da
participação da população em situação de rua na elaboração das decisões
jurisdicionais, postergando indefinidamente a conformação da realidade ao Estado
Democrático de Direito. Nesta pesquisa, a liquidez é interpretada como
autoexecutividade e a certeza como infungibilidade do direito e não como provas
documentais pré-constituídas e indubitáveis a serem manejadas pelo juiz. A
população em situação de rua é problematizada como sujeito de direito apto a
executar os seus direitos fundamentais com utilização do mandado de segurança e
não como destinatários afônicos das decisões judiciais. O mandado de segurança é
teorizado como instituto constitucional que se define pela conjunção dos princípios
da ampla defesa, isonomia, contraditório e da aplicabilidade imediata das normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais.

Palavras-chave: População em situação de rua. Mandado de segurança. Estado


Democrático de Direito. Teoria neoinstitucionalista do processo. Liquidez e certeza.

ABSTRACT

This research aims to study the use of the procedure of writ of mandamus in the
execution of liquids and certain fundamental rights of the homeless according to the
theoretical framework of neo-institutionalist theory of the process. Despite the
Constitution of 1988 provides the principle of immediate applicability of the norms
defining fundamental rights and guarantees, homeless is deprived of the legal and
economic fruition. Much of the brazilian doctrine still works with ideologies that
reinforce authoritarianism of the judges to the detriment of law and the participation
of homeless in the preparation of judicial decisions, indefinitely postponing the
conformation of reality to the Democratic Rule of Law. In this research, liquidity is
interpreted as self-executive and certainty as unexchangeable of right rather than as
pre-made documentary evidence and undoubted to be handled by the judge. The
homeless is thought as subject of law able to perform their fundamental rights using
the writ of mandamus and not as aphonic recipients of judgments. The writ of
mandamus is theorized as a constitutional institute that is defined by the conjunction
of the principles of legal defense, isonomy, contradictory and immediate applicability
of the norms defining fundamental rights and guarantees.

Keywords: Homeless. Writ of mandamus. Democratic Rule of Law. Neo-


institutionalist theory of the process. Liquidity and certainty.

SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................................. 17

CAPÍTULO 1: A TEORIA NEOINSTITUCIONALISTA DO PROCESSO COMO


CONJECTURA PARA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ........ 21
1. A influência decisiva do racionalismo crítico popperiano ................................ 21
2. Estado Democrático de Direito: promessa, realidade ou projeto? ................... 39
3. Processo como espaço metalinguístico de construção de significados ......... 48
4. Cidadania: um termo equívoco ............................................................................ 54
5. Judicialização ou processualização? .................................................................. 59

CAPÍTULO 2: PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA ..................................................... 67


1. Delimitação ............................................................................................................ 67
2. Situação de exclusão ............................................................................................ 73
3. Cidadania. Legitimidade ativa para ajuizar procedimentos judiciais ............... 84
4. Violência simbólica e a infantilização da pessoa em situação de rua .............. 85
5. Homo sacer e o processo como profanação ...................................................... 92

CAPÍTULO 3: HIPÓTESES SOBRE O MANDADO DE SEGURANÇA E A


EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS AOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS ...................................................................................................... 103
1. A eficácia das normas constitucionais ............................................................. 104
1.1 Aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais ................... 107
2. A liquidez e certeza dos direitos ........................................................................ 117
2.1 Como atributos conferidos pelo juiz ao direito pleiteado no mandado
de segurança e como necessidade de prova documental indubitável e pré-
constituída ............................................................................................................... 118
2.2 Como sinônimo, espécie ou reforço de expressão da certeza ..................... 125
2.3 Como atributos dos fatos e dos direitos ......................................................... 126
2.4 Como condições ou matéria do mérito ........................................................... 127
2.5 Na teoria neoinstitucionalista do processo .................................................... 129
3. Aplicação de casos concretos ........................................................................... 137

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 181

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 191




Introdução

“O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser


acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao
examinar mais de perto o porteiro, com seu casaco de pele, o grande nariz
pontudo e a grande barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor
3
aguardar até receber a permissão de entrada”.

A parábola “Diante da lei” de Franz Kafka, cujo trecho foi transcrito acima,
pode ser imaginada em ambiente físico que abriga a porta, lei, porteiro, camponês e
banquinho no qual ele se senta e espera inutilmente a permissão para a entrada na
lei.
Esta dissertação trata do mandado de segurança como procedimento
constitucional para a execução dos direitos fundamentais líquidos e certos das
pessoas em situação de rua pela autoinclusão em espaços processualizados de
construção de significados e defende a utilização da hermenêutica isomênica para a
destituição da figura da auctoritas do âmago do processo.
A pessoa em situação de rua não deve esperar a permissão para a entrada
na lei, pois a sua autoinclusão já lhe é assegurada independentemente da
permissão do porteiro controlador que se coloca, junto com o camponês, também
fora da lei.
Dessa maneira, a pessoa que está em situação de rua passa de mero
destinatário afônico e errante da lei, sentença judicial ou qualquer outra decisão
jurisdicional, legislativa e administrativa para ser o construtor do mundo no qual vive.
A autonomia na construção dos significados do seu mundo deve ser feita em
espaços processualizados nos quais a precariedade das condições
socioeconômicas da parte litigante não influencie no direito de interpretação do
ordenamento jurídico.
Antes de aplicar o direito, é necessário que o direito seja teorizado e que as
possíveis consequências positivas ou negativas sejam antecipadas. Aplicar o direito,
para só depois teorizá-lo (rectius: dogmatizá-lo) é temeridade, pois tende a
reproduzir indefinidamente a realidade, sem a eliminação de erros e adequação da
realidade ao princípio do Estado Democrático de Direito. Longe de ser ciência, a
dogmática jurídica é forma de dominação e manutenção de privilégios disfarçados
de direitos.

3
KAFKA, Franz. Um médico rural: pequenas narrativas, p. 23.


Por isso, antes de abordar a utilização do mandado de segurança, é


necessário que se pesquise o marco teórico utilizado e a própria pessoa em situação
de rua, com o intuito de oferecer as hipóteses aqui delineadas à refutação e evitar
que as pessoas em situação de rua sejam infantilizadas por ideologias que se
autodenominam teóricas e democráticas.
As pesquisas que originaram esta dissertação tiveram começo em 2012, por
ocasião da elaboração da monografia acadêmica para o curso de bacharelado em
Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Estimulado pela boa
receptividade da monografia defendida e aprovada com indicação para publicação
em dezembro de 2013 e pelos incentivos e orientações do orientador acadêmico
André Cordeiro Leal quanto ao estudo do processo para a elaboração de
alternativas viáveis pelas pessoas em situação de rua, o autor desta dissertação
continuou as pesquisas científicas no Programa de Pós-Graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, área de concentração em Direito
Processual e na linha de pesquisa O Processo na construção do Estado
Democrático de Direito. Motivado pela leitura das obras e pelas aulas do orientador
acadêmico Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias e de Rosemiro Pereira Leal, o autor
desta dissertação teve a sua atenção despertada para o estudo do mandado de
segurança como procedimento constitucional para a execução de direitos
fundamentais líquidos e certos das pessoas em situação de rua.
O trabalho como pesquisador no Programa Cidade e Alteridade, frente
Trabalho da população em situação de rua, coordenado por Egidia Maria de Almeida
Aiexe e Ana Paula Santos Diniz, do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais, propiciou as reflexões sobre as pessoas em
situação de rua expostas no segundo capítulo.
Feitas essas observações prévias, a dissertação se estrutura em três
capítulos. No primeiro capítulo, o racionalismo crítico popperiano é abordado para se
compreender que as leis, argumentos das partes no procedimento constitucional e
decisões jurisdicionais, administrativas e legislativas são hipóteses passíveis de
refutação nas conjecturas da teoria neoinstitucionalista do processo.4 Em seguida, o


4
Segundo Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, “a teoria neoinstitucionalista do processo, gerada e
estudada pelo talento, inteligência e invulgar conhecimento filosófico e jurídico de Rosemiro Pereira
Leal, revisitando afirmativas e conclusões secularmente incrustadas na ciência do Direito – e assim
o fazendo de forma rigorosa e inédita – vem exercendo grande influência no pensamento e
formação dos juristas da nova geração, notadamente naqueles que receberam sua qualificada


Estado Democrático de Direito é entendido como projeto constitucional viabilizado


em espaços processualizados nos quais os significados são construídos e não
impostos pela auctoritas. Ao lado disso, o termo cidadania é esclarecido para se
afirmar que a democracia não se restringe à capacidade eleitoral, se estendendo a
participação ostensiva dos sujeitos de direito na condução da própria vida. Ao final,
para se evitar equívocos, a judicialização e o ativismo judicial foram refutados em
prol do entendimento que a execução dos direitos fundamentais líquidos e certos
deve ser processualizada.
No capítulo segundo, é feita a delimitação acerca das pessoas em situação
de rua e críticas à hipótese que considera as pessoas em situação de rua excluídas
da sociedade. Além disso, a cidadania, entendida na vertente da teoria
neoinstitucionalista do processo como direito fundamental de autoilustração sobre os
fundamentos do sistema jurídico, é relacionada com a legitimidade ativa para ajuizar
procedimentos e a violência simbólica é problematizada como fonte e consequência
da infantilização das pessoas em situação de rua. O capítulo é encerrado com a
comparação entre o homo sacer e as pessoas em situação de rua e o entendimento
de que o processo pode ser utilizado para a profanação dos sentidos do
ordenamento jurídico pelos legitimados ao processo.
No terceiro capítulo, o mandado de segurança é focalizado e entendido como
instituto jurídico5 para a concretização dos direitos fundamentais líquidos e certos da
população em situação de rua. Em seguida, a eficácia das normas constitucionais e
a aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais são estudadas para
se fazer incursões na noção de direito líquido e certo indicada pela maioria da
doutrina e pela teoria neoinstitucionalista do processo. Ao seu final, a prova e a
sentença proferida em sede de mandado de segurança foram abordadas segundo a
teoria neoinstitucionalista do processo, apontando para hipóteses que criticam e
superam o protagonismo decisório do juiz.

orientação acadêmica na elaboração dos trabalhos científicos que produziram e publicaram,
atualmente Professores Mestres e Doutores em Direito Processual, dentre os quais podemos
apontar Carlos Walter, Vinícius Lott Thibau, Gustavo de Castro Faria, Andréa Alves de Almeida,
Carlos Henrique de Morais Bonfim Júnior, André Cordeiro Leal, Roberta Maia Gresta e Sílvio de Sá
Batista, dentre muitos outros, motivos pelos quais recomendamos a leitura de suas obras, cujos
temas foram desenvolvidos a partir das concepções da mencionada teoria” (Processo constitucional
e estado democrático de direito, p. 121).
5
Segundo Rosemiro Pereira Leal, instituto é “agrupamento de princípios que guardam unidade ou
afinidades de conteúdos lógico-jurídicos no discurso legal”, instituição é “agrupamento de instituto(s)
e princípio(s) que guardam unidade ou afinidade de conteúdos lógico-jurídicos no discurso legal”
(Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 281).


Por último, em considerações finais, foram elencadas as hipóteses provisórias


obtidas com a pesquisa científica sobre o tema central dessa dissertação, o
mandado de segurança como procedimento constitucional de execução dos direitos
fundamentais líquidos e certos das pessoas em situação de rua.
Nesta segunda década do século XXl, ainda envolto em concepções místicas,
míticas, ideológicas e autoritárias, o direito precisa problematizar os seus próprios
fundamentos e sua aplicabilidade prática para que não repouse em ambientes
herméticos e insondáveis, tal como aquele apresentado por Franz Kafka. Apenas se
os significados da lei forem profanados em ambientes processualizados com a
submissão de todos à ampla defesa, contraditório e isonomia é que se poderá falar
em ciência do direito e não em ideologia do direito.
De nada adiante editar leis, promulgar códigos, escrever livros e artigos se
esses não criticam a realidade cruel que condena ao sofrimento e morte evitáveis
milhares de sujeitos de direito por meio de decisões autocráticas, mas supostamente
democráticas.
Por meio da infantilização, as pessoas em situação de rua são incluídas
nesse extenso rol de condenados sem julgamento, pois a condição de
miserabilidade socioeconômica é utilizada como argumento para a vedação da
interpretação da lei. Assim, ao invés de problematizar a situação de rua com a
pessoa que a vivencia, o Estado prefere tomar as decisões sozinho e impor,
violentamente, os seus objetivos, transformando a pessoa em situação de rua em
homo sacer.
Apenas com o processo constitucional será possível superar essa realidade
opressora e mortífera. Por isso, o mandado de segurança foi problematizado
segundo o marco teórico da teoria neoinstitucionalista do processo e em
conformidade com o Estado Democrático de Direito, oportunizando a construção de
significados pela própria pessoa em situação de rua. Não faltarão outros problemas
advindos das hipóteses formuladas nessa dissertação, mas a melhor solução passa
forçosamente pela participação ostensiva das pessoas em situação de rua.
A presente dissertação vai nessa direção: não pretende oferecer respostas
conclusivas e imutáveis, mas problematizar, no marco da teoria neoinstitucionalista
do processo, a execução de direitos fundamentais líquidos e certos pelas (e não
para as) pessoas em situação de rua com a utilização do procedimento
constitucional do mandado de segurança.


CAPÍTULO 1: A TEORIA NEOINSTITUCIONALISTA DO PROCESSO COMO


CONJECTURA PARA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A teoria neoinstitucionalista do processo contribui para o esclarecimento e


concretização dos direitos fundamentais em conformidade com a Constituição de
1988, retirando o âmbito de criação, interpretação, modificação e extinção das
normas jurídicas da esfera exclusiva dos agentes estatais, em prol da abertura dos
significados do ordenamento jurídico para o povo. Essa conjectura pioneira nas
letras jurídicas nacionais e internacionais permite a problematização da situação de
rua pelos próprios sujeitos de direito que a vivenciam, contribuindo para a correção
gradual e planejada de situações problemáticas e para o ajustamento da realidade
ao Estado Democrático de Direito.
Dessa maneira, o primeiro capítulo aborda a teoria neoinstitucionalista por
dois motivos correlatos, quais sejam, explicitar o marco teórico que orientou esta
pesquisa e definir qual teoria do processo testifica as hipóteses aventadas. Portanto,
a construção do conhecimento baseado em impressões, emoções e ideologias
insuscetíveis à refutação é evitada em prol da abertura para futuras críticas.

1. A influência decisiva do racionalismo crítico popperiano

As conjecturas do racionalismo crítico influenciam a teoria neoinstitucionalista


do processo em larga escala. Karl Popper, apesar de não ser o único representante
do racionalismo crítico, é o seu principal expoente, motivo pelo qual a diálise de suas
hipóteses é o eixo de discussão desse capítulo.6
Segundo Eduardo Neiva, “a filosofia de Popper recebe, por vezes, a etiqueta
de racionalismo crítico” e “o racionalismo crítico estabelece a prioridade da
identificação de erros em teorias com apelo a critérios racionais e empíricos, e sem

6
Sobre o racionalismo crítico, importante fazer duas advertências. A primeira, elaborada por Hans
Albert, indica que “para justificar certas teses e argumentos, todos costumam se referir a Karl
Popper ou, pelo menos, fazer referência a seus trabalhos, apoiando-se neles. É óbvio, no entanto,
que não se pode, de maneira alguma, responsabilizar o próprio Popper pelos resultados de tais
esforços” (ALBERT, Hans. O direito à luz do racionalismo crítico, p. 89). Escrita por Karl Popper, a
segunda advertência revela a sua insatisfação com a denominação racionalismo crítico, pois “tal
nome parece conter o perigo de um novo dogmatismo. Se eu me considerasse um racionalista
crítico, isto poderia talvez levar a um novo dogma. O principal é justamente evitar o dogmático; é a
postura sempre crítica, até mesmo perante ela própria. Mesmo a postura crítica tem suas
limitações. Ela tem, por exemplo, suas limitações com relação à Ética” (POPPER, Karl. O
racionalismo crítico na política: coletânea de ensaios, p. 52).


depender de recurso a argumentos emocionais e psicológicos”.7


Em resumo da sua teoria do conhecimento, filosofia da ciência e filosofia
política, Karl Popper formula três hipóteses, a saber: 1ª.)- “não aprendemos juntando
observações, nem retirando delas o essencial, mas sim ao enfrentarmos os
problemas”; 2ª.)- “uma das teses de minha Teoria Científica é que algo especial é
próprio à Ciência, a saber, a tentativa conscientemente crítica de refutarmos nossas
teorias [...]. A postura crítica torna-se, assim, um instrumento de pesquisa: a crítica é
um instrumento de progresso; é a crítica que distingue a postura científica da
experiência pré-científica [...] a postura crítica permite-nos deixar morrer nossas
teorias em nosso lugar” e 3ª.)- “o verdadeiro perigo do Utopismo é que ele é
dogmático e não crítico. Ele nos coloca um objetivo demasiadamente alto; parte do
pressuposto óbvio e intuitivamente convincente de que este objetivo é sempre certo,
belo e bom, e, quanto mais o Utopismo se propõe este objetivo, menos ele está em
condições de ver que talvez tal objetivo não possa ser realizado. Ou que as
tentativas de realizá-lo possam conduzir a conseqüências indesejáveis. Frente a isso
eu afirmo que devemos ser críticos, justamente porque nossas ações
freqüentemente conduzem à conseqüências inusitadas, a erros imprevistos. Quando
se está consciente disto, pode-se antecipar estas consequências indesejáveis e
prever o que acontecerá; e, desta forma, pode ser evitado o pior destas
conseqüências”.8
Discorrendo sobre a filosofia oracular e a revolta contra a razão, Popper
afirma que o racionalismo é “uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e
a aprender da experiência. É fundamentalmente uma atitude de admitir que ‘eu
posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esfôrço, poderemos
aproximar-nos da verdade’ [...]. O facto de que a atitude racionalista considera o
argumento acima da pessoa que argumenta é de importância de longo alcance.
Conduz à concepção de que devemos reconhecer tôdos aqueles com que nos
comunicamos como uma fonte potencial de argumentação e de informação
razoável”.9
O ato de considerar o argumento e não quem argumenta, em primeiro lugar,
tem importância fundamental na teoria neoinstitucionalista do processo,


7
NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Popper, p. 246.
8
POPPER, Karl Raimund. O racionalismo crítico na política: coletânea de ensaios, p. 51-52.
9
POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos, p. 232, 233.


principalmente com relação à isonomia.


Conforme leciona Rosemiro Pereira Leal, a isonomia é “princípio jurídico-
processual” que torna “possível a igualdade (simétrica paridade) entre os
economicamente desiguais, entre os física e psiquicamente diferentes e entre
maioria e minoria política, ideológica ou social”.10 Desta maneira, os argumentos das
pessoas em situação de rua devem ser considerados como os argumentos de
qualquer outro sujeito de direito. Não há hierarquia interpretativa entre os sujeitos de
direito e o Estado não é detentor de suposta razão primeira e última que relega a
pessoa em situação de rua a posição de mero destinatário (sofredor das
consequências) da norma e da decisão jurisdicional.
Segundo Popper, o racionalismo é irreconciliável com o autoritarismo e
“diametralmente oposto a todos êsses modernos sonhos platônicos de admiráveis
mundos novos em que o crescimento da razão seja controlado ou ‘planejado’ por
alguma razão superior. A razão, como a ciência, cresce por meio da crítica mútua; a
única maneira possível de ‘planejar’ seu crescimento é desenvolver aquelas
instituições que salvaguardem a liberdade dessa crítica, isto é, a liberdade de
pensamento”.11 Nesse sentido, ao ser utilizado o termo racional, deve-se lembrar
das considerações de Andréa Alves de Almeida, para a qual a racionalidade é a
“abertura e submissão incondicional à crítica (racionalismo crítico)”.12
Discorrendo sobre Popper e a filosofia clássica alemã, Gustavo Caponi afirma
que, no racionalismo crítico, “qualquer consenso efetivo e instalado é sempre

10
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 80.
11
Para manter a coerência de suas hipóteses, Popper analisa o pseudo-racionalismo que é a
“crença imodesta nos dotes intelectuais superiores de alguém e a reivindicação de ser um iniciado,
de saber com certeza e com autoridade [...] Êste intelectualismo autoritário, esta crença na posse
de um instrumento infalível de descoberta, esta falha em distinguir entre as capacidades
intelectuais de um homem e o que êle deve aos demais por tudo quanto pode saber ou
compreender [...] é muitas vêzes chamado ‘racionalismo’, mas é diametralmente oposto àquilo a
que damos tal nome”; o irracionalismo, no qual “é a caracterização emocional do homem, e não
sua razão, que determina sua atitude” e em que “é a intuição, a penetração mística na natureza
das coisas, mais do que o raciocínio, o que faz um grande cientista” e, por fim, o racionalismo não
crítico ou compreensivo que pode ser expressado sob a forma do “princípio de que qualquer
suposição que não possa ser sustentada por argumentação ou por experiência deve ser repelida”.
O racionalismo não crítico é logicamente insustentável, pois, segundo Popper, não pode ser
“sustentado por argumentos ou experiência” e a atitude racionalista “não se pode basear no
argumento ou na experiência”, ainda que sejamos “livres de escolher uma forma crítica de
racionalismo, que francamente admita as suas limitações e sua base numa decisão irracional
(admitindo, até essa extensão, certa prioridade do irracionalismo)” (A sociedade aberta e seus
inimigos, p. 234-239).
12
Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística, p. 73. Ainda sobre o tema, Rosemiro
Pereira Leal pontifica que “em Popper, ‘racionalidade’ é sinônimo perfeito de ‘crítico’ que se remete
ao ‘método crítico’ popperiano (teorométodo de tentativas e erros)” (Processo como teoria da lei
democrática, p. 181).


ilegítimo, porque, de fato, funda-se no desconhecimento de elementos que lhe


poderiam ser adversos, e por isso devemos sempre brigar por sua abolição” e “o
racional não é nunca a crença e sim a suspensão da crença; o racional não é nunca
o acordo, e sim a discussão”, concluindo que “essa concepção da racionalidade
como abertura e submissão incondicional à crítica o que, de fato, encontra-se tanto
na base do falseacionismo quanto na base da concepção popperiana da
democracia”. Além disso, o autor assevera que racional é sinônimo de crítico, pois
“ser racional não é outra coisa que submeter-se ao controle crítico de nossos pares,
e ser irracional é pretender fugir desse controle”.13
Por sua vez, Hans Albert destaca três aspectos sobre o racionalismo crítico,
quais sejam: 1º.)- O realismo crítico que “pressupõe a possibilidade principal de um
conhecimento de contextos reais. Ele concebe as ciências reais [...] como disciplinas
cognitivas, cujas ideias reguladoras mais importantes são a verdade, no sentido da
exposição correta, isto é, da explicação adequada, e do progresso do conhecimento
em direção a uma concepção melhor dos contextos reais, a saber, dos respectivos
aspectos interessantes da realidade”; 2º.)- A tese da falibilidade da razão humana
que “se refere à solução de problemas de toda espécie” e rejeita “o racionalismo
clássico, com sua aspiração a uma fundamentação absoluta – precisamente por
causa de suas finalidades utópicas – e, com isso, distancia-se também do respectivo
ideal de ciência, que prevaleceu desde a Antiguidade até os tempos atuais” e “o
ceticismo e o relativismo, como soluções de resignação”; 3º.)- Metodologia que só
“conhece soluções hipotéticas de problemas, as quais podem ser submetidas a
exames críticos”, sendo uma “tecnologia da prática de resolver problemas, que
procede de modo hipotético-dedutivo”.14
Dentro do racionalismo crítico, uma das principais teses de Popper se refere
ao critério de demarcação que procura “traçar uma linha (da melhor maneira
possível) entre as afirmações, ou sistemas de afirmações, das ciências empíricas e
todas as outras afirmações, de caráter religioso, metafísico ou simplesmente
pseudocientífico”, encontrando a solução para o problema da demarcação no critério
da refutabilidade, segundo o qual as assertivas ou sistemas de assertivas, “para
serem classificadas como científicas [...] devem ser capazes de entrar em conflito


13
CAPONI, Gustavo. Popper: as aventuras da racionalidade, p. 37, 40.
14
ALBERT, Hans. O direito à luz do racionalismo crítico, p. 89-91. O que Hans Albert entende por
racionalismo clássico é, para Popper, pseudo-racionalismo.


com observações possíveis ou concebíveis”.15


Segundo Popper, o “conteúdo empírico de uma teoria pode ser medido pelo
número de possibilidades que ela exclui (desde que se adote uma metodologia
razoavelmente não imunizadora)”, isso é, a teoria só será científica se não houver a
possibilidade de explicação de tudo por meio das suas conjecturas e se a teoria, ao
mesmo tempo, se oferecer às críticas.16
Aplicado ao processo constitucional, o critério de demarcação aponta para a
não cientificidade das decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas quando
estas se baseiam em critérios metajurídicos, a saber, na moral, equidade,
ponderação, bons costumes e senso de justiça, pois não há delimitação das
competências do juízo e as decisões jurisdicionais não podem ser refutadas
adequadamente, pois podem abarcar praticamente tudo, até contra legem, em favor
de valores metajurídicos insondáveis que tenham a pacificação social como objetivo.
Para afastar a ideologia e conferir caráter científico às decisões jurisdicionais,
deve ser observado o entrelaçamento dos princípios do juízo constitucional ou juízo
natural, vinculação da jurisdição ao Estado Democrático de Direito, supremacia da
Constituição, reserva legal, devido processo constitucional e da fundamentação das
decisões jurisdicionais que, ao unir as decisões jurisdicionais ao ordenamento
jurídico e ao devido processo constitucional, delimitam o âmbito de atuação do juízo
e permitem a refutação crítica no processo constitucional.17


15
POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações, p. 68.
16
O problema da demarcação, p. 127. O termo conjectura é utilizado no sentido que Popper abordou
as conjecturas científicas, qual seja, “expressão para hipóteses ou teorias científicas”
(Conhecimento objetivo, p. 113).
17
Em capítulo sobre os princípios diretivos da jurisdição no estado democrático de direito, Ronaldo
Brêtas de Carvalho Dias acentua que o princípio do juízo natural é concebido pela doutrina com o
“significado de órgão jurisdicional competente predeterminado ou preestabelecido em lei,
contrapondo-se ao juízo de exceção, este expressamente proibido no texto constitucional”; o
princípio da vinculação da jurisdição ao Estado Democrático de Direito se “origina da ideia de uma
ordem normativa jurídico-fundamental resultante da conexão interna entre democracia e Estado de
Direito, princípios positivamente constitucionalizados, aos quais jungidas todas as funções e
atividades exercidas pelos órgãos do Estado, sem qualquer exclusão (Constituição Federal, artigo
1º)”; o princípio da supremacia da Constituição Federal, cuja observância, “principalmente em
relação às normas constitucionais declaratórias de direitos e garantias fundamentais”, possibilita “o
primado do Estado Democrático de Direito”; o princípio da reserva legal, indicado no artigo 5º,
inciso ll, da Constituição Federal, resulta na “sujeição dos órgãos jurisdicionais às normas que
integram o ordenamento jurídico, sobretudo as normas constitucionais, emanadas da vontade do
povo, porque discutidas, votadas e aprovadas pelos seus representantes, no Congresso Nacional”
para a caracterização da “legitimidade democrática das decisões jurisdicionais”; o princípio do
devido processo constitucional, segundo o qual a “decisão jurisdicional (sentença, provimento) não
é ato solitário do órgão jurisdicional, pois somente obtida sob inarredável disciplina constitucional
principiológica (devido processo constitucional), por meio da garantia fundamental de uma
estrutura normativa metodológica (devido processo legal), a permitir que aquela decisão seja


Dessa maneira, ainda que a decisão jurisdicional se rotule como democrática,


o descompasso entre o método utilizado (procedimento com supressão ou
descaracterização do contraditório, por exemplo) e a teoria do direito democrático
revela a demagogia de funcionários públicos que insistem em tomar decisões
solitariamente e descartar qualquer participação efetiva das partes em prol da
celeridade processual, nomeando de democrático os procedimentos autoritários nos
quais atuam.
Mais especificamente, no mandado de segurança, a hipótese que identifica a
liquidez e certeza do direito à ausência de dúvidas no juiz suscitada pela prova
documental pré-constituída não é científica, pois pode abarcar praticamente todos os
direitos, bastando o juiz estar convencido acerca da existência do direito indicado na
prova documental, inibindo a atividade crítica ao retirar a decisão jurisdicional do
espaço processualizado.
Os órgãos competentes pelo exercício da função jurisdicional serão
instituições de repressão à liberdade de pensamento, com o fito de alcançar a
pretensa celeridade processual, enquanto perpetuem mecanismos procedimentais
de supressão da argumentação, tais como as súmulas vinculantes e as súmulas
impeditivas de recursos.18 Neste sentido, há apenas o crescimento quantitativo do
conhecimento com a vertiginosa prolação de decisões jurisdicionais semelhantes, ao
lado da venda de livros esquemáticos e resumidos que se destinam a reproduzir
conhecimentos ideológicos e não a testificar dogmas e construir hipóteses que
contenham menos erros. Por isso, na concepção da dogmática jurídica, o processo
se reduz a técnica instrumental mortífera, desgarrada da ciência e comprometida
com a manutenção do statu quo e da vedação interpretativa das leis para grande


construída com os argumentos desenvolvidos em contraditório por aqueles que suportarão seus
efeitos, em torno das questões de fato e de direito sobre as quais controvertem no processo” e, por
fim, o princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais que impõe o entendimento segundo
o qual “a fundamentação da decisão jurisdicional, muito longe de surgir apoiada em convicções
pessoais ou em critério salomônicos ou sentimentos vagos de justiça, deverá ser o resultado lógico
da atividade procedimental desenvolvida em torno das questões discutidas e dos argumentos
produzidos em contraditório pelas partes em todas as fases do processo, porquanto são elas, as
partes contraditoras, que suportarão os seus efeitos” (BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias.
Processo constitucional e estado democrático de direito, p. 151, 153, 155, 158-159, 164, 173-174).
18
Seguindo a teoria neoinstitucionalista do processo, Cynara Silde Mesquita Veloso conclui que a
elaboração das súmulas vinculantes não leva em consideração “a epistemologia do Direito
Processual baseada na ciência jurídica e na crítico-jurídico-científica”, ressaltando que, na
perspectiva utilitarista, resultados práticos foram buscados para “a crise da operacionalidade do
Judiciário sem atentar para os princípios do contraditório, da isonomia e da ampla defesa”
(Súmulas vinculantes como entraves ideológicos ao processo jurídico de enunciação de uma
sociedade democrática, p. 346).


parcela dos sujeitos de direito.19


Assim, é necessário que as decisões jurisdicionais sejam tomadas com
observância da metodologia constitucional que permita a participação das partes e a
refutação por meio do exercício do contraditório. Discorrendo sobre a teoria
metodológica e refutação crítica, Rosemiro Pereira Leal afirma que, para Popper,
método é “uma teórica formulação ou reformulação ad-hoc para aumento de
compreensão, clareza ou precisão de um significado e não uma fórmula cabal para
obter compreensão, clareza ou precisão absoluta”.20
O critério de demarcação só é possível com a formulação de hipóteses gerais
e confrontação com as observações possíveis no caso específico. Este método,
denominado hipotético-dedutivo, pode ser resumido da seguinte forma, segundo
Eduardo Neiva: “um ato de imaginação gera uma hipótese, derivada de uma
condição inicial qualquer. Os enunciados que foram alcançados dedutivamente
podem, agora, ser testados. Reveja-se um exemplo dado anteriormente: da
condição inicial ‘O diamante é duro’ deriva-se dedutivamente que dureza implica
resistência ao risco; agora pode-se testar a condição inicial. Se o teste corroborar a
condição inicial, ela mostra-se mais forte e mais próxima da verdade, ainda que não
perca o estatuto de hipótese, pois o conhecimento é um processo sem fim. Se o
teste refutar a condição inicial, a falsificação demanda que se abandone a condição
inicial como hipótese cognitiva”.21
Para auxiliar no entendimento do método hipotético-dedutivo e com base em
Popper e Alfred Tarski, Eduardo Neiva aborda o princípio bicondicional, próprio da
metalinguagem e que impossibilita a regressão ao infinito, o indutivismo e o
verificacionismo em favor da elaboração, por meio da dedução, de hipóteses
testificáveis.
O princípio bicondicional pode ser expresso na fórmula se e apenas se;
Eduardo Neiva oferece o seguinte exemplo: “A sentença ‘A neve é branca’ é
verdadeira se e apenas se a neve for de fato branca”. Parece ser trivial, mas não é.
A frase acima parte do enunciado universal a neve é branca para um fato singular (o


19
Para Roberta Maia Gresta, afirmar que dogmática jurídica é ciência hermética não chega a ser
crítica, pois “trata-se apenas do reconhecimento do papel que a própria dogmática se propõe
desempenhar: perpetuar modos de vida já implantados e erradicar conflitos, o que faz ao propiciar
a aplicação de comando de proteção e repressão que, doados pelo Estado, são tomados como
incontestáveis” (Introdução aos fundamentos da processualidade democrática, p. 2).
20
Processo como teoria da lei democrática, p. 171.
21
NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Popper, p. 230.


fato de a neve realmente ser branca) e considera a verdade como correspondência


do enunciado aos fatos. A correspondência equivale a fórmula se e somente se e a
verdade não se reduz ao enunciado universal ou singular, mas na correspondência
entre ambos. Dessa maneira, o enunciado universal é verdadeiro se corresponde ao
fato singular em questão. Segundo Eduardo Neiva, “uma teoria da verdade como
correspondência deve partir de um dado básico: a verdade é o resultado da
interação de dois elementos diferenciados – representações que indicam universais
e fatos de cunho singular”.22
Andréa Alves de Almeida indica que Popper, “ao se remeter à teoria
semântica da verdade de Tarski [...] não está se rendendo ao observacionismo, mas
ressaltando que a verdade como correspondência com os fatos somente significa
que ainda não se encontrou observação negativa para a asserção descritiva. Sendo
assim, essa correspondência não é absoluta nem exata, trata-se de aproximação de
verdade, pois as observações e as asserções de observação têm caráter conjectural
e teórico”.23
Rosemiro Pereira Leal alerta que Tarski “ao preconizar que ‘uma afirmação é
verdadeira quando corresponde ou está em conformidade com os fatos’, fez tal
asserção no sentido do senso comum, não de sustentação de verdade absoluta” e
escreve que os fatos, “se considerados em Tarski na visão de Popper, não são
falsos ou verdadeiros em face de afirmações falsas ou verdadeiras, mas são ‘falsos’
se não permitem, pelo obstáculo de uma razão em si mesmos, a intervenção ou
substituição por outros decorrentes de ‘teorias’ (e aqui leis jurídicas) criadoras de
uma ‘validade’ (verdade ad hoc) obtida em recinto democraticamente
processualizado e construtivo de novas ‘situações institucionais’ que melhor se
ajustem a uma constitucionalidade asseguradora de uma irrestrita, ampla e
incessante arguição de legalidade e legitimidade pelo devido processo”.24 Por
conseguinte, a diálise25 sobre a verdade deve ocorrer em espaços processualizados

22
NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Popper, p. 73-75.
23
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística, p. 174.
24
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática, p. 218-219.
25
Rosemiro Pereira Leal afirma que a análise é o “método de resolução retórico-semântica de
problemas”, enquanto a diálise é “método ad hoc de resolução efetiva e gradual de problemas por
novas teorias” (Processo como teoria da lei democrática, p. 171). Enquanto a análise procura
decompor o todo em partes coerentes e irredutíveis, a diálise trabalha com a multiplicidade de
significados possíveis, pois as situações passíveis de aplicação dos termos são múltiplas. Assim, a
diálise não é método que intenta ser perfeito e único, mas que aponta o conteúdo de certos termos
sem a exclusão de outros conteúdos possíveis em situações diferentes. Nesse sentido, essa
dissertação utiliza o vocábulo diálise, ao invés de análise.


abertos à refutação crítica incessante.


Em Popper, a verdade é princípio regulador e não fato pretérito escondido na
história a reclamar a intervenção de mentes prodigiosas que sejam capazes de
interrogar e ouvir os acontecimentos históricos e os anseios da sociedade à procura
da verdade autoritária.26
Nesse cenário assombroso, a autoridade monopolizadora do conhecimento
seria o explorador que grita na caverna e julga que o eco (verdade autoritária que se
confunde com a convicção íntima) é a voz de alguém (passado histórico e sociedade
fantasmagóricos) vinda do interior.
Eduardo Neiva afirma que “o teste potencialmente falsificador do enunciado é
apenas uma etapa do processo” e divide o método hipotético-dedutivo em etapas, a
saber, “diante de uma nova hipótese, tiram-se conclusões por dedução lógica; as
deduções lógicas são comparadas entre si e com outras teorias disponíveis e daí
submetem-se a nova hipótese à prova, através de etapas: verifica-se,
comparativamente, o grau de coesão interna da teoria; avalia-se a teoria segundo a
sua forma lógica, qualificando-a de empírica ou de tautológica; a hipótese é posta a
teste [...]. As aplicações das conclusões testam a teoria e, diante desse fato, ela terá
sido corroborada ou falsificada. O sistema teórico de Popper recusa por completo a
lógica indutiva, pois em nenhum momento a verdade do enunciado advém do
acúmulo de enunciados singulares. O acúmulo de enunciados não é sequer levado
em conta. O que os enunciados singulares conseguem é falsificar uma teoria. A
teoria que sobreviva ao teste foi apenas temporariamente corroborada”.27
A eliminação de erros no método hipotético-dedutivo foi explicada por Popper
que, dissertando sobre o conhecimento humano e a formulação de teorias que
indaguem outras teorias, apresenta o esquema quádruplo, qual seja:


26
Para Popper, a teoria da verdade objetiva, ou seja, a verdade como correspondência aos fatos, tem
grande vantagem, pois permite dizer que “buscamos a verdade, mas podemos não saber quando a
encontramos. Não dispomos de um critério da verdade. Mesmo assim, somos guiados pela ideia de
verdade como um princípio regulador [...]. Embora não existam critérios gerais que nos permitam
reconhecer a verdade [...] existe algo que se poderia chamar de critério de progresso em direção à
verdade”. Além disso, o autor afirma que “só a ideia de verdade nos permite falar com sensatez em
erros e em crítica racional, e só ela possibilita o debate racional – ou seja, o debate crítico à
procura de erros, com o sério propósito de eliminar tanto deles quanto seja possível a fim de
chegar mais perto da verdade. Por isso, a própria ideia de erro – e falibilidade – implica a ideia de
uma verdade objetiva como um padrão que talvez possamos atingir. (Nesse sentido, a ideia de
verdade é reguladora)” (Verdade e aproximação da verdade, p. 183, 187).
27
NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Popper, p. 78-79.


P1 TT EE P2

Segundo Popper, “‘P’ representa ‘problema; TT, ‘teoria experimental’; e ‘EE’,


‘eliminação de erro (tentada)’”. O esquema quádruplo é “tentativa de mostrar que o
resultado da crítica, ou da eliminação de erro, aplicada a uma nova teoria
experimental, é via de regra a emersão de um novo problema; ou, de fato, de vários
problemas novos [...] as melhores teorias experimentais (e todas as teorias são
experimentais) são aquelas que dão origem aos problemas mais profundos e mais
inesperados”.28
Segundo Popper, esse esquema representa o “crescimento do conhecimento
através da eliminação de erros por meio da crítica racional sistemática. Torna-se o
esquema da procura da verdade e do conteúdo por meio da discussão racional.
Descreve o modo de nos elevarmos por nossa própria força” e difere
fundamentalmente da dialética de Hegel, pois “funciona através da eliminação de
erros, e no nível científico através da crítica consciente sob a idéia reguladora da
procura da verdade”. Para Popper, a crítica “consiste na procura de contradições e
em sua eliminação”.29
Novamente, a crítica representa papel fundamental no racionalismo crítico,
sendo imprescindível para a eliminação de erros. O falseamento das hipóteses
também ocorre com a utilização da crítica, pois qualquer hipótese imune à crítica
não seria passível de apontamento dos seus erros. Segundo Rosemiro Pereira Leal,
a crítica é o “veículo lógico de aferição do grau de certeza do conhecimento
científico”, desempenhando importante papel no método hipotético-dedutivo ao
testificar a hipótese em questão e estabelecer, provisoriamente, se o enunciado
universal corresponde ao enunciado singular, isso é, se o enunciado universal é
verdadeiro naquelas condições.30
Como bem enfatiza Rosemiro Pereira Leal, a fiscalidade processual ocorre


28
Conhecimento objetivo, p. 263.
29
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária, p. 122, 126.
30
Ao lado da crítica, a epistemologia quadripartite é formada, segundo Rosemiro Pereira Leal, pela
técnica como “atividade humana que abrange a capacidade de conjunção do mundo da realidade
com o mental e a consequente expressão de pensamentos abstratos organizados (teorias)
sobre o contexto dessa realidade”; pela ciência como “atividade que tem por objeto o
esclarecimento da técnica e das teorias e ideologias da técnica” que busca a “produção e o
crescimento esclarecido do conhecimento pela testificação teorizada dos enunciados técnico-
teóricos” e pela teoria como “proposição formalizada oferecida à crítica”. (Técnica processual, p.
15-16. Processo como teoria da lei democrática, p. 182).


com a utilização do método crítico, no qual se põe a “regra suprema a teorizar uma
proibição de vedação de liberdade fiscalizatória, assegurando a todos uma
refutabilidade argumentativa como testabilidade (falseabilidade) permanente de
eficiência sistêmica a prevenir dogmatizações decisórias fundadas na razão a priori
dos operadores do ordenamento jurídico vigorante”.31
Ao lado das já citadas súmulas vinculantes e súmulas impeditivas de
recursos, o denominado julgamento por amostragem, baseado no artigo 543-C do
Código de Processo Civil de 1973 e mantido no artigo 1.036 do Código de Processo
Civil de 2015, pressupõe o acúmulo de procedimentos com idêntica questões de
direito a autorizar um julgamento coletivo que ceifa o contraditório e a crítica, além
de culpabilizar as partes procedimentais por situações litigiosas geradas,
principalmente, por empresas públicas e privadas que desrespeitam
compulsivamente direitos e contratos na certeza da lucratividade deste
comportamento e na complacência dos órgãos estatais competentes pelo exercício
da função jurisdicional.32
As possibilidades de eliminação de erros por meio de testificações
processuais é reduzida, tendo em vista o julgamento coletivo propiciado pela
suposta identidade da matéria de direito. Desta maneira, o julgamento por
amostragem é apenas um exemplo, as decisões dos órgãos estatais competentes
pelo exercício da função jurisdicional não são falseáveis quando há vedação, sob
qualquer pretexto, da ampla defesa, contraditório e isonomia.
A falseabilidade, a falsificação e o falibilismo ocupam lugar de destaque
dentro do método hipotético-dedutivo. Urge diferenciá-los para que não sejam
utilizados indevidamente, pois, em se tratando de ciência, é necessário explicitar os
conteúdos dos termos utilizados.
Não se pretende, com isso, tentar descobrir a essência de algo pela análise
semântica das palavras, mas de tornar claro e preciso em qual sentido os termos
são empregados para possibilitar a testificação das hipóteses aventadas, sem a
pretensão de esgotar ou abranger totalmente do conteúdo dos termos utilizados. Por
isto, se fala em noção e não em conceito do termo para ressaltar a sua
especificidade para o caso em comento.


31
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática, p. 214.
32
BRASIL. Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973. BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015.
Código de Processo Civil.


Nesse sentido, a diretriz de Popper é pertinente: “toda iniciativa que se tome


para aumentar a clareza ou a precisão tem de ser ad hoc ou ‘gradual’”. Com efeito,
todas as noções esboçadas nesta dissertação se referem a situações específicas e
têm o objetivo de explicitar qual é o sentido do termo com o qual se trabalha. Daí se
pode afirmar que as noções dos termos utilizados são hipóteses amplamente
refutáveis. Ainda segundo Popper, “o método ad hoc de tratar os problemas de
clareza e precisão, abordando-os de acordo com as necessidades, pode ser
denominado ‘diálise’ para distingui-lo do método de análise, da noção de que a
análise da linguagem, como tal, está em condições de resolver problemas ou de
criar o arsenal de que possamos precisar no futuro. A diálise não resolve problemas.
Não pode resolvê-los, assim como a definição ou a explicação ou a linguagem
também não podem. Os problemas são resolvidos com o auxílio de novas idéias.
Todavia, exigem, muitas vezes, novas distinções – que serão elaboradas ad hoc,
diante dos objetivos imediatamente em vista”.33
Em primeiro lugar, a falseabilidade é a qualidade do enunciado suscetível à
crítica por meio da experiência. Popper não exige que “um sistema científico seja
suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo”, mas
que “sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a
provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência,
um sistema científico empírico”. Não se trata, portanto, de desconsiderar o método
empírico, pois é possível “concluir acerca da falsidade de enunciados universais a
partir da verdade de enunciados singulares”, do qual se conclui que o método
empírico é caracterizado pela “sua maneira de expor à falsificação, de todos os
modos concebíveis, o sistema a ser submetido a prova” e que “seu objetivo não é o
de salvar a vida de sistemas insustentáveis, mas, pelo contrário, o de selecionar o
que se revele, comparativamente, o melhor, expondo-os todos à mais violenta luta
pela sobrevivência”.34
Em segundo lugar, sobre a falsificação, Eduardo Neiva assim leciona, com
base em Popper: “a falsificação resulta de regras para a realização da condição de


33
Autobiografia intelectual, p. 36-37. Popper chama o critério da demarcação de proposta, pois “as
definições são abreviações – portanto, desnecessárias, mesmo quando convenientes – ou são
tentativas aristotélicas de ‘afirmar a essência’ de uma palavra, ou seja, dogmas convencionais
inconscientes” (O problema da demarcação, p. 121-122). Desta maneira, as noções apresentadas
nessa dissertação se avizinham dos moldes da proposta de Popper, tendo em vista a sua
refutabilidade e provisoriedade.
34
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica, p. 42-44.


falseabilidade”, sendo que “a simples constatação de enunciados básicos isolados


em discordância com uma teoria não traz consigo a rejeição do sistema de
enunciados”, pois “é preciso que a falsificação ocorra a partir de uma hipótese
falseadora, que é produto de uma suposição teórica que colocaria o sistema de
enunciados testados em cheque”. Em terceiro lugar, o falibilismo pode ser
considerado uma concepção acerca do conhecimento na qual todos os enunciados
são suscetíveis a erros e, portanto, precários, provisórios e falseáveis. Ao explicar o
falibilismo por meio da caracterização dos seus seguidores, Eduardo Neiva afirma
que “falibilistas acreditam que o conhecimento humano é caracterizável pela
incerteza. O conhecimento é sempre uma investida precária. Todo conhecimento é,
portanto, conjectural, falível e aproximado”.35
Segundo Maria Cecília de Carvalho, a opção pelo falibilismo “atua como
princípio regulador no processo de investigação e de crítica” e o progresso na
ciência é “resultado de um confronto entre teorias, que se submetem ao crivo da
experiência: uma conjectura, que sucumbiu ao teste crítico por meio da exposição
ao contra-exemplo observacional, evidenciado à luz de (outras) conjecturas, é
suplantada por novas – eventualmente melhores - conjecturas”.36
Diante do exposto, o racionalismo crítico não se confunde com o dogmatismo.
Sobre o tema, Rosemiro Pereira Leal afirma que “a crítica em Popper se dá por uma
racionalidade compreendida como mundo aberto das teorias suscetíveis de
falibilidade por uma problematização e testabilidade de confrontação interdedutiva
incessante, não oferecendo essa racionalidade, em si mesma, qualquer garantia de
imunidade prévia quanto a qualquer teoria que se proponha a atuar em seu campo
proposicional”. Mais à frente, o autor afirma que “a razão popperiana é uma
conjectura autocrítica, daí um DIREITO a viabilizar essa razão há de se conter numa
metalinguagem jurídica (ratio legis) que atualmente recebe a denominação de
PROCESSO nas perspectivas postas pela minha teoria neoinstitucionalista do
processo que tem suporte no método científico do racionalismo crítico”.37
Hans Albert assinala, ao tratar da teoria do conhecimento no racionalismo
clássico, que a conclusão dogmática pode ser utilizada para se “evitar um regresso
infinito ou um círculo”, não restando nada além do “recurso a dados últimos e


35
NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Popper, p. 218-219.
36
CARVALHO, Maria Cecília Maringoni. Popper: as aventuras da racionalidade, p. 65-67.
37
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática, p. 33-34, 196.


indubitáveis, de qualquer espécie, cuja certeza poderia, na melhor das hipóteses,


tornar-se plausível mediante a referência ao seu caráter de revelação”, tendo tal
revelação características divinas, sobrenaturais ou naturais, alcançada por meio dos
sentidos ou da razão. O caráter dogmático desse tipo de pensamento inibe o
crescimento do conhecimento científico, pois tenta imunizar as hipóteses contra
qualquer tipo de crítica. Por isto, Hans Albert chama atenção para o fato de que “por
trás da dogmatização de componentes das nossas convicções, também costuma
estar a decisão de manter essas convicções, independentemente das objeções que
possam ser colocados contra elas e, consequentemente, também da estrutura da
realidade”.38
Hans Albert compara o racionalismo clássico com o racionalismo crítico,
afirmando que “enquanto o racionalismo clássico elevou determinadas instâncias – a
razão ou os sentidos – ao nível de autoridades epistemológicas e procurou torná-las
infalíveis e, conseqüentemente, imunes à crítica, pois de outro modo a meta da
fundamentação segura não parecia possível de ser alcançada, o racionalismo crítico
não pôde conceder infalibilidade a nenhuma instância, e, por isso mesmo, o direito à
dogmatização de determinadas soluções de problemas”. Nesta perspectiva, o autor
supõe que “as autoridades, para as quais é reivindicada uma tal imunidade contra a
crítica, freqüentemente se isolam dessa maneira porque sua solução dos problemas
teria pouca perspectiva de suportar qualquer crítica possível”.39
Mais à frente, Hans Albert indica que “a finalidade da implantação de dogmas
não é tanto a solução dos problemas do conhecimento ou da moral, mas a rejeição
de soluções inadequadas, ou seja, soluções consideradas perigosas pelas
autoridades correspondentes, e a difamação das alternativas”. O modelo de
revelação do conhecimento, próprio das conclusões dogmáticas, interpreta o
“processo de conhecimento como uma recepção passiva de quaisquer inspirações
provenientes de fontes seguras e, portanto, providas de garantia de verdade, para
as quais os ocupantes de determinadas funções são considerados especialmente
privilegiados”.40
No direito, o lugar da autoridade é ocupado por especialistas, tribunais e
magistrados, cujas interpretações são, no caso concreto, a última e infalível palavra


38
Tratado da razão crítica, p. 47, 51.
39
Tratado da razão crítica, p. 53-54.
40
Tratado da razão crítica, p. 119-121.


acerca do significado das leis. Ao rejeitarem as críticas e chamarem para si o dever


de alcançar a verdade pressuposta e supostamente oculta no emaranhado de leis
ou na complexidade das relações sociais, as autodenominadas autoridades
procuram a exclusão de hipóteses que possam contribuir para a eliminação de erros
na realidade, pois a oferta incondicional às críticas significaria a desestabilização do
statu quo e dos privilégios das autoridades, conforme ressaltou Hans Albert.
Nessa perspectiva, ao rejeitarem as críticas, as autoridades agem mais para
se defender do que para escudar ideias. Por isto, o princípio do contraditório e o
princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais possibilitam a invasão do
recinto quase indevassável das decisões jurisdicionais e a quebra do monopólio
interpretativo do juiz.41 Não é por outra razão que o contraditório, ao invés de ser
interpretado como garantia constitucional que possibilita a refutação de hipóteses no
processo, ainda é tido indevidamente como mero dizer e contradizer desorientado e
a decisão jurisdicional como fruto das convicções íntimas do magistrado. Não se
trata de desconhecimento de outras hipóteses mais adequadas ao Estado
Democrático de Direito, mas de deliberada opção e defesa intransigente de dogmas
em prol da manutenção do statu quo. As autoridades protegem feroz e
intransigentemente os seus posicionamentos, pois não buscam o conhecimento,
mas a dominação.42
A auctoritas deve ser entendida no sentido que Edward Lopes lhe conferiu, ou
seja, aquele que se pretende o único autor do discurso e que manipula sentidos.
Segundo Edward Lopes, “todos os modos de dominação que o homem inventou ao
longo dos séculos para relacionar-se com o seu próximo, nenhum é mais eficiente
do que o da manipulação dos sentidos. Aquele que manipula os sentidos do
discurso transforma-se no árbitro todo-poderoso da comunidade para a qual define o
que venha a ser valor e antivalor; é ele quem assinala os objetivos a serem
perseguidos pelo grupo, dita as regras de comportamento que hão de dirigir a ação
singular dos indivíduos na tentativa de realização de seus valores, pune e


41
Segundo Rosemiro Pereira Leal, o “juiz é a pessoa física representante e atuadora exclusiva do
órgãos jurisdicional (juízo) de que é titular. Lembre-se que, em harmonia às correntes teóricas
modernas, a sentença não é mais ato solitário do juiz, mas decisão do juízo que impessoaliza a
atividade jurisdicional, porquanto, ao se proferir o julgamento no sistema de civil law, não se conta a
sensibilidade do juiz, mas a observância do princípio da legalidade que se lhe sobrepõe por força
constitucional” (Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 258). Portanto, a sentença é
decisão do juízo e não do juiz, como se esse encarnasse a jurisdição.
42
Sobre os tipos de dominação, cf. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva, p. 139-147.


recompensa [...]. Os antigos resolveram expeditamente o problema de saber a quem


atribuir o privilégio da interpretação. Considerando que o discurso é o objeto daquele
que o produz, atribuíram-no invariavelmente ao destinador da mensagem. Eles
enunciavam assim, o axioma do terceiro postulado a que fizemos referência, o da
inteligibilidade do sentido, segundo o qual se reconheceria no ‘autor’ do discurso a
única ‘autoridade’ (o autor é o titular da autoridade) para dizer o que é que seu
discurso significa. A locação da autoria do discurso fazia-se acompanhar, então, de
uma espécie de sublocação de ‘autoria do texto’, pois que só ao produtor da
mensagem era reconhecida a competência necessária para definir, de um lado, o
que seu discurso queria dizer, ou o que ele podia dizer e, por outro lado, o que ele,
efetivamente, dizia. Diante de interpretações indesejáveis, feitas por um destinatário,
o destinador da mensagem poderia sempre atribuir o subentendido à malevolente
inépcia do ouvinte, operando, desse modo, a desqualificação do subentendido para
requalificá-lo de mal-entendido. O dado da multissignificação do discurso estava,
então – e ainda está, para aqueles que nisso acreditam –, a serviço de um privilégio
da significação que é camuflagem do privilégio do mando de uma auctoritas única e
indiscutível”.43
No direito dogmático, o juiz é espécie de auctoritas que monopoliza os
sentidos das normas. A decisão jurisdicional é interpretada quase como propriedade
do juiz, cabendo a este determinar os sentidos que devem ser conferidos ao seu
discurso. Esta manipulação de sentidos tem como consequência o afastamento das
partes procedimentais na elaboração as decisões jurisdicionais e, como estas se
referem aos sentidos das normas, da própria captura da norma pelo juiz. Assim, o
juiz controla os sentidos da sua decisão jurisdicional e, consequentemente, da
própria norma em questão. Nestes casos, a interpretação das partes procedimentais
é requalificada como mal-entendido se está em desacordo com o discurso do juiz.
Portanto, a auctoritas opera na monopolização de produção dos significados
das normas jurídicas, defendendo a hipótese que a norma jurídica tem sentido
imanente acessível somente para poucas mentes privilegiadas. O que a auctoritas
desconhece, ou melhor, oculta, é que a decisão jurisdicional, legislativa e
administrativa deve submeter-se à principiologia constitucional, se abrindo para a
crítica incessante. Neste sentido, o processo constitucional é espaço de construção


43
LOPES, Edward. Discurso, texto e significação: uma teoria do interpretante, p. 4-5.


de significados pelo povo com inafastável obediência à ampla defesa, isonomia e


contraditório, que possibilitarão a quebra do protagonismo decisório por meio do
confronto entre enunciados e não entre sujeitos.
Contra a hipótese do conhecimento com autoridade, Popper afirma, baseado
no princípio da autonomia de Kant, que “não devemos aceitar o comando de uma
autoridade – por mais sublime que seja – como base ética. A autoridade poderá ter o
poder de obrigar-nos a obedecer-lhe; porém, como temos a capacidade de escolher,
a responsabilidade última pela ação nos pertence. Obedecer ou não uma ordem é
uma decisão crítica que tomamos – como também o é a submissão a qualquer
autoridade”. A autoridade não é criticada apenas como sinônimo de pessoa, mas,
principalmente, como fonte do conhecimento. Popper conclui que “o que devemos
fazer é abandonar a idéia das fontes últimas do conhecimento, admitindo que todo
conhecimento é humano [...] o que podemos fazer é buscar a verdade, mesmo que
ela esteja fora do nosso alcance [...]. Se admitirmos que em toda província do
conhecimento não há qualquer autoridade que possa escapar à crítica, por mais que
tenhamos penetrado no reino do desconhecido, poderemos reter sem perigo a idéia
de que a verdade está situada além da autoridade humana”.44
Em face do exposto, é necessário inquirir a influência do racionalismo crítico
na teoria neoinstitucionalista do processo. A elaboração da teoria neoinstitucionalista
do processo passou pela pesquisa das obras de Popper, pois Rosemiro Pereira Leal
afirma: “entendo que minha teoria inaugura fecundos estudos do direito em três
níveis: instituinte, constituinte e constituído, bem como desenvolve a construção de
um sistema jurídico em proposições processuais não repressivas pela via de uma
teoria da linguisticidade jurídico-autocrítica só possível à fala e escrita processuais
dentre todas as especialidades do Direito conhecidas, desde que trabalhadas em
bases epistemológicas a partir das matrizes filosóficas de Karl Popper como se pode
concluir de toda a minha produção acadêmica”.45
Em obra publicada em 2010, Rosemiro Pereira Leal afirma que as conjecturas
de Popper foram utilizadas na formulação da teoria neoinstitucionalista do processo
“por ser uma teoria da linguagem jurídica, ao lado de ser uma teoria do pensamento

44
POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações, p. 58. Segundo Popper “na busca de
conhecimento procuramos teorias verdadeiras ou, pelo menos, teorias que estejam mais próximas
da verdade do que outras, ou seja, que correspondam melhor aos fatos; na busca de teorias que
sejam meros instrumentos de poder para determinados fins somos muito bem servidos, em
inúmeros casos, por teorias sabidamente falsas” (Verdade e aproximação da verdade, p. 183).
45
A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p. 6.


aberto ao mundo autonômico das conjecturas e refutações formalizadas


(epistemologia crítica) voltado às cogitações normativas”, possibilitando o
“quadripartite enfrentamento do dogma da proibição do non-liquet que desde a mais
remota antiguidade aos dias atuais [...] é tido como única via de atuação possível
(dogmática) do direito, não constituindo um problema, mas uma solução dada pelo
senso comum ou pelo senso comum do conhecimento e já estratificada pela
história”. De fato, as ideias de refutabilidade, verdade, ciência e falibilismo de Popper
permeiam toda a teoria neoinstitucionalista do processo na conjectura sobre o direito
democrático com o seu requisito de “fiscalidade (refutação crítica) desde sempre a
ser exercida pelos destinatários normativos (o povo como conjunto de legitimados ao
processo) para se certificarem (por uma linguisticidade normativa autocrítica) da
incidência e vigência da teoria jurídica instituinte e constituinte do ordenamento
jurídico a conferir legitimidade às decisões em todos os níveis da jurisdicionalidade”,
conforme anota Rosemiro Pereira Leal. Ao invés de se render e reproduzir essa
realidade opressora por meio de soluções derivadas de espaços
desprocessualizados ou do senso comum, a teoria neoinstitucionalista do processo
a testifica, apontando os seus erros e oferecendo, segundo Rosemiro Pereira Leal,
métodos para “o aumento de clareza e precisão do conhecimento em face de
situações problemáticas”.46
Por isso, a independência dos sujeitos de direito para construírem o seu
próprio mundo por meio da crítica incessante de hipóteses e escolha da teoria mais
resistente no espaço processual, a hermenêutica isomênica e o contraditório
propiciam a crítica da situação de rua pelas pessoas em situação de rua e não pelo
Estado exclusivamente, tornando arcaico o instrumentalismo processual e outras
hipóteses dogmáticas que enxergam na realidade, muro de dificuldades
intransponível, existente desde sempre e para todo o sempre.
Ao finalizar o presente segmento, é possível concluir que a teoria
neoinstitucionalista do processo foi fortemente influenciada pelo racionalismo crítico
popperiano, permitindo a testificação de outras teorias processuais, das decisões
jurisdicionais, legislativas e administrativas, dos argumentos das outras partes e da
própria teoria neoinstitucionalista do processo. Isso, pois, não há imposição de
dogmas, nem a formulação de hipóteses com fundamento em espaços imunes às


46
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática, p. 174-176.


críticas. A teorização da realidade pela teoria neoinstitucionalista do processo ocorre


em espaços processualizados com linguagem autocrítica, não partindo de conjunto
pressuposto de significados da lei, tampouco da exclusividade ou gradação na
interpretação do ordenamento jurídico, pois isso contribuiria para a perpetuação das
desigualdades socioeconômicas no procedimento.

2. Estado Democrático de Direito: promessa, realidade ou projeto?

A extensa pesquisa de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias fornece


fundamentos precisos para a abordagem do Estado Constitucional Democrático de
Direito que, segundo o autor, são “verdadeiros princípios conexos e normas jurídicas
constitucionalmente positivadas”, resultando da “articulação dos princípios do Estado
Democrático e do Estado de Direito, cujo entrelaçamento técnico e harmonioso se
dá pelas normas constitucionais” e assevera que “para se chegar a essa conclusão,
impõe-se perceber que a democracia, atualmente, mais do que forma de Estado e
de governo, é um princípio consagrado nos modernos ordenamentos constitucionais
como fonte de legitimação do exercício do poder, que tem origem no povo, daí o
protótipo constitucional dos Estados Democráticos, ao se declarar que todo poder
emana do povo”. O autor afirma que o princípio do Estado de Direito é “informado
por gama variada de ideias-mestras que lhe dão contextura, verdadeiros
subprincípios [...] albergados em normas expressas nas modernas Constituições,
que determinam, direcionam e conformam as atividades do Estado, limitando-lhe o
poder”.47
O autor leciona que o Estado Democrático “tem sua dimensão e se estrutura
constitucional na legitimidade do domínio político e na legitimação do exercício do
poder pelo Estado assentadas unicamente na soberania e na vontade do povo”,


47
Segundo Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, os princípios de direito “devem ser entendidos como
normas jurídicas que exprimem, sob enunciados sintéticos, o conteúdo complexo de ideias
científicas e proposições fundamentais informadoras e componentes do ordenamento jurídico.
Tomando-se por base esta concepção tradicional, pode-se dizer que os princípios jurídicos se
caracterizam como diretrizes gerais induzidas e indutoras do direito, porque são inferidas de um
sistema jurídico e, após inferidas, se reportam ao próprio sistema jurídico para informa-lo, como se
fossem os alicerces de sua estrutura” (Processo constitucional e estado democrática de direito, p.
67-70, 137). Para Rosemiro Pereira Leal, princípio é “referente lógico-jurídico de invariabilidade
perene, estabelecido na Lei Positiva (texto legal), como limite originário da interpretação e
aplicação do direito legalmente formulado. Marco teórico que, introduzido pela linguagem do
discurso legal como referente lógico-dedutivo, genérico e fecundo (desdobrável), é balizador dos
conceitos que lhe são inferentes” (Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 281).


motivo pelo qual “o povo pode e deve exercer participação ostensiva e


preponderante na discussão e resolução dos problemas e questões de interesse
nacional, por intermédio do plebiscito, do referendo, da iniciativa popular, das
audiências públicas, e, principalmente, como sustentamos e tentamos demonstrar,
por meio do processo constitucional”. Sobre o devido processo constitucional, o
autor pontua que a Constituição Federal de 1988 “estatui e cataloga, no mesmo
plano sistemático, em favor do povo, proporcionando-lhe defesa contra os atos
arbitrários do Estado, um vasto e poderoso arsenal de garantias procedimentais
constitucionais, quais sejam, o mandado de segurança individual e coletivo”.48
Nesse sentido, Rosemiro Pereira Leal afirma que, no Estado Democrático de
Direito, “há de se cumprir igual reforma no âmbito da atividade executiva para
coestender o devido processo legal a todos os segmentos da jurisdicionalidade sem
privilégios a assembléias de especialistas originários ou últimos que, com o selo de
um poderio judicial decisório, pudessem trancar a discursividade e a aplicabilidade
dos direitos fundamentais, coletivos ou difusos, por uma irremovível res judicata”.49
As lições de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, aliadas às ponderações de
Rosemiro Pereira Leal, propiciam reflexão profunda sobre o Estado Democrático de
Direito.
Em primeiro lugar, a hipótese criticada por Rosemiro Pereira Leal, segundo a
qual “uma constituição (ou teoria constitucional) que acolha em seu âmago os
princípios do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia) e da soberania
popular para o manejamento dos conteúdos de um ordenamento jurídico já seria
apontadora de um Estado Democrático de Direito tal qual instituído no Brasil pela
Constituição de 1988 (art. 1º)”, isso é, que o Brasil é Estado Democrático de Direito
por simples disposição constitucional é facilmente refutável, tendo em vista a ainda
reduzida participação dos sujeitos de direito na construção, elaboração,
interpretação, aplicação e extinção de leis.50 Nessa hipótese, os sujeitos de direito
entregam o seu destino e a condução de suas vidas aos futuros ocupantes de
cargos públicos eletivos, sem possibilidade de qualquer interferência, pois a sua
participação nas instâncias decisórias se resume ao voto. Além disso, a persistência


48
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrática de direito, p.
75-76.
49
Teoria processual da decisão jurídica, p. 195.
50
LEAL, Rosemiro Pereira. Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo
democrático brasileiro, p. 283.


de práticas autoritárias indica que o Estado Democrático de Direito está longe de ser
realidade.
Não se pode ignorar a alta taxa de letalidade das polícias brasileiras e as
chacinas não esclarecidas de populações majoritariamente negras e
financeiramente pobres ocorridas após 1988. Conforme relatório da Anistia
Internacional, estatísticas oficiais apontam que “424 pessoas foram mortas pela
polícia durante operações de segurança no estado do Rio de Janeiro em 2013. No
primeiro semestre de 2014, houve um aumento do número de mortes nessas
circunstâncias, quando a polícia matou 285 pessoas, 37% a mais que no mesmo
período de 2013”.51
Em relatório sobre “casos de homicídios praticados por policiais militares nos
anos de 2014 e 2015 na cidade do Rio de Janeiro, em particular na favela de Acari”,
a Anistia Internacional denuncia que “em um período de dez anos (2005-2014),
foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrente de intervenção policial no
estado do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital. Apesar da tendência de
queda observada a partir de 2011, um aumento de quase 39,4% foi verificado entre
2013 e 2014. O número de pessoas mortas pela Polícia representa parcela
significativa do total de homicídios. Em 2014, por exemplo, os homicídios praticados
por policiais em serviço corresponderam a 15,6% do número total de homicídios na
cidade do Rio de Janeiro”. Além disso, como prova da ineficiência do Estado em
julgar os policiais que cometem homicídios, a Anistia Internacional, “ao checar o
andamento de todas as 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção
policial no ano de 2011 na cidade do Rio de Janeiro [...] descobriu que foi
apresentada denúncia em apenas um caso. Até abril de 2015 (mais de três anos
depois), 183 investigações seguiam em aberto”.52
Outro caso inaceitável de violência cometida pelos agentes do Estado e cuja
punição ainda parece distante, ocorreu entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, nos
quais cerca de 493 pessoas, sendo 43 agentes públicos, foram mortas em São
Paulo durante e após os ataques do grupo Primeiro Comando da Capital. A
International Human Rights Clinic – Human Rights Program at Harvard Law School e
a organização não governamental Justiça Global colheram, durante cinco anos,


51
ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2014/15: o estado dos direitos humanos no mundo, p. 73.
52
ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou o meu filho! Homicídios cometidos pela polícia militar na
cidade do Rio de Janeiro, p. 4, 6.


“informações sobre o papel de agentes públicos nos Crimes de Maio e a resposta


das autoridades à crise”; pesquisaram o “papel da corrupção na deflagração dos
ataques pelo PCC” e como o Estado “não alertou seus agentes adequadamente
sobre os ataques que viriam”. Foram identificados indícios da “participação policial
em 122 execuções no período de 12 a 20 de maio de 2006” e demonstrado como o
Estado “regularmente hesitou e falhou nas investigações dos crimes em que seus
agentes eram suspeitos mas, por outro lado, geralmente esclareceu a autoria dos
crimes delitos em que seus agentes foram vítimas”.53
Após esses episódios, familiares e amigos das vítimas formaram o Movimento
Independente Mães de Maio para cobrar a punição dos responsáveis pelos
assassinatos e, segundo Débora Maria da Silva e Danilo Dara, para “lutar contra o
genocídio da população preta, pobre e periférica em todo o país”.54
Em 2011, o Movimento Independente Mães de Maio lançou o livro “Mães de
Maio – do luto à luta”, no qual o jornalista Danilo Dara alerta, em termos informais,
que a era das chacinas começou “logo na sequência da promulgação da tal
‘Constituição Cidadã’ (em 1988) [...]. De lá pra cá, conforme vamos cada vez mais
‘aprofundando essa tal democracia’, temos vivido uma série sem fim de matanças e
massacres populares cotidianos, que tem como casos emblemáticos a Chacina de
Acari (1990), o Massacre do Carandiru (1992), da Candelária e de Vigário Geral
(1993), de Corumbiara (1995), de Eldorado dos Carajás (1996), da Praça da Sé e de
Felisburgo (2004), a Chacina da Baixada Fluminense (2005), os Crimes de Maio
(2006), do Complexo do Alemão (2007), do Morro da Providência (2008), de
Canabrava (2009), a Chacina de Vitória da Conquista e os Crimes de Abril na
Baixada Santista (2010) [...]. Os Crimes de Maio de 2006, que agora completam 5
anos, foram o acontecimento mais brutal e mais emblemático até aqui desta ‘nova
era democrática’: mais de 500 pessoas assassinadas, em menos de 10 dias,
somente no estado de São Paulo, por agentes policiais e grupos de extermínio em
pronta ‘defesa da ordem’. O maior massacre da histórica contemporânea brasileira.
Em pouco mais de uma semana, foram mais jovens pobres e negros assassinados
do que durante os mais de 20 anos da terrível ditadura civil-militar assassinaram nas


53
INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS CLINIC – HUMAN RIGHTS PROGRAM AT HARVARD LAW
SCHOOL; JUSTIÇA GLOBAL. São Paulo sob achaque: corrupção, crime organizado e violência
institucional em maio de 2006, p. 2-3, 20.
54
SILVA, Débora Maria da; DARA, Danilo. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios
para sua superação, p. 85.


fileiras de seus opositores, em todo o país”.55


Tendo em vista essas violações dos direitos fundamentais perpetradas
principalmente pelo Estado brasileiro, seria insensato afirmar que o Estado
Democrático de Direito é realidade no Brasil. Também está eivada de erros a
hipótese segundo a qual o Estado Democrático de Direito é promessa, pois os
atributos de liquidez e certeza dos direitos fundamentais dispostos na Constituição
de 1988 exigem execução imediata e não a posteriori.
O Estado Democrático de Direito não é realidade ou promessa, mas, segundo
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, “espécie de projeto constitucional principiológico
in fieri”, estando em “permanente estágio de inacabada consolidação”.56
Assim, o Estado Democrático de Direito envolve necessariamente o processo
que é a instituição constitucionalizada que viabiliza a construção dos significados da
lei pelo povo. Adotar posição contrária, a exemplo das duas hipóteses refutadas
anteriormente, seria transferir a construção do Estado Democrático de Direito para
tempos míticos nos quais a Constituição foi promulgada (passado) ou para o porvir
(futuro) impossível de ocorrer por questões orçamentárias e por causa da realidade
opressora intransponível que convenientemente se tolera.57
O resultado é a reprodução de desigualdades socioeconômicas abissais e a
vedação de construção dos significados da lei para a esmagadora maioria do povo.
Esta repercussão não é sequer teorizada pelos partidários do Estado Democrático
de Direito místico (passado e futuro imbricados para afastar a execução imediata de
direitos fundamentais líquidos e certos) e exatamente por não ser problematizada
por linguagem autocrítica é que esse dogma sobre o Estado Democrático de Direito
imaginário governa ocultamente as hipóteses sobre a democracia e se disfarça de
conquista histórica cuja memória se perdeu no passado ou de promessa para o
futuro que nunca vai chegar.


55
DARA, Danilo. Mães de Maio – do luto à luta, p. 91-92.
56
Processo constitucional e estado democrático de direito, p. 3.
57
Nas conclusões da sua monografia acadêmica defendida em 5 de dezembro de 2013, o autor desta
dissertação afirma que “não há democracia se a fome, a miséria, a tortura e a humilhação são
constantes na vida do brasileiro pobre e marginalizado. Não há liberdade onde o indivíduo é o que
tem e, se nada tem, nada o é. A dignidade não passa de um vulto, de um sopro, se ocupantes de
cargos públicos eletivos afirmam que a pessoa em situação de rua deve virar ração de peixe ou
que ela não deve ter direitos. Se a celeridade processual e a lentidão da justiça – sobrepondo-se
ao ser humano que morre de frio e do presidiário que é tratado como lixo - são considerados o
maior objetivo e o maior inimigo do direito, respectivamente, os direitos indicados na Constituição
da República são apenas simulacros de uma ordem que sempre está por vir, de um Brasil que se
resume a uma promessa obscena jamais cumprida” (LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 322).


Dessa maneira, é difícil asseverar se o Estado Democrático de Direito se


tornará uma realidade pronta e acabada, pois esse tipo de afirmação recai nas
ideologias que clamam por profetas com amplos e irrestritos poderes para a
concretização do reino prometido na Constituição.
Contudo, é possível afirmar ad hoc se as decisões jurisdicionais, legislativas e
administrativas, ato de funcionário público, teorias do direito e o próprio
ordenamento jurídico são informados ou não pelo princípio do Estado Democrático
de Direito.
Com escólio na passagem de Brêtas anteriormente citada, o Estado
Democrático de Direito é projeto constitucional e o “permanente estágio de
inacabada consolidação” quer significar, utilizando o termo popperiano, que o projeto
do Estado Democrático de Direito se consolida por meio da engenharia social
gradativa, o que equivale a dizer que esse projeto constitucional não se concretiza
repentina e milagrosamente, mas com a identificação e correção gradual e
incessante de erros nas normas jurídicas, práticas sociais e processos
constitucionais legislativo, jurisdicional e administrativo por meio do contraditório,
ampla defesa e isonomia.58
Discorrendo sobre políticas públicas no caso dos moradores de rua, Daniel
Francisco Nagao Menezes e Felipe Chiarello de Souza Pinto afirmam que a
formulação de políticas públicas contém sete etapas, a saber, “reconhecimento de
problema público; formação de uma agenda pública; formulação de Política Pública
em si; processo político de tomada de decisão de implementação de Política

58
Para Popper, a correção gradativa “combinada com a análise crítica, é o melhor caminho para
alcançar resultados práticos, quer nas ciências sociais, quer nas naturais” e a “tecnologia social
gradativa” se refere à hipótese segundo a qual “em grande parte, as ciências sociais
desenvolveram-se por meio da crítica feita a propostas de melhora social, ou, mais exatamente,
por meio de tentativas de saber se uma dada ação econômica ou política tenderia a produzir o
resultado esperado ou desejado”. Segundo Popper, “uma das tarefas mais características de
qualquer tecnologia é apontar aquilo que não pode ser alcançado”. O autor utiliza a expressão
engenharia social gradativa com o intuito de “descrever a aplicação prática dos resultados da
tecnologia de ação gradual”, em contraposição à “engenharia social holística ou utópica”, pois
“enquanto o adepto do método paulatino pode atacar com a mente aberta o problema do alcance
da reforma proposta, o holista não tem condição de fazê-lo, por ter decidido de antemão que uma
reconstrução completa é possível e necessária”. Popper assevera que a tecnologia de ação
gradual é adepta do método de ensaio e erro, pois “nós experimentamos, ou seja, não nos
limitamos a registrar observações, mas tentamos ativamente solucionar problemas mais ou menos
práticos e definidos. Só avançamos quando nos dispomos a aprender com nossos erros: a
reconhecê-los e usá-los criticamente, em vez de perseverar neles de maneira dogmática [...].
Todas as teorias são tentativas, hipóteses provisórias postas à prova para ver se funcionam; e
cada confirmação experimental resulta de testes efetuados com espírito crítico, na tentativa de
descobrir onde nossas teorias falham” (Engenharia social gradativa, p. 297, 299-300, 303, 306-
307).


Pública; execução de Política Pública; acompanhamento, monitoramento e avaliação


da Política Pública; e, por fim, a decisão sobre a continuidade, reestruturação ou
extinção da Política Pública”. Data venia, a preeminência conferida ao Estado
nessas fases pelos autores contribui para o cerceamento da participação do povo na
elaboração de políticas públicas. Esta hipótese fica bem clara quando os autores
afirmam que “a fase de reconhecimento do problema busca a definição pelo Estado
da existência do problema e qual a sua extensão e a decisão de intervenção nesse
problema” e que a etapa de tomada de decisão é iniciada pela “autoridade política,
com base nos pareceres técnicos das equipes e nas pressões exercidas pelos
atores envolvidos”. Apesar dos autores não postularem a exclusividade do Estado
no âmbito das políticas públicas, a timidez da participação dos atores políticos e
sociais - restritas à luta pela “inclusão do problema identificado na agenda de
discussão pública” e na exposição de suas “preferências e necessidades, buscando
a construção de um projeto de atuação para alcançar os seus objetivos” – não faz
jus ao arcabouço teórico e principiológico indicado na Constituição de 1988.59
Diferentemente, a processualização de políticas públicas permite a maior
participação dos sujeitos de direito que não se reduzirá ao exercício de pressão
sobre o Estado ou se extinguirá antes da tomada de decisões, mas se estende à
todas as fases de formulação de políticas públicas.
Cristina Bove e Gladston Figueiredo ressaltam a importância da participação
popular na elaboração de políticas públicas ao afirmarem que “a superação da
‘invisibilidade’ social e da falta de um conjunto maior de políticas públicas
direcionadas a atender demandas individuais e coletivas a partir da participação
popular precisa se estabelecer como uma meta [...]. Além disso, alerta-se para que
se busque sempre a implementação de políticas estruturantes, que superem as
compensatórias, pois, só assim, o direito se efetivará”.60
As tentativas governamentais de implementação do Estado Democrático de
Direito de uma vez, por meio de decisões imunes às críticas, provavelmente irão
repetir os erros que a originaram, ou até piorá-los. Nesse sentido, a supressão da
ampla defesa, contraditório e isonomia em prol da suposta celeridade processual
benéfica para o consumidor da justiça, pode ser considerada engenharia social

59
MENEZES, Daniel Francisco Nagao; PINTO, Felipe Chiarello de Souza. Direitos fundamentais das
pessoas em situação de rua, p. 400-402.
60
BOVE, Cristina; FIGUEIREDO, Gladston. Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p.
435.


utópica, pois pretende garantir a razoável duração do processo com a imposição de


medidas contrárias ao Estado Democrático de Direito e que desconsideram “a
lentidão, a morosidade da atividade jurisdicional, quase sempre imputável à
negligência do Estado” que ocorre, principalmente, no descumprimento, por juízes e
tribunais, dos “prazos prescritos nos Códigos processuais para a prática dos atos
judiciais, gerando os injustificáveis e funestos prolongamentos das chamadas etapas
mortas do processo, que separam a realização de um ato processual do outro
imediatamente seguinte, sem subordinação a um lapso de tempo prévia e
legalmente fixado”, segundo lição de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias ao escrever
sobre as situações de comprometimento da razoável duração do processo. 61
Quando insatisfatórios, os fatos devem ser ajustados à constitucionalidade
democrática e o indicativo principal desse ajuste no processo constitucional
jurisdicional é o fiel acatamento dos princípios do juízo constitucional ou juízo
natural, vinculação da jurisdição ao Estado Democrático de Direito, supremacia da
Constituição Federal, reserva legal, devido processo constitucional e da
fundamentação das decisões jurisdicionais, conforme explanação anterior.
Observa Rosemiro Pereira Leal que “esse ‘melhor ajuste’ (legitimidade) ou
proximidade a uma constitucionalidade democrática quer significar que não se
trocam ‘fatos brutos’ por ‘fatos brutos’ [...], ou seja, não se agride a realidade com
guerras ou violências (razões autossuficientes) para retirá-la das perversidades ou
sofrimentos. Se a mudança é implantada pela violência (repressão) ou por falas
tribais ou mágicas (de dominação de uma casta social, religiosa, cientificista ou
econômica sobre maiorias ou minorias indefesas), afasta-se despoticamente o
critério do piecemeal engineering que caracteriza o método crítico de atuação de
uma racionalidade como princípio do apontamento gradual e contínuo de falhas de
comunicação na elaboração da normação jurídica (institucionalização de práticas
sociais suscetíveis de erros) a serem providas (supridas) pelo direito ao
contraditório e ampla defesa na evitação do dogmatismo comportamental e
decisional”.62
Sem a engenharia social gradativa, os erros, quando apontados, são
reforçados e amplificados por medidas supostamente corretivas que nada mais
fazem do que criar falácias e situações ilusórias. Ainda que o erro persista – o que é

61
Processo constitucional e estado democrático de direito, p. 218-219.
62
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática, p. 219.


óbvio, pois ele não foi objeto de teorizações – as autoridades culpam aqueles que
sofreram os efeitos da farsa decisória, mas não participarão da sua elaboração, pelo
fracasso da empresa.
Exemplificando: o direito à moradia é negado para a população em situação
de rua e uma das medidas levada a cabo pelo Estado para tentar garantir o direito
fundamental à moradia é a construção de abrigos para o acolhimento das pessoas
em situação de rua. Em Belo Horizonte, as autoridades municipais afirmam que
sobram vagas nos abrigos e as pessoas em situação de rua dormem nos
logradouros públicos por livre e espontânea vontade.63
Contudo, essa afirmação contém erros advindos da desconsideração de
outros fatores que influenciam na decisão de utilizar ou não os serviços dos abrigos,
tais como as condições inadequadas do abrigo, o estabelecimento de horários de
entrada e saída que não coincidem com a rotina de trabalho informal das pessoas
em situação de rua, a falta de segurança e de treinamento dos funcionários que
trabalham nos abrigos.
Ao invés de considerar e incluir esses problemas no planejamento de políticas
públicas, as autoridades municipais preferem culpar as pessoas em situação de rua
pela falta de moradia. Em que pese a criação de abrigos novos e mais adequados,
como a Unidade de Acolhimento Institucional Fábio Alves dos Santos, a execução
de direitos fundamentais em espaços desprocessualizados que vedam a
participação em contraditório e com hermêutica isomênica pelas pessoas em
situação de rua aponta para a continuidade desses erros.64
É fundamental que as políticas públicas sejam construídas gradativamente e
de maneira compartilhada entre o Estado e a população em situação de rua, pois o
monopólio decisional do Estado significaria a execução de medidas que tentam
moldar o comportamento da pessoa em situação de rua dentro do padrão diferente
daquele estabelecido na vivência da rua. Ainda que vise a garantir direitos
fundamentais, a elaboração de políticas públicas pela imposição de condutas
obrigatórias e repressivas é tentativa de homogeneização violenta. Por isto, ao invés
de adequar as pessoas em situação de rua às políticas públicas, as políticas
públicas é que deveriam se adequar às pessoas em situação de rua e essa

63
EVANS, Luciana. Sobram vagas nos albergues, mas desabrigados preferem viver nas ruas de BH.
64
FERREIRA, Pedro. Prefeitura de BH inaugura casa de acolhimento para moradores de rua que
trabalham.


adequação só pode ser feita com a participação ostensiva da população em situação


de rua. Parte das ações do Município de Belo Horizonte permanecem no limbo de
decisões autocráticas supostamente democráticas e insuscetíveis às críticas ao não
serem reguladas pelo princípio do Estado Democrático de Direito.
Segundo a teoria neoinstitucionalista do processo, a execução de direitos
fundamentais líquidos e certos deve ocorrer no processo constitucional com a
participação dos legitimados ao processo e, na hipótese problematizada nesta
dissertação, o mandado de segurança é o instituto jurídico apto a concretizar tais
direitos sem que se caia no discurso salvacionista e ineficiente de elaboração de
políticas públicas por agentes públicos bondosos, caridosos e sensíveis aos apelos
dos jurisdicionados.
Portanto, ao cabo das considerações até aqui expostas, há de se ressaltar
que o Estado Democrático de Direito não é realidade ou promessa, mas projeto
constitucional gradualmente implementável com a utilização dos processos
constitucionais legislativos, jurisdicionais e administrativos, estando presentes os
princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia.

3. Processo como espaço metalinguístico de construção de significados

A teoria neoinstitucionalista do processo foi elaborada pelo epistemólogo


mineiro Rosemiro Pereira Leal como parte do esforço para oferecer conjecturas de
produção, aplicação, interpretação e extinção da lei em espaços processuais
democráticos irrestritamente fiscalizáveis, refutando ideologias do processo que
indicam a supremacia da autoridade no ordenamento jurídico brasileiro.
Segundo Rosemiro Pereira Leal “a Ciência Dogmática do Direito adotava uma
linguagem que só contemplava a autoridade: o mestre, o jurista doutrinador e o
Estado-juiz, uma vez que, pouco importando o que qualquer um argumentasse,
esses três atores do império jurídico do sentido normativo acabariam por direcionar
o decisum. Pensei que, se o legislador fazia a lei, era para entregar a essas
autoridades o destino de sua interpretação. Como sair dessa? Com a Constituição
de 1988, entendi que se colocara o Processo (e não mais a jurisdição!) no centro do
sistema jurídico brasileiro e, por isso, o que foi vincado constitucionalmente como
'Estado Democrático de Direito' não poderia ser aquilo que fosse manobrado pela


jurisdição do Estado-juiz”.65
A teoria neoinstitucionalista do processo oferece vias para a “redução
(solucão) paulatina [dos conflitos humanos], bem como à perquirição de como é
construída a 'realidade' dentro da qual estaria o homem”, sem a possibilidade de
rendição diante da realidade opressora, perpetuadora e apoiadora de desigualdades
socioeconômicas e jurídicas.66
Na teoria neoinstitucionalista, o processo assume novos significados
desvinculados do instrumentalismo e da figura da auctoritas, para possibilitar a
participação dos sujeitos de direito na elaboração, interpretação, aplicação,
modificação e extinção das leis.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, o processo é “núcleo jurídico-autocrítico-
linguístico, é a instituição operatriz do sistema, segundo a proposição teórica que o
identifica como interpretante dos códigos (direitos fundamentais) por ele próprio
instituídos. O processo, nessa perspectiva, é a instituição jurídico-linguística
fiscalizatória de todo o sistema procedimental institucionalizado” e “locus
(interpretante)teórico-jurídico do exercício intertextual do discurso da
constitucionalidade segundo princípios autocríticos (contraditório, ampla defesa,
isonomia) como direitos fundamentais de desconstrução de sentidos
(argumentação)” e a interpretação da Constituição brasileira deve ter como eixo a
“teoria do processo que ofereça compatibilidade com a imediata efetivação
(realização) dos direitos líquidos, certos e prontamente exigíveis e com a
sustentação continuada e incessante dos direitos fundamentais do Processo ali
assegurados”.67
Dessa maneira, a obra de Andréa Alves de Almeida, fruto da sua tese de
doutorado intitulada “Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística”,
ajuda a compreender o processo como espaço metalinguístico de construção de
significados. Segundo a autora, "a epistemologia popperiana de falibilidade do
conhecimento se afasta de qualquer saber que se constrói fundamentado em
princípio primeiro-último, se afasta da crença no conhecimento seguro derivado de
certezas últimas. O único princípio universal que Popper admite é o da crítica como


65
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p.
101-102.
66
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p. 8.
67
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p. 40,
63-64, 77.


racionalidade, ou seja, da suspensão de qualquer crença (repetição) para se


construir a racionalidade" e a liberdade na sociedade aberta "consiste na
possibilidade de fiscalização ampla e irrestrita das decisões do Estado por meio do
método de eliminação de erro e não por meio da dialética. Isto se dá porque a
liberdade demanda possibilidade de se desgarrar do dado da realidade (da condição
dada), não para anular a realidade, mas para que o homem possa construir o seu
próprio mundo de significados".68
Ao contrário da hierarquia interpretativa na qual os significados são
construídos solitariamente pela pessoa ou por grupo de pessoas que, por alguma
razão, ocupam posição de destaque, a construção de significados deve ocorrer em
espaços que propiciem a efetiva participação dos sujeitos de direito em posição de
igualdade. Ainda que se rotulem democráticas, as hipóteses serão autoritárias e
destinadas a ocultar erros se redundam na desigualdade de interpretação.
É necessário se pensar em espaços de igualdade interpretativa nos quais as
hipóteses (decisões) sejam construídas em conjunto, por meio de teorias e
testificações que eliminem erros.
O processo, entendido como "instituição constitucionalizada que se define
pela conjunção dos princípios jurídicos da ampla defesa, isonomia, contraditório e do
instituto do devido processo legal, para assegurar a produção, o exercício, o
reconhecimento ou negação de direitos alegados e sua definição pelos provimentos
nas esferas Judiciária, Legislativa e Administrativa" viabiliza o espaço de construção
de significados da lei.69
Andréa Alves de Almeida assevera, em crítica ao raciocínio dialético no
direito, que a "lide tem que ser compreendida como campo de problematização e o
processo como recinto de eliminação de erro" e ressalta, com base em Rosemiro
Pereira Leal, que o espaço processual permite que "o homem não seja construído
pela linguagem, mas atue como o ser da construção da linguagem", sendo "possível
e legítimo o homem colocar-se de fora da linguagem comunicacional (cultural) para
instalar um pacto sígnico como referente autocrítico de testificação e construção do
significado e o fazer por meio do contraditório, da ampla defesa e da isonomia,
viabilizando uma metalinguagem capaz de falar dos fatos e da linguagem objetal".70


68
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística, p. 88.
69
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 281.
70
ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística, p. 90,


A lei, entendida como ordenamento jurídico, não tem significado unívoco ou


acessível somente para as mentes privilegiadas.71 Por isso, a criação, interpretação,
modificação e extinção da lei deve ser feita por linguagem capaz de propor,
modificar e refutar hipóteses.72 A própria lei, decisão jurisdicional, administrativa ou
legislativa e os argumentos desenvolvidos pelas partes procedimentais devem ser
entendidos como hipóteses refutáveis e provisórias. Para que os erros sejam
superados e as contradições sanadas, nenhuma esfera jurídica deve permanecer
imune às críticas.
Rosemiro Pereira Leal assevera que “a teoria da linguagem em Popper não
perde autoria humana, mas se desdobra tripartitemente (Mundos 1, 2 e 3) para se
arguir sobre a autoria de seus conteúdos lógico-informativos. A falsificabilidade,
falseacionismo, falseabilidade, falsificacionismo, falibilidade, falseamento, ou
qualquer sinônimo que se possa engendrar para designá-la, porque isso não é uma
questão de palavras, a dúvida metódica que se possa conceber em Popper não está
no plano isolado da subjetividade (filosofia de consicência), mas se entrega a um
exercício lógico (teórico-proposicional) pela via de uma quadripartite epistemologia
(técnica-ciência-teoria-crítica) em confronto com as apreensões da compreensão
humana, expressa na infortunística da ignorância ou dos saberes absolutistas, que
tanto têm levado os povos a catástrofes continuadas por mais alto que seja o estágio
tecnológico que possam alcançar”.73
Por isso, se a linguagem for imunizada, o âmbito de incidência do
contraditório será drasticamente reduzido, pois fronteiras arbitrárias lhe serão
impostas pelo juiz. Nesta esfera, a linguagem pressuposta e inatacável será o
recinto de sobrevivência dos valores, moral, bom senso, senso comum e da
sensibilidade do juiz que influenciaram decisivamente na decisão jurisdicional e não
poderão, nessa concepção, ser criticadas.
A linguagem deve ser exossomática, habitando o Mundo 3, ao lado das

104.
71
Segundo esclarece Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, “a expressão lei [...] tem o sentido técnico-
jurídico de ordenamento jurídico, na sua total extensão, ou seja, conjunto de normas jurídicas
constitucionais e infraconstitucionais vigentes no sistema jurídico brasileiro, integrado por normas-
disposições ou normas-preceitos (regras) e normas-princípios (princípios de direito), ambas com
igual força vinculativa” (Processo constitucional e estado democrático de direito, p. 91).
72
André Del Negri empreende importante pesquisa sobre o controle de constitucionalidade no
processo legislativo no marco do Estado Democrático de Direito e com utilização da teoria
neoinstitucionalista do processo (Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da
legitimidade democrática).
73
Processo como teoria da lei democrática, p. 188.


ideias, argumentos, hipóteses e teorias, sendo objeto de testificações para o


crescimento do conhecimento humano.74 No processo, o contraditório é exercido no
Mundo 3, ou seja, não se trata do confronto entre sujeitos, mas entre enunciados
para que ocorra a eliminação de erros nas hipóteses sobre a aplicabilidade das leis.
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias afirma que "o que deve ser instaurado na
dinâmica do procedimento é o quadrinômio estrutural do contraditório (e não binômio
ou trinômio), ou seja - informação - reação - diálogo - influência - como o resultado
lógico-formal da correlação do princípio do contraditório com o princípio da
fundamentação das decisões jurisdicionais" e que o contraditório é "elemento
concretizador do princípio político da participação democrática do povo no
processo".75 No processo constitucional, o contraditório possibilita a construção de
significados, pois a influência na elaboração da decisão jurisdicional inviabiliza a
construção arbitrária e imposição de significados da lei pela auctoritas.
Andréa Alves de Almeida afirma, com base em Rosemiro Pereira Leal, que "a
internormatividade do processo se estabelece pela interenunciatividade e não pela
intersubjetividade", possibilitando a transformação do processo em "paradigma
linguístico-jurídico autocrítico para recriação do direito". Nesta hipótese, "o
contraditório exercido por meio da interenunciatividade é que dará conta de cifrar o
real, a fim de abrir passos na linguagem natural fragmentada, e construir uma
comunidade jurídica autoilustrada (esclarecida) dos próprios fundamentos do
sistema".76
A metalinguagem está presente no princípio bicondicional, pois a sentença
(enunciado universal) se refere a outra sentença (enunciado singular) que descreve
o fato.77 Sem a metalinguagem e a crítica, a verdade seria fato pretérito e imutável, e


74
Popper descreve a hipótese sobre os três mundos da seguinte maneira: “primeiro, o mundo dos
objetos físicos ou dos estados físicos; segundo, o mundo dos estados de consciência ou dos
estados mentais, ou, talvez, das predisposições comportamentais à ação; terceiro, o mundo dos
conteúdos objetivos do pensamento, em especial dos pensamentos científicos e poéticos e obras
de arte”. Aprofundando no tema, Popper afirma que “entre os habitantes do meu Mundo 3
encontram-se, mais especialmente, os sistemas teóricos; outros habitantes de igual importância
são os problemas e as situações problemáticas. Afirmo que os habitantes mais importantes desse
mundo são os argumentos críticos e o que poderíamos chamar [...] de estado de discussão ou
estado de discussão crítica; e, é claro, o conteúdo de periódicos, livros e bibliotecas” e que o
Mundo 3 é “em grande medida autônomo, embora atuemos constantemente sobre ele e soframos
sua ação: é autônomo apesar de ser um produto nosso e exercer um intenso efeito de
retroalimentação (feedback) sobre nós, considerados como habitantes do Mundo 2 e até do Mundo
1” (Conhecimento subjetivo versus conhecimento objetivo, p. 57, 58, 62).
75
Processo constitucional e estado democrático de direito, p. 133-134.
76
Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística, p. 32, 186.
77
Discorrendo sobre a teoria da correspondência de Tarski, Popper acentua que “se quero falar


não correspondência, e a razão seria o instrumento de mentes brilhantes para


alcançar esta verdade no seu íntimo ou na realidade. A própria linguagem seria
pressuposta, acabada, insuscetível de crítica e propriedade de poucos afortunados.
Nada mais deletério para o Estado Democrático de Direito.
O processo deve ser entendido como espaço metalinguístico de construção
de significados, pois é por meio da metalinguagem que os significados da própria
linguagem são colocados em dúvida, permitindo perquirir os fundamentos do
ordenamento jurídico em espaços processualizados. Caso contrário, o processo
seria mero instrumento à serviço da jurisdição, imerso na linguagem pressuposta e
irrefutável, cujos significados já estariam prontos desde sempre.
Ao tratar da situação de privilégio de significação pela auctoritas, Edward
Lopes afirma que "um dos maiores serviços prestados pela Lingüística à ciência
moderna foi, certamente, o de ter contribuído tão poderosamente para modificar
essa situação, ao insistir no fato de que a semântica deve se preocupar com o
sentido do discurso tal como ele se deixa decodificar no interior do código que serviu
para a sua codificação. O desenvolvimento do conceito de função metalingüística
permitiu compreender o sentido como uma propriedade do código, não de uma
pessoa, e possibilitou, em conseqüência, na medida em que os códigos são bens
coletivos, possuídos, igualmente, pelo destinador e pelo destinatário da mensagem,
denunciar o monopólio do sentido que era exercido pelo sujeito da enunciação".78
Segundo Edward Lopes, “por função metalingüística, entende-se a função da
mensagem que se dirige para o código. O homem utiliza-se da linguagem para dois
fins básicos: ou para falar acerca do designatum (função referencial), ou para falar
acerca da própria linguagem (função metalingüística). A função metalinguística
pressupõe a existência de uma língua-objeto [...] cujo funcionamento ou cujo código
se quer decifrar. É necessário, para tanto, que se utilize um outro sistema linguístico,
a meta-língua com que eu falo da língua-objeto, meta-língua esta que, por ser


acerca da correspondência entre uma sentença S e um fato F, então tenho de fazê-lo numa
linguagem que se possa falar a respeito de ambos: sentenças tais como S e fatos tais como F [...].
Significa que a linguagem em que falamos para explicar a correspondência deve possuir os meios
necessários para referir-se às sentenças e para descrever fatos. Se tenho uma linguagem que
disponha de ambos esses meios, de modo que possa referir-se às sentenças e descrever os fatos,
então nesta linguagem – a metalinguagem – posso falar acerca da correspondência entre
sentenças e fatos sem qualquer dificuldade” (Conhecimento objetivo: uma abordagem
evolucionária, p. 288).
78
Discurso, texto e significação: uma teoria do interpretante, p. 5.


melhor conhecida, vem proposta como modelo decodificador da língua-objeto”.79


Portanto, o processo constitucional possibilita a destituição não só da
autoridade como sujeito, mas da autoridade como qualidade do sujeito. Na teoria
neoinstitucionalista, o processo não é o espaço de significados já prontos e impostos
coercitivamente pelo juiz às partes, mas o espaço de construção de significados do
ordenamento jurídico ad hoc pelos legitimados ao processo em hermenêutica
isomênica, viabilizando a construção gradual do Estado Democrático de Direito,
desgarrada da ideologia de sociedades e linguagem pressupostas ou de soluções
infalíveis impostas pelo Estado. Nesta conjectura, o sujeito de direito constrói o seu
próprio mundo com a utilização dos princípios constitucionais do contraditório, ampla
defesa e isonomia.

4. Cidadania: um termo equívoco

O termo cidadania é amplamente utilizado na literatura jurídica para designar


os atributos do cidadão. Além de pleonástica, essa hipótese não esclarece quem é o
cidadão e quais são os atributos que lhe são conferidos constitucionalmente. Diante
desse problema, as conjecturas encaminhadas por Rosemiro Pereira Leal, Roberta
Maia Gresta e André Del Negri auxiliam no esclarecimento do termo cidadania.
Em artigo de 2005, Rosemiro Pereira Leal critica os termos civil, cidadão e
povo. Conforme estudo anterior, o autor desta dissertação resumiu as críticas de
Rosemiro Pereira Leal da seguinte forma: "civil é a expressão que denomina o
habitante da villa (casa), o patrimonializado; povo (potus) é o errante, vadio,
despossuído e cidadão é o povo adotado pelos civis, que o livram da vida errante,
vadia e despossuída [...]. Desta maneira, há a divisão entre civil, povo e cidadão,
sendo que o cidadão, mesmo adotado pelo civil, não se confunde com este, pois
esta condição lhe é dada, entregue, existindo uma relação de submissão com os
patrimonializados. O povo é o não adotado, que pode usar o espaço da villa sem, no
entanto, pertencer a esta ou ser-lhe plenamente integrado".80
Tendo em vista essas críticas, Rosemiro Pereira Leal utiliza o termo cidadania
sob outro viés, priorizando a participação ativa do cidadão na elaboração das


79
LOPES, Edward. Fundamentos da lingüística contemporânea, p. 65.
80
LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 292. LEAL, Rosemiro Pereira. Processo civil e sociedade
civil. Virtuajus. Belo Horizonte, ano 4, n. 2, 2005, p. 1-2.


decisões como elemento nuclear da cidadania, em contraposição ao cidadão como


povo adotado e submisso ao civil.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, a cidadania é: 1ª.)- A "conquista teórica
constitucionalizada de produzir direitos fundamentais em enunciados jurídicos
processualmente decididos"; 2ª.)- O "direito-garantia fundamental
constitucionalizado" que "só se encaminha pelo Processo, por só este reúne
garantias dialógicas de liberdade e igualdade do homem ante o Estado na criação e
reconstrução permanente das instituições jurídicas, das constituições e do próprio
modelo constitucional do Processo; 3ª.)- O "direito fundamental de autoilustração
sobre os fundamentos do sistema jurídico praticado" e derivada da isomenia.81
Decerto, a cidadania não decorre de simples disposição no ordenamento
jurídico, mas se afirma, segundo Rosemiro Pereira Leal, na "contrafactualidade
jurídica constitucionalmente assegurada [...] do direito amplo de se contrapor a
qualquer realidade hostil às garantias constitucionais". A conjectura enunciada pela
teoria neoinstitucionalista do processo propõe o permanente exercício da cidadania
para a resolução compartilhada dos problemas jurídicos e redução dos conflitos
estruturais e não pela mera resolução de litígios com a ocultação das causas que o
motivaram, além de garantir a igualdade institucional entre o Estado e o Cidadão,
pois não é possível "sustentar a existência hierárquica de instituições jurídicas ou a
prevalência de uma sobre as outras no bojo constitucional, como se fossem caixas
de ferramentas jurídicas à escolha e a serviço do Estado Absoluto". Assim,
Rosemiro Pereira Leal defende a "articulação normativa horizontalizadora, num
plano 'poliárquico', não autárquico-estatal, hierárquico ou autocrático em que se
conceberia a primazia das instituições sobre as outras ou umas abrangendo outras".
Por conseguinte, segundo Roberta Maia Gresta, "uma vez que o Estado não mais é
encarado como ente superior, doador e definidor de direitos, o espaço de existência
da Cidadania é uma dimensão ativa e autônoma, não mais contemplativa
(receptadora de direitos) e tutelada (definida e controlada pelo Estado)".82
Essa conjectura é de vital importância na presente dissertação, pois apenas
concebendo o Cidadão e o Estado em igualdade institucional é que será possível
abordar o mandado de segurança como instituto constitucionalizado para a

81
Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 38, 86-87. A teoria neoinstitucionalista do processo:
uma trajetória conjectural, p. 11.
82
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 36, 87-89. GRESTA,
Roberta Maia. Introdução aos fundamentos da processualidade democrática, p. 10.


concretização de direitos fundamentais líquidos e certos das pessoas em situação


de rua, ao contrário do mandado de segurança como instrumento para a defesa de
direitos líquidos e certos comprovados de plano e instigadores de convicção
absoluta no íntimo do juiz.83 Além disso, entender a cidadania como direito
fundamental de autoilustração e de participação ativa nas instâncias decisórias
permite romper a hipótese de o Estado caridoso que somente por bondade -
habilmente manipulada em propagandas eleitorais ou cotidianas por órgãos públicos
que fazem questão de escancarar ações que não passam de obrigações - concretiza
direitos fundamentais.
Forte na teoria neoinstitucionalista do processo, Roberta Maia Gresta afirma
que o cidadão deve ter atuação direta na democracia, com a "abertura das
instâncias decisórias à participação dos cidadãos, e não apenas a representantes.
Em perspectiva jurídica, essa abertura compreende a enunciação de sentidos com
caráter vinculativo. Isso significa que não basta que se assegure o comparecimento
do cidadão aos locais de deliberação, como ouvinte ou, tampouco, concedendo-lhe
oportunidade de manifestação. O ingresso na instância decisória se perfaz quando o
sentido enunciado pelo cidadão, ainda que não venha a prevalecer, não pode ser
desconsiderado na tomada de decisões" e que a "delegação da interpretação do
Direito à autoridade estatal tem conduzido a questão do acesso à jurisdição sob a
ótica da movimentação do aparato judiciário para a produção de decisões. O
cidadão se coloca perante o intérprete autoritário como destinatário da decisão
judicial, e não construtor desta".84
Dessa maneira, a concepção de cidadania está atrelada à participação do
povo nas instâncias decisórias e ao princípio do Estado Democrático de Direito e
não na simples capacidade eleitoral.85 Em outras palavras, a cidadania não é


83
Segundo Rosemiro Pereira Leal, “o instituto processual do mandamus, na contemporaneidade
constitucional brasileira, adquiriu densidade dentológica de controle de efetividade jurídica das
competências funcionais dos titulares da atividade pública para coibir omissões e afastar
ilegalidades contra o exercício da dignidade econômica (existência digna) assegurada a todos
como direito fundamental econômico líquidos e certo” (Relativização inconstitucional da coisa
julgada, p. 38).
84
GRESTA, Roberta Maia. Introdução aos fundamentos da processualidade democrática, p. 56-57.
85
O termo povo deve ser entendido consoante lições de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias como
"substrato humano componente da comunidade política do Estado" (Processo constitucional e
estado democrático de direito, p. 75). Conforme dispõe o artigo 1º, inciso ll, a cidadania é
fundamento do Estado Democrático de Direito, estando diretamente relacionada com o indicado no
parágrafo único, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988). Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em posição criticada nesta dissertação


adquirida, conforme crítica de André Del Negri, "mediante a retirada do título de


eleitor", pois o voto "deve ser visto como uma parcela mínima da democracia, vez
que o povo não se inclui no sistema somente pelos direitos políticos, mas pelo
cumprimento de outros direitos fundamentais, que passam, obviamente, pelo
exercício do Devido Processo Constitucional (reivindicação e fiscalização)".86
A inexistência de hierarquia interpretativa entre o Estado e as partes
procedimentais pode ser melhor compreendida a partir da necessária
problematização das noções entrelaçadas de sujeito de direito, parte da comunidade
jurídica e parte procedimental.
A distinção que Rosemiro Pereira Leal faz entre as figuras do sujeito natural,
sujeito individual e sujeito de direito é importante para a diálise da pessoa em
situação de rua. O sujeito natural é aquele que “nada tem a não ser o seu patrimônio
biológico; o sujeito individual "com seus direitos históricos já definidos-individuados
quanto a si, seu patrimônio biológico (o corpo e a força de trabalho) e a seus
vínculos interativos e dominiais"; o sujeito de direito que "nas democracias co-
institucionalizadas é o sujeito natural investido (cidadanizado), por direitos
fundacionais (fundamentais), de personalidade composta de vida, liberdade e
dignidade estruturantes de sua individualidade não egressa de uma 'natureza
humana' posta pelo saber metafísico”.87
A pessoa em situação de rua não está restrita a mera vida biológica (sujeito
natural) a ser conduzida pelo civil. Pelo contrário, a pessoa em situação de rua é
sujeito de direito apta a fruir direitos fundamentais sem intermediários (interditores).
A carência socioeconômica não implica na redução do sujeito de direito ao sujeito
natural que obrigasse a intervenção do Judiciário bondoso e obsequioso para a
existência de direitos fundamentais já assegurados constitucionalmente.
A noção de sujeito de direito contém a noção de sujeito natural, mas não se
deve cogitar a existência autônoma e independente do sujeito natural na teoria


por reduzir a cidadania à capacidade eleitoral, “a cidadania (em sentido estrito) é o status de
nacional acrescido dos direitos políticos (stricto sensu), isto é, poder participar do processo
governamental, sobretudo pelo voto [...]. Nas democracias como a brasileira, a participação no
governo se dá por dois modos diversos: por poder contribuir para a escolha dos governantes ou
por poder ser escolhido governante. Distinguem-se, por isso, duas faces na cidadania: a ativa e a
passiva” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 146). Em
sentido semelhante: MORAES, Guilherme Braga Peña de. Curso de direito constitucional, p. 629.
86
Controle de constitucionalidade do processo legislativo: teoria da legitimidade democrática, p. 77.
87
LEAL, Rosemiro Pereira. Constituição e processo: a contribuição do processo ao
constitucionalismo democrático brasileiro, p. 289.


neoinstitucionalista do processo, o que equivaleria a corroborar a hipótese do sujeito


que só tem o seu patrimônio biológico. Ressalta-se que a carência socioeconômica
não é carência emocional, afetiva, cognitiva e não significa redução do sujeito ao
seu patrimônio biológico. Por isto, quando se utiliza o termo cidadão, deve-se levar
em conta que o cidadão é sujeito de direito.
Ao introduzir a questão da biopolítica, Giorgio Agamben aponta que “os
gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a
palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos,
ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver
comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a
forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo”.88
Diferentemente, Rosemiro Pereira Leal aproxima a zoé (vida exclusivamente
vegetativa) da bíos (vida biológica), ambas formando o que denomina de vida
entitiva, e a bíos da polytikos, “uma vida dita social por aperto de mãos ou braços”.
Desta maneira, Rosemiro Pereira Leal supera as concepções tacanhas de vida
lastreadas na filosofia grega, propondo a teoria da vida caracterizada pela “escolha
entre teorias como modelos lingüístico-construtivos a expressarem o homem na sua
complexa existência, outorgando-lhe continuadamente a oportunidade de desistir de
suas teorias, substituindo-as, eliminando-as, fiscalizando-as, modificando-as a
serviço da formação de uma sociedade de falantes”.89 Novamente, na teoria
neoinstitucionalista do processo, o humano é habitante do mundo construído por ele
e não de maneira prévia e insondável por terceiros imaginários; o sujeito de direito,
ao contrário do potus, fala e não é falado.90
Fica ultrapassada, também, a concepção segundo a qual comunidade jurídica
é a reunião de juristas (advogados, professores e estudantes de direito, juízes,
promotores, defensores, especialistas) que detêm o monopólio na interpretação e
aplicação da lei frente a população convenientemente classificada de ignorante para
que o entrar na lei lhe seja interditado. Esse tipo de comunidade pressuposta e
restrita não encontra guarida na teoria neoinstitucionalista do processo, para a qual
a comunidade jurídica, conforme escrito acima, é o povo.


88
Homo sacer: poder soberano e vida nua, p. 9.
89
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p. 70,
82.
90
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo civil e sociedade civil. Virtuajus. Belo Horizonte, ano 4, n. 2,
2005, p. 1.


Após a Constituição de 1988, a parte procedimental não é identificada, pela


sentença judicial, mas pela norma processual. Conforme assevera Rosemiro Pereira
Leal, parte é “instituto do Direito Processual a significar o sujeito de direito criado
pela norma processual para acertar ou provocar direitos ou opor defesas em
hipóteses procedimentais em que direitos lhe sejam negados, confrontados, violados
ou lesados” e não mero destinatário dos efeitos da sentença ou “um ente carnal ou
social como pessoa física ou jurídica que ocupe pólo ativo ou passivo na 'ação'
judicial”. A parte adquire essa titularidade jurídica pela Constituição, pois é integrante
da comunidade jurídica, em outras palavras, “o atributo de ser parte, após a edição
da Constituição de 1988, não é mais uma qualidade adquirida no rol dos elementos
configurativos do procedimento (ação), mas pela identidade ex-ante
constitucionalmente conferida, por via institutiva, ao sujeito de direito já titular do
direito fundamental de instaurar pretensões ou contra-pretensões em juízo”.91 Por
conseguinte, sujeito de direito e parte procedimental estão entrelaçados, pois a parte
procedimental deriva, constitucionalmente, do sujeito de direito.
A diferenciação e concomitante aproximação levada a cabo por Rosemiro
Pereira Leal com relação ao sujeito de direito e à parte procedimental são
importantes, por dois motivos. Em primeiro lugar, não há que se cogitar a existência
do sujeito que não seja o sujeito de direito, isso é, o humano não pode ser reduzido
à mera existência biológica, pois, ainda que as suas condições socioeconômicas
sejam as piores possíveis, somente o considerando sujeito de direito é que esta
realidade opressora pode ser superada. Em segundo lugar, a indicação
constitucional do sujeito de direito como parte procedimental retira da sentença e,
por consequência, da auctoritas, a competência de definir quem pode ou não ser
parte procedimental.
Dessa maneira, a pessoa em situação de rua não depende da auctoritas (juiz,
defensor público, promotor, advogado) para ser o sujeito de direito ou parte
procedimental, visto que ambas as titularidades estão indicadas constitucionalmente
e são extensíveis a todos.

5. Judicialização ou processualização?


91
LEAL, Rosemiro Pereira. Direito processual, p. 76, 78.


É importante que não se confunda a hipótese desta dissertação, qual seja, o


mandado de segurança como procedimento constitucional para a execução de
direitos fundamentais líquidos e certos da população em situação de rua, com outra,
bem diferente, que indica a concretização dos direitos fundamentais por meio da
judicialização da política ou de termos correlatos, tal como o ativismo judicial.
Em artigo de 2012, Luís Roberto Barroso afirma que a "judicialização significa
que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas
por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o
Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o
Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como
intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais,
com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de
participação da sociedade". O autor ressalta que, nos casos em que elenca como
exemplos de judicialização, o Supremo Tribunal Federal "foi provocado a se
manifestar e o fez nos limites dos pedidos formulados [...]. Não se pode imputar aos
Ministros do STF a ambição ou a pretensão, em face dos precedentes referidos, de
criar um modelo juriscêntrico, de hegemonia judicial. A judicialização, que de fato
existe, não decorreu de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica da Corte.
Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em
conformidade com o desenho institucional vigente".92
Ainda apegado à ultrapassada teoria da tripartição dos poderes estatais, o
autor acredita que a redemocratização, a constitucionalização abrangente e o
sistema brasileiro de controle de constitucionalidade implicam na perigosa
transferência de poderes para juízes e tribunais, se esquecendo que os órgãos
estatais competentes pelo exercício da função jurisdicional não têm poderes, mas
competências previamente determinadas no ordenamento jurídico e fiscalizáveis
pelo povo no processo constitucional.
Além disso, a atuação do Supremo Tribunal Federal não encontra limites
apenas nos pedidos formulados pelas partes, sendo restringida pelo ordenamento
jurídico, principalmente pela Constituição e o seu princípio do devido processo
constitucional e as garantias de ampla defesa, contraditório e isonomia. A decisão
jurisdicional que se baseie exclusivamente nos pedidos das partes sem observância


92
BARROSO, Luís Roberto. [Syn]thesis, p. 24-25.


da argumentação das partes seria imprestável para o Estado Democrático de


Direito.
Com lastro em Ronaldo Dworkin e Loiane Prado Verbicaro, Teodolina Batista
da Silva Cândido Vitório afirma que a judicialização da política é "uma onda
resultante da expansão da potencialidade do Judiciário conferida pela Constituição,
objetivando a efetivação dos direitos individuais, em especial das minorias - ponto
nodal da democracia. Concentra-se na interseção de interesses políticos com os
princípios constitucionais, não raro conflitantes. Essa judicialização [...] corresponde
à nova formação dos direitos fundamentais a partir da pulverização do primitivo
modelo de separação absoluta dos poderes, bem como também da emancipação e
legitimação do Poder Judiciário para atuar em conflitos sociais anteriormente
destinados exclusivamente aos poderes constituídos democraticamente para essa
finalidade".93
A autora se equivoca ao situar a razão para a maior amplitude de atuação do
poder Judiciário na inércia dos poderes Legislativo e Executivo, e encontrar a
solução desse problema na mitigação da separação dos poderes que conferiria ao
poder Judiciário a prerrogativa para agir em esferas de competência dos outros
poderes.
Quanto aos direitos das minorias, a autora desconsidera que a autoinclusão
na fruição de direitos fundamentais líquidos e certo independe da condição
percentual do legitimado ao processo frente ao total da população brasileira. Pouca
importa se minoria ou maioria, a parte litigante atuará no processo em isonomia,
sem depender da bondade do juiz para corrigir desigualdades socioeconômicas,
uma vez que essas não implicam em desigualdades no processo.
A crítica de Rosemiro Pereira Leal às ações afirmativas é válida nessa
conjectura. Segundo o autor "esses realistas privilegiados [...] imaginam uma
sociedade que não é construída pela comunidade jurídica, mas um aglomerado
social que deva, à sua escolha, resgatar minorias e diferentes, embora nestes os
salvacionistas não incluam os milhões de esfomeados e despossuídos, ocupando-se
civilística e garbosamente do cigano, do índio, do negro, do homossexual, do
deficiente, como se a discriminação sofrida por tais indivíduos não já violasse o texto
constitucional democrático, cuja restauração exige propositura urgente de

93
VITÓRIO, Teodolina Batista da Silva Cândido. Ativismo judicial: uma nova era dos direitos
fundamentais, p. 100-101.


procedimentos judiciais executivos (não ações afirmativas) como dever do


Ministério Público para conferir a todos a fruição de direitos fundamentais adrede
acertados pelo legislador constituinte e a exigirem pronta execução (art. 5º, § 1º,
CR/88)".94
Com relação ao ativismo judicial, Luís Roberto Barroso o define como "uma
atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição,
expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de
retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a
sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira
efetiva. A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e
intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior
interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes".95
Elival da Silva Ramos afirma que o ativismo judicial é "o exercício da função
jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,
institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições
subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva
(conflitos normativos)".96
Discorrendo sobre o ativismo judicial, Teodolina Batista da Silva Cândido
Vitório afirma que o "ideal de consolidação da democracia num país precisa passar
também pelas fronteiras do seu Judiciário, o qual, como é cediço, por meio da justa
composição dos conflitos, pode, sim, reconstruir os marcos históricos de seu povo.
Questiona-se, atualmente, se, em seus pronunciamentos e veredictos, os
magistrados devem ou não curvar-se passivamente ao poder da norma jurídica (civil
law), na luta pelo ideal de justiça, no processo de construção e fomento do direito.
Perquire-se, ainda, se podem esses representantes do Judiciário suprir as sérias e
costumeiras omissões do Legislativo e do Executivo, sobretudo no que se refere à
implementação de políticas públicas que são indispensáveis à efetivação do Estado
democrático. Emergem desta investigação as calorosas vozes do ATIVISMO
JUDICIAL que há muito têm ecoado na consciência e na ética dos tribunais
pátrios".97


94
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 78-79.
95
[Syn]thesis, p. 25-26.
96
Ativismo judicial, p. 130.
97
VITÓRIO, Teodolina Batista da Silva Cândido. Ativismo judicial: uma nova era dos direitos
fundamentais, p. 141. Apesar de estarem intimamente ligados, a judicialização da política e o


Nessas hipóteses, o poder Judiciário atua como verdadeiro porta-voz da


sociedade pressuposta que cria leis e realidades unicamente interpretáveis pela
mente esclarecida dos juízes, ao arrepio da própria lei e da participação das partes
que são hipossuficientes não só de recursos financeiros, mas, principalmente, de
argumentos.
O ativismo judicial é defendido como o necessário alargamento da atuação do
poder Judiciário em face da omissão do poder Legislativo ou do descompasso entre
o poder Legislativo e a sociedade que causa a inefetividade dos direitos
fundamentais. O problema comumente apontado da violação da separação dos
poderes é solucionado com a restrição da atuação do Judiciário às hipóteses legais,
ou seja, o poder Judiciário estaria agindo dentro dos limites legais, sem invadir a
esfera de competências dos poderes Legislativo e Executivo.
Contudo, o ordenamento jurídico estabelece limites diversos que não se
restringem a divisão das funções estatais, abrangendo, também, a submissão de
todos os agentes estatais aos princípios constitucionais, dentre os quais avultam os
princípios da vinculação da jurisdição ao estado democrático de direito, supremacia
da Constituição, reserva legal, devido processo constitucional, contraditório e
fundamentação das decisões jurisdicionais.
Segundo crítica de André Del Negri, "o Judiciário passou por reformulações
hermenêuticas e percorreu um caminho assegurador (e assustador!) da atividade
criadora do juiz (ativismo judicial) em busca da tentativa de conciliação entre a
realidade social, os ditames constitucionais (bem-estar, sociedade solidária...) e a
'justiça nas decisões', ao arrimo da 'letra fria da lei'" e que "se o juiz tentar suprir as
diferenças materiais dos cidadãos pelo processo (núcleo discursivo nas


ativismo judicial são diferentes. Segundo o Grupo Interinstitucional do Ativismo Judicial, sob
coordenação de José Ribas Vieira, “as semelhanças, contudo, dão lugar às diferenças quando se
observa que um representa uma dinâmica de proporções macro enquanto o outro está centralizado
em uma única figura. A judicialização da política envolve, assim, um processo de todo o Poder
Judiciário, de cunho essencialmente procedimental. O ativismo judicial, ao contrário, direciona-se
aos atores deste Poder. A judicialização da política [...] pode ser identificada por meio de
instrumentos de proteção judicial, da migração de discussões do Legislativo para o Judiciário
através de impugnações ou, ainda, pela adoção de procedimentos tipicamente judiciais no
Legislativo e no Executivo. Em contrapartida, o ativismo judicial, também descrito, pelos autores,
seria um fenômeno no qual os juízes passam a se interessar por uma atuação política, isto é, de
participar do policy-making” (O Supremo Tribunal Federal em tempos de mudanças: parâmetros
explicativos, p. 181-182). Tanto o ativismo judicial quanto a judicialização pressupõem a expansão
das competências do poder Judiciário e, consequentemente, dos juízes, podendo ocorrer até
contra legem e em detrimento da participação das partes que ocupam lugar secundário nas
hipóteses da judicialização da política e do ativismo judicial.


democracias), seria o mesmo que dizer que o juiz age como parte, pois
representante de um Judiciário homologador das funções do refutado paradigma de
Welfare State. Ao adotar esse ativismo justiceiro (juiz Robin Hood), com o
argumento de fazer “justiça social”, escapa da reserva legal do processo e comete-
se dupla lesão. A primeira: a de remeter as partes processuais à posição de meros
destinatários do Direito (e não coconstrutoras da decisão). Uma outra: a negativa da
simétrica paridade ao cidadão na base de discursividade processual (devido
processo constitucional), desconfigura o princípio do contraditório, eixo teórico-
democrático-fundamental de discursividade isonômica, porque não há contraditório
sem a observância da simétrica e simultânea paridade entre as partes
processuais".98
Portanto, as decisões jurisdicionais não podem ser veículos de concretização
de valores constitucionais e anseios da sociedade pressuposta por uma linguagem
inerente e irrefutável, conferindo ao juiz o protagonismo e monopólio decisórios,
violando justamente os direitos fundamentais que pretende concretizar.
Discorrendo sobre a quebra do dogma do protagonismo do juiz, Dierle José
Coelho Nunes afirma, em valiosas lições, que "a visão de um protagonismo judicial
somente se adapta a uma concepção teórico-pragmática, que entrega ao juiz a
capacidade sobre-humana de proferir a decisão que ele repute mais justa de acordo
com sua convicção e preferência (solipsismo metódico) segundo uma ordem
concreta de valores, desprezando, mesmo em determinadas situações (hard cases),
possíveis contribuições das partes, advogados, da doutrina, da jurisprudência e,
mesmo, da história institucional do direito a ser aplicado". Diante do protagonismo do
juiz no procedimento, o autor propõe "um afastamento completo da idéia de
privilégio cognitivo do julgador (decisionismo) e a implantação de um espaço
discursivo comparticipativo de formação das decisões" e assevera que "a análise do
direito prescinde de pré-compreensões não problematizadas ou problematizáveis
dos ideais de bem viver, que seriam entregues aos critérios de salvação de algum
escolhido, seja este uma instituição de controle central (v. g. o Estado ou Igreja), um
órgão ou uma pessoa", pois "o Estado constitucional democrático assegura,
mediante balizas processuais constitucionais (princípios constitucionais), uma
participação constante e efetiva dos sujeitos de direito, que a estes permite uma


98
DEL NEGRI, André. Revista Brasileira de Direito Processual - RBDPro.


colaboração na formação dos provimentos (leis, decisões judiciais, atos


99
administrativos) dos quais sofrerão os efeitos".
A judicialização dos direitos fundamentais não contribui para a sua
concretização, mas para enfraquecer a participação das partes procedimentais e
reforçar o protagonismo do juiz, cujas decisões poderão conter elevada dose de
discricionariedade e de valores metajurídicos supostamente identificados com os
valores da sociedade pressuposta, homologatória e beneficiada pela realidade
violenta e desigual.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, o ativismo é a "atuação judicial
jurisprudencializada" e deposita a "interpretação do direito nos dogmas de certeza
do sentido normativo ditado pela auctoritas". Para o autor, "o que se testemunha é o
ativismo-garantismo de um direito homologatório de realidades políticas
miticamente implantadas em que decisores (autoridades) já pertencem a uma
sociedade pressuposta antes mesmo de se considerarem integrantes de um projeto
de uma Sociedade Democrática de Direito Constitucionalizado, negando a essa
existência real e atribuindo àquela uma existência verdadeira e portadora de valores
aos quais historicamente aderiram sem qualquer reflexão sobre as suas bases
fundantes e operacionais. É essa mesma sociedade pressuposta, denominada 'civil'
em suas camufladas origens, que torna indiscerníveis tirania e democracia em que
democracia é a promessa realizada da tirania e esta a necessária condição para
restabelecer a democracia".100
Por isso, a concretização dos direitos fundamentais deve ser processualizada
com a utilização do contraditório, isonomia e ampla defesa que evitarão o
protagonismo decisório do juiz e submeterão os órgãos estatais decisores ao
princípio do Estado Democrático de Direito, pois não é possível afirmar que o
erroneamente denominado poder judiciário não se submete aos princípios da
Constituição, podendo negar a participação ostensiva das partes na elaboração das
decisões jurisdicionais.


99
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas
processuais, p. 191-192, 196-197.
100
A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p. 20.




CAPÍTULO 2: PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA

Apenas recentemente a pessoa em situação de rua tem sido problematizada


sob o viés da ciência do direito. O livro “Direitos fundamentais das pessoas em
situação de rua”, organizado por Ada Pellegrini Grinover, Gregório Assagra, Miracy
Gustin, Paulo Cesar Vicente de Lima e Rodrigo Venaco e fruto do trabalho coletivo
de 72 pesquisadores veio em boa hora para quebrar a calmaria crítica no direito
sobre esse tema. Com certeza, referida obra representa um esforço científico que
resultará em problemas inesperados e mais complexos sobre as relações entre a
situação de rua, os sujeitos de direito nela inseridos e o próprio direito.
Diante desses problemas, a participação ostensiva da população em situação
de rua e mais pesquisas científicas são essenciais para a eliminação de erros e
construção de novas hipóteses. É necessário problematizar a pessoa em situação
de rua para que não se repitam erros e se perpetuem desigualdades por meio da
sua infantilização.

1. Delimitação

A pessoa em situação de rua não pode ser definida, pois não é possível
estabelecer conceito suficientemente abrangente que envolva a heterogeneidade
das pessoas em situação de rua. Contudo, é possível delimitar alguns traços para,
ainda que precariamente e ad hoc, indicar a noção acerca das pessoas em situação
de rua.
Ademais, a diálise do fenômeno situação de rua não deve cair nos extremos
de culpabilização da pessoa em situação de rua ou de total responsabilização do
Estado. Entre os dois limites, há o caminho que envolve a elaboração compartilhada
de políticas públicas pelo Estado e pela população em situação de rua para que a
realidade seja processualmente teorizada e alternativas viáveis e efetivas sejam
construídas.
Nas palavras de Iacã Machado Macerata, Júlia Neuenschwander Magalhães
e Noelle Coelho Resende, "ao nos referirmos à 'população em situação de rua', na
verdade estamos dando nome a uma totalidade não totalizável. A manobra
discursiva de denominar coletividades de 'população' para todas as categorias já é,
em si, uma generalização mais ou menos arbitrária. A chamada 'população em


situação de rua' é, em verdade, uma heterogeneidade de pessoas de várias idades,


advindas de variadas classes sociais, de variados níveis de 'instrução' educacional,
e, mais que tudo, que estabelecem com a rua as mais variadas formas de
relações".101
Marília Souza Diniz Alves pondera que as pessoas em situação de rua "têm
em comum a vida em condições precárias, seja por questão circunstancial seja por
questão permanente" e alerta que "as tentativas de caracterizar esse segmento
populacional ainda são incipientes por tratar-se de grupo heterogêneo".102
Segundo Bruno Wanderley Júnior e Carla Ribeiro Volpini Silva, a população
em situação de rua é composta por pessoas que "não tendo moradia e, geralmente,
não tendo emprego formal, vivem em condições precárias e sujeitas, diariamente,
aos riscos da fome, da miséria, das doenças, além da violência urbana e do
preconceito".103
Maria Lucia Lopes da Silva identificou seis aspectos característicos do
fenômeno população em situação de rua, quais sejam: 1º.)- As múltiplas
determinações, dentre as quais se encontra os fatores estruturais, como a "ausência
de moradia, inexistência de trabalho e renda, mudanças econômicas e institucionais
de forte impacto social" vinculadas à "estrutura da sociedade capitalista", fatores
biográficos, da natureza ou desastres de massas como terremotos e inundações;
2º.)- A "expressão radical da questão social na contemporaneidade, que materializa
e dá visibilidade à violência do capitalismo sobre o ser humano, despojando-o
completamente dos meios de produzir riqueza para uso próprio e submetendo-o a
níveis extremos de degradação de vida"; 3º.)- A localização do fenômeno nos
grandes centros urbanos, tendo em vista a "conjugação de vários fatores, como a
maior circulação do capital, a infraestrutura, a arquitetura e a geopolítica dos
grandes centros"; 4º.)- "o preconceito como marca do grau de dignidade e valor
moral atribuído pela sociedade às pessoas atingidas pelo fenômeno" com a
realização de "práticas higienistas, direcionadas para camuflar o fenômeno,
mediante massacres, extermínios ou recolhimento forçado dessas pessoas das
ruas"; 5º.)- "as particularidades vinculadas ao território em que se manifesta" e que
refletem no "perfil socioeconômico, no tempo de permanência nas ruas e nas

101
MACERATA, Iacã Machado; MAGALHÃES, Júlia Neuenschwander; RESENDE; Noelle Coelho.
Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p. 132.
102
Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p. 84.
103
Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p. 66.


estratégias de subsistência utilizadas pelas pessoas em situação de rua"; 6º.)-


"tendência à naturalização do fenômeno [...] acompanhada pela inexistência de
políticas sociais universalizantes, capazes de reduzir a pobreza e as desigualdades
sociais na perspectiva de ampliar a cidadania, de garantir cobertura às pessoas que
se encontram em situação de rua [...]. Essa tendência leva a ver o fenômeno como
um processo natural da sociedade moderna, que deve ser amenizado, controlado,
para não comprometer a ordem burguesa, ou ainda como resultante dos traços
invariáveis da sociedade humana e não como um produto das sociedades
capitalistas. É, pois, uma tendência que atribui aos indivíduos a responsabilidade
pela situação em que se encontram, isentando a sociedade capitalista da produção
e reprodução do fenômeno e o Estado da responsabilidade de enfrentá-lo".104
Quanto às características gerais da população em situação de rua, Maria
Lucia Lopes da Silva utiliza traços semelhantes ao disposto no artigo 1º, parágrafo
único, do Decreto n° 7.053/2009 e conclui que a terminologia população em situação
de rua é utilizada para "designar o fenômeno e a situação a que são conduzidas
parcelas expressivas da classe trabalhadora, em decorrência do aprofundamento
das desigualdades sociais e da elevação dos níveis de pobreza produzidos pelo
sistema capitalista. A expressão alude, portanto, a uma situação decorrente, em
última instância, da estrutura basilar da sociedade capitalista e não apenas das
perdas e infortúnios de indivíduos", sendo "condição não escolhida pelos que nela se
encontram, mas que nela foram colocados".105
Em resumo, seguindo o disposto no artigo 1º, parágrafo único, do Decreto n°
7.053, "considera-se população em situação de rua o grupo populacional
heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares

104
SILVA, Maria Lucia Lopes da. Trabalho e população em situação de rua no Brasil, p. 105, 116,
119-122. Em sentido semelhante ao 6º aspecto característico apontado por Maria Lucia Lopes da
Silva, o autor dessa dissertação afirmou que “o caminho mais fácil para a legitimação e justificação
de arbitrariedades cometidas, seja por agentes da Administração Pública ou por qualquer outra
pessoa é a naturalização do ato violento. Naturalização [...] significará a internalização de certo ato
pela população como resultante lógico de uma série de fatos que ocorreram previamente; esta
internalização é baseada por sua vez, no diálogo precário ou ausente, na dicotomização das
relações humanas e sociais e na aparência de normalidade que reveste o ato violento. Os
principais efeitos desta naturalização são o não distanciamento do indivíduo na analise da violação
dos direitos humanos; a perda da capacidade de indignação e eleição de certo grupo ou
comportamento como inimigo da sociedade. Afinal, o que é natural não causa surpresa” e que “se
por um lado, na lógica capitalista de trabalho e mérito, é esperado (e absurdamente aceitável) que
um indivíduo só tenha um padrão de vida digno se o merecer, por outro lado, é natural que aquele
que não se esforçar, não terá a sua recompensa. Nada mais cruel e simplista do que este
raciocínio, em especial com a população em situação de rua que é tratada como causadora da
própria pobreza” (LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 316, 319).
105
SILVA, Maria Lucia Lopes da. Trabalho e população em situação de rua no Brasil, p. 137.


interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e


que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia
e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de
acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória".106
Esses são os traços que permitem delimitar provisoriamente as
características principais das pessoas em situação de rua, bem como do fenômeno
situação de rua. O termo situação na terminologia pessoa em situação de rua, não
significa que aquele estado é transitório, mas que a localidade da rua é utilizada
como espaço de moradia, sociabilidade, convivência e trabalho, de forma passageira
ou não.
O cerne da questão está em não concluir que a situação de rua implique na
ausência de formas de vida, pois as pessoas em situação de rua são excluídas de
condições socioeconômicas elevadas e do acesso aos recursos financeiros e não da
vida. Detrás da imagem estigmatizada do mendigo doente, louco, perigoso e sujo,
há um sujeito de direito com uma história de vida, ideias, paixões, necessidades,
desejos e peculiaridades que não impedem a elaboração de decisões jurisdicionais,
legislativas e administrativas pelas pessoas em situação de rua.
Ao tratar das diferentes expressões utilizadas para designar o indivíduo que
guia o automóvel (chauffer, em francês; conductor, em espanhol; driver, em inglês;
motorista em português), Edward Lopes afirma que “trata-se de uma mesma
atividade, mas a análise que cada língua pratica nessa realidade resulta na
apreensão de um aspecto particular de uma série de operações, e esse aspecto
focalizado difere de uma para a outra comunidade de falantes”.107
No Brasil, a pessoa em situação de rua recebe diferentes denominações que
revelam a ênfase em certo aspecto da vida em situação de rua, tais como mendigo
(atividade de pedir esmola), e, segundo Walter Varanda, maloqueiro (de maloca,
“ligar definido de permanência de pequenos grupos durante o dia ou usado para o
pernoite, que normalmente tem colchões velhos, algum canto reservado para os
pertences pessoais (roupas e documentos) e às vezes, utensílios de cozinha”);
trecheiro (experiência do trecho, ou seja, o trânsito de "uma cidade para a outra a
procura de trabalho"); pardais ("moradores de rua que se fixam e não trabalham");
bêbados, bebuns e alcoólatras (dependência química de bebidas alcoólicas) e nóia e

106
BRASIL. Decreto n° 7.053, de 23 de dezembro de 2009.
107
Fundamentos da lingüística contemporânea, p. 22.


pedreiros (usuários de outras drogas).108


Nos Estados Unidos, o termo utilizado para designar as pessoas em situação
de rua é homeless, com ênfase na ausência de moradia, podendo ser utilizado ainda
para as pessoas que estão em habitações precárias. Na Espanha, o termo
pordiosero enfatiza a atividade de pedir esmolas, seguida da expressão por Dios, ou
personas sin hogar e personas em situación de calle para realçar a falta de moradia
e a utilização das ruas; na França, o termo sans-abri revela a ênfase na falta de
abrigo e casa e a expressão clochard, também utilizada para designar o tipo de
calça de tamanho desproporcional, fazendo alusão às roupas doadas para as
pessoas em situação de rua que a utilizam independentemente do tamanho.109
Voltando à diálise da situação de rua, pode parecer óbvio desvincular a
pessoa da situação de rua, mas esta hipótese é importante no plano processual,
uma vez que a condição socioeconômica da pessoa não se reflete, ou não deveria
se refletir, nos direitos constitucionais exercidos por ela no processo, pois, com
fundamento em Rosemiro Pereira Leal, é possível afirmar que "a diferença no
Estado Democrático é um dado estatístico-econômico ou fisio-sócio-psíquico (não
entre direitos fundamentais)" e não pode servir de pretexto para a desigualdade no
processo, seja a favor ou em prejuízo da pessoa em situação de rua.110
A figura do juiz sensível e bondoso que sofre do complexo de Magnaud e cria
direitos do nada após ouvir o apelo desesperado do jurisdicionado e o juiz frio que
segue o rigor da lei como se fosse autômato, no fundo, são dois lados da mesma
moeda da discricionariedade judicial, que leva o magistrado a violar o ordenamento
jurídico em prol da suposta justiça social, tendo em vista a propalada insuficiência da
lei em garantir direitos, ou em prol de uma aplicação rigorosa da lei. 111 Nos dois


108
Do direito a vida à vida como direito: sobrevivência, intervenções e saúde de adultos destituídos
de trabalho e moradia nas ruas da cidade de São Paulo, p. 5-6.
109
Segundo Christian Pierre Kasper, “os moradores de rua são denominados, em várias línguas, a
partir da privação: em inglês homeless, geralmente traduzido por sem teto, wohnungsloser em
alemão, isto é, aqueles que perderam a moradia. O interessante dessas expressões é a ênfase
particular de cada uma: ao homeless falta o home, que não é exatamente a casa, mas o espaço
doméstico, que, aliás, não está sempre ausente das moradias de rua (pelo menos em São Paulo),
como nossa pesquisa tende a mostrar. A denominação comum na França, sans domicile fixe,
comumente abreviado em S.D.F soa, por sua vez, como uma questão de polícia. Possuir um
domicílio fixo tem mais a ver com o controle social do que com o conforto pessoal (ao contrário do
home). O termo comumente usado no Brasil, morador de rua, destaca-se por sua positividade:
não se baseia na carência. Mas, talvez, a privação que o caracteriza é apenas implícita [...]. A rua,
sendo uma ‘terra de ninguém’, morar nela já denotaria um estado de privação” (KASPER,
Christian Pierre. Habitar a rua, p. 47).
110
Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 80.
111
Sobre o complexo de Magnaud, cf. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e


casos, tanto a lei como a justiça social são utilizadas como fundamento para que o
juiz desconsidere a argumentação das partes, reduzidas a meros espectadores dos
devaneios judiciários.
Por isso, quando se afirma que as diferenças extraprocessuais não
influenciam nos direitos fundamentais das partes no procedimento constitucional, o
que se procura é a autocrítica dos fundamentos do sistema e a autoinclusão pela
própria pessoa em situação de rua, dispensando os intermediários na fruição da lei.
O procedimento que aparentemente viabilize a concretização de direitos
fundamentais à saúde e moradia, por exemplo, da população em situação de rua,
mas que desrespeite a ampla defesa, contraditório e isonomia das partes, constituirá
paradoxo, pois não é possível executar direitos fundamentais pelo procedimento se
a própria decisão jurisdicional viola outros direitos igualmente fundamentais. Diante
deste cenário, haveria mera doação do Estado e a pessoa em situação de rua
continuaria excluída da fruição de direitos fundamentais encaminhada em espaços
processualizados, continuando a depender da boa vontade dos agentes estatais.
Por tais razões, ao se falar em pessoa em situação de rua, se deve ter em
mente que esta pessoa é, primeiramente, sujeito de direito com os atributos da
cidadania encaminhados pelo processo. Com isto, o enfoque é distribuído entre as
condições da população em situação de rua e a sua cidadania, entendida como
direito fundamental de autoilustração e autoinclusão no sistema de direitos
fundamentais.
Sem esse destaque da cidadania, a população em situação de rua seria
considerada população à parte, o que, além de ser falacioso, proporciona a
infantilização das pessoas em situação de rua e a continuação de medidas
assistencialistas e paternalistas. Por conseguinte, o mais adequado seria utilizar a
expressão sujeito de direito em situação de rua ou cidadão em situação de rua.112


estado democrático de direito, p. 160.
112
O autor dessa dissertação criticou, anteriormente, a utilização da terminologia mendigo, pois “o
termo [...] é associado desde a sua origem latina – e ainda hoje o é – a incompetência, falta de
aptidão física, degeneração, focando, deste modo, na situação em que se encontra, segundo o
senso comum” e “se o mendigo, aquele que é desvalido e precisa de ajuda é tratado de maneira
pejorativa, por outro lado, aquilo que lhe é entregue, a esmola, é designado por termo com origem
positiva, remetendo a ideia de caridade, de ajuda e filantropia” (LEITE, Bruno Rodrigues.
VirtuaJus, p. 249-250). A expressão morador de rua, apesar de ser amplamente utilizada, não
revela a precariedade e a degradação da rua. Segundo Patrícia Schuch e Ivaldo Gehlen, “a
ruptura entre a terminologia ‘morador de rua’ e ‘pessoas em situação de rua’ e/ou ‘população em
situação de rua’ foi [...] significativa de toda uma mobilização política que visou, de um lado,
atentar para a situacionalidade da experiência nas ruas e, de outro, combater processos de


2. Situação de exclusão

A afirmação segundo a qual a população em situação de rua é excluída da


sociedade e deve ser reinserida ou incluída é lacônica e não explicita o que se
entende por sociedade, quem e do que é excluída a população em situação de rua e
como deve ser a reinserção ou inclusão.113 Essa imprecisão técnica contribui para a
superficialidade das teorizações sobre a situação de rua que se restringem a apontar
vagamente os problemas, sem chegar a propor soluções efetivas e graduais.
A população em situação de rua é excluída dos padrões socioeconômicos
elevados e dos recursos financeiros. Contudo, a desigualdade socioeconômica não
implica em desigualdade de direitos fundamentais, extensíveis a todos
independentemente da condição financeira ou de aspectos pessoais. Além disso, a
exclusão socioeconômica da população em situação de rua, assim como de grande
parte do povo, não é uma exceção ou dano colateral, mas, antes, a normalidade e
característica fundamental do sistema econômico brasileiro que relega parte
considerável do povo à pobreza financeira e péssimas condições de vida que
propiciam, de outro lado, altos padrões de vida para parcelas diminutas do povo. 114
Certamente, não é possível alegar que a situação de rua é uma exceção na
realidade brasileira, pois a utilização de logradouros públicos como espaço de

estigmatização dessa população, definindo-os a partir de uma concepção do habitar a rua como
uma forma de vida possível, e não através de uma falta ou uma carência – de casa ou local de
moradia fixa” (A rua em movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na
cidade de Porto Alegre, p. 17).
113
Christian Pierre Kasper afirma que a expressão reinserção no mercado de trabalho “individualiza
um problema fundamental social”, produzindo “identidades de fracassados; longe de ‘resgatar a
auto-estima’ como se pretenda, a chamada reinserção é outra forma de estigmatização do
morador de rua, dessa vez como incapaz, incompetente” (Habitar a rua, p. 211).
114
Zygmunt Bauman afirma que “a expressão ‘baixa (ou dano, ou vítima) colateral’ foi recentemente
cunhada no vocabulário das forças expedicionárias militares e popularizada pelas reportagens
jornalísticas sobre suas ações, para denotar efeitos não pretendidos, não planejados
‘imprevistos’, diriam alguns, de forma errônea -, que, não obstante, são perniciosos, dolorosos e
prejudiciais” e que “o vínculo entre a probabilidade maior de se ter um destino de ‘baixa colateral’
e o fato de se ocupar uma posição degradada na escala da desigualdade é resultado da
convergência entre a ‘invisibilidade’ endêmica ou planejada das vítimas colaterais, por um lado, e
a ‘invisibilidade’ imposta aos ‘estranhos de dentro’ – os empobrecidos e os miseráveis -, por outro.
As duas categorias, por variadas razões são excluídas das considerações sempre que se avaliam
e se calculam os custos de um empreendimento planejado e os riscos associados à sua
execução. As baixas são ‘colaterais’ quando rejeitadas como não importantes o suficiente para
justificar os custos de sua prevenção, ou simplesmente ‘inesperadas’, porque os planejadores não
as consideraram dignas de serem incluídas entre os objetos das ações de reconhecimento
preparatório” (Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global, p. 11,15). A desigualdade
socioeconômica no Brasil não é mero dano colateral, pois integra e constitui parte essencial dos
cálculos dos planejadores que insistem em monopolizar as esferas decisionais, vedando a
autoinclusão do povo no processo constitucional legislativo, jurisdicional e administrativo para a
fruição jurídico-econômica.


moradia e sustento revela as desigualdades socioeconômicas estruturais que se


expandem, sob outras formas, para os moradores de favelas, presidiários,
prostitutas, refugiados, trabalhadores em condições análogas à escravidão e povos
e comunidades tradicionais, tais como índios, quilombolas e ciganos e tantas outros
sujeitos de direito brasileiros que não fruem direitos fundamentais.
Igualmente, não é possível afirmar que os judeus, ciganos, homossexuais,
testemunhas de Jeová e outros grupos perseguidos pelos nazistas eram
completamente excluídos da sociedade alemã e de países ocupados na Segunda
Guerra Mundial. Isto, pois parte considerável da população alemã e dos territórios
ocupados tinha conhecimento das atrocidades que eram cometidas nos guetos e
campos de trabalho, concentração e morte, além de se envolver direta ou
indiretamente com a indústria da morte.
Por conseguinte, a Shoah115 não foi um caso à parte, produto da loucura ou
maldade dos líderes alemães, mas a própria normalidade entre os anos de 1933 e
1945 que se operou em escala industrial, burocrática, ideológica, tecnológica e de
maneira metódica e planejada.116 Não há de se pensar no nacional-socialismo sem
fazer incursões na Shoah.
Da mesma maneira, a existência da situação de rua não é exceção à
realidade brasileira, pois está contida nos cálculos políticos, econômicos e sociais
das autoridades. Segundo Egidia Maria de Almeida Aiexe, "a persistência de
práticas sociais discriminatórias reflete os consensos não problematizados dos quais
todos partilhamos [...]. Sem enfrentar, prevenir ou reduzir o número das violações


115
O termo Shoah é utilizado para designar o assassinato em massa de judeus, ciganos e
homossexuais pelos nazistas e seus aliados entre 1933 e 1945, em detrimento de outros termos,
como genocídio e holocausto. Embora a maioria dos termos utilizados sejam insatisfatórios e
repletos de ideologias históricas, políticas e teólogicas, a expressão Shoah, embora tenha
limitações, parece ser a mais adequada. Segundo Leila Danziger, o termo genocídio é
inadequado devido a sua “designação restritiva ao genos – família, tribo ou raça. Sabemos que a
existência dos campos de extermínio, no coração da Europa, não afeta apenas este ou aquele
grupo humano, mas altera, de modo radical, a própria idéia de humanidade”. O termo holocausto
“de origem religiosa [...] empresta caráter voluntário e passivo à morte, aceita em submissão à
vontade divina”. Shoah, por sua vez, significa devastação ou catástrofe em hebraico e, apesar de
conter a “representação deuteronômica da devastação e sentença divinas”, tem o seu conteúdo
religioso “progressivamente esvaziado por historiadores, escritores e teólogos que, em Israel,
recusaram o endereçamento do conceito a suas raízes religiosas e sua interpretação em sentido
metafísico, alterando assim suas pesadas conotações de expiação e castigo” (Revista Digital de
Estudos Judaicos da UFMG, p. 50-53). Para Agamben, o termo Shoah é eufemismo e a utilização
da expressão holocausto “não só supõe uma inaceitável equiparação entre fornos crematórios e
altares, mas acolhe uma herança semântica que desde o início traz uma conotação antijudaica”
(O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, p. 40).
116
Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 71-147.


que decorre do déficit político reforçado pela discriminação social, não se poderá
estabelecer um patamar mínimo de integração e coesão social".117
As formas de controle da vida e morte das pessoas pelo Estado empregadas
atualmente não são idênticas às de cinquenta ou cem anos atrás. Apesar de vários
traços permanecerem, como a segregação espacial de segmentos populacionais
considerados indesejados (encarceramento da população pobre, internamento
compulsório de dependentes químicos, ocupação armada de favelas na cidade do
Rio de Janeiro pelas forças de repressão do Estado), os métodos e as justificativas
para a utilização desses métodos, se tornaram mais requintados.
Giovani Clark expressou bem o caráter dúbio dessa forma de governar
aparentemente democrática, mas cujos efeitos denunciam a concentração do poder
decisório nas mãos de poucos. Em texto de 2008, que aborda os governos
aparentemente democráticas, Giovani Clark indica que as ditaduras atuais “apoiadas
em aparato ideológico midiático, educacional e repressivo [...] concentram a
propriedade privada produtiva, ampliam as diferenças socioeconômicas, perpetuam
o Estado e reforçam a ilusão do mercado. Assim como modernizam
tecnologicamente a sociedade, multiplicando os ganhos empresariais e dilatando o
número de excluídos”. Comparando os governos atuais com as ditaduras do
passado, o autor afirma que “as ditaduras pós-modernas, como a nossa, geram
milhões de seres humanos descartáveis, implementando o holocausto social a cada
política econômica genocida, efetivadas ao prazer do ‘poder invisível’, ou melhor, do
poder econômico privado”. Além disso, Giovani Clark analisa as técnicas que o
governo utiliza para angariar apoio e para exercer pressão em grupos opositores,
afirmando que “a execução orçamentária pelo Executivo é ainda outro instrumento
de agigantamento de seu poder entre nós. Por intermédio do gasto do dinheiro
público se ativa ou inibe setores da economia, influenciando o processo produtivo,
podendo gerar, assim, a riqueza para alguns e o aparthaid social para muitos, ou
então, a cassação dos privilégios de poucos e a justiça distributiva para todos”.118
Nesse sentido, Giovani Clark ressalta que “os genocídios não foram
extirpados entre os homens. São executados por intermédio das armas de guerra ou
via políticas econômicas que eliminam a crédito ou à vista milhões de pessoas” e
aponta que “as radicais políticas econômicas transferem ganhos dos pobres para os

117
AIEXE, Egidia Maria de Almeida. Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p. 196.
118
CLARK, Giovani. Questões polêmicas de direito econômico, p. 28, 31-32.


ricos, sejam eles nações ou indivíduos, via política de juros, crédito ou renda,
executando uma pilhagem visível, através de uma guerra econômica, onde o
resultado é a fome, o desemprego e a morte fatal dos vencidos”. Dessa maneira, as
políticas econômicas, ao que se acrescenta as demais políticas públicas, “podem
aniquilar e soerguer setores, criar cidades mortas ou prósperas, ampliar ou reduzir
diferenças socioeconômicas entre regiões. Aliás, é em virtude delas que elimina-se
povos e etnias [...]. Portanto, as políticas econômicas podem levar à condenação à
morte e à não reprodução, sem a publicação devida e direito de ampla defesa”.119
Por conseguinte, o controle que o Estado exerce sobre as pessoas não se
limita ao método de segregação geográfica de determinada parcela do povo em
prisões, guetos, favelas, clínicas de tratamento compulsório, apesar de usá-lo em
larga escala. Além disso, as condições precárias de sobrevivência de amplas
parcelas da população não devem ser pensadas sob o viés subjetivista da existência
da suposta maldade intrínseca ao ser humano que o leva a desconsiderar o
sofrimento alheio, mas sob a ótica jurídica da existência de normas, procedimentos e
arcabouço ideológicos que fundamentam, justificam e protegem a violação e não
implementação de direitos fundamentais líquidos e certos.120 A definição de políticas
públicas e da alocação de verbas em determinadas regiões, setores e para certos
fins constitui técnica muito mais abrangente, refinada e mortífera do controle sobre a


119
CLARK, Giovani. Questões polêmicas de direito econômico, p. 35-36, 42.
120
Nesse sentido, em tese de doutorado, Orlando Zaccone D’Elia Filho pesquisou o acobertamento e
a impunidade sistemáticos das mortes causadas por policiais na cidade do Rio de Janeiro com o
arquivamento dos chamados autos de resistência. Uma das hipóteses do autor se refere à
existência de “uma política pública, na forma de razões de Estado, a ensejar os altos índices de
letalidade do sistema penal brasileiro, com destaque para aqueles praticados rotineiramente nas
favelas cariocas”, criticada por meio da “pesquisa empírica que reuniu a análise de mais de 300
procedimentos, com pedidos de arquivamento realizados pelo Ministério Público em inquéritos de
homicídios provenientes de autos de resistência, instaurados na capital do Rio de Janeiro, entre
os anos de 2003 e 2009”. Para o autor, “a existência de grupamentos policiais armados, em
diuturna atividade, a exercer o seu poder de criação letal [...] encontra na decisão de
arquivamento dos autos de resistência o locus do efetivo exercício da soberania, enquanto poder
sobre a vida e a morte regulado pelo direito. A tentativa de observar o encontro da vida nua com o
poder soberano, por meio do arquivamento dos autos de resistência, visa a questionar a
existência de um estado de exceção permanente na estrutura do Estado de Direito”. Orlando
Zaccone D’Elia Filho conclui que “estamos diante de uma política criminal com derramamento de
sangue a conta-gotas. O massacre presente nos homicídios provenientes de ‘autos de
resistência’, na cidade do Rio de Janeiro, assim como outros massacres na história, ganha ares
civilizatórios a partir de uma forma jurídica ao construir a figura do inimigo matável” (D’ELIA
FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos
na cidade do Rio de Janeiro, p. 24, 27-28, 259). Assim, o assassinato de pessoas se qualifica
como legítima defesa do policial, impunível pelo arquivamento dos autos de resistência,
escancarando o controle exercido pelo Estado sobre a vida e a morte da população com
aparência de legalidade. Cf. MISSE, Michel et alii. Revista de História da Biblioteca Nacional, p.
54-59. ARAÚJO, Fábio. Revista de História da Biblioteca Nacional, p. 60-63.


população.
No caso das pessoas em situação de rua, basta pensar no caráter
emergencial e provisório das políticas públicas, destinadas principalmente a suavizar
certos problemas. Não se nega que estas políticas sejam importantes e que surtam
efeitos positivos a curto prazo, mas, para pensar soluções duradouras para o
problema da vulnerabilidade das pessoas em situação de rua é preciso ir além e
este passo só pode ser tomado com a ampla e irrestrita participação dos principais
interessados: a própria população em situação de rua.
É insuficiente e até temerário que as decisões sobre as políticas públicas que
envolvam as pessoas em situação de rua sejam tomadas solitariamente nos
gabinetes governamentais ou por assembleias compostas por comerciantes, lojistas,
policiais militares e fiscais municipais. Neste caso, o monopólio decisional contribuirá
para a perpetuação de desigualdades socioeconômicas e para a infantilização das
pessoas em situação de rua, vistas como um problema e não como sujeitos de
direito que vivenciam determinados problemas cujas soluções reclamam a
impostergável processualização das políticas públicas.
Apesar de ser percentualmente reduzida, a perpetuação da situação de rua,
bem como das medidas estatais destinadas a aprofundar os fossos de
desigualdades e o sofrimento da população em situação de rua não são meros
acidentes ou erros do Estado. A falta de planejamento de políticas públicas e
investimento em áreas propícias para a construção de alternativas viáveis pela
população em situação de rua faz parte do planejamento estatal. O descaso e o
descuido são propositais e estão imersos na ideologia que não enxerga problemas
no sofrimento evitável dessa parcela da população.
A situação de rua não é um ponto fora da curva ou exceção à regra de
desenvolvimento econômico e distribuição de riquezas, automática e facilmente
reversível pela simples melhora nos índices de desenvolvimento econômico ou no
Produto Interno Bruto que inclua ou reinsira a pessoa em situação de rua à
sociedade, segundo a visão economicista.121


121
Conforme indica Jessé Souza, “a crença fundamental do economicismo é a percepção da
sociedade como sendo composta por um conjunto de homo economicus, ou seja, agentes
racionais que calculam suas chances relativas na luta social por recursos escassos, com as
mesmas disposições de comportamento e as mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e
autorresponsabilidade. Nessa visão distorcida do mundo, o marginalizado social é percebido como
se fosse alguém com as mesmas capacidades e disposições de comportamento do indivíduo da
classe média. Por conta disso, o miserável e sua miséria são sempre percebidos como


Em artigo que versa a relação entre vivência das ruas e a questão social no
Brasil, Viviane Souza Pereira parte de "uma perspectiva que entende a emergência
da população de rua como parte integrante das contradições próprias de uma
sociedade assentada na exploração e na opressão" e do pressuposto de que, se
referindo a população de rua, "a existência de segmentos crescentes que se
encontram privados do direito à propriedade da terra e do acesso ao trabalho
compõe uma dimensão estrutural do capitalismo". Apesar de a autora basear sua
hipótese no contexto histórico e no "efeito da histórica desigualdade capitalista",
recaindo no historicismo que indica a existência de leis históricas que guiam as
ações humanas, Viviane Souza Pereira acerta ao afirmar que existência da situação
de rua é regra, e não exceção, do sistema capitalista.122
Portanto, a situação de rua não pode ser considerada exceção, pois a sua
existência e permanência não é acidente de percurso. Esta hipótese dificulta a
necessária e impostergável participação do povo na resolução dos problemas
nacionais com a utilização do processo constitucional jurisdicional, administrativo e
legislativo, facilitando a elaboração de políticas públicas assistencialistas, cíclicas,
eleitoreiras e ineficientes.
Ainda que a execução de direitos fundamentais ocorra com a utilização de
procedimentos judiciais, a inclusão da pessoa em situação de rua será uma doação
estatal e não uma conquista teórica se o processo for instrumento da jurisdição e
acabar levando a desigualdade socioeconômica para o espaço processual na forma
de desigualdade interpretativa com violação do direito ao contraditório, ampla defesa
e isonomia. A inclusão da população em situação de rua deve ser abordada como
autoinclusão pelo processo na fruição de direitos fundamentais e na participação
ostensiva da elaboração de decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas.


contingentes e fortuitos, um mero acaso do destino, sendo a sua situação de absoluta privação
facilmente reversível, bastando para isso uma ajuda passageira e tópica do Estado para que ele
possa ‘andar com as próprias pernas’. Essa é a lógica, por exemplo, de todas as políticas
assistencialistas entre nós” (SOUZA, Jessé. Introdução, p. 17).
122
Libertas, p. 173, 174. Maria Conceição d’Incao, em subtítulo de artigo escrito em coautoria com
Alba Zaluar, Delma Pessanha Neves e Maria Lúcia Montes, sugere que “olhemos para os homens
de rua considerando-os como expressão do que se passa com a própria sociedade brasileira”
(Cadernos do Ceas, p. 31). Popper assevera que, para o historicista, “as antecipações científicas
devem basear-se em leis e, tratando-se de antecipações históricas, antecipações de
transformação social, essas leis hão de ser leis históricas”. Para Popper, “as ‘direções’, ou
‘tendências’, que os historiadores vislumbram na sucessão de eventos que é a História, não são
leis; se chegam a ser alguma coisa, são orientações, diretrizes gerais” e a tendência
“diversamente do que acontece com uma lei – não deve, em geral, ser utilizada como base para
fazer previsões de caráter científico” (A miséria do historicismo, p. 28, 65).


Além da exclusão socioeconômica, a população em situação de rua também


é excluída espacialmente na cidade. Contudo, esta exclusão espacial ocorre de
maneira distinta daquele que abrange as favelas, zonas de prostituição e as
cracolândias, todas concentradas em exíguo espaço e separadas do restante da
cidade.123 Nestes casos, as divisões socioeconômicas entre diferentes grupos
populacionais se refletem no espaço físico da cidade, visando a ocultar a pobreza e
miséria financeiras dos olhos de parte da população.
A população em situação de rua, distribuída em logradouros públicos como
praças e avenidas movimentadas, resiste a esse tipo de segregação espacial,
ocupando áreas valorizadas e nobres, causando a inquietação dos moradores de
imóveis próximos e comerciantes e a reação do Estado para expulsar essas
pessoas por meio da elaboração de instrumentos normativos, como a Instrução
Normativa n° 01 do Município de Belo Horizonte.
Segundo o artigo 5º, caput, da Instrução Normativa n° 01, os pertences
pessoais da população em situação de rua não podem ser objetos de apreensão
pelos agentes públicos. Contudo, os pertences pessoais são considerados “os bens
móveis lícitos que o cidadão em situação de rua seja capaz de portar consigo em um
só deslocamento e sem auxílio de veículos transportadores, tais como peças de
vestuário, alimentos, documentos pessoais, bolsas, mochilas, receituários médicos,
medicamentos, cobertores, objetos de higiene pessoal, materiais essenciais ao
desenvolvimento do serviço/trabalho, utensílios portáteis, dentre outros”.124
Conforme o autor desta dissertação e Alexandre Ferrer Silva Pereira afirmam,
“a população em situação de rua participa da definição da essencialidade do
pertence pessoal à sobrevivência em apenas um momento, qual seja, na sua
capacidade de carregar os pertences em um deslocamento e sem o auxílio de
veículos transportadores. Assim, em uma situação esdrúxula, quanto mais forte
fisicamente a pessoa em situação de rua for, mais pertences pessoais serão


123
A criação, em 1967, do bairro de prostituição Jardim Itatinga, localizado na periferia de
Campinas/São Paulo, é exemplo de segregação espacial na cidade de acordo com a atividade
laboral desenvolvida. Segundo Diana Helene, em meio à ditadura militar, o Estado “utilizou o
planejamento urbano como suporte burocrático do terror para introjetar a disciplinarização no
cotidiano das cidades”, com a expulsão das zonas de prostituição, utilizando a “violência policial,
o planejamento urbano e a formação de consenso da opinião pública”. A autora conclui que “a
separação simbólica (e espacial) do bairro em relação ao resto de Campinas é mantido e
continuado pela dinâmica da cidade - sua prática não é aceita, e pouco tolerada, em outras
áreas” (Desafios Antropológicos Contemporâneos, p. 2, 4, 12).
124
PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Instrução Normativa Conjunta n°01.


considerados essenciais à sobrevivência e impassíveis de apreensão pelo agente


público”.125
A Instrução Normativa n° 01 tem como objetivo a contenção das pessoas em
situação de rua com a sua expulsão de locais valorizados ou com grande circulação
de pessoas, como as praças. Segundo David Snow e Leon Anderson, a contenção é
aplicada aos moradores de rua, sendo "uma modalidade de resposta que busca
minimizar a ameaça que eles representam ao senso de ordem pública, restringindo
sua mobilidade ou âmbito ecológico e reduzindo sua visibilidade pública. Seu
objetivo, como disse um policial sem pensar, 'é manter os moradores de rua longe
das vistas dos outros cidadãos'".126
Não é a primeira vez que o Estado edita regras na tentativa de expulsão das
pessoas em situação de rua de áreas valorizadas por meio do constrangimento
infligido por agentes estatais.
A Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais editou o denominado
Regulamento dos Mendigos, em 28 de dezembro de 1900. Nesta época, a
Secretaria era presidida por Wenceslau Braz Pereira Gomes, futuro Presidente da
República nos anos de 1914 a 1918, e o regulamento dispunha que o indivíduo que
não pudesse trabalhar e não tivesse parentes "nas condições de lhe prestar
alimentos", seria considerado mendigo (artigo 1º). O exercício da mendicância
estava condicionado à prévia inscrição (artigo 2º), voluntária ou compulsória, na
repartição pública e ao fato de que, segundo o artigo 3º, 2, alínea 'b', o mendigo
fosse natural "deste districto e tem nelle família constituída ou residencia ha mais de
2 annos". Caso contrário, o mendigo era enviado para a sede do município da sua
naturalização (artigo 4º, §3º).
A inscrição era feita na Directoria de Hygiene da Prefeitura e consistia no
registro individual, numérico e dos dados pessoais do inscrito (artigo 5º, parágrafo
único) que deveria carregar, no peito, uma placa com a designação mendigo e o seu
número de inscrição, além de portar o bilhete de identidade (artigo 6º, 1º, 2º). A
mendicância deveria ser feita no local e dias designados, sendo proibido ao mendigo


125
LEITE, Bruno Rodrigues; PEREIRA, Alexandre Ferrer Silva. Direitos e garantias fundamentais l, p.
427. Sobre a Instrução Normativa n° 01, André Luiz Freitas Dias e outros afirmam que “o Estado,
além de eximir-se da sua função de garantir condições de vida digna a toda população, tem
utilizado do seu poder de polícia para agravar, ainda mais, as condições de pessoas que se
encontram em contextos de acentuada pobreza e vulnerabilidade social” (Direitos fundamentais
das pessoas em situação de rua, p. 618).
126
Desafortunados: um estudo sobre o povo da rua, p. 167.


proferir injúrias ou expressões ofensivas às pessoas que não dessem esmolas ou


mostrar feridas, chagas e deformidades (artigo 7º, "a", "e", "g"). 127
Chama a atenção o fato, lembrado por Luciana Teixeira de Andrade, do
Regulamento dos Mendigos ter sido editado juntamente com outros dois decretos
que indicavam a obrigatoriedade da matrícula de cães e cabritos, assim como dos
mendigos, na Directoria de Hygiene da Prefeitura com a descrição das
características físicas dos animais, revelando a semelhança, para o Estado, entre os
mendigos e os cães e cabritos. Segundo Luciana Teixeira de Andrade, duas
características eram típicas de Belo Horizonte, quais sejam, "a invenção política e o
espaço físico planejado" e a preocupação da polícia com a "desordem social através
das representações dos desviantes e da implementação de uma ordem pública
moralista e repressiva. Neste ponto, nota-se uma convergência das duas questões:
o projeto de 'disciplina espacial' dos técnicos construtores da cidade e a 'disciplina
social', implementada pelas agências de controle".128


127
“Art. 1º. Todo o indivíduo, que não puder ganhar a vida pelo trabalho, que não tiver meios de
fortuna, nem parentes nas condições de lhe prestar alimentos, nos termos da lei civil, e implorar
esmolas, será considerado mendigo. Art. 2º. Nenhum indivíduo poderá pedir esmolas, no districto
da cidade, sem estar inscripto como mendigo, no livro respectivo da Prefeitura. Art. 3º A
inscripção, a que se refere o artigo antecedente, pode ser voluntária, si o interessado a pedir, e
coercitiva, si a auctoridade policial ou a Prefeitura a ordenar; mas em ambas as hypotheses só se
effectuará: 1º. Quando a auctoridade policial, depois de minucioso exame medico, declarar que a
pessoa sujeita a inspecção é incapaz de ganhar a vida pelo trabalho; 2º. Quando a auctoridade
policial, depois de mandar proceder a averiguações, obtiver por ellas a certeza: a) De que essa
pessoa não tem meios de fortuna, nem parentes com a obrigação legal de sustentarem-n’a; b)
Que é natural deste districto e tem nelle família constituida ou residencia ha mais de 2 annos. Art.
4º. Todo o individuo encontrado a mendigar, sem prévia inscripção na Prefeitura, será conduzido à
repartição da policia, afim de ser examinado pelo medico. § 1º. Sendo considerado capaz de
ganhar a vida pelo trabalho, será processado pelos meios legaes; § 2º. Sendo considerado
incapaz de ganhar a vida pelo trabalho, será inscripto coercitivamente como mendigo, para os
effeitos deste regulamento. §3º. Não sendo natural desta cidade, ou não tendo nella familia
constituida, ou residência, ha mais de 2 annos, será remettido para a sede do municipio da sua
naturalidade, ou residencia anterior a 2 annos, com um officio de participação à auctoridade
policial. Art. 5º. Na Directoria de Hygiene da Prefeitura haverá um livro para inscripção de
mendigos. Paragrapho unico. A inscripção consiste no registro individual e numérico e do nome,
filiação, naturalidade, edade, estado, residencia, sexo, signaes caracteristicos e quaesquer
outros esclarecimentos, que sejam necessarios para a identidade do mendigo inscripto e bem
assim a declaração do local que a auctoridade policial lhe destinar para estacionar e da data em
que se effectuar o registro. Art. 6º. Feita a inscripção será entregue a cada mendigo: 1º. Uma
placa com a designação ‘mendigo’ e numero de inscripção, para trazer no peito e por fôrma bem
visível; 2º. Um bilhete de identidade, contendo o numero de inscripção, nome, edade, residencia e
designação do local destinado a estacionar, bilhete este que será assignado pelo dr. Director de
Hygiene. Art. 7º. Nenhum mendigo inscripto no registro poderá implorar esmolas: a) Fora do local
que lhe for designado para estacionamento e dos dias marcados para esmolar [...]; e) Injuriando
ou dirigindo expressões offensivas às pessoas que não derem esmolas [...]; g) Exhibindo feridas
ou chagas, deformidades” (MINAS GERAIS. Colecção das leis e decretos do Estados de Minas
Geraes, p. 548-549). O livro que contém o Regulamento dos Mendigos pode ser encontrado no
Arquivo Público Mineiro, localizado na Avenida João Pinheiro, 372, Funcionários, Belo Horizonte.
128
ANDRADE, Luciana Teixeira. Ordem pública e desviantes sociais em Belo Horizonte (1897-1930),


Para Fábio Luiz Rigueira Simão, a razão fundamental para a criação desses
decretos é a questão da imagem urbana que implicava na limpeza da "paisagem
urbana civilizada [...] de elementos que comprometessem a ordem, bem como a
limpeza e a higiene, quesitos que estavam condicionados à presença de animais e
corpos humanos imundos, vadios ou inválidos pelas ruas, praças e avenidas". Havia,
segundo o autor, a consolidação de uma nova ordem que "partia de duas
preocupações básicas, a saber: a promoção e manutenção da moral pública,
pautada no asseio e na eliminação de atos, lugares, pessoas e comportamentos não
desejados; e o disciplinamento e controle da vida cotidiana dos cidadãos pobres,
compelindo-os ao mundo do trabalho. Era preciso cuidar para que a cidade não
fosse tomada pelo livre trânsito de animais; era preciso regulamentar as vias
públicas, levando à população (ainda envolta a hábitos de uma vida rural) as leis que
haveriam então de ser cumpridas; era também necessário proibir que pessoas
quaisquer realizassem serviços exclusivos do poder público; enfim, o Estado se
impunha como agente de transformação e consolidação de uma ordem nova
desejada e consentida em grande parte por setores proprietários da sociedade belo-
horizontina".129
Em 1900, a regulamentação da mendicância estava atrelada à tentativa do
Estado em manter a cidade limpa e ordenada com a inscrição dos mendigos na
Directoria de Hygiene da Prefeitura e condução coercitiva do mendigo sem inscrição
para a repartição da polícia, com o intuito de realizar exames médicos que
averiguassem a sua capacidade de trabalhar.
A Instrução Normativa n° 01 indica a permanência das ideologias sanitaristas
e de manutenção da ordem pública - presentes no Regulamento dos Mendigos de
1900 -, pois a Instrução foi assinada pelo Comandante-Geral da Polícia Militar de
Minas Gerais, Secretário Municipal de Saúde Interino e Secretário Municipal de
Segurança Urbana e Patrimonial, além do Secretário Municipal de Governo,
Secretária Municipal de Políticas Sociais e Secretário Municipal de Serviços
Urbanos.
Contudo, enquanto o Regulamento dos Mendigos se destinava a disciplinar
os corpos para sua utilização na estrutura produtiva, impedindo a mendicância para


p. 24, 106.
129
SIMÃO, Fábio Luiz Rigueira. Revista de História Econômica & Economia Regional Aplicada, p. 27,
39.


pessoas capazes de ganhar a vida pelo trabalho, a Instrução Normativa n° 01


encara a situação de rua como um problema urbanístico e tem como intuito expulsar
as pessoas em situação de rua dos logradouros públicos para concretizar o projeto
de cidade excludente ou, dito de modo pejorativo e repreensível, limpar as ruas e
revitalizar as praças, regulando a apreensão dos bens móveis da população em
situação de rua que não sejam considerados essenciais e que estejam dispostos
irregularmente nos logradouros públicos, na visão autoritária e solipsista dos
agentes estatais.130
Por conseguinte, o Estado utiliza instrumentos jurídicos editados sem a
participação popular para tentar expulsar as pessoas em situação de rua dos
logradouros públicos sob o fito de garantia da ordem pública. Estas ações revelam
que o Estado intenta segregar espacialmente as pessoas em situação de rua,
retirando-as de localidades valorizadas e das proximidades de residências, praças e
estabelecimentos comerciais.
A utilização dos logradouros públicos como espaço de moradia e sustento,
conforme afirmado anteriormente, subverte a divisão da cidade em regiões de
acordo com as condições socioeconômicas dos seus habitantes. Por isto, um bairro
localizado em região valorizada dificilmente abrigará um presídio, locais de
prostituição ou favelas, mas poderá contar com a presença de pessoas em situação
de rua.
Dessa maneira, pouco importa o local, a extrema miséria segue a pessoa em
situação de rua. Utilizando a terminologia pesquisada por Giorgio Agamben, o
campo da pessoa em situação de rua não é, necessariamente, um local físico
delimitado, mas a própria situação de rua, aonde quer que ela ocorra e na qual a
execução dos direitos fundamentais são suspensos por meio da ausência de
moradia convencional, da intimidade e privacidade e pela presença da extrema


130
Conforme indica Christian Pierre Kasper, a administração da cidade de São Paulo encara a
questão dos moradores de rua sob dois ângulos: como problemas social e urbanístico. Como
problema urbanístico, da “competência dos serviços de limpeza das vias públicas das
subprefeituras”, a ação mais comum do município é o rapa que consiste na apreensão de material
das pessoas em situação de rua pelos fiscais municipais, muito semelhante com o que ocorre em
Belo Horizonte sob a égide da inconstitucional Instrução Normativa n° 01, violadora do direito de
propriedade (artigo 5º, inciso XXll, da Constituição de 1988) e do direito ao devido processo legal
(artigo 5º, inciso LlV, da Constituição de 1988) ao subtrair os bens móveis das pessoas em
situação de rua com base em critérios subjetivos do agente municipal. Segundo o autor “por
aniquilar periodicamente os esforços feitos para habitar a rua, o rapa aparece como uma das
práticas mais brutais para com os moradores de rua” (KASPER, Christian Pierre. Habitar a rua, p.
208-209).


pobreza e do perigo constante de ter seus bens móveis roubados pelo Estado, além
de ser humilhado pela população com domicílio, comerciantes e por agentes do
Estado (fiscais, policiais militares, guardas municipais) a serviço da sociedade
civil.131
Contra essa conjectura sombria, a instituição jurídica do processo proporciona
o rompimento do vínculo que une a decisão sobre as políticas públicas à uma
assembleia restrita ou aos juízes caridosos, em prol da construção de um espaço
realmente democrático cujas garantias do contraditório, ampla defesa e isonomia
possibilitem a participação das pessoas em situação de rua na elaboração,
modificação, extinção e fiscalização de políticas públicas.
Pelo exposto, a diálise da situação deve ser cautelosa, para se evitar a
reprodução de asserções que inferiorizem as pessoas em situação de rua e
legitimem o paternalismo e assistencialismo estatais e a ausência de participação
popular nas esferas jurisdicionais, administrativas e legislativas. A pessoa em
situação de rua é cidadã e, utilizando o processo constitucional, tem o direito de
influenciar a elaboração de políticas públicas que abordem a situação de rua.

3. Cidadania. Legitimidade ativa para ajuizar procedimentos judiciais

A legitimidade ativa para ajuizar procedimentos se relaciona com a


autoinclusão da pessoa em situação de rua no processo constitucional, pouca
importa qual é sua condição socioeconômica. Segundo Rosemiro Pereira Leal, "toda
vez que se põe a intersubjetividade ou interação no lugar da interenunciatividade
humana, esta como possibilidade de o sujeito ser teoricamente significante para
outrem, queda-se numa pauta de interesses de fundo estratégico-utilitarista de
dominação com vedação de modelos articulantes de vida (auto-ilustração mínima

131
Segundo Giorgio Agamben, o campo é “o espaço que se abre quando o estado de exceção
começa a tornar-se regra”, “a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se
baseia o poder soberano, é realizado normalmente”, “o próprio paradigma do espaço político no
ponto em que a política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o
cidadão” (Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 164, 166-167). Assim, a não execução
dos direitos fundamentais equivale à suspensão da norma em determinados casos e para certas
pessoas. A equivalência, contudo, não é igualdade, pois, primeiro, a norma permanece em
vigência e, segundo, a inadimplência governamental não pode significar a suspensão das normas
relativas aos direitos fundamentais, situação na qual não haveria de se falar em execução de
direitos fundamentais, se esses não existem. Por conseguinte, ainda que os direitos fundamentais
não sejam executados, a Constituição de 1988 continua os indicando e a sua inadimplência não
deve resultar na suspensão da norma, mas na execução processualizada dos direitos
fundamentais.


sobre a correlação corpo-vivo e corpo-social). O 'legitimado ao processo' no


paradigma do Estado brasileiro é o que tem acesso (pro-acesso-processo), por um
direito fundante de seu próprio sujeito, à fruição de uma linguagem jurídica que lhe
seja auto-includente, como parceiro (parte), de um sistema normativo".132
Dessa maneira, a legitimidade ativa não se encerra no momento de
propositura do procedimento, mas se estende até o cumprimento ou execução da
sentença e consiste na observância dos princípios da ampla defesa, contraditório e
isonomia que permitiram às partes procedimentais se reconhecerem como autoras
da decisão jurisdicional.
E esse reconhecimento ocorre pela construção procedimental dos
significados da lei (ordenamento jurídico) em hermêutica isomênica que
possibilitarão a identificação e eliminação de erros nas leis, argumentos e decisões
jurisdicionais e contribuirão para a redução de conflitos estruturais.

4. Violência simbólica e a infantilização da pessoa em situação de rua

Slavoj Žižek desenvolve reflexões sobre os três tipos de violência, a saber, a


subjetiva, objetiva e simbólica, em seu livro "Violência: seis reflexões laterais".133 A
violência subjetiva é visível, escancarada e os seus autores e vítimas são facilmente
identificáveis; a violência objetiva é estrutural, quase imperceptível e tida como
normal e aceitável; a violência simbólica atua permanentemente e, segundo estudo
de José Luiz Quadros Magalhães, "se reproduz na linguagem, na gramática, na
arquitetura, no urbanismo, na arte, na moda, e outras formas de representação".134
Segundo Slavoj Žižek, "há uma violência 'simbólica' encarnada na linguagem
e em suas formas [...] essa violência não está em ação apenas nos casos evidentes
- e largamente estudados - de provocação e de relações de dominação social que
nossas formas de discurso habituais reproduzem: há uma forma ainda mais
fundamental de violência que pertence à linguagem enquanto tal, à imposição de um
certo universo de sentido. Em segundo lugar, há aquilo a que eu chamo violência
'sistêmica', que consiste nas consequências muitas vezes catastróficas do
funcionamento regular de nossos sistemas econômico e político. A questão é que as

132
LEAL, Rosemiro Pereira. Constituição e processo: a contribuição do processo ao
constitucionalismo democrático brasileiro, p. 290-291.
133
Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014.
134
Revista Jures, p. 94.


violências subjetiva e objetiva não podem ser percebidas do mesmo ponto de vista:
a violência subjetiva é experimentada enquanto tal contra o pano de fundo de um
grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas
'normal' e pacífico. Contudo, a violência objetiva é precisamente aquela inerente a
esse estado 'normal' de coisas. A violência objetiva é uma violência invisível, uma
vez que é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual
percebemos algo como subjetivamente violento. Assim, a violência sistêmica é de
certo modo algo como a célebre 'matéria escura' da física, a contrapartida de uma
violência subjetiva (demasiado) visível. Pode ser invisível, mas é preciso levá-la em
consideração se quisermos elucidar o que parecerá de outra forma explosões
'irracionais' de violência subjetiva".135
As pessoas em situação de rua são atingidas constantemente pelos três tipos
de violência. A violência simbólica atua ardilosamente em afirmativas aparentemente
humanitárias, bem-intencionadas e preocupadas com as pessoas em situação de
rua, mas que se restringem a descrever e a reproduzir a realidade sem, no entanto,
criticá-la e modificá-la.
Por exemplo: as pessoas em situação de rua, na sua maioria dependentes
químicas ou portadoras de distúrbios mentais, são miseráveis, vulneráveis e
invisíveis na sociedade, se proliferando pelas praças, ruas e marquises das cidades,
onde vivem marginalizadas e sem direitos. Diante dessa realidade, o Estado deve
envidar esforços para retirá-los das ruas e reinseri-los (ou incluí-los) na sociedade
por meio de programas sociais, construção de abrigos, clínicas para recuperação de
dependentes químicos e de treinamentos que ensinem as pessoas em situação de
rua a viverem com regras, conferindo-lhes cidadania.
Essa hipótese é defendida, no todo ou em parte, geralmente, por jornais,
agentes estatais e pesquisadores e é constituída por asserções inadequadas, por 8
motivos, abaixo elencados.136
1º.)- Apenas parte da população em situação de rua, como da população no

135
ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais, p. 17-18.
136
Em tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília
e se referindo à população em situação de rua, Theresa Christina Frazão afirma que “no discurso
jornalístico a imagem apresentada é quase sempre negativa e neles a sua voz do morador de rua
é apagada, já que o repórter pede que outros falem por ele” e conclui que “as matérias divulgadas
pela mídia trazem a descrição dos problemas que causam e situações que atravessam os
moradores de rua, sobretudo ao ressaltar a tácita marca da mendicância de ser quase sempre
acompanhada do uso de drogas que vai do álcool ao crack, como marcador da devastação moral,
física e social” (O morador de rua e a invisibilidade do sujeito no discurso jornalístico, v, p. 235).


geral, é dependente química ou é acometida por sofrimento mental e este fato não
implica em inferioridade ou qualquer outra característica negativa que exclua direitos
fundamentais.137
2º.)- A miserabilidade da população em situação de rua se restringe aos
aspectos socioeconômicos, sem relação direta com o âmbito psíquico, físico,
espiritual, pois a pessoa em situação de rua, como qualquer outra, tem história de
vida, paixões, sonhos e desejos. A condição socioeconômica, gênero, idade, cor de
pele e traços físicos não retiram os direitos do sujeito de direito. Há situações
reprováveis de inadimplemento do Estado ou violação de particulares em
decorrência dessas características, mas a afirmação segundo a qual a pessoa em
situação de rua não tem direitos parece mais autorizar do que criticar a violação de
direitos.
3º.)- Para ser mais exato, a população em situação de rua é vulnerabilizada,
pois a responsabilidade pela sua condição não recai apenas sobre ela, se
estendendo ao Estado.
4º.)- A invisibilidade é apenas aparente, pois, apesar da população em
situação de rua ser ignorada, ela não é desconhecida. A população em situação de
rua é, ao mesmo tempo, estranha e familiar (unheimlich); é secreta, mas vem à tona
esporadicamente na forma do pedinte ou de outro tipo incômodo, cuja resposta é,
possivelmente, a agressividade.
O termo unheimlich foi estudado por Freud em texto de 1919 com incursões
na psicanálise, etimologia e literatura. A palavra alemã heimlich é ambígua, pois
significa tanto o que é familiar, doméstico, íntimo, pertencente a casa quanto o que é
oculto, reprimido e escondido. Desta maneira, um dos significados de heimlich
coincide com o significado do seu oposto, unheimlich. Segundo Freud, “a palavra
‘heimlich’ não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que,
sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado, significa o
que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora de vista”.
138
A ambivalência de heimlich também é aplicável ao presente caso, pois as


137
Segundo censo sobre a população em situação de rua feito em Belo Horizonte e publicado em
2014, cerca de 5,1% dos entrevistados afirmaram sofrer de algum tipo de deficiência mental
(BELO HORIZONTE. Terceiro Censo de População em situação de Rua e Migrantes de Belo
Horizonte, p. 52).
138
FREUD, Sigmund. O ‘estranho’, p. 242-243. Sobre a invisibilidade, Fabrício Maciel e André Grilo
afirmam que “nem só para dormir na rua é preciso ser invisível. Afinal, quem quer ver a miséria
estampada em sua paisagem cotidiana, quem quer encarar diariamente sua aversão (velada, ou


pessoas em situação de rua são conhecidas, mas convenientemente ignoradas.


Viviane Souza Pereira afirma que "os moradores de rua são tidos como 'fora
do lugar', desencaixados espacial e simbolicamente, porque sua visibilidade é
traduzida como uma ameaça às definições normativas do espaço urbano".139 Desta
maneira, ignorar a presença das pessoas em situação de rua tem origem na
hipótese que enxerga anormalidade e repugnância nesse segmento populacional.
5º.)- O termo proliferação é usualmente utilizado para descrever a
multiplicação de agentes patogênicos, como bactérias e vírus, e não para o aumento
do número de pessoas que utilizam logradouros públicos determinadas cidades ou
regiões como espaço de moradia e de sustento.
A associação entre pessoas em situação de rua e doenças e degradação
física e moral é constante, infelizmente. Em trabalho anterior, o autor dessa
dissertação afirmou que “o mendigo é, geralmente, relacionado a doenças e
deficiências físicas (cego, aleijado), sendo vinculado a uma figura passiva, sentada
no chão que pede e espera por esmolas. O mendigo também é vinculado a algo que
não se quer ser, ou seja, o mendigo é um ser marginalizado e um pária da
comunidade” e que a “multiplicidade de significados sempre desqualifica e
generaliza a figura do mendigo influenciando, de certa maneira, a concepção que se
tem da população em situação de rua modernamente”.140
Ricardo Mendes Mattos e Ricardo Franklin Ferreira afirmam que a
estigmatização das pessoas em situação de rua como "vagabundas, sujas, loucas,


não) pela sujeira e degradação? Assim, para um catador transitar pelos bairros dignos, mexer nos
lixos burgueses, deve respeitar o acordo tácito da invisibilidade. Basta não buscar chamar a
atenção que passará despercebido. Assim, o cidadão de classe média pode evitar o seu
incômodo, e o subcidadão que cata lixo pode evitar a humilhação. Ou melhor, deixá-la latente”
(MACIEL; Fabrício; GRILO, André. A ralé brasileira: quem é e como vive, p. 266-267). Durante 10
anos, Fernando Braga da Costa realizou pesquisa com trabalho de campo semanal sobre o
desempenho do ofício de gari e entrevista com dois ex-garis aposentados pela Universidade de
São Paulo. Em tese de doutorado, o autor afirma que a invisibilidade pública, “desaparecimento
de um homem no meio de outros homens, é expressão pontiaguda de dois fenômenos
psicossociais que assumem caráter crônico nas sociedades capitalistas: humilhação social e
reificação” e é uma construção social e psíquica, tendo “a força de ressecar expressões corporais
e simbólicas dos humanos então apagados. Pode abafar a voz e baixar o olhar. Pode endurecer o
corpo e seus movimentos. Pode emudecer os sentimentos e fazer fraquejar a memória. Faz
esmorecer – em todos estes níveis – o poder de aparição de alguém”. Sobre a reificação,
Fernando Braga da Costa indica que “somente humanos já reduzidos e tidos como objetos podem
parecer impotentes na capacidade de se fazerem interpelar como humanos e de interpelarem
outros humanos como iguais” (COSTA, Fernando Braga da. Móises e Nilce, retratos biográficos
de dois garis: um estudo de psicologia social a partir de observação participante e entrevistas, p.
6-8).
139
Libertas, p. 193.
140
LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 252.


perigosas e coitadas" legitimam a violência física contra esse segmento populacional


e servem de "referência para a constituição de suas identidades pessoais". Para os
autores, "o contato corriqueiro com pessoas em situação de rua, que no início
gerava espanto e indignação, vai gradualmente levando a uma dessensibilização
para com sua condição social. De tão acostumados com suas mazelas, mesmo que
involuntariamente, já não mais reparamos suas presenças. Trata-se da
disseminação da indiferença que denota uma 'naturalização' do fenômeno pelos
indivíduos sedentários: 'as coisas são mesmo assim. O que posso fazer?' -
exclamam. Assim, reproduzem uma visão que propaga a situação de rua como
definitiva, imutável".141
Apesar de afirmar que o morador de rua “perde os seus direitos sociais”, em
visão que é criticada nesta dissertação e não explicar o que é civilização, Delano
Augusto Corrêa de Almeida acerta ao asseverar que o morador de rua, “ora como
vítima, ora como praticante de atos que são condenados pela população [...] é
colocado nas notícias como o próprio responsável pela situação em que se
encontra. Cria-se então uma imagem negativa a seu respeito. A imprensa forma a
opinião e oficializa para a sociedade, a não aceitação destas pessoas, além de
evidenciar um suposto perigo que elas representariam a todos. O que ratifica a
hostilidade e, algumas vezes, os atos violentos cometidos pela civilização.
Representado, na maioria dos casos analisados, como bêbado e criminoso, pôde-se
também encontrar o indivíduo que mora na rua como sujo, drogado e doente mental,
características essenciais para o afastamento desta pessoa da condição de ser
humano”.142
6º.)- Afirmar que as pessoas em situação de rua não sabem viver sob regras,
ou em sociedade, é falso, pois desqualifica os comportamentos, modo de vida e
práticas específicas de quem utiliza os logradouros públicos como espaço de
moradia e sustento, tratando-os como incivilizados. Essa hipótese reforça a
discriminação e as medidas assistencialistas do Estado que não levam em
consideração a participação da população em situação de rua.
Sobre os tipos de relação entre o espaço urbano e a corporalidade das


141
MATTOS, Ricardo Mendes; FERREIRA, Ricardo Franklin. Psicologia & Sociedade, p. 47, 51.
142
ALMEIDA, Delano Augusto Corrêa de. Puça: Revista de Comunicação e Cultura na Amazônia, p.
99. Assimilar determinado grupo a doenças, animais e sujeira foi uma das ações realizadas pelos
nazistas para preparar, perpetrar e justificar o extermínio de judeus entre 1933 e 1945. Sobre esse
assunto cf. ARQUITETURA da destruição. Direção: Peter Cohen.


pessoas em situação de rua e, consequentemente, a multiplicidade de regras para


quem vive nas ruas, Simone Miziara Frangella afirma que “os mecanismos de
sobrevivência são apreendidos gradualmente, adaptando-se às teias de
solidariedade e de conflito, aos recursos institucionais, vencendo o trauma de passar
a noite ao relento, enfim, acostumando-se com as regras desse universo”. Com
relação ao trabalho de campo que realizou na Praça Benemérito José Brás, em São
Paulo, a autora afirma que as narrativas das pessoas em situação de rua dessa
localidade “indicavam que havia uma rede de relações fluidas, fragmentadas,
irregulares, mas presentes entre os diversos moradores do Brás. A partir dessa rede,
uma série de interações se constrói entre as regras de sobrevivência e o sistema de
classificação social que possuem em seu universo. Regras de moralidade,
julgamento social do comportamento do vizinho, regras de solidariedade, misturam-
se em meio a um cotidiano tenso na rua”. Além disso, “as relações de vizinhança na
Praça do Brás formam uma dinâmica de códigos explícitos outros implícitos, e
interações e conflitos circunstanciais, fluidos e efêmeros, conforme o modo, o
momento e as formas de cada um se colocar. Há regras, tais como evitar assaltos e
agressões aos vizinhos na Praça, respeitar a 'mulher dos outros', devolver a comida
ou os objetos emprestados. Essas regras tendiam a manter um equilíbrio naquela
convivência heterogênea. O não-cumprimento destes preceitos – o que não raro
acontecia – implicava a existência de conflitos”.143
Dessa maneira, a situação de rua propicia a criação de códigos não escritos e
regras de convivência fluidas que, muitas vezes, são indevidamente rotuladas como
incivilizadas.
7º.)- A cidadania não é adquirida mediante programas sociais ou qualquer
outro beneplácito governamental, mas por expressa disposição constitucional que
viabiliza a participação democrática de todos na problematização da realidade
brasileira.
8º.)- Afirmar que a população em situação de rua deve ser retirada das ruas


143
FRANGELLA, Simone Miziara. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de
moradores de rua em São Paulo, p. 28, 131, 202. Em sentido semelhante, Viviane Souza Pereira
afirma que “a população que vive nas ruas tem práticas, experiências e valores relativos ao
‘habitar a rua’ diferenciados, porque se apropriam, usam e experienciam de várias maneiras os
espaços onde passam a viver. A heterogeneidade da população com vivência de rua pode então
ser apreendida como resultado de visões e percepções de mundo particulares e próprias a cada
tipo de relação e experiência estabelecida com o espaço pública ocupado, onde são introduzidas
novas formas de viver e sobreviver nas cidades, revelando um universo de valores referentes ao
‘mundo da rua’” (Libertas, p. 191).


pode significar, sob viés autoritário típico das ações estatais, a expulsão daquelas
pessoas de certo lugar e não a construção compartilhada em espaços
processualizados de alternativas viáveis para a situação de rua. Incorre em
semelhante equívoco quem afirma, em tom bélico, que a população em situação de
rua deve ser combatida ou enfrentada. O que deve ser combatido é a insubmissão
dos agentes estatais à principiologia constitucional, em prol da participação ativa dos
sujeitos de direito na construção das decisões jurisdicionais, legislativas e
administrativas. Assim, a situação de rua será problematizada processualmente
pelas próprias pessoas em situação de rua.
Essas hipóteses contribuem para a infantilização das pessoas em situação de
rua, retirando a possibilidade de construção do seu próprio mundo. Assim, ao invés
de reconhecer a autonomia das pessoas em situação de rua, a hipótese acaba
resultando na reprodução das desigualdades socioeconômicas.
Segundo Jeanne Marie Gagnebin, na Apresentação do livro de Agamben,
intitulado "O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha", o termo infância
tem origem no latim "infans, que não fala". José Pedro Machado afirma que a origem
etimológica do termo infante é a palavra latina infante, "que não fala; incapaz de
falar, sem eloquência; ainda incapaz de falar, muito criança [...]; de criança,
infantil".144
O direito ainda tem fundamentos místicos que se disfarçam sob o manto de
expressões perniciosas que revelam ideologias, como acesso à justiça, ativismo
judicial, proporcionalidade, equidade, ponderação, senso de justiça e uma infinidade
de outros vocábulos e expressões que escoram os poderes ilimitados dos juízes em
decidir a lide segundo sua própria consciência na busca da concretização dos
valores constitucionais ou da sociedade, sem indicar que sociedade mortífera é
essa.
Se, de um lado, está o infans - preso oportunamente no ambiente
desprocessualizado e cuja participação é vedada na construção da linguagem, uma
vez que essa é pressuposta e oriunda da sociedade igualmente mística e histórica já
pronta e imodificável -, de outro, está o profeta. Assim, o profeta não é aquele que
enxerga adiante, prediz o futuro, mas aquele que ouve o significado da palavra

144
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apresentação, p. 17. MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico
da língua portuguesa: com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos
vocábulos estudados, p. 1225. Cf. MIJOLLA, Alain de (Dir.). Dicionário internacional da
psicanálise, p. 957.


anteriormente e tem como função dizer o que ouviu para os demais, os infans.
Se, no âmbito religioso, o profeta ouve a palavra dos deuses ou de Deus, a
depender da cosmogonia utilizada, no direito, o profeta é o juiz que ausculta os
significados da palavra da própria Lei ou da sociedade como um intérprete
privilegiado para, depois e com a autoridade que a lei lhe conferiu, se reportar à
sociedade infantilizada, incapaz de interpretar os significados que ela própria criou.
Por isso, o termo autoridade pode ser utilizado para se referir tanto à pessoa quanto
ao poder que essa pessoa detém para conferir o significado indubitável (dogma) da
lei e, em ambos os casos, se presta a disfarçar a violência intimamente relacionada
ao direito e que em todo lugar irrompe sob as mais variadas designações, como
manutenção da lei e da ordem, segurança pública, guerra às drogas, unidade de
polícia pacificadora, utilização de força proporcional pelas polícias, autos de
resistência, ativismo judicial, função criadora da jurisprudência, guardião da
Constituição, direito de manifestação sem vandalismo e apreensão de pertences
pessoais.145
A pessoa em situação de rua é tida como afônica, impotente, debilitada e
incapaz de decidir os rumos da própria vida e de construir os significados da lei,
precisando da ajuda de outrem para dirigir a sua vida. Esta ajuda, no entanto, pode
vir sob a forma de mais violência (subjetiva, objetiva e simbólica), reproduzindo a
realidade sem teorizá-la com a população em situação de rua.
Portanto, a violência contribui para a infantilização das pessoas em situação
de rua, não como um dado real, visto que a população em situação de rua não é
infantil, mas infantilizada por estereótipos que vedam o seu reconhecimento como
sujeito de direito e cidadão capaz de construir, processualmente, o seu próprio
mundo.

5. Homo sacer e o processo como profanação

Em trabalho anterior, o autor dessa dissertação abordou a figura do homo


sacer no direito romano arcaico com base nos estudos de Rudolf von Ihering e
Giorgio Agamben e o comparou com as pessoas em situação de rua.146


145
Sobre a inadequação da expressão guardião da Constituição, cf. LEITE, Bruno Rodrigues. Entrar
na Justiça?
146
LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 296-306. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder


Para o autor, a figura do homo sacer, "apesar de não existir mais nos moldes
do direito romano arcaico, conserva suas características principais e encontra eco,
sob certos aspectos, nos favelados de hoje, nos terroristas, nos baderneiros
mascarados, naqueles que morrem em filas de hospitais devido à ausência de
recursos do Estado para manter o serviço essencial da saúde [...] e em tantos outros
que se veem excluídos (mesmo que teoricamente incluídos) do protagonismo e da
dialogicidade nos cenários judicial, social, político e econômico" e a precária
efetividade da lei torna a pessoa em situação de rua "um indivíduo matável devido à
pequena abrangência dos sistemas de saúde, assistência social e previdência social
somada a sua vulnerabilidade, (pois ele pode morrer de frio [...], fome, problemas de
saúde, entre outros) além da dificuldade na solução de casos de homicídio que
tenham uma pessoa em situação de rua como vítima, tornam, inevitavelmente, sua
morte impune – dificilmente um agente público será responsabilizado por não ter
destinado verbas para o atendimento da população em situação de rua ou um
agressor será condenado pelo crime cometido".147
A comparação entre a população em situação de rua e a figura do homo
sacer também é realizada por José Ourismar Barros, para o qual "o homo sacer, o
homem da vida nua, é apenas o objeto de estudo dos cientistas, a notícia trágica
dos jornalistas, o ponto cego dos juristas e o esquecido dos economistas. O homo
sacer é pelo que ele não é. Não é ser humano, nem santo. Não é sujeito, nem coisa.
Não é homem, nem animal. Não é produtor, nem consumidor". O autor exemplifica o
homo sacer das pessoas em situação de rua com a atenção dada à utilização de
animais em testes para a indústria de cosméticos e a indiferença com a condição
dos moradores de rua.148


soberano e a vida nua, p. 9-12, 14, 16, 66, 73, 76-77, 79-80, 82, 84, 86-87, 186. IHERING, Rudolf
von. El espíritu del derecho romano, p. 189-191, 196-197, 199-200, 202-204.
147
LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 299, 305.
148
BARROS, José Ourismar. Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p. 161-162. Na
França, a extrema direita chega a usar argumentos de defesa dos animais para atacar hábitos dos
imigrantes, incluindo pessoas em situação de rua. Em reportagem sobre vídeo que mostra
militantes defensores dos direitos dos animais arrancando um cachorro de pessoa em situação de
rua em Paris, Amanda Lourenço afirma que “o próprio presidente da Causa Animal Norte tem um
discurso extremista. Em 2013, Blanchard postou uma carta de indignação para o presidente da
república, afirmando que o governo não dá a devida importância para os animais, ‘preferindo dar o
dinheiro dos contribuintes franceses aos imigrantes’. Ele reclama ainda especificamente dos
ciganos, enumerando os supostos beneficios dados pelos governantes: ‘Criação de vilas luxuosas
para os Roms, gratuidade de transporte público para os Roms. E quem paga a conta? Os
franceses’” (LOURENÇO, Amanda. Extrema-direita usa maus-tratos a animais como justificativa
para racismo e xenofobia na França). Data venia, apesar da importância da defesa dos animais, a
própria condição humana e os seus sofrimentos evitáveis devem ser problematizados


Para Theresa Christina Jardim Frazão, as medidas destinadas à expulsar as


pessoas em situação de rua dos espaços públicos consiste na "eliminação da
paisagem urbana do elemento destoante e incômodo, a exemplo do 'homo sacer',
termo retomado na modernidade pelo filósofo Agamben [...] a partir da referência
feita à pessoa de determinado grupo que, entre os moradores da Roma antiga, era
considerado tão indigno que não teria serventia nem para o sacrifício como oferenda
aos deuses. Assim, ao receber o epíteto de 'insacrificável' passava à condição de
'matável', à qual era agregada a ausência de culpa ou punição por parte de quem o
destruísse. Entre os muitos casos em que os 'matáveis' da atualidade são
exterminados é possível encontrar a explicação nas atitudes da sociedade de lhes
virar as costas, fechando casas e carros, trocando de calçada quando cruzam com
eles, ou chegando mesmo a matá-los".149
Contudo, há diferenças entre a visão de campo de Agamben e aquela que é
indicada nesta dissertação. O campo não implica na redução das pessoas em
situação de rua à vida nua, necessariamente. A multiplicidade de formas de vida
presentes na situação de rua desautoriza a completa aproximação das pessoas em
situação de rua da vida nua, exclusivamente biológica. Isto não significa que a vida
nua não está presente na situação de rua, mas que não é possível generalizar a vida
da pessoa em situação de rua como vida exclusivamente biológica, a priori.
O raciocínio desenvolvido por Agamben quanto ao campo é aplicável à
situação de rua, pois permite problematizar a absurda existência de direitos
fundamentais não executados processualmente que implicam na impossibilidade de
diferenciação entre fato e direito na medida em que o fato (inadimplemento do
Estado na execução dos direitos fundamentais) é respaldado por decisões
jurisdicionais, legislativas e administrativas em suposta conformidade com a
Constituição de 1988. Assim, apesar da existência de normas relativas aos direitos
fundamentais, a realidade brasileira e a escassez de recursos são utilizadas como
argumentos para impedir a execução de direitos fundamentais.
Apesar da situação de rua ser o campo no qual a exceção (suspensão das
normas definidoras de direitos e garantias individuais e continuidade da sua


prioritariamente, pois é paradoxal que determinado país se empenhe em proteger animais, se
esquecendo do próprio humano.
149
FRAZÃO, Theresa Christina Jardim. O morador de rua e a invisibilidade do sujeito no discurso
jornalístico, p. 36. Christian Pierre Kasper também aborda superficialmente a relação entre a figura
do homo sacer e a pessoa em situação de rua (Habitar a rua, p. 199-200).


vigência) é a regra e a pessoa em situação de rua estar submetida à matabilidade


impunível, isto é, a morte da pessoa em situação de rua não é punida, não é
possível afirmar que a vida da pessoa em situação de rua é necessariamente vida
nua, pois não está reduzida à vida biológica e despida dos seus direitos
fundamentais que devem ser exercitados no espaço processual.150
Outra diferença foi apontada pelo autor dessa dissertação em trabalho de
2013, no qual afirma que a "dúplice exclusão e dúplice captura [...] da população em
situação de rua distinguem-se do homo sacer", pois "se a lei também se aplica para
a população em situação de rua principalmente na forma de sua inefetividade, a
impossibilidade de seu sacrifício significa - ao contrário da insacrificabilidade do
homo sacer – a inclusão teórica e virtual no âmbito jurídico-político (há o
reconhecimento formal da pessoa em situação de rua como sujeito de direito) e a
sua matabilidade implica na exclusão real (pois, apesar da Constituição da
República indicar os direitos aplicáveis, o que ocorre de fato é sua inefetividade) da
comunidade e do ordenamento jurídico – ao contrário do homo sacer que é incluído
para ser morto".151
Assim, enquanto o homo sacer é incluído na forma da sua matabilidade, ou
seja, homo sacer é incluído na comunidade na forma de sua morte, a pessoa em
situação de rua é excluída da fruição jurídico-econômica para ser morta, direta ou
indiretamente, sem que a sua morte, nos casos indiretos (vulnerabilidade causada
pela ausência ou inefetividade de políticas públicas, por exemplo), seja considerada
crime ou, no mínimo, violação à Constituição. Mesmo nos casos diretos
(assassinato), a tipificação legal da conduta criminosa dirigida às pessoas em
situação de rua não implica, necessariamente, na punição do homicida.
A pessoa em situação de rua não é excluída do ordenamento jurídico, mas do
sistema econômico e da divisão de recursos no país devido, em grande medida, à
insubmissão dos agentes estatais à principiologia constitucional, sobretudo ao
princípio do devido processo constitucional, que viabiliza a participação do povo na
elaboração de decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas.

150
Sobre a suspensão dos efeitos das normas, “a exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso
singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que
aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao
contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à
exceção desaplicando-se, retirando-se desta” (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder
soberano e a vida nua, p. 24). Por isso se afirma que o processo, ao viabilizar a aplicação da lei
com observância da ampla defesa, contraditório e isonomia, impede a exceção.
151
LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 305.


A matabilidade impunível ocorre na forma do agente estatal que monopoliza a


elaboração de decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas, vedando a
participação do sujeito de direito em situação de rua e contribuindo para a não
execução dos direitos fundamentais e consequente exposição das pessoas em
situação de rua à morte e na forma do homicídio não esclarecido e sem punição de
pessoas em situação de rua.152
Desconsiderar os direitos fundamentais das pessoas em situação de rua em
virtude da sua não execução, afirmando que os moradores de rua não têm direitos,
seria reforçar, ao invés de criticar, o absurdo da inexistência de direitos para um
segmento populacional devido à sua situação de rua.
Igualar a situação de rua à vida nua é se deter aos aspectos perfunctórios que
a visão e o contato fisicamente próximo - mas sem diálogo - da pessoa em situação
de rua podem causar. Por isso, aspectos visíveis e odoríficos, como mau cheiro,
roupas desgastadas, pés descalços e machucados remetem à precariedade das
condições socioeconômicas e não à vida nua, a priori.153
Contra essa hipótese ingênua e perigosa que infantiliza a pessoa em situação
de rua, esta dissertação cerra fileiras e defende outra hipótese mais resistente, na
qual o mandado de segurança é instituto constitucionalizado de execução dos
direitos fundamentais líquidos e certos das pessoas em situação de rua, rompendo a
exceção na qual se encontram, pois a norma é aplicada pela autoinclusão da pessoa
em situação de rua no âmbito de fruição de direitos fundamentais líquidos e certos
encaminhada pelo processo constitucional.

152
Segundo Christian Pierre Kasper, “o extermínio contemporâneo funciona, antes, por exposição à
morte. Seja o pedestre obrigado a atravessar sem passarela a rodovia que cortou seu povoado no
meio ou o morador da favela construída em ‘área de risco’ (e quase todas o são), a vítima é
responsável pelo acidente que acabe acontecendo” (Habitar a rua, p. 212).
153
Ao criticar as intervenções urbanísticas contra o morador de rua, Simone Miziara Frangella afirma
que “a conjunção de procedimentos arquitetônicos de expulsão e de medidas policiais de
deslocamento desses habitantes os leva à contínua circulação por ruas e cantos da cidade. Cria-
se um círculo vicioso: o morador de rua, sem acesso a banheiros públicos e sem moradia usa os
vãos, as ruas, os bancos de praças, as árvores, para dormir e fazer sua higiene pessoal. O efeito
visual e odorífico desse uso gera por parte da população uma atitude de repúdio à sua presença e
aciona o poder público, que força a sua supressão na cidade. Quando não é o poder público
diretamente, são os artefatos construídos paulatinamente que, perversamente, tentam empurrar o
habitante de rua para o ‘lugar nenhum’”. Abordando as marcas e cheiros corporais, a autora indica
que “o forte mau cheiro provoca entre os moradores de rua modos de distinção social. A tentativa
de eliminação dos cheiros – discursiva ou praticamente – revela uma necessidade de se distinguir
em relação à condição de subtração e, sobretudo, quanto à imagem negativa que lhes é imposta.
A necessidade de diferenciação através dos odores reforça as classificações hierárquicas
estabelecidas no contexto urbano marcado por um movimento asséptico” (FRANGELLA, Simone
Miziara. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São
Paulo, p. 91, 180).


Assim, além de abordar as carências das pessoas em situação de rua, é


necessário apontar soluções provisórias que levem em consideração a situação de
rua como forma de vida possível, apesar de extremamente precária, e a pessoa em
situação de rua como um sujeito de direito legitimado ao processo para a construção
de significados do seu mundo. Apenas desta maneira é que se conseguirá escapar
das armadilhas que enxergam a pessoa em situação de rua como criança a ser
cuidada pelo Estado para acalmar a sociedade civil - mero embuste para o controle
desse segmento populacional vulnerabilizado.
As pessoas em situação de rua não estão reduzidas à mera vida biológica,
pois possuem direitos e fazem da rua espaço de moradia, sustento, sociabilidade e
de vida, apesar da precariedade. Reduzir um sujeito de direito à vida nua - como de
fato ocorreu em alguns casos nos campos de trabalho, concentração e morte
nazistas e também pode ocorrer na situação de rua - e defender a hipótese segundo
a qual determinada forma de vida é inevitavelmente vida nua também são extremos
nos quais a pessoa é infantilizada de tal maneira que o estado de exceção é
legitimado.
Ao menos nas conjecturas desta dissertação, a saída mais adequada é
trabalhar com a hipótese de que a pessoa em situação de rua é sujeito de direito e
cidadã, que constrói o seu mundo e os seus significados em espaços
processualizados de criação, aplicação, modificação e extinção do ordenamento
jurídico segundo o princípio do devido processo constitucional e com isonomia,
independentemente da condição socioeconômica na qual se encontre.
A isonomia, na teoria neoinstitucionalista do processo, pode ser decomposta
em três direitos: 1º.)- Isotopia, “postulações e decisões em língua compreensível,
ainda que por tradução, para todos os 'sujeitos' do procedimento”; 2º.)- Isomenia,
“igual direito de interpretação para todos: deriva-se daqui a dignidade (cidadania)
que é o direito fundamental de autoilustração sobre os fundamentos do sistema
jurídico praticado”; 3º)- Isocrítica, “direito de propugnar a modificação ou extinção de
normas”.154
Esses três direitos que compõem a isonomia permitem a profanação da lei,
isso é, retiram a lei de um ambiente sacralizado e inalcançável para esmagadora
maioria da comunidade jurídica e acessível somente para a auctoritas e a colocam

154
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p.
11.


no ambiente processualizado fiscalizável por todos indistintamente.


A isonomia retira da figura da auctoritas a exclusividade na interpretação da
lei segundo critérios solipsistas e baseados em dogmas, possibilitando que o seu
sentido seja construído em contraditório pelas partes procedimentais.
Além disso, Rosemiro Pereira Leal assevera, ao tratar da teoria da execução,
que a isonomização (horizontalização) da eficácia ordenamental coloca “em
simétrica paridade os emitentes e os destinatários normativos da fruição de direitos
processualmente garantidos pré-cognita ou cognitivamente”.155
Ao criticar o capitalismo como religião com base em Walter Benjamin, Giorgio
Agamben assevera que profanar "significa restituir ao uso comum o que havia sido
separado na esfera do sagrado", em contraposição à consagração, "termo que
designava a saída das coisas da esfera do direito humano", segundo o direito
romano. Conforme indica o autor, a passagem do "sagrado ao profano pode
acontecer também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente
incongruente do sagrado. Trata-se do jogo".156
Oswaldo Giacoia Júnior pondera que "para Agamben, as experiências
totalitárias não são bem compreendidas, se as considerarmos como um novum na
história do Ocidente, ou como casos de ruptura com a tradição das democracias
liberais. Se estas se originam no contexto da biopolítica e do biopoder, então são
elas mesmas portadoras da insígnia da soberania, como poder de vida e morte. O
que está implicado nessa problemática é a exigência de superação da forma direito
[...]. Essa tarefa exige a dessacralização do direito pelo estudo e pelo jogo, que são
as modalidades por excelência de devolver ao uso comum, inocente e livre pelos
homens daquelas coisas que a sacralização retirou de seu trato e comércio [...]. A
profanação do direito é condição prévia para uma renovação dos quadros
conceituais da política; trata-se de uma tentativa de desativação de procedimentos
atrelados a uma finalidade inveterada, com vistas a uma invenção, necessariamente
coletiva (política) de novos usos".157
Contudo, entender o processo como profanação dos significados da lei, tal
qual é a proposta deste item, não implica na utilização de jogos e brincadeiras, como
o sugerido por Oswaldo Giacoia Júnior para profanar o direito. Nesta dissertação, a

155
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p.
95.
156
Profanações, p. 58-59, 64.
157
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Cult, p. 30-31.


profanação é a retirada da significação da lei de espaços desprocessualizados e


autoritários (sagrados) para o compartilhamento pelos sujeitos de direito segundo o
devido processo constitucional. Portanto, longe das lacônicas formas de brincadeira
e jogo propostas por Agamben e de forma tecnicamente precisa, profanar quer dizer
criticar hipóteses em espaços processualizados com submissão à ampla defesa,
contraditório e isonomia.
Além da inaplicabilidade das formas de profanação indicadas por Agamben
no campo processual, a própria concepção de processo de Agamben difere da
adotada nessa dissertação. Em obra que trata dos eventos que levaram a
crucificação de Jesus, o autor afirma, após abordar a ausência de processo e
julgamento anteriores à crucificação de Jesus, "que haja um processo mas não um
julgamento é, na realidade, a mais severa objeçãou que se possa levantar contra o
direito, se é verdade que o direito é, em última instância, processo, e este, em
essência, julgamento". Analisando Salvatore Satta, Agamben afirma que "é
enganoso sustentar que o processo tenha como escopo a atuação da lei, a justiça
ou a verdade [...]. Se quisermos dar ao processo um escopo, este só pode ser o
juízo. O proferimento de um juízo, a res iudicata, com a qual a verdade e a justiça
são substituídas pela sentença, é o fim último do processo. O juízo [...] não é um
escopo externo ao processo, mas coincide integralmente com seu implacável
desenvolvimento, que é, portanto, de certo modo, um ato sem escopo".158
Na tradução do texto de 1949 que serviu de base para Agamben, Salvatore
Satta pergunta "então, o que é o processo?" e responde "repensemos a antiga
definição de Bulgaro: processus est actus trium personarum, actoris, rei, judicis. Esta
definição, a qual, como é notório, se reconduz à doutrina da relação jurídica
processual, coloca em evidência o caráter de luta, o caráter verdadeiramente
dramático que é intrínseco ao processo. São três pessoas que lutam uma contra a
outra. O autor contra o demandado, o acusador contra o acusado, todos,
posteriormente, contra o juiz, porque cada um pretende convencê-lo da sua razão
[...]. Sobre a luta desses ternos personagens, para regulamentá-la, surgem as leis
processuais, o código de processo".159


158
Pilatos e Jesus, p. 69-71. Agamben faz afirmações semelhantes em trechos de outro livro: “como
os juristas sabem muito bem, acontece que o direito não tende, em última análise, ao
estabelecimento da justiça. Nem sequer ao da verdade. Busca unicamente o julgamento” (O que
resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, p. 28).
159
SATTA, Salvatore. Seqüência: Estudos jurídicos e políticos, p. 23.


Agamben confunde direito, processo e julgamento e tangencia a hipótese que


considera o processo um instrumento da jurisdição, representado pelo juiz.
Basicamente, para o autor, o escopo do processo é o julgamento pelo juiz.
Essa concepção não auxilia na construção de significados pelos sujeitos de
direito, pois confere ao juiz a elaboração solitária da decisão jurisdicional,
contribuindo para perpetuar a exposição à morte e a impunibilidade do assassinato
do homo sacer, pois esse continuará submetido ao juiz (soberano) que decidirá não
só sobre o julgamento, mas sobre a vida e a morte do homo sacer.
Agamben não atentou para a continuidade do poder soberano, homo sacer e
campo na sua hipótese acerca do juiz, partes procedimentais e processo,
respectivamente. Entronizar o juiz como autor, destinatário e senhor do processo,
nada mais é que transformá-lo em soberano e transmutar o processo em campo, ou
seja, no espaço de aplicação da lei pela sua suspensão, pois a construção dos
significados da lei é feita solitariamente pelo juiz. Desta maneira, a parte litigante se
submete incondicionalmente ao juiz e se torna homo sacer, eis que a sua morte se
opera no plano dos direitos fundamentais, sepultados pela equiparação entre
processo e julgamento e pela onipotência do juiz.
Por conseguinte, a hipótese desta dissertação, segundo a qual a instituição
constitucionalizada do processo pode encaminhar a elaboração das decisões
judiciais pelas partes, diverge das considerações de Agamben sobre o processo, o
que motiva, em grande medida, as diferenças acima elencadas. O processo
constitucional jurisdicional, legislativo ou administrativo é fundamental para a
construção de políticas públicas eficientes e condizentes com o Estado Democrático
de Direito.
Ao abordarem o serviço Saúde em Movimento nas Ruas na cidade do Rio de
Janeiro, Iacã Machado Macerata, Júlia Neuenschwander Magalhães e Noelle
Coelho Resende afirmam que "quando as estratégias das políticas públicas para a
população em situação de rua são construídas em conjunto com o público atendido,
elas ganham consistência e não se estruturam como ações violentas e repressivas -
que tentam impor a vontade de um só nessa relação, sendo, portanto, não relações -
que de nada servem, a não ser para tornar mais crônicas e traumáticas as
situações".160


160
Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p. 146.


Essa noção de construção conjunta de políticas públicas deve ser estendida


para todas as instâncias decisórias e a população em situação de rua, como cidadã
e sujeito de direito, deve obrigatoriamente participar em igualdade interpretativa com
o Estado.
A suspensão dos direitos fundamentais pela sua não execução, sob
argumentos metajurídicos da reserva do possível, fatal lacuna normativa ou qualquer
outro que não se ofereça à crítica no processo constitucional e que contribua para o
protagonismo decisório do juiz, constitui forma requintada e sofisticada de violação
da Constituição sob a aparência da legalidade, pois a Constituição de 1988 é
suspensa, mas permanece em vigência.
Rosemiro Pereira Leal acentuou com rigor a suspensão da lei com
preservação da sua vigência, ao afirmar que "o sistema jurídico democrático, a
exemplo do modelo constitucional-democrático brasileiro, ainda é manejado pela
hermenêutica do status necessitas em que o judiciário e o executivo criam, por suas
decisões, escopos metajurídicos a pretexto das lacunas da lei supostamente
impeditivas de realização de uma justiça social rápida, valendo-se da dogmática
analítica (compulsoriedade das decisões) pela proibição do non liquet [...].
Atualmente essa lacuna dita fatal nada mais é do que o topos estratégico do estado
de exceção (jurisprudência e legislações protetivas) como forma judicial e executiva
de suspender (sitiar) a vigência do ordenamento jurídico quanto a direitos
fundamentais (vida, dignidade, liberdade) já líquidos, certos e exigíveis por normas
autoexecutivas. Essa caricata harmonia entre poderes independentes (judiciário e
executivo) se faz num ponto em que se suspende a lei, preservando a sua
vigência".161


161
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia: a ação jurídica como exercício da cidadania.
Virtuajus. Belo Horizonte, 2005, p. 5.


CAPÍTULO 3: HIPÓTESES SOBRE O MANDADO DE SEGURANÇA E A


EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS AOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Segundo lição de Carlos Henrique Soares e Ronaldo Brêtas de Carvalho


Dias, o mandado de segurança é “procedimento de proteção de pessoa física ou
jurídica contra atos ilegais ou arbitrários do poder público ou de suas
concessionárias” e é regido pela instituição constitucionalizada do processo e pelos
princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia que integram o processo, para
assegurar a execução processualizada de direitos líquidos e certos já “acertados no
plano constituinte originário”, segundo Rosemiro Pereira Leal.162
O mandado de segurança surgiu no ordenamento jurídico brasileiro na
Constituição de 1934, sob influência imediata do habeas corpus e interditos
possessórios e mediata dos interditos do direito romano e Seguranças Reais das
Ordenações portuguesas.
Utilizando a divisão de Gregório Assagra de Almeida, Mirna Cianci e Rita
Quartieri, o artigo 5º, incisos LXlX e LXX, da Constituição de 1988 se encontram no
terceiro período de criação e evolução do mandado de segurança e indicam que
"conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não
amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela
ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica
no exercício de atribuições do Poder Público" e "o mandado de segurança coletivo
pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso
Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente
constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses
de seus membros ou associados", respectivamente.163
A Lei n° 12.106/2009 dispõe no artigo 1º que "conceder-se-á mandado de
segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou
habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa
física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de

162
SOARES, Carlos Henrique; BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Manual elementar de processo
civil, p. 820. LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática
processual e reflexões jurídicas, p. 25.
163
ALMEIDA, Gregório Assagra de; CIANCI, Mirna; QUARTIERI, Rita. Mandado de segurança:
introdução e comentários à Lei 12.016, de 7-8-2009 (artigo por artigo), com indicação do PLS n.
222/2010, p. 37-41. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça".164
O mandado de segurança tem caráter eminentemente processual, pois,
conforme lição de Barbosa Moreira, "a disciplina do mandado de segurança, quando
não se contenha na legislação especial, é necessariamente complementada pelas
normas constantes do Direito Processual comum, isto é, em outras palavras, pelas
normas constantes do Código de Processo Civil". Por isso, o marco teórico de diálise
do mandado de segurança deve ser a teoria processual que, nessa dissertação, é a
teoria neoinstitucionalista do processo.165

1. A eficácia das normas constitucionais

Esse tópico aborda a eficácia das normas constitucionais e a interpretação do


artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988 em visões que divergem da teoria
neoinstitucionalista do processo, tendo Ingo Wolfgang Sarlet como autor principal,
devido à qualidade e importância de suas obras e ao trabalho de compilação do
posicionamento de diversos autores que guia a pesquisa do autor sobre o tema.
As hipóteses de Ingo Wolfgang Sarlet são criticadas segundo o marco teórico
da teoria neoinstitucionalista do processo. Como resultado, a liquidez e certeza dos
direitos fundamentais será melhor compreendida, contribuindo para o entendimento
da fruição dos direitos fundamentais em espaços processualizados pela população
em situação de rua com utilização da hermenêutica isomênica.
Ingo Wolfgang Sarlet diferencia as esferas de eficácia das normas
constitucionais em eficácia jurídica (aplicabilidade) e eficácia social (efetividade) que
correspondem, respectivamente, ao dever ser normativo e ao ser da realidade social
e define a “eficácia jurídica como possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma
vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida
de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou
efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva
aplicação da norma (juridicamente eficaz) quanto o resultado concreto decorrente –
ou não – desta aplicação”.166
Em seguida, a eficácia das normas constitucionais é analisada com base nos


164
BRASIL. Lei n°12.016, de 7 de agosto de 2009.
165
Mandado de segurança, p. 84.
166
Curso de direito constitucional, p. 160.


ensinamentos de Rui Barbosa, Pontes de Miranda, José Horácio Meirelles Teixeira,


José Afonso da Silva, Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Brito, Maria Helena Diniz,
Celso Antônio Bandeira de Mello e Luís Roberto Barroso.
Desse extenso rol de autores, Ingo Wolfgang Sarlet conclui que, apesar das
diferenças existentes entre cada concepção, dois aspectos persistem, a saber: 1º.)-
A inexistência de “norma constitucional completamente destituída de eficácia, sendo
possível sustentar-se, em última análise, uma graduação da eficácia das normas
constitucionais”; 2º.)- A existência de dois grupos de normas, quais sejam, “àquelas
que dependem da intervenção do legislador infraconstitucional para gerarem seus
efeitos e aquelas que, desde logo, por apresentarem suficiente normatividade, estão
aptas a gerar seus efeitos”. Assim, as normas constitucionais possuiriam densidade
normativa que indicaria, inversamente, o grau de dependência de intervenção do
legislador infraconstitucional para gerar os seus efeitos essenciais, ou seja, quanto
maior a densidade normativa, menor a necessidade de regulamentação
infraconstitucional. Da normatividade mínima resulta que “todas as normas
constitucionais são sempre eficazes e, na medida de sua eficácia (variável de
acordo com cada norma) imediatamente aplicáveis. Isso significa que até mesmo as
assim denominadas normas de eficácia limitada (ou reduzida) são, nesse sentido,
imediatamente aplicáveis”.167
Ingo Wolfgang Sarlet afirma que a efetividade das normas constitucionais
“encontra-se na dependência de uma série diferenciada e complexa de fatores, dos
quais boa parte é mesmo exterior ao próprio domínio do direito constitucional” e que
a pretensão de eficácia da Constituição, com esteio em Konrad Hesse, “não pode
estar dissociada das condições históricas de sua realização, contemplando aqui as
condições naturais, técnicas, econômicas e sociais”. De acordo com essa hipótese,
a força normativa da Constituição está sujeita a “práxis constitucional [...] que deve
ser partilhada por todos os partícipes da vida constitucional, especialmente pelos
atores responsáveis pela ordem jurídica” e a fatores externos, como a “pressão da
dinâmica social e econômica”, refém da “sociedade fragilizada, com uma economia
dependente e em crise” e de “estruturas sociais conservadoras” que dificilmente
reuniriam as condições para a implementação de direitos fundamentais ou ficando à
mercê da indispensabilidade de “atores sociais e políticos (incluindo aqui os agentes


167
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional, p. 170, 172, 174.


do Poder Judiciário como agentes políticos) comprometidos e capacitados para


transformar a vontade em realidade”.168
Para Ingo Wolfgang Sarlet, com base em Klaus Stern, os direitos
fundamentais possuem trajetória histórico-evolutiva que vai desde a pré-história -
com término no século XVl - até a fase de constitucionalização iniciada em 1776.
Fundamentado em Antonio Perez Luño, o autor afirma que a positivação dos direitos
fundamentais é “o produto de uma dialética constante entre o progressivo
desenvolvimento das técnicas de seu reconhecimento na esfera do direito positivo e
a paulatina afirmação, no terreno ideológico das ideias da liberdade e da dignidade
humana”.169
Baseado em Robert Alexy, Ingo Wolfgang Sarlet afirma que a
fundamentalidade de certo direito está ligada aos aspectos formal e material
concomitantemente. A fundamentalidade formal “encontra-se ligada ao direito
constitucional positivo, no sentido de um regime jurídico definido a partir da própria
constituição, seja de forma expressa, seja de forma implícita”, enquanto a
fundamentalidade material “implica análise do conteúdo dos direitos, isto é, da
circunstância de conterem, ou não, decisões fundamentais sobre a estrutura do
Estado e da sociedade, de modo especial, porém, no que diz com a posição nestes
ocupada pela pessoa humana”. Segundo o autor, os direitos fundamentais são
definidos como “posições jurídicas concernentes às pessoas [...] que, do ponto de
vista do direito constitucional positivo, foram, expressa ou implicitamente integradas
à Constituição e retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos”.170
A perspectiva desenvolvida por Ingo Wolfgang Sarlet não se baseia nos
ganhos teóricos advindos da Constituição de 1988, pois estabelece a normatividade
mínima para os dispositivos constitucionais e concentra a interpretação da
Constituição nas mãos dos atores responsáveis pela ordem jurídica segundo a
existência de elementos metajurídicos processualmente irrefutáveis como as
condições naturais, técnicas, históricas, sociais e econômicas.
Essas hipóteses vinculadas a outros tipos de estado, que não o Estado
Democrático de Direito, contribuem, segundo André Del Negri para a "usurpação dos
direitos sociais e uma tímida política de inclusão social paralela a um tormentoso


168
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional, p. 183-184.
169
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional, p. 252.
170
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional, p. 267-269.


problema econômico que leva o Povo a converter-se em uma 'comunidade de


vontades', pois as normas definidoras dos direitos sociais ainda encontram
dificuldades de serem vistas como normas jurídicas de aplicação imediata (art. 5º, §
1º, da CB/88). E aqui, por conseqüência, esboça-se um anacrônico entendimento
baseado na equivocada idéia de que as diretrizes políticas a serem observadas
pelos administradores governativos são para o futuro. Só os mistificadores não
querem enxergar que a efetivação dos direitos sociais, no Brasil, reclama gestões no
conjunto de funções do Estado, a começar pela política de crescimento econômico,
passando pela administração governativa de inclusão social (Executivo) e atingindo
o processo de produção do Direito (Legislativo). Os problemas, no Brasil, não são
somente de 'falta de lei', como pensam os mais simplistas, mas, sim, de mudanças
institucionais. O fato é que há o paradoxo de as normas constitucionais possuírem
eficácia jurídica imediata e, ao mesmo tempo, serem as mais sujeitas ao
descumprimento e à inaplicabilidade devido aos sobressaltos econômicos".171
Por isso, a efetividade das normas constitucionais deve estar vinculada à
espaços processualizados de interpretação da lei com a participação dos
legitimados ao processo e não a espaços herméticos em que reinam o protagonismo
decisório do juiz e a preponderância do Estado. Somente dessa maneira é que as
normas relativas à direitos fundamentais líquidos e certos terão aplicabilidade
imediata (princípio), ao contrário da aplicabilidade mínima que norteia as conjecturas
de grande parte da doutrina.

1.1 Aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais

Ingo Wolfgang Sarlet pondera corretamente que a incidência do artigo 5º, §


1º, da Constituição de 1988 abrange todos os direitos e garantias fundamentais,
inclusive aqueles que não estão indicados no artigo 5º, não havendo como
“sustentar uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias
específicas de direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição”, motivo
pelo qual “todos os direitos fundamentais constantes no Catálogo (arts. 5º a 17),
bem como dos localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados
internacionais” têm aplicabilidade imediata. Feito o exame acerca do âmbito de


171
DEL NEGRI, André. Teoria da constituição e do direito constitucional, p. 102.


incidência, o autor aborda o significado e alcance do artigo 5º, § 1º da Constituição


de 1988, elencando três posições doutrinárias distintas sobre o tema: 1ª.)- “A norma
em exame não pode atentar contra a natureza das coisas, de tal sorte que boa parte
dos direitos fundamentais alcança a sua eficácia apenas nos termos e na medida da
lei”; 2ª.)- “Até mesmo as normas de cunho nitidamente programático podem ensejar,
em virtude de sua imediata aplicabilidade, o gozo de direito subjetivo individual,
independentemente de concretização legislativa”; 3ª.)- “Os direitos fundamentais
são, em princípio (na medida do possível), diretamente aplicáveis, regra que, no
entanto, comporta duas exceções: a) quando a Constituição expressamente remete
a concretização do direito fundamental ao legislador [...]; b) quando a norma de
direito fundamental não contiver os elementos mínimos indispensáveis que lhe
possam assegurar a aplicabilidade, no sentido de que não possui a normatividade
suficiente à geração de seus efeitos principais sem que seja necessária a assunção,
pelo Judiciário, da posição reservada ao legislador”. Em seguida, Ingo Wolfgang
Sarlet, cita os “institutos processuais de matriz constitucional” para a “proteção
judicial dos direitos fundamentais contra ações ou omissões dos poderes públicos”,
quais sejam, o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, procedimentos que estão “a serviço da aplicabilidade imediata, da eficácia
e, portanto, também da efetividade das normas constitucionais”, rechaçando a tese
segundo a qual inexistem normas programáticas na Constituição, pois há “normas
que, em virtude de sua natureza (forma de positivação, função e finalidade)
reclamam uma atuação concretizadora dos órgãos estatais, especialmente do
legislador” ou seja, normas que “se restringem a estabelecer programas, finalidades
e tarefas mais ou menos concretas a serem implementadas pelos órgãos estatais e
que reclama mediação legislativa”.172
Após essas considerações, Ingo Wolfgang Sarlet começa a esboçar o seu
posicionamento acerca da aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais
e sustenta, com base em Flávia Piovesan, que “a norma contida no artigo 5º, § 1º,
da CF impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos
fundamentais” e que o Poder Judiciário “encontra-se investido do poder-dever de
aplicar imediatamente as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais,
assegurando-lhes sua plena eficácia” e “não apenas se encontra na obrigação de

172
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional, p. 262-265.


assegurar a plena eficácia dos direitos fundamentais, mas também autorizado a


remover eventual lacuna oriunda da falta de concretização, valendo-se do
instrumental fornecido pelo art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil”. Ingo
Wolfgang Sarlet rejeita o posicionamento segundo o qual “todos os direitos
fundamentais podem [...] ser considerados diretamente aplicáveis e alcançar a sua
eficácia plena independentemente de qualquer ato concretizador” salientando que,
como regra geral, o Judiciário pode e deve “viabilizar a fruição dos direitos
fundamentais mediante o preenchimento de lacunas existentes”, mas que essa
atividade encontra limites na “reserva do possível, da falta de qualificação (e/ou
legitimação) dos tribunais para a implementação de determinados programas
socioeconômicos, bem como a colisão com outros direitos fundamentais”. Dessa
maneira, o referido autor afirma que a melhor interpretação do artigo 5º, § 1º, da
Constituição de 1988, com fulcro em Gomes Canotilho e Flávia Piovesan, “parte da
premissa de que se trata de norma de cunho inequivocamente principiológico,
considerando-a, portanto uma espécie de mandado de otimização (ou
maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a
maior eficácia possível aos direitos fundamentais”. Por conseguinte, a regra geral de
aplicabilidade imediata e eficácia plena dos direitos fundamentais comportam
exceções que “para serem legítimas, dependem de convincente justificação à luz do
caso concreto, no âmbito de uma exegese calcada em cada norma de direito
fundamental e sempre afinada com os postulados de um interpretação tópico-
sistemática”, cabendo aos poderes públicos, “a tarefa e o dever de extrair normas
que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível”.173
Se a hipótese acima pudesse ser resumida em uma frase, ela se enunciaria
assim: os direitos fundamentais são normas de aplicabilidade imediata e, como tais,
possuem uma normatividade mínima e devem ser garantidos pelo Estado na medida
e o máximo possíveis.
A concepção da teoria neoinstitucionalista sobre o artigo 5º, § 1º, da
Constituição de 1988 difere radicalmente da hipótese em que a eficácia dos direitos
fundamentais se baseia na figura da auctoritas, seja por meio do legislador na
dependência de regulamentação por lei infraconstitucional, seja por meio do juiz na
interpretação e aplicação de normas constitucionais, estando ausentes ou

173
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional, p. 268-271.


timidamente presentes o povo como legitimados ao processo. Os autores citados


descrevem bem a realidade opressora, mas a ciência jurídica deve problematizar a
realidade, refutando dogmas e contribuindo para a modificação da realidade
insatisfatória.
A utilização de expressões vagas e imprecisas, como densidade normativa e
a normatividade mínima da norma constitucional suscita a dúvida sobre quem as
define e sob quais parâmetros são utilizados nessa definição.
Ingo Wolfgang Sarlet responde essa questão afirmando que todas as normas
jurídicas possuem eficácia jurídica sendo diretamente aplicáveis pelos órgãos do
Poder Judiciário e que a “decisão a respeito de qual a eficácia de determinada
norma constitucional constitui uma decisão que, a despeito da necessidade de levar
em conta sempre as 'pistas' (e limites!) textuais, é uma decisão do intérprete e
aplicador da norma constitucional”.174 A interpretação e aplicação das normas
constitucionais são entregues à figura da auctoritas e se reserva o simples lugar de
destinatário (e não autor) da interpretação da lei para os legitimados ao processo.
Não ficam claros, na hipótese de Ingo Wolfgang Sarlet, quem são os atores
sociais e políticos responsáveis pela ordem jurídica e como os fatores externos
obstaculizam a fruição de direitos fundamentais, considerados como dádivas
históricas encaminhadas por mentes prodigiosas e corações altaneiros que criam
direitos já existentes se, e somente se, as condições econômicas, sociais, históricas
e políticas permitirem. Em caso contrário, o povo, excluído do espaço de criação,
interpretação e aplicação da lei, estará obrigado a esperar pacientemente e por
séculos que a sociedade evolua e lhe conceda gentilmente o direito à vida que não
seja a vida entitiva.175
O que não se percebe, nessa frágil conjectura, é que a existência de fatores
externos ao direito constitucional tem raízes no impedimento do exercício de direitos
fundamentais, ou seja, não é porque as condições econômicas de certo país são
desfavoráveis que os direitos fundamentais terão a sua execução postergada, mas é
porque os direitos fundamentais são vedados para maior parte da população que as
condições econômicas são desfavoráveis.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, "quando falamos em fruição jurídico-


174
Curso de direito constitucional, p. 175-176.
175
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural, p.
82.


econômica e não somente fruição econômica é no sentido de fixar a compreensão


de que a melhoria ou aumento das taxas de fruição dos bens e trabalho nacionais,
em nível mais genérico possível, passa forçosa e antecipadamente pelas conquistas
teóricas no campo do Direito como fundamento da normatização da atividade
humana".176
Há inversão entre causa e consequência que legitima e justifica a
obscenidade da existência de direitos fundamentais apenas no papel, sem qualquer
liquidez e certeza que impõem a sua imediata aplicabilidade. E é por isso que a
fruição de direitos fundamentais passa necessariamente pelo processo
constitucional e não pela eterna espera de melhoria da economia de do país ou pela
boa vontade do juiz que cria direitos já existentes.
Os direitos fundamentais são analisados por Ingo Wolfgang Sarlet como
organismo vivo que evolui ao longo da história, estando submetidos à dialética entre
o dever ser da norma e o ser da realidade social que aceita, ou não, a existência de
direitos fundamentais de acordo com o seu grau evolutivo. Assim, se determinado
direito fundamental não é executado, isso se deve às condições históricas que não o
permitem, apesar de expressa indicação constitucional. Nessa hipótese, o povo
deve esperar que as engrenagens da história operem de maneira diferente e que os
direitos lhe sejam doados pela auctoritas (führer, pai dos pobres, juiz).
A fundamentalidade do direito baseada em critérios formais e materiais é
distinta da teoria neoinstitucionalista do processo, no qual o direito é fundamental se
fundamentado pelo devido processo e é justamente a instituição do processo que
retira os direitos fundamentais da mera existência cartular e do voluntarismo do
agente público decisor.177
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – denominada de Lei de
Introdução ao Código Civil antes da promulgação da Lei n° 12.376/2010 e utilizada
por Ingo Wolfgang Sarlet para fundamentar a solução de lacunas na lei pelo juiz –
não adquiriu caráter democrático, permanecendo o viés autoritário do Decreto-lei,
promulgado pelo então ditador estadonovista Getúlio Vargas, que proíbe o non liquet
no seu artigo 4º, “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.178


176
LEAL, Rosemiro Pereira. Direito econômico: soberania e mercado mundial, p. 113.
177
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 23.
178
BRASIL. Decreto-lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942.


Segundo Rosemiro Pereira Leal, "o que se reconhece, na estrutura do


discurso constitucional, é uma falibilidade constante (non-liquet) como lacuna
normativa e lugar de atuação processual por uma fiscalidade irrestrita (construtiva e
reconstrutiva) do sistema implantado ao exercício de direitos processualmente
fundamentados de vida, liberdade, dignidade, a serem operados e fruídos em
simétrica paridade por um pensar processualizado e agir isonômicos em
contraditório na hipótese de sua transgressão (controles amplos, incessantes e
irrestritos de constitucionalidade, sobre o non-liquet como hubris dessacralizada)".179
Portanto, a anomia no direito não pode ser resolvida pelo juiz solitariamente, mas
pelo processo constitucional que propiciará a ampla defesa, isonomia e contraditório.
A hipótese desenvolvida por Ingo Wolfgang Sarlet sobre o artigo 5º, § 1º, da
Constituição de 1988 gravita em torno do juiz. Quem decide as exceções à
aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais? Quem supre as lacunas da lei?
Quem garante a fruição dos direitos fundamentais? A resposta para todas essas
perguntas é: o juiz.
O autor sucumbe diante da judicialização dos direitos fundamentais e da
realidade opressora, pois os limites indicados à atuação do Poder Judiciário,
consistem na reserva do possível e na falta de qualificação ou legitimação dos
tribunais na implementação de programas socioeconômicos e essas duas exceções
são esferas imunes às críticas e distantes da participação dos sujeitos de direito
legitimados ao processo.
Fatores externos, reserva do possível, caso concreto, realidade social, baixa
densidade normativa, normatividade mínima, condições históricas, pressão da
dinâmica social e econômica, na medida do possível e mandado de otimização, são
lugares comuns fartamente utilizados por Ingo Wolfgang Sarlet na tentativa
imunização crítica e retirada a interpretação e aplicação do artigo 5º, § 1º, da
Constituição de 1988 de espaços processualizados com a atuação dos legitimados
ao processo e consequente entrega da interpretação e aplicação da lei para a
auctoritas, eufemisticamente denominada de atores responsáveis pela ordem
jurídica, atores sociais e políticos, intérprete e aplicador de normas constitucionais,
poderes públicos e Poder Judiciário que atuam como verdadeiros porteiros da lei,


179
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e democracia: a ação jurídica como exercício da cidadania.
Virtuajus. Belo Horizonte, 2005, p. 9.


impedindo que o povo (camponês) atue e encaminhe os sentidos da lei.180


Com implicações semelhantes, a graduação da eficácia das normas
constitucionais relativas à direitos e garantias fundamentais, entre a normatividade
mínima obrigatória e um máximo possível - mas oportunamente postergado - gera o
subjetivismo decisional incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois
caberia ao agente público a decisão acerca da fruição ou não de determinado direito
fundamental de acordo com as possibilidades do Estado e ao juiz a definição sobre
o que é a normatividade mínima. Neste sentido, se compactua com a anomalia do
direito fundamental imediata e minimamente aplicável.
Diferentemente, a teoria neoinstitucionalista do processo indica o processo
constitucional como espaço de construção dos significados da lei por todos,
indistintamente. Ainda que se admita as estranhas figuras da normatividade mínima
e da aplicação dos direitos fundamentais na medida do possível, a decisão acerca
desses parâmetros será tomada no processo constitucional em hermenêutica
isomênica e não por agentes públicos encastelados nos dogmas de verticalidade
entre Estado e o povo e na proibição do non liquet.
Gregório Assagra de Almeida e Flávia Vigatti Coelho de Almeida afirmam que
o "§ 1º do art. 5º da CF/88, que não encontra registro nas Constituições anteriores
do Brasil, é resultado da nova interpretação concretizante, construída pela
hermenêutica constitucional do pós-positivismo". Segundo os autores, "todos os
direitos fundamentais, individuais ou coletivos possuem aplicabilidade imediata nos
termos do § 1º, da CF. O princípio da aplicabilidade imediata não impede, porém,
que seja aferida a impossível realização, muitas vezes provisória, do direito
fundamental, quando houver impedimento real ou fático. Entretanto, é descabida a
alegação de impedimento formal ou meramente de teor jurídico como barreira à
realização dos direitos fundamentais, individuais ou coletivos. Afirmou-se
anteriormente que o impedimento puramente jurídico não existe, porque a
Constituição é clara e contundente ao prever a aplicabilidade imediata dos direitos e
garantias constitucionais fundamentais".181
Dessa maneira, o artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988 é um princípio que
estabelece diretrizes gerais indutoras do direito e não mero dispositivo que deixa a


180
KAFKA, Franz. Um médico rural: pequenas narrativas, p. 23-25.
181
ALMEIDA, Gregório Assagra de; ALMEIDA, Flávia Vigatti Coelho de. Direitos fundamentais e a
função do Estado nos planos internos e internacional, p. 232.


cargo do agente estatal definir solitariamente qual é a dimensão dessa aplicabilidade


imediata. O princípio da aplicabilidade imediata dos direito e garantias fundamentais
define o instituto do mandado de segurança ao lado dos princípios institutivos do
processo (ampla defesa, isonomia e contraditório) e é balizador do direito líquido
(autoexecutável).
João Pedro Gebran Neto desenvolve importante trabalho em obra de 2002
sobre os contornos do artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988 e afirma que a
aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais dispostos unicamente no
artigo 5º ocorre "independentemente de qualquer medida concretizadora", possuindo
"relativamente às demais normas constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia".
Prosseguindo, o autor restringe a aplicabilidade imediata aos direitos e garantias
fundamentais indicados no artigo 5º, da Constituição de 1988, por dois motivos.
Primeiro, porque os parágrafos se referem ao artigo ao qual está vinculado e,
segundo, pois "uma interpretação extensiva resulta numa verdadeira negação de
validade ao dispositivo constitucional", justificando que "o legislador constituinte, ao
positivar seu pensamento, disse mais do que pretendido. Ao referir-se aos direitos
fundamentais estava, na verdade, buscando dar especial tratamento jurídico aos
direitos e garantias individuais e coletivos previsto no artigo quinto da Constituição,
esquecendo-se que no restante do diploma havia outros direitos fundamentais". Com
tal restrição, João Pedro Gebran Neto tenta limita o alcance e alargar a eficácia do
artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988, entregando ao Poder Judiciário "certa
margem de opção e concretização [...] perante a inércia dos demais poderes", pois
"nem mesmo argumentos de reserva do possível são admissíveis porque, em
relação aos direitos catalogados, não deixou o legislador-constituinte espaço ou
abertura para critérios discricionários ou políticos", concluindo que é nesse aspecto
de rejeição da reserva do possível que "reside, fundamentalmente, a verticalidade do
tema em exame, que muda e limita o alcance do art. 5.º, § 1º, da Constituição,
apenas para os direitos fundamentais ali enumerados, mas amplia a sua eficácia".182
Apesar da aplicabilidade imediata estar indicada em parágrafo do artigo 5º,
ela não se restringe aos direitos dispostos nesse artigo, pois a locução direitos
fundamentais é mais abrangente e abarca todos os direitos do título ll da


182
Por medida concretizadora, o autor entende a “intermediação concretizadora por parte do
legislador” (GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias
individuais: a busca de uma exegese emancipatória, p. 155, 158-159, 180, 182).


Constituição, denominado "Dos direitos e garantias fundamentais". Portanto, os


direitos sociais indicados nos artigos 6º ao 11 não deixam de ser fundamentais por
não estarem no artigo 5º, sobre eles incidindo a aplicabilidade imediata. E a hipótese
segundo a qual o legislador "disse mais do que pretendia" é incabível, pois não é
possível perquirir as convicções íntimas dos legisladores e, mesmo se isso
ocorresse, o sentido da norma não lhe estaria vinculado.
Com fundamento no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, atual
artigo 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, o autor defende "a
possibilidade de preenchimento das lacunas legais pelo Poder Judiciário" e indica
três limites a essa atividade. O primeiro limite decorre da "forma de positivação do
texto, do qual é a norma de concretização conseqüência direta. Se é verdade que
deve ser extraído do texto o máximo de suas potencialidades, igualmente é verdade
que não pode o intérprete, a pretexto de lhe conferir efeito ótimo, dizer aquilo de que
sequer se cogita". O segundo limite está no dever do julgador de fundamentar suas
decisões, "sujeitando-se ao controle, pela via do recurso, de sua decisão", motivo
pelo qual o Poder Judiciário deve "apresentar argumentos substanciais de modo a
fazer valer, por meio de sólida argumentação, as opções constitucionalmente
estabelecidas". Por fim, o terceiro limite "diz respeito às cláusulas de exceções
expressamente previstas no próprio texto constitucional". O autor conclui que "tais
limites configuram (modulam) uma atuação máxima do magistrado na composição
do caso concreto, porquanto não é admissível que o juiz ultrapasse as margens da
discricionariedade que são abertas ao legislador. Da mesma forma, deve ser
atendido o limite mínimo dos direitos fundamentais, qual seja a menor fração
possível de direito fundamental que se pode e deve outorgar ao indivíduo. Este limite
mínimo está vinculado ao conceito de dignidade da pessoa humana, já referido, e ao
mínimo vital" e que o Poder Judiciário não pode se substituir ao legislador, mas deve
"como guardião da Constituição Federal [...] buscar sua ótima concretização, atento
aos limites que lhe são impostos".183
Apesar de João Pedro Gebran Neto defender o controle do Poder Judiciário
decorrente dos "princípios do contraditório e da ampla defesa, que possibilitarão às
partes no processo em que buscam o suprimento da lacuna deduzir satisfatória e
abundantemente seus argumentos e provas", conferir ao juiz o poder para preencher

183
GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais: a busca de
uma exegese emancipatória, p. 188, 191-192, 194.


lacunas legais e estabelecer os limites mínimos dos direitos fundamentais e


considerar o Poder Judiciário como o guardião da Constituição de 1988 eclipsam as
garantias do processo em favor do solipsismo decisório do juiz e da existência
absurda do mínimo para os direitos fundamentais.184 Se o ordenamento jurídico
contém lacunas, o processo é o espaço de discussão das anomias em que a
interpretação do juiz não será mais importante - tampouco a única - que a
interpretação das partes.
A leitura apressada do artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988, poderia levar à
conclusão precipitada de que imediato significa agora, como se os direitos
fundamentais pudessem ser fruídos em um passe de mágica pela simples
disposição constitucional.185
Contudo, ao associar a aplicação imediata dos direitos e garantias
fundamentais com os atributos de liquidez, a teoria neoinstitucionalista, enunciada
por Rosemiro Pereira Leal, inclui o processo de execução na diálise do artigo 5º, §
1º, da Constituição de 1988 e remete a garantia dos direitos fundamentais ao plano
constituinte originário.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, "a constitucionalidade democraticamente
cartularizada equivale a um título executivo extrajudicial que, em seus conteúdos de
liquidez e certeza, se lança à imediata satisfação como devido a priori pela
Administração Governativa" e "nas democracias, a constituição escrita, quanto aos
direitos econômicos fundamentais, equivale a um título executivo extrajudicial de
obrigação infungível do fazer da Administração Pública".186


184
GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais: a busca de
uma exegese emancipatória, p. 188.
185
Gregório Assagra de Almeida, Mirna Cianci e Rita Quartieri afirma que o mandado de segurança
tem “aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF) e, assim, não precisa de regulamentação
infraconstitucional para que seja aplicado, como aconteceu antes da nova Lei do Mandado de
Segurança em relação ao mandado de segurança coletivo, que, mesmo sem regulamentação
infraconstitucional específica, era autoaplicável” (Mandado de segurança: introdução e
comentários à Lei 12.016, de 7-8-2009 (artigo por artigo), com indicação do PLS n. 222/2010, p.
43-44).
186
Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões jurídicas, p. 26-27,
38. Ainda segundo Rosemiro Pereira Leal, “a não conceber a constituição como título executivo
extrajudicial quanto a direitos fundamentais, e se crendo já na existência de uma ‘sociedade’
política de construção anônima (pressuposta e atuante) achada no ato do nascimento do homem e
a ser referenciada como relíquia imorredoura, a comunidade jurídica operadora do sistema nada
mais seria que a ‘sociedade’ dos liberais predestinados (aristotélicos) e não o povo total como
legitimados ao processo no exercício dos direitos fundacionais de ‘paridade fundamental’ para a
edificação paulatina da sociedade democrática processualmente criada, constitucionalizada e
assegurada” (Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo
democrático brasileiro, p. 285).


Por isto, com base nas lições de Rosemiro Pereira Leal, o artigo 5º, §1º,
permite asseverar que a Constituição de 1988 é título executivo extrajudicial, pois a
força executiva a qual se refere o artigo 784, inciso Xll, do Código de Processo Civil
de 2015 é atribuída pela própria Constituição ao dispor sobre a aplicabilidade
imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. Por
conseguinte, a execução de direitos fundamentais será feita com base nos artigos
497, 536, 537 e 814 a 823 do Código de Processo Civil de 2015.187
Para possibilitar a operacionalização dos direitos fundamentais, o princípio da
aplicabilidade imediata disposto no artigo 5º, §1º, da Constituição de 1988, deve ser
interpretado em conjunto com o mandado de segurança.
Dessa maneira, os direitos fundamentais não são criados pelos órgãos
estatais competentes pelo exercício da função jurisdicional ou qualquer outra função
no caso concreto, mas pelo constituinte originário e aplicação imediata quer
significar execução imediata, prescindindo de procedimento cognitivo, a ser feita em
hermenêutica isomênica no processo constitucional pelos sujeitos de direito.

2. A liquidez e certeza dos direitos

Esse item aborda a concepção de alguns autores sobre a liquidez e certeza


do direito em sede de mandado de segurança para, depois, testificá-los com base na
teoria neoinstitucionalista do processo, indicando se as hipóteses aventadas pelos
referidos autores resistem ou não às críticas formuladas.
A teoria neoinstitucionalista do processo possibilita a superação da celeuma
acadêmica acerca da liquidez e certeza no mandado de segurança expressa em
cinco hipóteses, quais sejam, a liquidez e certeza como: 1ª.)- Atributos conferidos
pelo juiz após a valoração do elemento de prova pré-constituída evidente per si; 2ª.)-
Atributos dos fatos; 3ª.)- Condição da ação; 4ª.)- Matéria de mérito do procedimento
judicial e, por fim; 5ª.)- Liquidez como sinônimo ou espécie de certeza.188

187
Segundo Teori Albino Zavascki, “como todo título executivo, também os extrajudiciais devem
representar, documentalmente, norma jurídica individualizada, contendo obrigação líquida, certa e
exigível de entregar coisa, de fazer ou de não fazer ou de pagar quantia” (Título executivo e
liquidação, p. 111).
188
Nesse sentido: 1ª.)- PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. História e prática do habeas
corpus: direito constitucional e processual comparado, p. 262, 327; BUZAID, Alfredo. Do mandado
de segurança, p. 34; WALD, Arnoldo. Do Mandado de Segurança na Prática Judiciária, p. 120,
123, 125, 130, 137; MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição brasileira, p. 146-147;
ROCHA, José de Moura. Mandado de segurança: a defesa dos direitos individuais, p. 113. 2ª.)-


Quanto ao mandado de segurança, os autores formulam três hipóteses que o


definem como ação, direito e garantia. Para solucionar essa balbúrdia conceitual,
tem razão Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, com base na distinção de Jorge
Miranda e nas lições de José Alfredo de Oliveira Baracho, ao pontificar que “as
garantias constitucionais (garantias fundamentais) são meios desenvolvidos pela
técnica jurídica moderna, de sorte a controlar a regularidade constitucional dos atos
estatais em geral (gênero) e do ato jurisdicional (espécie) em particular”, elencando,
como exemplo, as garantias do juízo natural, contraditório, plenitude de defesa,
fundamentação racional das decisões jurisdicionais e do processo sem dilações
indevidas e, forte na doutrina de Eduardo Juan Couture e no princípio da supremacia
da Constituição, ao afirmar que ação, “espécie do gênero direito constitucional de
petição, é direito assegurado a qualquer pessoa [...] exercido contra o Estado,
consistindo em lhe exigir seja prestada a jurisdição, tendo por base a instauração de
um processo legal e previamente organizado segundo o devido processo
constitucional”.189
Tendo essas lições em vista, não faz sentido afirmar que o mandado de
segurança é ação, direito ou garantia. Mais escorreita tecnicamente é a hipótese
segundo a qual o mandado de segurança é procedimento constitucional, isso é,
“uma estrutura técnica de atos jurídicos praticados por sujeitos de direito, que se
configura pela sequência obediente à conexão de normas preexistentes no
ordenamento jurídico indicativas do modelo procedimental” que pode ser utilizado
por todos devido ao direito de ação e em conformidade com o artigo 5º, incisos LXlX
e LXX, da Constituição de 1988 e com a Lei n°12.016/2009, observadas as garantias
do contraditório, plenitude de defesa, fundamentação racional das decisões
jurisdicionais e de um processo sem dilações indevidas.190

2.1 Como atributos conferidos pelo juiz ao direito pleiteado no mandado de


segurança e como necessidade de prova documental indubitável e pré-

MATIELO, Fabrício Zamprogna. Mandado de segurança, p. 85. 3ª.)- MACIEL, Adhemar
Ferreira. Revista de Processo, p. 24. 4ª.)- FERRAZ, Sérgio. Mandado de segurança, p. 25-26, 34.
5ª.)- SIDOU, José Maria Othon. Do mandado de segurança, p. 84, 87, 234, 235; FLAKS, Milton.
Mandado de Segurança: pressupostos de impetração, p. 129-130; CASTRO NUNES, José. Do
mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do poder público, p. 55-56, 59,
65-66.
189
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrático de direito, p.
92-93, 103-104.
190
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 94.


constituída

Segundo a hipótese indicada no título, a exigência de prova documental pré-


constituída tem como objetivo convencer o juiz acerca da ausência de dúvidas sobre
fatos narrados pelo impetrante.
Pontes de Miranda escreve que “direito líquido e certo é aquêle que não
desperta dúvidas, que está isento de obscuridades, que não precisa ser aclarado
com o exame de provas em dilações, que é de si-mesmo concludente e inconcusso”
e confunde liquidez com certeza ao afirmar, com base em Joaquim José Caetano
Pereira e Sousa, jurista português falecido em 1819, que “líquido é o que consta ao
certo” e que o direito não deixa de ser líquido ao ser contestado. Arremata,
afirmando que “líquidos são os direitos quando a sua existência é afetada sem
incertezas ou sem dúvidas, quando o paciente mostra que a sua posição legal é
evidente, sem precisar para o mostrar de diligências e delongas probatórias”.191
Em obra atualizada por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes, Hely Lopes
Meirelles afirma que “direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua
existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da
impetração. Por outras palavras, o direito invocado, para ser amparável por
mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os
requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se a sua existência for
duvidosa, se a sua extensão ainda não estiver delimitada, se seu exercício depender
de situações e fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora
possa ser defendido por outros meios judiciais. Quando a lei alude a ‘direito líquido e
certo’, está exigindo que esse direito se apresente com todos os requisitos para seu
reconhecimento e exercício no momento da impetração. Em última análise, direito
líquido e certo é direito comprovado de plano [...]. O conceito de ‘liquidez e certeza’
adotado pelo legislador é impróprio – e mal expresso – alusivo à precisão e
comprovação dos fatos e situações que ensejam o exercício desse direito. [...] As
provas tendentes a demonstrar a liquidez e certeza do direito podem ser de todas as
modalidades admitidas em lei, desde que acompanhem a inicial”.192


191
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. História e prática do habeas corpus: direito
constitucional e processual comparado, p. 262, 327. PEREIRA E SOUSA, Joaquim José Caetano.
Esboço de hum diccionario juridico, theoretico, e practico, remissivo ás leis compiladas, e
extravagantes, páginas não numeradas.
192
MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnold; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e


Themistocles Brandão Cavalcanti analisa as noções de liquidez, certeza e


incontestabilidade de direitos na jurisprudência, na doutrina e nos diplomas legais
vinculando-os a resistência “a uma contestação razoável” e a “convicção plena, a
certeza absoluta, de que o direito possa merecer proteção” por parte do juiz. Na
interpretação do autor e com base no artigo 1.533 da Lei n° 3.071/1916 (Código Civil
de 1916), a utilização do termo líquido é indevida, pois expressa noção generalizada
em matéria civil, estando ligada à noção de quantidade e de valor. O autor
reconhece que o termo incontestável, presente na Constituição de 1934, confere
elevada discricionariedade ao juiz, mas, “por outro lado, subordina êsse julgamento
ao rigor da contestação que se lhe opõe, e constitui sem dúvida o maior elemento na
apreciação judicial”. O autor reforça esse posicionamento ao afirmar que o amparo
do direito individual depende do “critério do Juiz na apreciação subjetiva do valor da
contestação” e que “os excessos e as restrições que daí podem decorrer são, sem
dúvida, de consequências imprevisíveis nas mãos do Poder Judiciário”. Assim, “a
obrigação líquida pressupõe a sua ‘certeza’. É aquela cuja existência pode ser
desde logo constatada”.193
Nesse sentido, “a palavra incontestável foi incluída na lei para exprimir
precisamente a medida da contestação e a influência que possa ter no espírito do
julgador” e “ao justo arbítrio do juiz, à sua perspicácia e ao sentido próprio da função
judicante, cabem de modo muito especial, a apreciação da certeza e liquidez do
direito”. Dessa maneira, “o conceito de liquidez, em se tratando de direito, não
encontra solução objetiva, satisfatória”. Interpretando a parte da obra de
Themistocles Brandão Cavalcanti referente à noção de liquidez, certeza e
incontestabilidade do direito como elementos fundamentais para que o mandado de
segurança seja concedido, o autor identifica o aumento da discricionariedade do juiz
devido ao adjetivo incontestável do direito utilizado pela Constituição de 1934 e
abandonado pela Constituição de 1946 e pela Lei n° 1.533/51, mas sucumbe a esse
fato, pois acredita que o subjetivismo na interpretação do texto da lei “encontra
raízes em nossas tradições jurídicas”.194
O posicionamento de Alfredo Buzaid, segundo o qual a noção de direito
líquido e certo pode ser esclarecido pela "idéia de sua incontestabilidade, isto é, uma


ações constitucionais, p. 36-37.
193
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Do mandado de segurança, p. 123, 126, 128.
194
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Do mandado de segurança, p. 129, 131.


afirmação jurídica que não pode ser séria e validamente impugnada pela autoridade
pública, que pratica um ato ilegal ou de abuso de direito" não parece acertado, ao
menos após a Constituição de 1988, por violar frontalmente a garantia do
contraditório e ao conferir ao juiz a discricionariedade na definição do que pode ou
não ser contestado.195
Arnoldo Wald afirma que liquidez e certeza do direito resultam no direito
“comprovado de plano, pois não se admite a produção de provas no bojo do
mandado de segurança”. Para o autor, "é preciso que o fato alegado pela parte e em
que baseia o seu direito certo, tenha sido provado documentalmente, de modo
absoluto e evidente [...]. A prova, afirma a jurisprudência, deve ser cabal, completa e
imediata".196
Segundo Arnold Wald, a “evidência concreta é conceito subjetivo e relativo,
variando de juiz para juiz. Aqui, como no direito suíço, o magistrado faz as vezes de
legislador, apreciando em cada caso concreto a clareza meridiana que deve
caracterizar o direito violado. A lei e a jurisprudência se limitam a dar uma diretriz e
uma orientação, deixando ao juiz a solução de cada hipótese. O magistrado, no
exame dos processos que lhe são submetidos, procurará fixar o seu próprio conceito
de direito líquido e certo, assinalando o que para ele se torna evidente, natural,
decorrente dos inabaláveis princípios jurídicos inerentes à nossa civilização. Tal é a
razão pela qual nem sempre se justifica a revolta contra a concessão ou denegação
do mandado. O que é transparente, evidente e cristalino para o advogado pode não
sê-lo para o juiz. São problemas de formação pessoal, de ideologia, de escala de
valores [...]. Assim, vemos que a apreciação do juiz não pode deixar de ser
subjetiva, como o assinalam vários acórdãos”.197
Dessa maneira, apesar de criticar a expressão direito incontestável, Arnoldo
Wald acaba por reforçar a subjetividade do juiz na interpretação da liquidez e
certeza do direito no mandado de segurança. Nessa hipótese, o juiz tem a função de
decidir no caso de obscuridade da lei expressa no termo direito líquido e certo sem a
participação das partes, tratadas como meras destinatárias da sentença.
Em obra de 1954, Carlos Maximiliano pondera que “cabe o Mandado de
Segurança quando se trate de direito translúcido, evidente, acima de toda dúvida


195
BUZAID, Alfredo. Do mandado de segurança, p. 88.
196
WALD, Arnoldo. Do mandado de segurança na prática judiciária, p. 120, 126-127.
197
WALD, Arnoldo. Do mandado de segurança na prática judiciária, p. 130.


razoável, apurável de plano, sem detido exame, nem laboriosas cogitações [...].
Direito certo e líquido é aquêle contra o qual se não podem opor motivos
ponderáveis e, sim, meras e vagas alegações, cuja improcedência o magistrado
logra reconhecer imediatamente sem necessidade de exame demorado pesquisas
difíceis; por outras palavras, é o que nenhum jurista de mediana cultura contestaria
de boa fé e desinteressadamente”.198
Com relação à noção de liquidez, Celso Agrícola Barbi afirma que "o conceito
de direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende ao modo de ser de
um direito subjetivo no processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo
realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é
atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser provados de forma
incontestável, certa, no processo". Sobre as provas no mandado de segurança, o
autor defende que "a prova assume no processo de mandado de segurança
excepcional relevo, pois [...] a base da definição do que seja direito líquido e certo
repousa na indiscutibilidade dos fatos e, conseqüentemente, na questão
probatória".199
Marcos José Porto Soares e Thalita Andrea Santos Rosa formulam quatro
hipóteses sobre o mandado de segurança, quais sejam, o mandado de segurança é
ação; a liquidez e certeza são condições da ação, embora façam parte do mérito; o
direito líquido e certo é aquele “comprovado logo de plano, não necessitando ser
provado através de formalidades normais processuais” e cabe ao juiz “tomar ciência
de todas as provas, para afirmar, sem dúvida, que o impetrante possui ou não o
direito que busca”.200
Essas hipóteses revelam a confusão sobre a liquidez e certeza, ora definidas
como condição ou requisito da ação, ora como matéria de mérito relacionada ao
plano fático e reservam para o juiz lugar de destaque não compartilhado para a
aferição do caráter induvidoso e evidente dos elementos de prova carreados pelo
impetrante. Forma-se o momento místico no qual o juiz detém poderes sobrenaturais
de clarividência sobre a evidência impassível de crítica acerca da prova que lhe
imprime a convicção e certeza acerca dos direitos alegados.
Em obra de 1976, Sergio Sahione Fadel elabora sete hipóteses sobre a


198
Comentários à Constituição brasileira, p. 146-147.
199
Do mandado de segurança, p. 61, 207.
200
Revista dos Tribunais, p. 183, 189, 190, 193, 200-201.


liquidez e certeza do direito no mandado de segurança, a saber: 1ª.)- A noção de


liquidez e certeza do direito é subjetiva, ou seja, o impetrante sustenta que tem
direito líquido e certo, levando sua pretensão “ao conhecimento do juiz, que
aplicando a lei, dirá se a parte tem ou não o direito que apregoa e que colima
exercitar”; 2ª.)- Decorre de “questões que, em face da prova documental produzida,
se tornaram incontrovertes, ou que, embora não comprovadas, sejam admitidas
como verídicas pela autoridade informante”; 3ª.)- Se identifica com a
“indubitabilidade e inquestionabilidade nos fatos em funda seu pedido”; 4ª.)- Decorre
da norma legislativa, estando desamparado o ato que “viola uma disposição
contratual, nem o que decide pela equidade, nem o que é praticado em razão da
conveniência e oportunidade da Administração Pública, nem o denominado ato
político”; 5ª.)- Se refere também a “inquestionabilidade” da prova dos fatos que
impede a concessão da ordem pelo juiz caso pairem dúvidas que impeçam a
formação da “convicção do juiz”; 6ª.)- Decorre da liquidez e certeza dos fatos; 7ª.)-
Implica na infungibilidade do direito perseguido, pois o mandado de segurança
“assegura tão-somente o exercício do direito perseguido em si, não dando azo à
reparação econômica ou a qualquer outro meio de equivalência. Líquido e certo quer
dizer insubstituível, único, determinado”.201
Barbosa Moreira defende que, em razão do "rito rápido, expedido, célere", é
necessário que se exclua do mandado de segurança "as diligências probatórias",
pois "à medida que tivéssemos de mandar realizar perícia, por exemplo, ou ouvir
testemunhas, então evidentemente o procedimento se tornaria mais complexo e, por
conseguinte, mais demorado [...]. Temos, portanto, de restringir, no processo de
mandado de segurança, toda a atividade probatória ao exame de documentos, e de
documentos preconstituídos. Eis aí, afinal, a que se reduz, no consenso hoje da
doutrina e da jurisprudência, esta expressão, à primeira vista um pouco enigmática:
'direito líquido e certo'".202
Em artigo de 2013, Hugo de Brito Machado afirma que o direito do impetrante
será considerado líquido e certo se “os fatos por ele alegados devem resultar
suficientemente comprovados com a inicial. A prova desses fatos deve ser pré-
constituída”, resultando na inutilidade da instrução probatória.203


201
FADEL, Sergio Sahione. Teoria e prática do mandado de segurança, p. 20-23, 26.
202
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Mandado de segurança, p. 81.
203
MACHADO, Hugo de Brito. Revista Dialética de Direito Tributário, p. 72-73.


Ovídio Baptista da Silva vincula liquidez e certeza dos direitos ao


convencimento do juiz acerca dos elementos de prova apresentados pelo impetrante
e afirma que "todo direito, tanto que existente, haverá de ser 'líquido e certo', pois
seria um contra-senso lógico que alguém pudesse ser titular de um direito 'incerto'. O
mesmo se deve dizer da condição de ser o direito 'líquido', no sentido de
incontestável. Todo direito, depois de demonstrado, há de ser incontestável". Dessa
maneira, todo direito pode ser amparado por mandado de segurança, se "o titular
seja capaz de demonstrar-lhe a existência, através de prova dos fatos que o tornem
incontroverso". Nessa hipótese, o autor assevera que o direito pode ser
eventualmente duvidoso dependendo do "grau de disponibilidade probatória com
que possa contar o seu titular, para demonstrá-lo ao julgador".204
Segundo Ovídio Baptista da Silva, a liquidez e certeza do direito é categoria
de direito processual, pois, no plano do direito material, ou o direito é certo ou é
incerto, ou ele existe ou não existe. O elemento de prova do impetrante teria a
função de reproduzir a verdade, fazendo-a em maior ou menor grau segundo o grau
de disponibilidade probatória do impetrante e essa gradação do elemento de prova é
aferido solitariamente pelo juiz, ou seja, a liquidez e certeza do direito são categorias
processuais, pois o juiz valoriza os elementos de prova e qualifica, na sentença, o
direito pretendido pelo impetrante como líquido e certo ou não. Em outras palavras,
"a 'liquidez e certeza' do direito invocado no mandado de segurança apresentam-se
ao julgador fundadas em alegações tão relevantes que a probabilidade de
procedência da demanda torna-se muito elevada".205
A vingar essa hipótese, as partes procedimentais teriam pouca influência na
valorização do elemento de prova, que se restringiria à simples juntada do elemento
de prova aos autos do procedimento e ao sofrimento dos efeitos da sentença. Além
disso, ao contrário do defendido nessa dissertação, qualquer direito e não somente
os direitos fundamentais, podem ser objeto do mandado de segurança.
Dessas hipóteses, é possível tirar duas conclusões, quais sejam, o juiz é o
centro gravitacional do procedimento do mandado de segurança e decide
solitariamente sobre a liquidez e certeza do direito com base na ausência de dúvidas
acerca das provas produzidas pela parte impetrante e que a liquidez e certeza do

204
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 370-372.
205
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 395.


direito decorre da norma legislativa e implica na infungibilidade do direito alegado. A


primeira conclusão reforça o protagonismo decisório do juiz, mas a segunda guarda
semelhanças com a concepção da teoria neoinstitucionalista do processo, apesar
das elucubrações de Sergio Sahione Fadel escritas em livro de 1976 não se
desenvolverem, obviamente, a ponto de considerar a liquidez e certeza dos direitos
fundamentais garantidos pela futura Constituição de 1988 e não pelo juiz
solitariamente.

2.2 Como sinônimo, espécie ou reforço de expressão da certeza

Em obra de 1980, Milton Flaks afirma que “direito líquido está no texto
constitucional em reforço de certo, no sentido de apurado ou determinado”.206 José
de Castro Nunes, afirma que a locução direito certo e incontestável da Constituição
de 1934 foi alterada para direito líquido e certo, sem modificação substancial no
“sentido e alcance do instituto”; certo e incontestável significam “suscetível de prova
imediata e demonstração concludente” e líquido “está no texto como reforço da
expressão, mais na acepção vulgar de escoimado de dúvidas, o que equivale a
certo”.207
Em obra de 1969, José Maria Othon Sidou critica a expressão direito líquido e
certo por dois motivos. Primeiro, a expressão é redundante, pois todo direito é certo
e “se o fato é certo (líquido) e sobre êle não se pode levantar uma contestação
razoável, e se, sendo fato, resulta numa ilegalidade ou abuso de poder, há caso
para o mandado de segurança, sempre”. Segundo, a expressão é vaga, pois o
mandado de segurança “não se ergue para apreciar direitos cuja complexidade
exige, por mais sumário que seja seu processo, o concurso de elementos peculiares
a cada relação suscitada”. Assim, o autor equipara certo a líquido e os define como
característica do fato incontestável e não do direito, o que direciona a interpretação
da liquidez e certeza para a existência de prova indubitável.208
Contudo, liquidez e certeza são atributos distintos dos direitos fundamentais.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, liquidez é a vedação de inexequibilidade e certeza


206
Mandado de segurança: pressupostos de impetração, p. 129.
207
CASTRO NUNES, José de. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos
do poder público, p. 55, 66.
208
SIDOU, José Maria Othon. Do mandado de segurança, p. 87.


é infungibilidade.209
Dessa maneira, os direitos fundamentais são líquidos, devido ao disposto no
artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988, mas não são certos, necessariamente. Por
exemplo, o direito à indenização compensatória nos casos de despedida arbitrária
ou sem justa causa do trabalhador, indicado no artigo 7º, inciso l, da Constituição de
1988. O direito é fundamental, mas não é certo, pois comporta indenização em
casos nos quais é violado. De igual modo, os incisos V e X do artigo 5º, da
Constituição de 1988 dispõe sobre a indenização por dano material, moral ou à
imagem relacionado ao direito de resposta e à violação da intimidade, vida privada,
honra e imagem das pessoas, respectivamente.210 Nesses casos, o mandado de
segurança não é cabível, pois ausente o direito certo.

2.3 Como atributos dos fatos e dos direitos

A confusão entre direito e fato e a relação entre ambos e a concessão do


mandado de segurança possibilitam o tratamento da liquidez e certeza como
atributos dos fatos e dos direitos em item único.
Em obra de 2001, Fabrício Zamprogna Matielo afirma que “direito líquido e
certo é o que tem existência definida e inarredável, decorrente de previsão
normativa associada a circunstâncias fáticas igualmente manifestas e comprovadas
de plano, além de estar perfeitamente caracterizado em sua extensão e limites”.211
Em obra de 1988, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins comentam que
a liquidez e certeza se refere à situação fática e não ao direito, asseverando que o
caráter de líquido e certo reside “não na vontade normativa, mas nos fatos
invocados pelo impetrante como aptos a produzirem os efeitos colimados [...]. Para

209
Relativização inconstitucional da coisa julgada, p 31. No campo do Direito Civil, o conceito de bem
infungível pode ser elaborado por oposição ao artigo 85 do Código Civil de 2002, que trata dos
bens fungíveis. Segundo César Fiuza, “infungíveis são bens que não podem ser substituídos por
outro da mesma espécie, qualidade e quantidade, como um animal reprodutor, uma jóia de
família, uma casa”, podendo existir bens infungíveis por natureza, ou seja, “aqueles que o são em
sua própria essência, como um terreno, uma casa, um animal reprodutor” e por convenção, ou
seja, “aqueles que por sua natureza são fungíveis, mas foram considerados infungíveis pelas
partes interessadas” (Direito Civil: curso completo, p. 186). Segundo Silvio de Salvo Venosa a
palavra espécie constante no artigo 85 do Código Civil de 2002 “está colocada como gênero, tal
como este é entendido nas ciências exatas”. O autor também elenca o artigo 313 do Código Civil
de 2002, “o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que
mais valiosa”, como exemplo de obrigação infungível quanto ao objeto do pagamento (Direito civil:
parte geral, p. 323, 324. BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002).
210
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
211
MATIELO, Fabrício Zamprogna. Mandado de segurança, p. 85.


que o juiz possa superar a fase preliminar do cabimento ou não do mandado, ele há
de verificar a satisfação prévia desse requisito específico para o acesso ao writ: a
comprovação dos elementos fáticos em que o autor funda a sua pretensão [...]. Pode
dar-se que o direito seja líquido e certo para o efeito de justificar o adentramento
pelo juiz do mérito do feito, uma vez que já se encontra convencido do suporte fático
em que se arrima o autor”, arrematando que “direito líquido e certo é conceito de
ordem processual, que exige a comprovação de pressupostos fáticos da situação
jurídica a preservar. Conseqüentemente, direito líquido e certo é conditio sine qua
non do conhecimento do mandado de segurança, mas não é conditio per quam para
a concessão da providência judicial”.212
Assim, se os fatos forem certos, o direito também será e o juiz concederá o
mandado de segurança diante da ausência de dúvidas relativas às alegações do
impetrante. Novamente, o juiz ocupa posição de destaque e clarividência na procura
solitária e dogmática da verdade evidente para mentes sábias, excluindo as partes
procedimentais da construção da decisão jurisdicional.
A necessidade de prova documental pré-constituída e inequívoca dos fatos
alegados pelo impetrante no procedimento do mandado de segurança foi a
construção jurisprudencial e doutrinária oriunda da Constituição de 1934 com
influências da doutrina brasileira do habeas corpus e, embora persista na Lei n°
12.016/2009, não está em conformidade com a Constituição de 1988.

2.4 Como condições ou matéria do mérito

Segundo José Maria Othon Sidou, o mandado de segurança “não poderia


condicionar-se a um direito que seja líquido e certo antes de ser apreciado” e o
direito líquido e certo só se “caracterizaria com a decisão e não no ato de
ajuizamento do feito”, podendo ser definido como “situação jurídica para a qual
concorrem dois elementos: subjetivo, um dever do Estado por determinada
prestação, positiva ou negativa; e material, um inadimplemento dêsse dever” que


212
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil
(promulgada em 5 de outubro de 1988), p. 328, 331. Em sentido semelhante: FIGUEIREDO,
Lucia Valle. Mandado de segurança, p. 20-21, 31. Lucia Valle Figueiredo difere de Celso Ribeiro
Bastos e Ives Gandra Martins ao afirmar que “o direito líquido e certo aparece em duas fases
distintas no mandado de segurança”, no início como condição da ação e ao final, na sentença.


autorizaria o mandado de segurança.213


O autor se equivoca ao não explicar como pode, a um só tempo, o direito
líquido e certo se caracterizar pela decisão jurisdicional e ser a situação jurídica que
autoriza – e é anterior à sentença, portanto – a concessão do mandado de
segurança. Ou o direito líquido e certo é situação jurídica que permite a concessão
do mandado de segurança ou o direito líquido e certo é caracterizado pela decisão
jurisdicional. Não é possível ser uma coisa e outra, isto é, ao mesmo tempo anterior
e consequência da decisão jurisdicional.
Arnoldo Wald afirma que liquidez e certeza do direito são condições da ação e
pressupostos do mandado de segurança.214 Adhemar Ferreira Maciel afirma que o
direito líquido e certo é “pressuposto de admissibilidade do mandado de segurança,
é requisito de ordem processual, atinente à existência de prova inequívoca dos fatos
em que se basear a pretensão do impetrante e não à procedência desta matéria de
mérito” e que também é condição especial da ação de mandado de segurança.215
As condições da ação são três, a saber, a possibilidade jurídica do pedido,
legitimidade para a causa e interesse processual, não comportando a liquidez e
certeza do direito. Rosemiro Pereira Leal distingue requisitos e pressupostos.
Segundo o autor, pressupostos são "inferentes lógico-jurídicos" e se inscrevem na
"órbita imperativa (prescritiva) do princípio, equivalendo a conceitos específicos,
explícitos e infecundos que não permitem flexibilização incompatível com o conteúdo
principiológico que lhes deu causa" e requisitos equivalem a "condições que não
causam a formação da estrutura lógica do processo, por serem qualidades externas
e anteriores ao procedimento judicial e ao processo que definem os atributos
legalmente exigidos ou conferidos pela lei para legitimar a atividade jurisdicional".216
Por conseguinte, a liquidez e certeza do direito não são condições da ação ou
matérias de mérito, mas pressupostos, uma vez que são balizados pelo princípio da
aplicabilidade imediata disposto no artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988 e não
permitem flexibilizações incompatíveis com a aplicação imediata dos direitos e
garantias fundamentais.

213
Do mandado de segurança, p. 87, 234.
214
Arnoldo Wald ora afirma que a liquidez e certeza do direito são pressupostos do mandado de
segurança, ora indica que concorda “com a afirmação da doutrina no sentido de que o direito
líquido e certo configura verdadeira condição da ação” (Do mandado de segurança na prática
judiciária, p. 119-120, 129. Em sentido semelhante: FERRAZ, Sérgio. Mandado de segurança, p.
25-26, 34).
215
MACIEL, Adhemar Ferreira. Revista de Processo, p. 24.
216
Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 97, 116.


2.5 Na teoria neoinstitucionalista do processo

Liquidez e certeza do direito não são sinônimos, não estão baseadas na


comprovação documental e não são condições do procedimento do mandado de
segurança. A liquidez e certeza dos direitos requerem executividade imediata sendo,
portanto, anteriores a própria instauração do procedimento do mandado de
segurança e livres da criação pelo juiz solipsista in limine litis por meio do seu
convencimento produzido pelo instrumento de prova. O procedimento do mandado
de segurança é executivo, não cabendo indagações sobre a liquidez e certeza de
direito já acertado no plano constituinte originário, motivo pelo qual a liquidez e
certeza do direito não é matéria de mérito.
A maioria desses autores interpretam liquidez e certeza como o caráter
indiscutível do direito ou dos fatos alegados pelo impetrante do mandado de
segurança. Sob esse ponto de vista, não haveria espaço para críticas, ou seja, as
alegações do impetrante devem ser incontestáveis a ponto de o juiz poder aplicar o
direito de plano e sem sombra de dúvidas.
Essa concepção apresenta problemas, quais sejam, a incontestabilidade do
direito persiste, ainda que o termo incontestável não figure mais a partir da
Constituição de 1946, retirando o mandado de segurança do espaço processual e
entregando-a para o juiz que, solitariamente, irá verificar se o direito é claro,
indubitável, translúcido, transparente, cristalino ou qualquer outra denominação
fantasiosa que se utilize para ocultar a supressão do direito fundamental à ampla
defesa no processo. Assim, a liquidez e certeza são aferidas como se proviessem do
objeto (fato ou lei) capazes de imprimir no espírito do julgador a certeza plena da
veracidade das alegações do impetrante.
A problematização da liquidez e certeza dos direitos fundamentais pela teoria
neoinstitucionalista do processo origina duas hipóteses fundamentais para essa
dissertação, quais sejam: 1ª.)- Os direitos fundamentais já estão assegurados pelo
legislador constituinte originário;
2ª.)- A execução dos direitos fundamentais líquidos e certos devem ocorrer em
espaços processualizados.
Nessas duas hipóteses, o Estado é retirado do seu lugar mítico de pai
disciplinador, provedor e punidor para ceder lugar ao processo como espaço de


construção de significados da lei. Não há troca entre o Estado e o autor-destinatário


da lei, mas ressignificação do espaço de construção de decisões. Se houvesse a
troca, a estrutura autoritária de produção do saber ideológico e totalizante iria
permanecer, sendo operada por outra figura da auctoritas.217
Nas conjecturas da teoria neoinstitucionalista do processo, a liquidez e
certeza dos direitos fundamentais provoca a fissura no modelo dogmático e a
consequente refutação em prol de um espaço processualizado em que os direitos
fundamentais devem ser executados por procedimentos com observância da ampla
defesa, isonomia e contraditório com a participação da pessoa em situação de rua,
entendida não só como destinatária, mas como autora-destinatária de decisões.
Rosemiro Pereira Leal analisa duas concepções distintas de direitos
fundamentais, quais sejam: 1ª.)- direitos pendentes de aplicação pelo Judiciário; 2ª.)-
direitos líquidos e certos garantidos em bases constituintes, extensíveis a todos e
que devem ser executados em espaços processualizados.
Rosemiro Pereira Leal critica a primeira concepção por dez motivos, a saber:
1°.)- Os direitos fundamentais estão submetidos a “judicância pleonástica e
garantista centrada na razão estratégica decisória de um combate entre vencedores
e vencidos”; 2°.)- Liquidez e certeza são “atributos de indiscutibilidade inerentes ao
direito alegado de tal sorte a despertar a summa cognitio do intérprete-juiz ou, em
face das provas, autorizariam a livre formação do juízo do decisor”; 3°.)- O discurso
democrático-constitucional somente é “acessível a um intérprete especialíssimo e
julgador neutro e independente”; 4°.)- A democracia é entendida como “inatingível
em suas propostas de realização de direitos fundamentais” em virtude da
persistência do paradigma da filosofia da linguagem; 5°.)- Direitos fundamentais são
confundidos com direitos humanos “como se fundamentais se anunciassem numa
concepção pré-estatal perfomativa à busca de origens numa ordem natural ou
racional pressuposta e estranha ao medium dialógico de procedimentalidade
processual legitimante de sua criação e constitucionalização”; 6°.)- O Estado
Democrático é “instituição inesclarecida e agente fantasmal de direitos legislados ou


217
Em termos semelhantes, Dierle José Coelho Nunes analisa o sistema processual e defende a
releitura que passe pela “percepção da importância da participação ou, melhor dizendo, da
comparticipação que permita o exercício pleno pelo cidadão (economicamente débil ou não) de
sua autonomia pública e privada no processo. Não é o caso de associar-se a novos sacerdotes,
mas simplesmente de reconhecer a importância institucional de todos os sujeitos processuais no
sistema de aplicação da tutela” (Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das
reformas processuais, p. 198).


adotados numa ordem jurídica qualquer”; 7°.)- O Estado é “recinto axiológico de uma
decidibilidade governativa, administrativa e judiciária, comprometida com uma pauta
de valores não juridificados e não processualmente dada à fiscalidade irrestrita”;
8°.)- O processo é “instrumento mórbido de uma jurisdição judicial de resolução de
conflitos emersos da constitucionalidade não cumprida a serviço de uma paz
sistêmica meta-jurídica setencialmente provimentada em critérios jurisprudenciados
por valores de uma eticidade estranha aos destinatários normativos a quem se nega
o acesso processual à execução dos direitos fundamentais já acertados em
cognição constituinte”; 9°.)- A certeza e liquidez do direito se legitimam na “razão
imediata de um guia seguro por idéias de inequivocidade cogitada em níveis de
privilegiada evidência” e, por último, 10°.)- A fruição de direitos fundamentais é
obstruída ou filtrada pela “judicalidade estocada em juízos de verossimilhança,
inequivocidade, relevância e transcedência, valorativos e condicionantes de sua
aplicação imediata assentados em pretextos (topoi) de ineficiência ou precariedade
pressupostamente inerente ao Estado tradicionalmente vivido”.218
Rosemiro Pereira Leal defende a segunda hipótese e afirma que: 1ª.)- A
liquidez e certeza dos direitos fundamentais são atributos “já integralmente
resolvidos e acertados no plano da procedimentalidade constituinte” e cuja base
de validade repousa no processo constituinte e sua legitimidade “pela autopermissão
normativa de sua fiscalidade processual (médium lingüístico) na constitucionalidade
vigente para a execução desses direitos, ainda que seja na contrafactualidade de
uma realidade sustentada pela razão estratégica”, 2ª.)- O Estado Democrático de
Direito é “espaço jurídico-hermenêutico de difusa e irrestrita fiscalidade, correição e
executividade processuais dos conteúdos constitucionalizados”; 3ª.)- Direitos
fundamentais são “direitos fundamentados pelo devido processo como discurso do
decidir juridicamente adotado na criação e aplicação de direitos” e 4ª)- Liquidez
significa autoexecutividade e vedação de inexequibilidade e certeza quer dizer
infungibilidade.219
Dessa maneira, não há de se falar no Judiciário benevolente e sensível que
cria direitos fundamentais quando movimentado por ações afirmativas, pois os
direitos fundamentais já estão acertados pelo legislador constituinte originário.
Portanto, não se pode interpretar o ordenamento jurídico em espaços

218
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 24-25, 28-29, 31, 33.
219
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 23, 26, 29, 31.


desprocessualizados e herméticos, abertos apenas para juízes e outros funcionários


públicos (auctoritas) que guiam os jurisdicionados, termo que merece severas
críticas, pois remete a ideia do sujeito passivo e submisso, de um lado, e do sujeito
ativo e autoritário que dita a aplicação das normas, de outro.220
As conjecturas formuladas por Rosemiro Pereira Leal no marco da teoria
neoinstitucionalista do processo são distintas das hipóteses formuladas pela maioria
da doutrina e exemplificadas abaixo.
José da Silva Pacheco afirma que “a adoção da expressão ‘direito líquido e
certo’ resultou da influência provinda do seu inveterado uso no direito das
obrigações, a exemplo do art. 1533 do CC/1916, sem correspondente no atual
Código Civil” e no direito comercial, “com os títulos de crédito líquidos e certos”. O
autor assevera que a utilização da expressão direito líquido e certo caracteriza “a) o
direito existente e determinado quanto ao seu objeto, sem necessidade de se
proceder à sua liquidação; b) o direito exigível executivamente, sem necessidade de
processo de cognição; c) o direito constante de título de crédito literal, autônomo e
abstrato ou constante de título executivo, ou constante de documento equiparado
àqueles, ou previamente comprovados de forma inequívoca; d) o direito que pode
dar origem ao processo executivo, ao processo documental, ao processo de prova
pré-constituída, ao processo de cognição sumária, ao processo monitório ou
injuncional, ao processo visando sentença mandamental, sem necessidade de
fastidiosa cognição ou dilação probatória” e afirma que a concessão do mandado de
segurança está vinculada a clara existência do direito do titular, pressupondo “a
demonstração de plano do alegado direito e a inexistência de incerteza a respeito
dos fatos, uma vez que a liquidez e certeza do direito, para fins de mandado de
segurança, repousa na demonstração dos incontroversos e induvidosos”.221
Apesar de as letras a, b e c estarem adequadas às hipóteses da teoria
neoinstitucionalista do processo, José da Silva Pacheco ainda permanece vinculado
à concepção de liquidez e certeza como ausência de dúvidas quanto aos fatos e a
demonstração do direito pleiteado por meio de prova evidente. Logo, o autor recai no
protagonismo decisório do juiz ao não incluir a Constituição de 1988 nas suas
conjecturas. Apenas considerando a Constituição de 1988 como título executivo


220
LEITE, Bruno Rodrigues. VirtuaJus, p. 306.
221
PACHECO, José da Silva. Mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas, p. 217-
218.


extrajudicial e a liquidez e certeza como autoexecutividade e infungibilidade,


respectivamente, é que o mandado de segurança estará liberto dos meandros
interpretativos e autoritários do juiz.222
José Maria Othon Sidou compara o mandado de segurança com as ações
executivas, ao afirmar que “se se configurar o título, através de prova evidente,
dispensar-se-á, por inútil, a investigação sobre o dever da prestação (que emana da
lei) e sobre o inadimplemento (que decorre do fato), e a atuação judicial deve ser
abreviada, ao encontro da sentença. O mesmo se dá com as ações executivas, de
rito sumário, em perseguição de quantia certa, nas quais, se apresentando o título,
não se investiga sôbre a origem do debitum (que emana do contrato) nem sôbre o
inadimplemento (que decorre do fato de não satisfação), o que autoriza chegar-se
logo à execução”.223
José Maria Othon Sidou acerta ao relacionar o mandado de segurança ao
procedimento de execução, afirmando que a atuação do Estado está indicada na lei
e que o seu inadimplemento ocorre na realidade; contudo, o autor se equivoca ao
afirmar que a prova evidente do título autoriza o abreviamento da atuação judicial,
pois a existência ou não da evidência é aferida por critérios subjetivistas que ficariam
ao encargo do juiz.
Milton Flaks afirma que o mandado de segurança “não se compatibiliza com
prestações indeterminadas (genéricas, fungíveis, alternativas). Afasta-se o remédio
toda vez que a lei ou contrato permitem ao Estado, ao invés de cumprir uma
obrigação em espécie, satisfazê-la mediante o seu equivalente econômico” e que
“havendo direito líquido do impetrante é porque lhe corresponde uma obrigação
determinada quanto ao objeto. Neste caso, não é lícito ao poder público solvê-la
pela reparação econômica, já que esta alternativa só é admissível nas obrigações
indeterminadas. O implemento há de ser em espécie”.224
Com amparo em Castro Nunes, Celso Agrícola Barbi afirma que a liquidez no
mandado de segurança não guarda semelhanças com o significado que o Código
Civil de 1916 conferiu à obrigação líquida no artigo 1.533, podendo ser equivalente a


222
Sobre a Constituição Federal de 1988 como título executivo extrajudicial, cf. LEAL, Rosemiro
Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões jurídicas,
p. 26-27, 38. Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo
democrático brasileiro, p. 285.
223
José Maria Othon Sidou afirma que “direito certo e incontestável e ‘direito líquido e certo’ querem
dizer, se o podem dizer, uma só coisa” (Do mandado de segurança, p. 84, 235).
224
FLAKS, Milton. Mandado de segurança: pressupostos de impetração, p. 129-130.


certo, ou seja, isento de dúvidas.225


Alerta Arnoldo Wald que direito líquido “não significa uma pretensão jurídica
correspondente a uma quantia fixa”, mas “é o que se apresenta devidamente
individuado e caracterizado, para que não haja qualquer dúvida alguma quanto aos
exatos limites do que se pede”.226
Ainda que tangenciem o caráter executivo do mandado de segurança ao
abordar a liquidez e certeza, os autores citados continuam remetendo a concessão
do mandado de segurança ao caráter induvidoso dos fatos alegados para o juiz e
não analisam o artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988.
Em dissertação defendida em 2006, Fabrício Veiga Costa procura esclarecer
as noções de liquidez e certeza dos direitos fundamentais e responder ao seguinte
problema: "os conceitos de liquidez e certeza são construídos discursivamente
através do devido processo legislativo ou por meio do processo jurisdicional?". Em
torno dessa questão, o autor desenvolve os seus argumentos e utiliza, como marco
teórico, a teoria discursiva de Jürgen Habermas "amparada pelas discussões
científicas da teoria da argumentação jurídica e do senso de adequabilidade
proposto por Klaus Günther bem como pela colisão entre direitos compreendidos a
partir da ponderação de princípios apresentada por Ronald Dworkin".227
Respondendo à pergunta inicialmente formulada, Fabrício Veiga Costa indica
que "a liquidez e certeza dos direitos fundamentais é construída de forma discursiva
e participada pelo devido processo jurisdicional" no qual os "problemas estruturais
enfrentados pelo Estado ou qualquer outro motivo apresentado não justifica a
violação dos direitos fundamentais líquidos e certos assegurados legitimamente no
plano constitucional" e que "o entendimento do tema liquidez e certeza não pode se
limitar a concepções teóricas que os consideram apenas como direitos que podem
ser demonstrados de plano pela parte interessada", mas se equivoca ao definir o
procedimento do mandado de segurança como ação e garantia, ao afirmar que
"deve-se ficar claro que o que justifica o estudo do mandado de segurança [...] é que
o mesmo é uma ação constitucional considerada garantia para o exercício efetivo e
a concretude dos direitos fundamentais". Além disso, o autor indica que "embora
Rosemiro Pereira Leal entenda que a liquidez e a certeza sejam atributos dos

225
Do mandado de segurança, p. 61.
226
Do mandado de segurança na prática judiciária, p. 123.
227
COSTA, Fabrício Veiga. Liquidez e certeza dos direitos fundamentais no processo constitucional,
p. 11-12.


direitos fundamentais construídos discursivamente pelo devido processo legislativo


verifica-se que somente através da análise das particularidades do caso concreto é
que poderemos construir discursivamente a liquidez e certeza dos direitos
fundamentais através do processo jurisdicional legitimado pela participação
argumentativa dos destinatários e co-autores do provimento jurisdicional".228
Contudo, Rosemiro Pereira Leal entende que a liquidez e certeza são
atributos acertados no plano constituinte originário e não na generalidade do
processo legislativo.229 Desta maneira, o pensamento de Fabrício Veiga Costa
diverge do ensino de Rosemiro Pereira Leal, ao transferir para o iter procedimental a
determinação da liquidez e certeza do direito fundamental em questão e não no
plano constituinte originário, como defende Rosemiro Pereira Leal.
Um lustro antes da promulgação da Constituição de 1988 e tendo em vista a
"carência de instituto de caráter constitucional, que permita ao indivíduo, em seu
nome e no do grupo familiar, requerer ao Poder Judiciário que lhe seja fornecida
uma moradia ou que lhe seja concedido um emprego", Paulo Lopo Saraiva propõe a
criação do instituto baseado nos exemplos da Suécia, Inglaterra, Israel, Estados
Unidos, França e Itália, denominado mandado de garantia social, para a defesa de
"interesses e direitos coletivos, cujo exercício não esteja ainda regulamentado ou
que necessite de um recurso próprio, não incluído ainda no rol das garantias
constitucionais". O Mandado de Garantia Social seria incluído na Constituição de
1967 com a seguinte redação "é instituído o mandado de garantia social, destinado a
fazer consagrar, respeitar, manter ou restaurar, preventiva ou repressivamente, os
direitos sociais previstos explícita ou implicitamente na constituição federal, contra
atitudes ativas ou omissivas do Poder Público ou de particulares, para os quais não
exista remédio próprio".230 Apesar do pioneirismo de Paulo Lopo Saraiva, a sua
proposta de novo instituto, por ter sido formulada na vigência da Constituição de
1967, se limita à defesa dos direitos sociais, como o direito à moradia e ao emprego.
André Del Negri propõe que "entender o conceito de direito líquido e certo, na
redação do art. 5º, LXlX, da CB/88, requer um redimensionamento no sentido de
saber que os direitos fundamentais incorporam os conceitos de liquidez e certeza no
nível constituinte, a partir da decisão do legislador constituinte". Baseado em

228
COSTA, Fabrício Veiga. Liquidez e certeza dos direitos fundamentais no processo constitucional,
p. 126-128, 131.
229
Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 26-27.
230
SARAIVA, Paulo Lopo. Garantia constitucional dos direitos sociais no Brasil, p. 100, 102.


Rosemiro Pereira Leal, André Del Negri afirma que "a expressão direitos
fundamentais, na constitucionalidade democrática [...] pode ser compreendida a
partir de plataformas de produção, porque teríamos o exemplo do plano constituinte
que, ao racionalizar o Direito (debatido e acordado) teria a sua garantia já acertada,
não podendo ser levada a posteriori pela judicialidade, pois estão protegidos pela
coisa julgada constituinte (coisa julgada em razão da decisão do legislador
constituinte)". Por isto, as hipóteses que centram o mandado de segurança, a
liquidez e certeza dos direitos e a prova na figura do juiz carecem de fundamento
teórico consistente após o advento da Constituição de 1988.231
A teoria neoinstitucionalista do processo inova ao conjugar liquidez e certeza,
na interpretação do mandado de segurança, com o artigo 5º, § 1º, da Constituição
de 1988, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”.232 Desta maneira, aplicação imediata não
significa concretização em um instante, mas procedimento executivo que dispensa a
fase de cognição, uma vez que essa já foi realizada no plano constituinte originário.
A vinculação da liquidez e certeza com a aplicação imediata dos direitos
fundamentais é a viga mestra do tratamento que a teoria neoinstitucionalista confere
ao mandado de segurança, permitindo desatar o nó górdio que vinculava o mandado
de segurança à espaços desprocessualizados de interpretação da lei, no qual o juiz
clarividente valorizava o elemento de prova e o direito correspondente assumia, por
simbiose, a liquidez e certeza indubitáveis dos fatos alegados pelo impetrante e que
definia a eficácia das normas constitucionais aprioristicamente pelo sentido inato do
texto legal ou a posteriori pelo juiz de forma solitária e autoritária.
Não basta o juiz proferir a sentença com fundamento na reduzida eficácia da
norma correspondente ou na reserva do possível, como se ambos os argumentos
fossem dogmas, isso é, afirmativas insuscetíveis à crítica. É necessário que todas as
partes envolvidas no procedimento, em hermenêutica isomênica, interpretem a lei
em espaços processualizados abertos à testificação incessante.
A teoria neoinstitucionalista do processo possibilita uma nova leitura do
mandado de segurança e da eficácia das normas constitucionais relativas aos
direitos fundamentais, criando uma conjectura na qual os sujeitos de direito em
situação de rua utilizam o procedimento do mandado de segurança para a execução

231
DEL NEGRI, André. Teoria da constituição e do direito constitucional, p. 304-306.
232
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


processualizada de direitos fundamentais líquidos e certos já acertados no plano


constituinte originário.
Após tecer considerações sobre a liquidez e certeza no mandado de
segurança, é necessário que se formule hipóteses para a sua operacionalização que
passam, necessariamente, pela prova e pela execução da sentença, aspectos
abordados no próximo item.

3. Aplicação de casos concretos

O estudo da execução de direitos fundamentais líquidos e certos das pessoas


em situação de rua com a utilização do mandado de segurança deve abordar a
aplicação das hipóteses elaboradas em casos concretos, enfrentando dois aspectos
cruciais, quais sejam: 1º.)- A prova produzida pelas pessoas em situação de rua no
mandado de segurança e 2º.)- A efetivação da sentença de procedência proferida
em sede mandado de segurança.233
A liquidez e certeza não podem ser interpretadas como atributos conferidos
pelo juiz ao direito pleiteado no mandado de segurança, atrelados à necessidade de
prova documental indubitável e pré-constituída e como atributos dos fatos. A partir
destas hipóteses e com a utilização da teoria da prova segundo Rosemiro Pereira
Leal, o tema da produção de prova em sede de mandado de segurança pode ser
melhor compreendido.
Rosemiro Pereira Leal desenvolve a teoria na qual a prova é "instituto criado
pela lei para o exercício lógico da demonstração de existência ou inexistência de
pessoa, coisa, fato, ato ou situação jurídica" e provar é "representar e demonstrar,
instrumentando, os elementos de prova pelos meios de prova". O instituto jurídico da
prova é enunciado pelos conteúdos de três princípios, quais sejam, "a)
indiciariedade (caracterizada pelos elementos integrativos da realidade objetivada no


233
A utilização da expressão ação mandamental é inadequada, pois a ação é direito e não pode ser
qualificada segundo a eficácia da sentença de procedência proferida no procedimento. A
expressão caso concreto deve ser utilizada com muita cautela. Caso concreto não significa
procedimento no qual os princípios da reserva legal e da legalidade, bem como as garantias do
contraditório, plenitude da defesa e fundamentação racional das decisões jurisdicionais são
flexíveis a ponto de cederem lugar ao solipsismo judicial em prol da mística realização da justiça e
do preenchimento de lacunas no ordenamento jurídico. Nesta dissertação, caso concreto significa
procedimento jurisdicional hipotético e relacionado ao assunto pesquisado, a saber, o mandado de
segurança como procedimento constitucional para a execução dos direitos fundamentais líquidos
e certos da população em situação de rua.


espaço); b) ideação (exercício intelectivo da apreensão dos elementos pelos meios


do pensar no tempo); c) formalização (significa a instrumentação da realidade
pensada pela forma legal)". Estes três princípios institutivos impõem a diferenciação
entre elementos, meios e instrumentos de prova que podem ser definidos,
respectivamente, como "espaço de existência"; "atividades intelectivas na órbita da
consciência (observação juridicamente permitida). Modalidades lógico-temporais,
técnicas de provocação ou apreensão de ato ou fato (inquirição de test.; perícia;
interrogatório)" e, por fim, a "representatividade sensoriável (gráfico-formal)".234
Tendo em vista a teoria da prova na conjectura neoinstitucionalista do
processo, a concepção segundo a qual a prova dos fatos alegados pelo impetrante
no mandado de segurança deve ser indubitável e exercida no momento da
impetração merece ser alvo de críticas. Não há fundamento legal para o
estrangulamento da produção de provas em único momento procedimental. Esta
restrição decorre de construção doutrinária ultrapassada e deficitária que enxerga no
caráter sumário do procedimento do mandado de segurança, motivo para que a
prova seja pré-constituída, sem explicar que o instituto da prova, no Estado
Democrático de Direito, não encontra guarida em momentos e espaços alheios à
procedimentalidade jurídica. Assim, a noção equivocada de prova pré-constituída
confunde elemento com instrumento de prova e faz crer que a liquidez e certeza
podem ser comprovadas apenas por meio de documentos e no momento de
impetração do mandado de segurança.
O artigo 6º da Lei n° 12.016/2009, ao indicar que "a petição inicial, que deverá
preencher os requisitos estabelecidos pela lei processual, será apresentada em 2
(duas) vias com os documentos que instruírem a primeira reproduzidos na segunda
e indicará, além da autoridade coatora, a pessoa jurídica que esta integra, à qual se
acha vinculada ou da qual exerce atribuições", não veda a produção de provas por
outros instrumentos e meios ou vincula liquidez e certeza do direito aos documentos
juntados pelo impetrado, mas estabelece que a petição inicial será instruída por
documentos, o que já está disposto no artigo 320 do Código de Processo Civil de
2015.
Decerto, o esgotamento do instituto jurídico da prova no momento da
propositura da ação está vinculado à concepção de que o juiz é o destinatário da


234
LEAL, Rosemiro. Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 208, 321-322.


prova. O juiz, como intérprete primeiro e último, é dotado de qualidades quase


sobre-humanas que o fazem vislumbrar com uma olhadela, no instrumento de prova,
o traço inatacável de procedência ou improcedência dos pedidos do impetrante e a
verdade dos fatos.
A liminar ou a sentença no mandado de segurança não passam de extensões
da convicção íntima e imune do magistrado. As partes, tal qual órfãos da figura de
autoridade, são limitadas ao pedir e ao se rejubilar ou se entristecer dependendo da
decisão jurisdicional, expressão da vontade do Estado na atuação da lei para a
pacificação social.
Essa concepção ultrapassada não coaduna com o Estado Democrático de
Direito, pois, segundo André Cordeiro Leal, "a racionalidade da decisão só pode ser
encontrada na interpretação compartilhada dos textos legais democraticamente
elaborados e na reconstrução dos fatos pelas partes. Ao contrário do que afirma o
Código de Processo Civil, o juiz não goza de liberdade na apreciação da prova,
porque a prova passa a ser entendida como instituto jurídico que orienta a extração,
da realidade extra-autos, dos chamados elementos de prova. Esses elementos se
formalizam nos instrumentos pelos meios legalmente previstos".235
Lembra oportunamente André Cordeiro Leal, em artigo sobre o autoritarismo
do sistema de prova nos Juizados Especiais Cíveis, que "ao contrário do que faz a
doutrina tradicional, é de se considerar, sob pena do afastamento dos princípios
constitucionais do processo, que a cognição não mais se vincula, no direito
processual democrático, à capacidade, à atividade, ou a um ato de inteligência do
juiz que suplica, inclusive, interveniência prestante da intuição [...] na aferição do
grau de eficiência da atividade probatória desenvolvida no procedimento em
reproduzir fatos já verdadeiros antes mesmo da instauração procedimental, como
querem os autores tradicionalistas [...]. Consoante se vê de considerações dessa
espécie, o sucesso da 'prova' se mediria pelo êxito obtido no resgate de fatos que
existiriam ou existiram, per se, antes e apesar da observação humana teorizante,
embora afirmativas como esta sejam absolutamente insustentáveis, porque o grau
de consistência do conjunto probatório não decorre de sua maior ou menor
capacidade de se alinhar a uma realidade pura preexistente, cuja verossimilhança


235
LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual
democrático, p. 106.


(aparência de verdade) só é aferível por um julgador inatamente sensível".236


Vinícius Lott Thibau se posiciona contrariamente às "teorizações formalizadas
que situam a prova como técnica destinada à exclusiva formação da convicção do
julgador sobre a verdade dos fatos e, excepcionalmente, do direito", argumentando,
com esteio em André Cordeiro Leal, que a legitimidade decisória decorre da
possibilidade de construção e fiscalização das decisões por aqueles que serão
afetados. Assim, a exclusão dos legitimados ao processo na construção e
fiscalização da decisão não resiste à testificação no Estado Democrático de Direito,
pois o Estado não pode ser mais concebido como um guia cego que toma para si a
função de decidir o destino jurídico do povo. Na conjectura neoinstitucionalista do
processo, a técnica probatória deve se destinar à "construção de um procedimento
que se erija como uma estrutura normativa que possibilite a obtenção de uma
decisão racional quanto ao tema da prova, a partir de sua regência pelos princípios
constitucionais". Conforme anota Vinícius Lott Thibau, ao contrário da teoria do
processo como relação jurídica, o neoinstitucionalismo processual é "exitoso na
formulação de uma proposição que refuta a possibilidade de apreciação do resultado
probatório a partir da sensibilidade do julgador que, guiado por qualidades que lhes
seriam especialmente deferidas pela investidura no cargo público de magistrado,
ostentaria a condição de seu único destinatário".237
Embebido nessas proposições, é possível afirmar que a prova não se destina
a manifestar a liquidez e certeza do direito, sequer se exprime unicamente sob a
forma documental. A prova é muito mais e, como instituto jurídico, pode demonstrar
formalmente a ação ou omissão do Estado na concretização dos direitos
fundamentais já acertados no plano constituinte originário.
Em volume de coleção sobre a Escola Mineira de Processo que reúne
trabalhos científicos de mestres e doutores da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Camilla Mattos Paolinelli afirma que a prova é "garantia direta e
intimamente relacionada com o exercício da ampla argumentação e que viabiliza a
construção compartilhada dos pronunciamentos decisórios [...] trata-se de um direito
fundamental ligado à fundamentação racional dos provimentos e garantia de
influência" e que é necessário abandonar a "concepção de prova como instrumento


236
LEAL, André Cordeiro. Direito processual: reflexões jurídicas, p. 83.
237
THIBAU, Vinícius Lott. Técnica processual, p. 49, 54, 56, 59.


para se chegar à verdade dos fatos por meio do processo".238


Por conseguinte, a prova no mandado de segurança não está aprisionada,
tampouco pode ser identificada, à convicção íntima do juiz acerca da verdade dos
fatos.
Em capítulo que aborda as noções de teoria e técnica do procedimento da
prova no Estado Democrático de Direito, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias afirma
que a prova permite às partes a "comprovação formal das suas narrativas ou
enunciados dos fatos que originaram a controvérsia levada à discussão em juízo,
dentro do espaço democrático, cognitivo e argumentativo que é o processo, a fim de
que obtenham do Estado um pronunciamento decisório contendo a solução jurídica
adequada ao caso discutido". Nessa conjectura avançada, o juiz não é o destinatário
da prova, tampouco o seu único intérprete, pois o processo permite a produção e a
interpretação da prova pelas partes procedimentais em contraditório. Segundo o
autor, o direito da parte à prova no processo é "co-extensão da garantia da ampla
defesa, dentro de uma estrutura técnica normativa em contraditório, a fim de permitir
a cognição dos fatos narrados ou enunciados pelas partes em seus arrazoados e a
valoração das provas por ela apresentadas na comprovação das suas narrativas".239
Há relação umbilical entre prova, procedimento jurisdicional, ampla defesa,
contraditório e a fundamentação das decisões jurisdicionais de modo que o
procedimento jurisdicional só pode ser caracterizado como democrático se há
produção de prova em contraditório e se a decisão jurisdicional se basear nas
provas produzidas no procedimento bem como na argumentação das partes.
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias divide a estrutura técnica e normativa da
procedimentalização da prova em quatro fases ou etapas, a saber: 1ª.)- Proposição
ou indicação; 2ª.)- Admissão; 3ª.)- Produção ou concretização; 4ª.)- Valoração. É
importante que se reproduza na íntegra a explicação feita pelo autor para cada fase
com intuito de reinterpretar a produção de provas no mandado de segurança à luz
do Estado Democrático de Direito: "por primeiro, a regra é a de que as partes
propõem, indicam, oferecem ou requerem as provas com as quais pretendem fixar
ou demonstrar os fatos por ela narrados, em decorrência de estarem em melhores
condições de fazê-lo, já que, em princípio, possuem os elementos adequados à
confirmação de suas narrativas em juízo. O autor assim o faz na petição inicial e o

238
O ônus da prova no processo democrático, p. 38, 42.
239
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Técnica processual, p. 185, 189.


réu na sua defesa, é dizer, a proposição das provas surge na fase postulatória do
processo. Segue-se a admissão das provas pelo juiz, quando decide de forma
motivada sobre a pertinência das provas propostas ou requeridas pelas partes, ato
decisório de admissibilidade que ocorre na fase de saneamento do processo, que se
instaura a partir da fase postulatória. Após, as provas admitidas serão produzidas ou
concretizadas pelas partes por meio das respectivas estruturas técnicas
procedimentais normativamente previstas, sempre em contraditório. Por fim, a
valoração das provas, que será feita pelas partes em suas alegações ou razões
finais, ao ensejo dos debates orais, ou pelos memoriais escritos que apresentam,
em substituição aos debates orais, e pelo juízo, em seu pronunciamento
decisório".240
A julgar pela interpretação do direito líquido e certo como produção de prova
indubitável para o juiz acerca dos fatos narrados, as fases que Ronaldo Brêtas de
Carvalho Dias indicou para a estrutura técnica e normativa da prova estariam
prejudicadas e desordenadas. A promiscuidade procedimental que une as fases de
proposição e produção pela parte impetrante e as fases de admissão e valoração
pelo juiz reduz a complexidade do instituto da prova e concentra poderes nas mãos
do juiz que vão muito além das suas competências previamente fixadas em lei.
Com apoio em Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, é possível afirmar que a
única fase da procedimentalização da prova que é reservada exclusivamente ao
juízo é a admissão, que pode ser objeto de recurso, enquanto a proposição e a
produção são exercidas somente pelas partes e a valoração é feita tanto pelas
partes quanto pelo juízo. Nesta hipótese, as provas no mandado de segurança não
se destinam ao juiz, mas ao processo, e não se resumem à juntada de documentos
na petição inicial, mas na produção de provas no espaço procedimental e durante o
tempo e por todas as formas estabelecidas em lei.241


240
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Técnica processual, p. 191.
241
Enquanto Rosemiro Pereira Leal afirma que “o destinatário da prova não é o juiz, mas o juízo” e
defende que a “valoração da prova é, num primeiro ato, perceber a existência do elemento de
prova nos autos do procedimento” e a valorização é “mostrar o conteúdo de importância do
elemento de prova para a formação do convencimento e o teor significativo de seus aspectos
técnicos e lógico-jurídicos de inequivocidade material e formal”, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias
entende que “o destinatário principal e direito da prova não é o juiz ou o juízo, mas sim, o próprio
processo” e compreende que a valoração da prova é “a percepção (apreensão intelectiva) da
existência do elemento de prova nos autos do procedimento e (também) o entendimento motivado
dos conteúdos legais e técnicos da prova, estabelecendo-lhes um nexo, liame ou traço de
pertinência com os fatos expostos e debatidos no processo”. Ressalta-se que essas diferenças
são indicadas por Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do


O método hipotético-dedutivo pode ser aplicado ao instituto jurídico da prova,


pois o elemento de prova (espaço de existência) se torna um enunciado singular
após ser formalizado nos instrumentos pelos meios de prova. Tendo como base os
enunciados singulares, as hipóteses levantadas pelas partes, as leis aplicáveis e as
decisões jurisdicionais (enunciados universais) serão submetidas à teste pelas
hipóteses falseadoras.
Nesse aspecto, o falseamento não ocorre por meio do enunciado singular ou
básico (elemento formalizado nos instrumentos pelos meios de prova), mas por meio
da hipótese falseadora construída pelas partes procedimentais na fase de valoração
mediante o exercício do contraditório e tendo o enunciado singular como base. Por
isso, o enunciado singular só propicia o falseamento da hipótese se, ao mesmo
tempo, corrobora a hipótese falseadora.242 Em outras palavras, são as alegações
das partes procedimentais na valoração da prova, e não a prova per si, que falseiam
as alegações das outras partes, os textos legislativos ou as decisões jurisdicionais.
Dito de outro modo, os significados dos enunciados universais não são
imanentes, mas interpretados pela argumentação das partes procedimentais. Neste
sentido, o contraditório é suprimido quando a autoridade tem o monopólio decisório
(manipulação dos sentidos) que impede as partes procedimentais de construírem e
testificarem os significados dos enunciados universais.
Nessa linha de pensamento, é inconcebível aceitar, no mandado de
segurança, a ideia de prova documental pré-constituída inspiradora de certezas no
íntimo do juiz sensível sobre a liquidez e certeza do direito, pois a unilateralidade na
valoração da prova inviabilizaria a testificação das hipóteses pelo impetrado.
Além disso, a retirada da valoração da prova do âmbito jurídico para o
imperscrutável íntimo do juiz também prejudica o impetrante que, apesar de produzir
a prova e apresentar as suas hipóteses, não pode testificar a hipótese do juiz
(decisão jurisdicional sobre a concessão de liminar e, posteriormente, procedência


processo: primeiros estudos, p. 210, 215. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Técnica
processual, p. 190, 192).
242
A propósito, Popper afirma que “os enunciados básicos desempenham dois papéis diferentes. De
uma parte, utilizamos o sistema de todos os enunciados básicos, logicamente possíveis, para,
com o auxílio deles, conseguir a caracterização lógica por nós procurada – a da forma dos
enunciados empíricos. De outra parte, os enunciados básicos aceitos constituem o fundamento da
corroboração de hipóteses. Se os enunciados básicos aceitos contradisserem uma teoria, só os
tomaremos como propiciadores de apoio suficiente para o falseamento da teoria caso eles,
concomitantemente, corroborarem uma hipótese falseadora” (POPPER, Karl Raimund. A lógica da
pesquisa científica, p. 92).


dos pedidos), pois essa hipótese repousa em espaço metajurídico insuscetível de


crítica.
Se bem examinadas, essas concepções ultrapassadas sobre o mandado de
segurança causam a impossibilidade de refutação da decisão jurisdicional (hipótese)
do juiz, ao postular a necessidade de ausência de dúvidas para a caracterização da
liquidez e certeza do direito. Portanto, nessa concepção, a liquidez e certeza do
direito resultam na invulnerabilidade da decisão jurisdicional às críticas.
Diferentemente, na teoria neoinstitucionalista do processo, o instituto jurídico
da prova guarda estreita relação com o exercício do contraditório em hermêutica
isomênica e com o princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais,
permitindo a comprovação formal das narrativas ou dos enunciados dos fatos
(comprovação do enunciado singular), podendo concluir acerca do descabimento do
texto legislativo, decisões jurisdicionais ou alegações da parte contrária naquele
procedimento após a valoração da prova.
A decisão jurisdicional, assim como as alegações das partes e o texto
legislativo aplicável, é hipótese e deve ser falseável, se submetendo às críticas das
partes de maneira permanente e dentro do espaço e tempo procedimentais
previamente determinados em lei. Longe disso, a decisão jurisdicional será dogma
disfarçado de hipótese sob o manto do contraditório, que se restringe ao dizer e
contradizer sem maiores consequências no plano procedimental do que o aumento
no número de folhas dos autos.
Pelos motivos expostos, a hipótese que fundamenta o posicionamento
anteriormente criticado sobre direitos líquidos e certos e segundo a qual a prova se
destina a revelar magicamente a verdade dos fatos e formar a convicção do juiz
acerca das alegações das partes está ferida de morte e, desnudada em seus erros,
não pode mais integrar as elucubrações sobre o mandado de segurança.
Nos casos concretos em que a pessoa em situação de rua é parte
procedimental, a produção de prova pode ser feita em todo o momento e nas formas
fixadas em lei. Além disso, nos casos em que há omissão do Estado relacionada ao
planejamento de políticas públicas e destinação de verbas que impliquem no
retardamento ou ausência da concretização de direitos fundamentais das pessoas
em situação de rua, o Estado utilizará a prova para comprovar formalmente as suas
alegações relativas a destinação dos recursos públicos em consonância com a
Constituição de 1988.


Isso não significa que basta ao impetrante alegar que o seu direito
fundamental líquido e certo está sendo negado para o Estado ter que provar o
contrário. Significa que o impetrante deve, no iter procedimental, provar três
afirmações, quais sejam: 1º.)- O direito a ser protegido é líquido e certo, isto é,
autoexecutável (relacionado ao artigo 5º, §1º, da Constituição de 1988, aplicável a
todos os direitos fundamentais indicados no título ll da Constituição de 1988 e em
tratados e convenções internacionais recepcionados pelo ordenamento jurídico
nacional e relativos aos direitos fundamentais) e infungível; 2º.)- O direito não é
amparado por habeas corpus ou habeas data; 3º.)- O direito está sendo negado ou
violado por ilegalidade ou abuso de poder cometido por "autoridade pública ou
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público", segundo o
artigo 5º, inciso LXlX, da Constituição de 1988, ou "autoridade, seja de que categoria
for e sejam quais forem as funções que exerça", conforme artigo 1º, caput, da Lei n°
12.016/2009. 243 O artigo 373, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil de 2015 é
aplicável ao caso em comento, pois a situação de rua dificulta excessivamente ou
impossibilita a produção de provas pelas pessoas em situação de rua, exigindo que
o juízo distribua o ônus da prova de maneira diversa ao indicado nos incisos do
artigo 373.244 Por exemplo, caso a pessoa em situação de rua impetrante do
mandado de segurança alegue que o Estado não utiliza as verbas orçamentárias

243
Importante destacar a distinção entre ilegalidade e abuso de poder feita por Barbosa Moreira,
segundo a qual “o conceito de ilegalidade obviamente se define por oposição, por contraste. É
ilegal tudo aquilo que não é legal, ou seja, é ilegal tudo aquilo que não está de acordo com a lei.
Já o conceito de abuso de poder é mais fluído, é menos facilmente delimitável”, sugerindo que se
pode falar de abuso de poder “quando o ato que vigora não viole, abertamente, nenhum preceito
legal. Contudo, corresponde ao exercício de um poder, uma atribuição de maneira irregular, no
sentido de que a autoridade que pratica o ato o está praticando fora das finalidades próprias para
as quais a lei lhe conferiu aquele poder, ou com excesso de rigor, adotando a providência que não
é proporcional ao resultado que deseja atingir” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Mandado de
segurança, p. 79-80). No caso das pessoas em situação de rua, é possível afirmar que há abuso
de autoridade quando os órgãos estatais competentes pelo exercício das funções executivas e
legislativas definem normas que discriminam e têm como objetivo expulsar as pessoas em
situação de rua dos logradouros públicos da cidade – longe de proporcionar a construção de
alternativas viáveis por meio de políticas públicas elaboradas pelos funcionários públicos e pelas
pessoas em situação de rua –, a exemplo da já criticada Instrução Normativa Conjunta n° 01 do
Município de Belo Horizonte, que determina, no artigo 6º, a apreensão dos pertences não
essenciais à sobrevivência que não puderem ser carregados pelas pessoas em situação de rua,
eufemismo para roubo de coisa alheia móvel (PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO
HORIZONTE. Instrução Normativa Conjunta n°01).
244
Segundo o artigo 373, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil de 2015, “Nos casos previstos
em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva
dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova
do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por
decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do
ônus que lhe foi atribuído” (BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo
Civil.)


relativas à construção de moradias populares adequadamente, será praticamente


impossível para o impetrante provar as suas alegações, sendo necessário que o
ônus da prova seja atribuído de modo diverso pelo juízo para que o Estado produza
provas referentes a destinação das verbas orçamentárias.
Desses pontos, pode decorrer que a ilegalidade ou abuso de poder cometidos
pelo funcionário público estão relacionados à má gestão do dinheiro público ou da
falta de planejamento de políticas públicas efetivas. Em qualquer caso, a autoridade
coatora deverá fazer prova de suas alegações, sendo inadmissível que sua
argumentação se resuma à simples alegação de que faltam verbas para a
concretização dos direitos fundamentais.
Após as explanações sobre o instituto jurídico da prova no mandado de
segurança em que a pessoa em situação de rua for parte, é necessário que se
analise as características das decisões jurisdicionais proferidas no mandado de
segurança e as formas de execução.245
No Brasil, o teórico de vanguarda das ações mandamentais foi Pontes de
Miranda, que abordou o assunto, tendo como ponto de partida o trabalho escrito por
Georg Kuttner, em 1914.246
Das lições de Pontes de Miranda, vale a pena ressaltar a denominada teoria
quinária das ações e os estudos sobre a multiplicidade de cargas eficaciais da
sentença. O autor afirma que "as ações ou são declarativas [...]; ou são constitutivas
(positivas ou negativas; isto é, geradoras ou modificativas, ou extintivas); ou são
condenatórias; ou são executivas". Em trecho que inicia as explanações sobre os
elementos componentes da eficácia e preponderância da sentença, o autor afirma
que "não há nenhuma ação, nenhuma sentença, que seja pura. Nenhuma é somente
declarativa. Nenhuma é somente constitutiva. Nenhuma é somente condenatória.

245
Conforme anota Dierle José Coelho Nunes e outros, “execução é atividade jurisdicional de
substituição da atividade do devedor (mediante meios executivos sub-rogatórios), ou de sua
captação (mediante meios coercitivos), que se destina a produzir o adimplemento da obrigação ou
o resultado prático equivalente ao do adimplemento” (Curso de direito processual civil:
fundamentação e aplicação, p. 379).
246
Apesar de Pontes de Miranda ter se baseado em Georg Kuttner, Barbosa Moreira afirma que “ao
retomar o estudo do tema, entre nós Pontes de Miranda empregou o nomen iuris ‘sentença
mandamental’ num sentido bem diferente, em ponto vital, daquele que os alemães haviam dado à
expressão Anordnungsurteil. Recorde-se que lá se cuidava de ordem dirigida a órgão público, e
mais: estranho ao processo. O jurista pátrio desprezou ambos os traços: o caráter público do
destinatário da ordem e a estraneidade ao feito. Cunhou, assim, conceito muito mais amplo que o
forjado por Kuttner” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Revista da Academia Brasileira de Letras
Jurídicas, p. 150). Importante ressaltar que a coleção “Tratado das Ações” foi fruto de pesquisa
feita em mais de cinquenta anos, conforme anotou o próprio autor (Tratado das ações: ação,
classificação e eficácia, p. 17).


Nenhuma é somente mandamental. Nenhuma é somente executiva", ressaltando


que a ação somente é classificada em virtude de sua eficácia maior.247
Relativamente à sentença mandamental, Pontes de Miranda afirma que "o juiz
não constitui: manda" e diferencia a ação mandamental das ações declaratória,
constitutiva, condenatória e executiva, pois "na ação mandamental, pede-se que o
juiz mande, não só que declare [...], nem que condene [...]; tampouco se espera que
o juiz por tal maneira fusione o seu pensamento e o seu ato que dessa fusão nasça
a eficácia constitutiva. Por isso mesmo, não se pode pedir que dispense o
'mandado'. Na ação executiva, quer-se mais: quer-se o ato do juiz, fazendo, não o
que devia ser feito pelo juiz como juiz, sim o que a parte deveria ter feito. No
mandado, o ato é ato que só o juiz pode praticar, por sua estatalidade. Na execução,
há mandados - no correr do processo; mas a solução final é ato da parte (solver o
débito). Ou do juiz, forçando".248
No entanto, essa hipótese é frágil, pois, na execução, o juiz não excede os
limites da sua competência constitucional. Não há substituição da parte pelo juiz,
mas sub-rogação da conduta do executado por determinação do juízo em decisão
jurisdicional fundamentada em conformidade com o exercício do contraditório pelas
partes. Por isto, não tem fundamento a hipótese segundo a qual a execução por
sub-rogação é vedada no mandado de segurança devido a ofensa à denominada
teoria da separação dos poderes estatais.249 De um lado, o devedor pode cumprir a
obrigação indicada em título executivo judicial ou extrajudicial; de outro, o juízo
determina medidas executivas sub-rogatórias tendentes a adimplir a obrigação cujo
descumprimento motivou o ajuizamento do procedimento jurisdicional.250


247
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado das ações: ação, classificação e eficácia,
p. 131, 137.
248
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado das ações: ação, classificação e eficácia,
p. 224.
249
A denominada teoria da separação dos poderes estatais já foi refutada e quem o fez recentemente
com precisão técnica foi Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, ao defender a “doutrina da existência
de um poder único do Estado, que se espraia sobre os indivíduos pelo exercício das suas três
fundamentais funções jurídicas, a executiva, a legislativa e a jurisdicional. O Estado deve ser
concebido como ordenação de várias funções atribuídas a órgãos diferenciados, segundo a
previsão das normas constitucionais que o organizam juridicamente. O que deve ser considerada
repartida ou separada é a atividade e não o poder do Estado, do que resulta uma diferenciação de
funções exercidas pelo Estado por intermédio de órgãos criados na estruturação da ordem jurídica
constitucional, nunca a existência de vários poderes do mesmo Estado” (BRÊTAS, Ronaldo de
Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrático de direito, p. 22).
250
Outro posicionamento de Pontes de Miranda que merece críticas se refere à confusão entre
processo e procedimento. Segundo o autor, “processo, de procedere (pro-*zdo), ir dali para frente,
é fato em seguimento, em que há referência necessária a algum fim, pois há processos, químicos
ou biológicos, em que o fim não aparece. Pode haver apenas alcance ou objetivo. No sentido


Segundo assevera Pontes de Miranda em escala que vai de 1 a 5, sendo 5 a


eficácia máxima contida na sentença de procedência, a ação de mandado de
segurança tem eficácia declarativa, constitutiva, condenatória, mandamental e
executiva iguais a 4, 3, 1, 5 e 2, respectivamente.251
Ovídio Baptista da Silva trata das ações mandamentais no segundo volume
do seu "Curso de Processo Civil", edição de 2002, destinado ao estudo do processo
executivo, ao lado das ações executivas por créditos e das ações executivas lato
sensu.
Ao abordar a distinção entre ações condenatórias, mandamentais e
executivas, o autor anota que as sentenças executivas lato sensu e mandamentais
têm, em comum, a existência de "alguma atividade posterior à sentença de mérito,
na mesma relação processual, como resposta jurisdicional a uma pretensão inclusa
na petição inicial" e diferem da sentença condenatória, pois "conhecimento e
execução acham-se misturados na mesma ação". Com esteio em Pontes de
Miranda, Ovídio Baptista da Silva afirma que o ato executivo é aquele "por meio do
qual o Estado, através de seus órgãos jurisdicionais, transfere algum valor jurídico
do patrimônio do demandado para o patrimônio do demandante para a satisfação de
uma pretensão a este reconhecida e declarada legítima pela ordem jurídica". Por
conseguinte, o ato executivo contém três características, a saber, a satisfatividade
do ato jurisdicional correspondente, a transferência de valor do patrimônio a outro e
o caráter estatal do ato. O autor afirma que a sentença mandamental não contém
execução, estando reunida às sentenças executivas apenas pelo critério de
exclusão, qual seja, a sentença mandamental não está contida no processo de
conhecimento, pois este se caracteriza por "encerrar a respectiva relação
processual, eliminando qualquer ocorrência de atividade jurisdicional após a
sentença de mérito”.252


jurídico, nele há série de ações humanas, que entre si se prendem, para se atingir determinado
fim, que é a prestação jurisdicional, administrativa ou legislativa pelo Estado”. Contudo, segundo
Aroldo Plínio Gonçalves, a palavra procedimento é que tem origem etimológica em procedere,
enquanto “no latim, processos, -a, -um, é particípio passado de procedo, e processos, -us, é
substantivo. A origem de processo é, portanto, do verbo procedo” (PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcante. Tratado das ações: ação, classificação e eficácia, p. 297. GONÇALVES,
Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, p. 51).
251
Conforme alerta Barbosa Moreira, Pontes de Miranda não tinha “o costume de usar a locução
‘sentença executiva lato sensu’. Falava de sentença executiva” (Revista da Academia Brasileira
de Letras Jurídicas, p. 132).
252
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 24-27.


Ovídio Baptista da Silva afirma que a ação mandamental tem como finalidade
"obter, como eficácia preponderante da respectiva sentença de procedência, que o
juiz emita uma ordem a ser observada pelo demandado, em vez de limitar-se a
condená-lo a fazer ou não fazer alguma coisa [...]. Nesse tipo de sentença, o juiz
ordena, e não simplesmente condena. E nisso reside, precisamente o elemento
eficacial que a faz diferente das sentenças próprias do processo de conhecimento".
A sentença mandamental seria diferente da sentença executiva, pois "a execução é
ato privado da parte, que o juiz, através do correspondente processo [...] realiza em
substituição à parte que deveria tê-lo realizado. Na sentença mandamental, o juiz
realiza o que somente ele, como representante do Estado, em virtude de sua
estatalidade, pode realizar".253
Entretanto, segundo o autor, a infungibilidade do ato ordenado em sentença
impede que o juiz realize o direito reconhecido, hipótese que comporta exceções,
principalmente nas "ações cautelares, tais como o arresto, o seqüestro e a busca e
apreensão, cuja realização se faz através do órgão judiciário". Além de não conter
uma sentença executiva, Ovídio Baptista da Silva afirma que o mandado de
segurança "não é uma ação condenatória", pois, com esteio em Liebman, a
sentença de condenação não executa na mesma relação processual e "a
condenação não pode conter uma ordem dirigida ao demandado".254
Ao distinguir o papel do juiz do sistema europeu continental e da América
Latina - o juiz bouche de la loi influenciado pelo iudex do direito romano com relação
ao juiz do commom law, o juiz "braço da lei" influenciado pelo praetor romano -, o
autor afirma que não é de surpreender que a "nossa cultura, haja resistido, com
tanta tenacidade, à outorga de poderes de imperium ao juiz, cuja expressão mais
significativa são as ações mandamentais".255
Ovídio Baptista da Silva defende a restauração das "fronteiras originárias que
separavam, em direito romano, as ações condenatórias [...] dos interditos, de modo
que estes readquiram sua primitiva dignidade e possam desfrutar do imperium,
próprio das ações mandamentais", confundindo as competências do juiz indicadas
no ordenamento jurídico brasileiro com imperium do pretor romano e propugnando

253
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 336-337.
254
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 355, 360.
255
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 339.


pela ampliação dos poderes do juiz, o que resulta no aumento da discricionariedade


judicial no procedimento do mandado de segurança.256
A discricionariedade do juiz também é defendida no item relativo às
diferenças entre ações condenatórias e ações mandamentais, em que o autor
escreve que a indeterminação do conteúdo de cada espécie particular das ações
mandamentais exige "alguma dose de discricionariedade do julgador ao dispor, para
o caso concreto, a forma de cumprimento da sentença. Precisamente porque a
'execução' desses deveres, que implicam, como as correspondentes obrigações, um
facere, em geral infungível, exige uma porção significativa de criatividade judicial, as
ações mandamentais dificilmente se acomodam aos esquemas abstratos e rígidos
destinados à execução das obrigações de fazer e não fazer nem se submetem à
individuação categórica, própria das ações declarativas e condenatórias". As
chamadas ações são qualificadas segundo a eficácia preponderante da sentença de
procedência. Assim, a ação é mandamental se a sentença de procedência dos
pedidos do autor contenha mandado, pouco importando a existência de eficácias de
menor intensidade. Neste sentido, o autor afirma que a classificação das ações
ocorre "segundo a eficácia de suas respectivas sentenças de procedência [...]
levando em conta a carga da eficácia de maior peso, cuja identificação se há de
fazer tendo em vista o objeto principal do pedido".257
Em trecho importante que merece ser criticado para o desenvolvimento desta
dissertação, Ovídio Baptista da Silva afirma que "assim como os atos discricionários
do Poder Executivo e as leis editadas pelos corpos legislativos não podem ser
atacadas pelo mandado de segurança, também o ato jurisdicional típico, em
princípio não pode ficar exposto ao controle pela via do mandado de segurança". A
possibilidade de escolha entre determinadas opções pelo funcionário público não
confere ao seu ato a imunidade de discussão em espaços processualizados pelos
legitimados ao processo. Ovídio Baptista da Silva se contradiz neste ponto, pois
indica que "o mandado de segurança, fiel à sua origem, destina-se a remediar as
ilegalidades cometidas através de atos da administração pública, portanto apenas
aqueles atos que possam ser conceituados como atos administrativos" e o ato
administrativo pode ser vinculado ou discricionário e, em ambas as categorias, cabe

256
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 353.
257
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 355.


o controle exercido pela via processual.258


Apesar da afirmativa ser procedente quanto às decisões administrativas e
jurisdicionais das quais caibam recurso com efeito suspensivo, independentemente
de caução - artigo 5º da Lei n° 12.016/2009 -, o mesmo não pode ser dito dos atos
dos órgãos estatais competentes pelo exercício da função executiva ou
governamental quando estes caracterizarem ação ou omissão que viole direitos
fundamentais líquidos e certos.259
Em obra de 2003 que versa o sistema de tutela para deveres de fazer e não
fazer, Eduardo Talamini afirma que as sentenças mandamentais contêm "ordem
para o réu, a ser atendida, sob pena de se caracterizar afronta à autoridade estatal
e, eventualmente, crime de desobediência. Eis o aspecto diferencial, identificador
dessa categoria", nas quais as medidas processuais de coerção funcionam como
"técnica de indução da conduta do destinatário" e como confirmação da "autoridade
estatal do ato que veicula". O autor indica que "em síntese, o que confere 'força
coercitiva' ao provimento mandamental não é a medida processual de coerção que
eventualmente o acompanhe, mas o seu conteúdo de ordem, por força do qual seu
descumprimento caracterizará afronta à autoridade, juridicamente censurável". Por
conseguinte, Eduardo Talamini configura a sentença mandamental por meio da
penalidade de afronta à autoridade causada pelo descumprimento da ordem contida
na sentença. Assim, a sentença será mandamental se o eventual descumprimento
da ordem for caracterizado como afronta à autoridade. Segundo Eduardo Talamini,
as sentenças condenatórias e executiva lato sensu, ao contrário das sentenças

258
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais, p. 382-383.
259
Em artigo de 1996 que versa a utilização do mandado de segurança contra atos jurisdicionais,
Calmon de Passos interpreta o artigo 5º, inciso l, da revogada Lei n° 1.533/1951, cuja redação foi
repetida quase integralmente no artigo 5º, inciso l, da Lei n° 12.016/2009, que trata do mandado
de segurança. Para o autor, “a existência de recurso com efeito suspensivo não é um pressuposto
de inadmissibilidade da segurança. O que a inadmite é o efeito suspensivo do recurso que foi
interposto, e isso pelas razões que tivemos oportunidade de apontar: não haveria ilegalidade a
afastar preventivamente (o efeito suspensivo do recurso já preveniu viesse ela a ocorrer), nem em
caráter reparatório (porque o mesmo efeito suspensivo do recurso obstou a sua concretização).
Mas se o recurso deixou de ser usado, subsiste a ilegalidade, e ele, recurso, não pode ter a
eficácia de convalidá-la, afastando a incidência do preceito constitucional”. Nos casos em que a
parte poderia ter evitado o ajuizamento do mandado de segurança e utilizado o recurso próprio,
Calmon de Passos afirma, com base nos artigos 22, 29, 113, §1º, 267, §3º e 453, §3º, do Código
de Processo Civil de 1973, que “admitir-se-á o mandamus, porque presente a ilegalidade (que não
pode subsistir), mas a negligência da parte lhe acarretaria, correlativamente, o encargo de
responder pelas despesas acrescidas” (Mandado de segurança, p. 114-115). Cf. ALMEIDA,
Gregório Assagra de; CIANCI, Mirna; QUARTIERI, Rita. Mandado de segurança: introdução e
comentários à Lei 12.016, de 7-8-2009 (artigo por artigo), com indicação do PLS n. 222/2010, p.
44.


mandamentais, "não veiculam propriamente ordem ao réu". Assim, as sentenças


mandamentais "não serão efetivadas através de medidas substitutivas da atuação
do 'condenado'. Dirige-se ordem para que ele cumpra a prestação ou abstenção que
lhe foi imposta - sob pena de sofrer determinadas consequências desfavoráveis, a
começar pela própria censura (criminal ou não) à desobediência. Então, não há
execução, na acepção tradicional [...]. Por isso, não são medidas que substituem a
conduta do 'condenado', mas determinam que ele mesmo adote o comportamento
pretendido".260
Contraditoriamente, no mesmo livro, Eduardo Talamini defende a aplicação
subsidiária do artigo 461 do Código de Processo Civil de 1973 ao mandado de
segurança, para a confirmação do "cabimento da adoção, no próprio processo, de
medidas atípicas para a concretização da tutela (art. 461, § 5.º), inclusive sub-
rogatórias (v. item 11.7)" e para permitir a "imposição de multa em caso de
descumprimento do comando (art. 461, § 4.º)".261
Em capítulo que aborda a eficácia executiva lato sensu, o autor afirma que
"não há o que impeça em termos absolutos o emprego de meios de sub-rogação
quando o réu for a Fazenda Pública. Se o Poder Público está obrigado à prestação
de um fazer e não a cumpre, cabe a realização por terceiro, na medida em que a
tarefa seja fungível", sendo que a designação de interventor judicial é possível para
a "consecução de deveres de não fazer".262
Na visão de José Miguel Garcia Medina, "se a infungibilidade é jurídica, nada
impede que os mesmos efeitos que seriam produzidos pelo ato realizado pelo
devedor sejam produzidos por ato realizado por ente distinto", pois "quando a norma
jurídica dispõe que se deve conceder a tutela jurisdicional específica, bem como


260
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos
deveres de entrega de coisa: CPC, arts. 461 e 461-A, CDC, art. 84, p. 191-194. A caracterização
da sentença mandamental feita por Eduardo Talamini não é apropriada, pois, conforme anota
Sérgio Muritiba, “há mesmo uma tautologia em tal maneira de configurar a essência da
mandamentalidade, posto que, segundo Talamini, há ordem quando o descumprimento gera
afronta à autoridade estatal e somente há afronta a autoridade estatal quando [a parte litigante]
descumpre a ordem. Desta forma, define-se o que seja ordem não pelo seu conteúdo essencial,
mas sim pela consequência da sua violação, ou seja, pela punição que poderá sofrer o infrator”
(Ação executiva lato sensu e ação mandamental, p. 235). José Miguel Garcia Medina defende
posição semelhante à adotada por Eduardo Talamini ao afirmar que a decisão mandamental é
“aquela que contém ordem, cujo descumprimento pode acarretar o surgimento do crime
respectivo” (Execução civil: aspectos polêmicos, p. 216-217).
261
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos
deveres de entrega de coisa: CPC, arts. 461 e 461-A, CDC, art. 84, p. 448.
262
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos
deveres de entrega de coisa: CPC, arts. 461 e 461-A, CDC, art. 84, p. 300.


proporcionar o resultado prático equivalente, está autorizando o juiz a realizar todas


as atividades necessárias para o alcance do referido resultado". Após defender o
denominado princípio da supremacia do Poder Judiciário e afirmar que o
descumprimento da ordem exarada no mandado de segurança gera a punição
indicada nos artigos 319 e 330 do Código Penal, referentes aos crimes de
prevaricação e desobediência, o autor indica que é "possível a aplicação de medidas
sub-rogatórias contra a Administração Pública a fim de que se dê ensejo ao
cumprimento de uma decisão judicial", concluindo que "nada impede que o juiz
determine a realização da intervenção judicial para a realização do ato devido, com
base do art. 461, § 5.º, do CPC, substituindo-se, se necessário, o agente
administrativo por administrador judicial para a realização deste ato".263
Dessa maneira, o autor vincula a execução por sub-rogação de obrigação de
fazer e de não fazer contra o Estado à figura da intervenção judicial disposta nos
artigos 34, inciso Vl e 35, inciso lV, da Constituição de 1988. Contudo, esta visão
restritiva não abrange as possibilidades de utilização de meios mais efetivos para a
execução de direitos fundamentais líquidos e certos no mandado de segurança.
Ademais, não é o juiz quem realiza as medidas executivas, mas o juízo que,
representado pelo juiz e fundamentado na argumentação das partes realizada em
contraditório, exerce as medidas executivas cabíveis e previamente designadas no
ordenamento jurídico, em conformidade com o princípio da tipicidade dos meios
executivos.264
A infungibilidade jurídica do direito não se refere, como no bem infungível, à

263
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral, princípios fundamentais, p. 427-430,
433.
264
Sobre a garantia do contraditório no processo de execução, Luciano Henrik Silveira Vieira afirma
que “o direito à execução idêntico ao direito constitucional de ação, e em razão de irrecusável
reverência aos princípios institutivos do processo (ampla defesa, contraditório e isonomia), tem de
ser proporcionado ao réu-executado direito paralelo ou simétrico ao direito do autor-exequente de
defender-se, ou de opor-se à execução da forma que entender devida, desde que idônea". Por
isso, “o contraditório, visto como a garantia da obrigatoriedade da informação por parte do órgão
jurisdicional e da facultativa participação por parte dos litigantes, também possui função primordial
no procedimento executivo. A inobservância do contraditório por parte do órgão estatal causará o
impedimento de controle pelos destinatários dos atos executivos praticados pelos órgãos
judiciários, chegando mesmo a resultar em vício do procedimento executivo, principalmente se os
atos executivos chegarem a impor ao executado uma sujeição capaz de ultrapassar a obrigação
constante do título, caso em que estará também configurada mácula ao devido processo legal". É
importante ressaltar que Luciano Henrique Silveira Vieira trata o mandado de segurança de
maneira distinta ao exposto nessa dissertação, afirmando que "a possibilidade de produzir provas
é bem mais objetiva, uma vez que o mandado de segurança não comporta dilação probatória,
havendo mesmo necessidade de existirem provas pré-constituídas quando de sua impetração”
(VIEIRA, Luciano Henrik Silveira. O processo de execução no estado democrático de direito, p.
115, 139, 296).


suposta característica natural do direito, mas na impossibilidade de substituição na


execução de determinado direito fundamental por outro direito ou por reparação
pecuniária.
Segundo leciona Rosemiro Pereira Leal, o atributo de certeza do direito
fundamental reside na sua infungibilidade jurídica, sendo, portanto, direito não
cambiável.265
Assim, se a sentença de procedência no mandado de segurança ordena que
o impetrado execute o direito fundamental à saúde do impetrante, a pessoa em
situação de rua, por exemplo, com a destinação de verbas e a elaboração da política
pública que proporcione o atendimento médico itinerante do impetrante, outro tipo de
prestação que não resulte na execução do direito fundamental à saúde, não será
aceito.
À primeira vista, seria inviável o emprego de meios de sub-rogação para a
execução de direitos fundamentais. Contudo, se a execução de direitos
fundamentais for equiparada à figura da obrigação de fazer e não fazer e se o
Estado for equiparado ao devedor dessa obrigação, a impossibilidade de sub-
rogação ocorre somente quando a infungibilidade se refere ao prestador do serviço e
não ao objeto do serviço. Assim, a certeza do direito fundamental impõe que o
Estado não poderá indenizar a parte em caso de descumprimento do preceito
constitucional. Relativamente aos direitos fundamentais, apenas a sua execução
com financiamento do Estado é admissível, pouco importa quem concretize a ordem
do juízo, se o Estado ou terceiro.266
E a definição da infungibilidade quanto ao prestador (Estado) ou quanto ao
serviço prestado (execução do direito fundamental) será feita no caso concreto, isso
é, pelas partes procedimentais em hermenêutica isomênica em espaço
processualizado, observadas as garantias do contraditório, ampla defesa e o
princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais.
Por exemplo, se a pessoa em situação de rua impetrar mandado de
segurança alegando que o Estado não está cumprindo o disposto no caput do artigo


265
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada, p. 26, 27, 31, 37.
266
Em sentido semelhante, Barbosa Moreira afirma que “não fica excluída, porém, a hipótese de
determinação feita a terceiro, pessoa física ou pessoa jurídica de direito privado (por exemplo:
empresa jornalística, de radiodifusão ou de televisão, à qual se ordene suspender a publicação ou
transmissão de anúncio encomendado pelo réu)” (Revista da Academia Brasileira de Letras
Jurídicas, p. 157). Nesta dissertação, diferentemente de Barbosa Moreira, o terceiro abrange
pessoa física ou jurídica que executa certo direito fundamental no lugar e com verbas do Estado.


6º da Constituição de 1988 quanto ao direito à alimentação, pois não se alimenta


todos os dias e inexiste local gerido ou financiado pelo Estado que forneça refeições
à baixo custo ou gratuitamente, a infungibilidade do direito concerne ao objeto da
obrigação, isso é, a disponibilização de alimentos que possibilitem ao impetrante
fazer uma ou mais refeições diariamente. Pouco importa se é o Estado ou terceiro
que cumpra a obrigação, o importante é que, nos casos em que o Estado se negue
a cumprir a sentença, terceiro poderá fornecer os alimentos e ser pago com dinheiro
oriundo do Estado.
Situação semelhante ocorreria se, em sede de mandado de segurança, a
pessoa em situação de rua pedisse a execução do direito fundamental à saúde com
a disponibilização de locais para banho. Não importa quem vai construir e gerir os
locais destinados ao banho e a satisfação de necessidades fisiológicas básicas,
relevante é que o Estado financie a construção e gestão desses locais e o
financiamento ocorrerá espontaneamente, quando o Estado destinar os recursos
financeiros segundo a ordem contida na decisão jurisdicional e compulsoriamente,
quando o juízo bloquear certa quantia de dinheiro da Fazenda Pública e,
posteriormente, destiná-la à execução do direito fundamental pleiteado pelo
impetrante.267
Em outro exemplo, se a pessoa em situação de rua impetrar mandado de
segurança e pedir que o Estado execute o direito fundamental de propriedade por
meio da abstenção de atos que visem o recolhimento e a apreensão dos seus bens
móveis, não há possibilidade de sub-rogação, pois apenas o Estado pode adimplir
essa obrigação de não fazer por meio do treinamento e da exigibilidade de que
policiais e fiscais municipais não recolham ou apreendam os bens móveis do
impetrante. Em caso de descumprimento, o juízo poderá impor medidas coercitivas,
como a multa diária, para impelir o Estado a executar a obrigação.268


267
O Vicariato Episcopal para a Ação Social e Política de Belo Horizonte/MG dirige o Centro de
Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua em parceria com a Secretaria
Municipal Adjunta de Assistência Social. Assim, as pessoas em situação de rua podem se
higienizar no Centro de Referência que é financiado pelo Estado, mas gerido pelo Vicariato
Episcopal, pertencente a Arquidiocese da Igreja Católica em Belo Horizonte (Vicariato Episcopal
para Ação Social e Política).
268
As medidas sub-rogatórias não podem ser aplicadas nos casos que envolvam obrigação de não
fazer. Esse é o entendimento de Barbosa Moreira, segundo o qual “em certas hipóteses, não há
supor que medida alguma ordenada pelo órgão judicial seja capaz de assegurar ao vencedor
‘resultado prático equivalente ao adimplemento’ É o que sucede todas as vezes que a obrigação
do vencido se caracterize pela infungibilidade da prestação (rectius: do prestador). Assim se dá
em todas as obrigações de não fazer: se o devedor descumpre obrigação dessa espécie,


Assim, é indevido que a decisão jurisdicional proferida no mandado de


segurança exclua a sub-rogação da obrigação do Estado na execução de direitos
líquidos e certos, pois é possível que tanto medidas sub-rogatórias como medidas
coercitivas sejam tomadas para garantir a execução da ordem contida na decisão
jurisdicional.
Vale a pena transcrever a comparação feita por Luiz Guilherme Marinoni entre
sentença mandamental e sentença condenatória, em obra que versa a tutela
inibitória. O autor afirma que "se a sentença condenatória difere da declaratória por
abrir oportunidade à execução por sub-rogação, a mandamental delas se distancia
por tutelar o direito do autor forçando o réu a adimplir a própria ordem do juiz [...]. É
preciso que se perceba que não há ordem ou uso da coerção na sentença
condenatória, há simplesmente declaração e aplicação da sanção. Na sentença
mandamental, o juiz usa a força do Estado para estimular o vencido a adimplir, ao
passo que na condenatória há apenas a constituição de uma situação jurídica que
pode abrir oportunidade ao seu uso. Não se diga que na sentença mandamental,
assim como na condenatória, há apenas ameaça do uso da força, supondo-se,
equivocadamente, que esta força, diante da ordem sob pena de multa, somente
entra em atividade quando da própria cobrança da multa. Isto seria negar a
característica da própria ordem sob pena de multa. Como é sabido, o juiz, quando
ordena sob pena de multa, não determina o cumprimento sob pena do pagamento
de valor equivalente ao da prestação inadimplida (e nem deveria), mas impõe
necessariamente a multa em valor suficiente para constranger o réu a adimplir. Ora,
se a imposição de multa serve para forçar o adimplemento, é evidente que ela
significa o uso da força do Estado. O que menos importa, aí, é a cobrança do valor
da multa. Algo bem diferente ocorre, como é óbvio, quando a condenação não é
cumprida e o vencedor passa a percorrer o caminho da execução forçada. Nesta
última hipótese, o réu não foi forçado a cumprir; ao contrário, deu-se a ele a
possibilidade de adimplir".269


praticando o ato do qual tinha de abster-se, nada adiantará para o credor que outra(s) pessoa(s) –
ou mesmo a totalidade das outras pessoas! – se abstenha(m) da prática. O que talvez aconteça é
que se possa desfazer o que foi feito [...] ou pelo menos impedir que se continue a fazer o que se
está fazendo, e aí então se concebe a eventual aplicação do regime do art. 461, § 5º” (BARBOSA
MOREIRA, José Carlos. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, p. 155).
269
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva, p. 396-397. Em sentido
contrário, José Miguel Garcia Medina afirma que a tutela mandamental é caracterizada pela
ordem judicial, não sendo necessário “acrescentar-se à ordem qualquer outra medida coercitiva,
com o intuito de, supostamente, atribuir-lhe mais força”. Esse posicionamento não condiz com a


Para Luiz Guilherme Marinoni, as sentenças condenatórias preparam a


execução por sub-rogação, contêm declaração e aplicação da sanção, constituem
situação jurídica que pode oportunizar o uso da força do Estado, isso é, ameaça de
uso da força que só se concretiza com a aplicação da sanção e ao réu é aberta a
possibilidade de adimplemento voluntário da obrigação.
Por outro lado, as sentenças mandamentais seriam caracterizadas por
forçarem, isto é, constrangerem, com a pena de multa, o réu, a adimplir a ordem do
juiz por meio da coerção da vontade que representa a força do Estado. Pouca
importa se o valor da multa é cobrado, basta a simples possibilidade de que a multa
seja cobrada para caracterizar a sentença como mandamental.
Além da crítica tecida por Sérgio Muritiba quanto à limitação da "eficácia da
mandamentalidade apenas à possibilidade do emprego da multa" e a favor da
"inexistência de taxatividade legal dos meios de coerção passíveis de serem
autorizados pela sentença mandamental", é necessário criticar as asserções de Luiz
Guilherme Marinoni em outros aspectos controvertidos.270
A sentença mandamental se assemelha à sentença condenatória e as
diferenças indicadas por Luiz Guilherme Marinoni não são capazes de apontar na
direção contrária.
A sanção na sentença condenatória guarda afinidade com as medidas
coercitivas na sentença mandamental, pois ambas decorrem do descumprimento da
sentença e são medidas que impelem o réu a cumprir a sentença. Não procede o
argumento indicado por Luiz Guilherme Marinoni de que basta a imposição da multa
sem a cobrança na sentença mandamental para diferenciá-la da sentença
condenatória, pois é justamente a cobrança da multa que, assim como na sentença

assertiva do próprio José Miguel Garcia Medina no início do livro, para o qual “falar-se em
Jurisdição estatal destituída de instrumentos que permitam realizar materialmente o Direito,
através de atos executivos, implicaria reduzir significativamente a sua importância e razão de ser,
especialmente se se considerar que, na sociedade moderna, cada vez maior tem sido a
preocupação com a concretização dos direitos. De outro lado, espera-se, com a tutela
jurisdicional, a realização de atividade condizente com o direito material ameaçado ou violado,
não mais se admitindo que o direito se considere realmente tutelado com a mera declaração de
que houve violação ou há ameaça”. Além dessa contradição, José Miguel Garcia Medina adota
posicionamento diverso do defendido nessa dissertação ao afirmar que o “aumento da
importância do papel do juiz na criação da solução jurídica adequada para a atuação executiva
dos direitos” se deve a “diversos fatores sociais e jurídicos”, como “o reconhecimento de que nas
relações jurídicas não há, sempre, paridade entre os sujeitos” e o “surgimento de normas jurídicas
ainda mais gerais, trazendo em seu bojo noções de conteúdo variável (de conceito vago ou
indeterminado)”. A execução de direitos ocorre em espaços processualizados e não por força do
juiz solitariamente, como quer José Miguel Garcia Medina (Execução, p. 23-24, 26, 29-30, 40,
282).
270
Ação executiva lato sensu e ação mandamental, p. 233.


condenatória, impele o réu a adimplir a obrigação. Se, mesmo com a cobrança da


multa ou de outra medida coercitiva no mandado de segurança, o impetrado não
cumprir a sentença, é que haverá sub-rogação com a destinação compulsória de
verbas públicas para o cumprimento de sentença em que o direito fundamental
líquido e certo seja executado por outro órgão estatal ou por terceiros.
A única diferença entre sentença de procedência no mandado de segurança e
sentença condenatória apontada por Luiz Guilherme Marinoni que parece acertada,
se refere ao fato de que a sentença condenatória não comporta execução em si
mesma, sendo necessário a realização de atos posteriores para a execução da
sentença, enquanto a sentença mandamental não precisa de atos posteriores, pois
ela própria contém os meios de execução.
Sérgio Muritiba afirma, por sua vez, que a ação mandamental tem como
peculiaridade a "função técnico-processual que disponibiliza, recorrendo aos meios
de coerção para efetivar determinado comando sentencial", não podendo ser
diferenciada dos demais tipos de ações com base na ofensa causado à autoridade
jurisdicional devido ao descumprimento de ordem ou na existência de suposta
"hierarquia entre os meios de coerção".271
Ao lado da coercibilidade da sentença como elemento caracterizador da ação
mandamental, Sérgio Muritiba coloca a "desnecessidade de instauração de dois
tipos de processo (cognitivo e executivo) para que ocorra a prestação da tutela
jurisdicional plena. Como deve ter ficado claro, a sentença mandamental contém em
si o comando e a determinação dos meios de coerção, já produzindo efeitos
(coerção) no momento em que o réu toma consciência da decisão" e define ação
mandamental como "aquela na qual há imposição coercitiva da conduta descrita no
comando sentencial, sendo tal constrangimento processualmente instrumentalizado
mediante a pena fixada condicionalmente para o caso de descumprimento do
comando formulado pelo juiz". Na concepção de Sérgio Muritiba, a sentença
mandamental não se confunde com as sentenças relativas às espécies de ações
adotadas pela teoria trinária das ações (declarativa, constitutiva e condenatória)
devido a sua "peculiar função (coagir o réu ao cumprimento da conduta descrita no
comando sentencial) e estrutura processual [...], tornando possível, por meio deles, a
produção dos efeitos diferenciados (indução psicológica do réu ao cumprimento da


271
Ação executiva lato sensu e ação mandamental, p. 230, 235.


conduta efetiva)". Sérgio Muritiba afirma que até a parte da sentença em que o juiz
imprime a eficácia processual por meio da coerção, o "provimento não tem força
coercitiva, pois não faz uso do poder coercitivo do direito; somente após a pronúncia
do verbo pertinente é que algo de novo se agrega ao comando, passando este a ter
aptidão para constranger [...] podemos afirmar que o juiz, ao pronunciar a expressão
'mando sob pena de...', torna possível a ação de direito material, agora
institucionalizada, constrangendo o demandado para que o mesmo venha adotar a
conduta previamente estabelecida".272
Nessa hipótese, a principal característica da ação mandamental, a saber, a
imposição da conduta indicada na sentença por meio de coerção, ocorre na
sentença, como se o juiz, solitariamente e à semelhança do que ocorria no processo
romano arcaico, fosse capaz de caracterizar o procedimento como mandamental
pela simples pronúncia mágica de certas palavras.273
Conferir esse poder místico ao juiz desconsidera não só a participação das
partes, como também o princípio da reserva legal que impõe a caracterização do
procedimento como mandado de segurança se este observa o artigo 5º, incisos LXlX
e LXX, da Constituição de 1988, a Lei n° 12.016/2009 e o Código de Processo Civil.
Desta maneira, a sentença proferida em sede de mandado de segurança não tem o
condão de, por si só, qualificar o procedimento como mandamental.
As hipóteses de Pontes de Miranda sobre as ações não explicam
adequadamente a proximidade entre o procedimento do mandado de segurança e o
procedimento de execução. A efetivação da sentença proferida em mandado de
segurança ocorre por meio de institutos do procedimento de execução e Pontes de
Miranda, ao defender que a sentença mandamental é caracterizada pela mera
existência de ordem a ser cumprida pelo impetrado no mesmo procedimento é
insuficiente para aclarar como ocorre a efetivação da sentença.

272
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental, p. 240-242, 244-245.
273
No pensamento de Sérgio Muritiba, alguns pontos devem ser criticados, dentre os quais a tentativa
de adequação ao “espírito irrequieto e insatisfeito dos consumidores do serviço jurisdicional”; a
defesa de que a distinção entre ação e processo é irrelevante para o objetivo do livro, pois é
“comum na linguagem processual falar tanto em tipos de ações como em tipos de processos,
fundada tal classificação no mesmo critério” e a consideração, claramente sustentada pela
ideologia instrumentalista do processo, que o campo processual é “o instrumento para que o
campo material realize seus objetivos” (Ação executiva lato sensu e ação mandamental, p. 18,
187, 202). Rosemiro Pereira Leal, ao tratar do princípio da oralidade, afirma que “a oralidade é,
nas legislações modernas, atributo do direito fundamental de ampla defesa pela produção da
prova, não se tratando de rito ou postura verbal rigorosamente solene que pudesse conter, em si
mesma, como no ‘processo’ romano arcaico, efeitos magicistas de produzir o direito pela inefável
transubstanciação da palavra” (Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 112-113).


E esse erro irradia para as reflexões de Ovídio Baptista da Silva que tece
duas afirmações contraditórias, a saber, a sentença mandamental contém e não
contém execução e que o ato administrativo do denominado poder Executivo pode e
não pode ser objeto do mandado de segurança. Além disso, Ovídio Baptista da Silva
salienta que o Estado não pode sub-rogar o impetrado na efetivação da sentença.
Celso Agrícola Barbi sustenta, com base no direito francês e italiano, que a
execução por sub-rogação "não é possível quando o executado for o Estado" e que
"o direito brasileiro evoluiu no sentido de não permitir que a Administração escolha
entre praticar o ato e indenizar o dano causado: A Administração tem de cumprir a
ordem ou decisão judicial em forma 'específica', e não pela forma 'reparatória'". Para
obter a execução específica sem a utilização de meios sub-rogatórios, o autor afirma
que o juiz pode "utilizar-se de variados meios, como fixar prazos, ainda que não
constantes de lei, expedir ordem de reintegração, ou ordem que valha pela
declaração de vontade, ordem de entrega de documentos etc." e, nos casos em que
a autoridade coatora se recuse a cumprir a ordem, seria cabível a intervenção
federal, nos termos do artigo 35, inciso lV, da Constituição de 1988, e a aplicação de
sanções criminais.274 Contudo, o autor não leva em consideração que a simples
ordem dirigida ao Estado tem reduzida chance de sucesso se a sub-rogação não for
admitida.
Barbosa Moreira propõe o sistema de classificação das sentenças dividido em
duas classes, quais sejam, declarativa e modificativa. A sentença declarativa "tem
efeito simplesmente certificativo: não influi na situação jurídica preexistente senão na
medida em que lhe agrega uma certeza jurídica oficial" e as sentenças modificativas
"sempre, por sua própria força, independentemente de qualquer atividade
jurisdicional complementar", modificam "a situação jurídica preexistente". Dentro das
sentenças modificativas "teríamos subclasses, a sentença constitutiva e a sentença
executiva, as quais se distinguiriam uma da outra por concernir aquela a direitos
potestativos, esta a uma prestação. Se se quiser aplicar denominação própria à
classe de que elas são subclasses, não parecerá inadequada a de sentenças

274
Celso Agrícola Barbi indica que “o problema não foi ainda solucionado satisfatoriamente na
legislação vigente, sendo necessária a volta ao regime da Lei n° 191 e do Código de Processo
Civil, com criação expressa da figura delituosa, de forma a cortar dúvidas”. O autor fez essa
afirmativa em 1998, antes, portando, do advento da Lei n° 12.016/2009 que, no artigo 26, indica
que “constitui crime de desobediência, nos termos do art. 330 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940, o não cumprimento das decisões proferidas em mandado de segurança, sem
prejuízo das sanções administrativas e da aplicação da Lei no 1.079, de 10 de abril de 1950,
quando cabíveis” (Do mandado de segurança, p. 269, 275, 277-279).


modificativas - entenda-se: modificativas do estado de direito, não do estado de


fato".275
No entanto, o pensamento de Barbosa Moreira é contraditório, pois o autor
afirma que "não é a sentença, por si só, que modifica o mundo fático em benefício
do autor vitorioso: aqui, como em tantos outros exemplos apontados de sentenças
executivas, é sempre necessária uma atividade jurisdicional complementar" para, em
seguida, afirmar que as sentenças modificativas, das quais a sentença executiva é
subclasse, "sempre, por sua própria força, independentemente de qualquer atividade
jurisdicional complementar", alteram a situação jurídica preexistente. Ao lado dessa
contradição, não parece correta a afirmação de que essas sentenças modificam
apenas o estado de direito, pois a execução tem consequências no plano fático ou,
como afirma Barbosa Moreira, no estado de fato.276
Tampouco parece acertada a assertiva, contida em texto já citado de 1996,
segundo a qual "quando o juiz concede a segurança para, por exemplo, proibir a
cobrança de tributos, ou para ordenar à Administração Pública que desfaça, que
desmanche uma medida por ela tomada, digamos a interdição de um
estabelecimento comercial ou industrial, na verdade isso não dá lugar a uma
execução no sentido clássico do termo. Não há necessidade de um processo de
execução do tipo daquele processo que vem regulado, segundo suas várias
modalidades, do Código de Processo Civil. O juiz, ao conceder a segurança,
simplesmente oficia à autoridade dita coatora e lhe transmite a ordem de fazer, ou a
ordem de não fazer. E ela, certamente, a meu ver, cometerá crime de


275
Barbosa Moreira critica a concepção segundo a qual a sentença condenatória se “caracterizaria
por uma ‘natural’ insuficiência’ para conduzir à satisfação prática do vencedor”, tendo em vista a
“mudança, operada pela Lei n° 10.444, de 7.5.2002, no regime da entrega de coisa pleiteada com
fundamento em título judicial. A atual disciplina, tal qual se reflete na redação do art. 461-A do
Código de Processo Civil, dispensa nova demanda, nova citação do vencido” (Revista da
Academia Brasileira de Letras Jurídicas, p. 141, 143).
276
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, p. 141,
143. Barbosa Moreira, em artigo de 2006, muda os critérios utilizados para a classificação das
sentenças, afirmando que “decisiva é a linha limítrofe que separa, de um lado, as sentenças
bastantes em si mesmas para proporcionar ao litigante vitorioso toda a tutela a que aspiram
(sentenças meramente declaratórias e constitutivas), e de outro, as que necessitam de atividade
complementar – variável por mais de um aspecto – tendente a adaptar o mundo fático ao dictum
judicial. Nessa perspectiva, não vemos razão para atribuir consequências apocalípticas à
circunstância de levar-se a cabo no mesmo processo ou em processo formalmente diferenciado
essa atividade complementar” (Revista Dialética de Direito Processual, p. 68). Dessa maneira,
Barbosa Moreira parece incluir no segundo grupo, que necessita de atividade complementar, tanto
a sentença executiva quanto a sentença condenatória - essa última, ausente na classificação
indicada no artigo de 2003 – e solucionar a contradição apontada, pois se admite atividade
jurisdicional complementar na sentença executiva.


desobediência, eventualmente crime de responsabilidade, se descumprir esta


ordem", pois a inexistência de medidas sub-rogatórias para o adimplemento da
obrigação faria com que a ordem do juízo caísse no vazio, com pouca chance de
acatamento pela autoridade coatora, ainda que lhe sejam impostas penalidades
administrativas e penais.277
Em capítulo de livro publicado em 2002, Marcelo Lima Guerra se posiciona
contrário ao entendimento segundo o qual "a sentença proferida em mandado de
segurança é mandamental e, por isso mesmo, não comporta 'execução em sentido
próprio'", pois "a 'execução' desta decisão se faz pela mera expedição de ofício à
autoridade coatora para que cumpra a mesma decisão e, no caso de desobediência
da autoridade, mediante a aplicação de sanções penais, administrativas e/ou
políticas" e aponta que as "medidas administrativas e penais apontadas são de
reduzidíssima eficácia prática para proporcionar ao impetrante a proteção de seu
direito, que fica inteiramente a depender da boa vontade da pessoa jurídica na qual
estiver inserida a autoridade coatora". Para isso, Marcelo Lima Guerra sustenta que
"o juiz pode e deve adotar as medidas propriamente executivas que se revelarem
necessárias para dar realização prática ao direito líquido e certo reconhecido no
mandado de segurança, sempre que a autoridade coatora insistir em não cumprir o
que vier determinado na sentença concessiva da segurança", sendo, portanto, "lícito
e necessário que o órgão jurisdicional desempenhe autêntica atividade executiva,
seja pela adoção de medidas sub-rogatórias, seja pela adoção de medidas
coercitivas propriamente ditas".278
Para o autor, as diferenças entre "as atuações dos órgãos jurisdicionais
voltadas à satisfação concreta de um direito subjetivo" não autorizam a diferenciação
da tutela jurisdicional em várias categorias, pois todas são expressão da tutela
executiva. Alicerçado na "melhor e mais abalizada doutrina italiana da atualidade",
Marcelo Lima Guerra indica que "tanto a 'execução forçada', ou execução por sub-
rogação, como também a 'execução indireta', ou execução por coerção indireta, são
técnicas distintas de atuação prática dos direitos, portanto, postas à serviço da
mesma modalidade de tutela jurisdicional, a saber, da prestação da 'tutela


277
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Mandado de segurança, p. 87.
278
GUERRA, Marcelo Lima. Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois,
p. 603-605.


jurisdicional executiva'".279
Quanto à diferença entre as denominadas sentenças condenatórias e
sentenças executivas, Marcelo Lima Guerra afirma que a sentença condenatória
consiste na "declaração de certeza de um direito preparatório da tutela executiva
desse mesmo direito"; assim, a sentença condenatória pode ser identificada pela
"função instrumental desempenhada em relação à tutela executiva" e, em item
destinado a criticar a classificação quinária das sentenças, o autor refuta a restrição
na noção de sentença condenatória e a denominada "teoria da correlação
necessária entre condenação e meios executivos", pois, ao lado das medidas sub-
rogatórias, "a lei brasileira autoriza, de modo explícito e no próprio processo de
execução, entendido em seu sentido mais estrito, o uso de medidas coercitivas".280
Segundo o autor, a sentença de procedência proferida no mandado de
segurança se inclui na noção de sentença condenatória se o objetivo é a prestação
de tutela executiva ou nas sentenças declaratória e constitutiva se o objetivo é a
prestação de tutelas declaratória e constitutiva, respectivamente. Discorrendo sobre
as tutelas jurisdicionais e o mandado de segurança, Marcelo Lima Guerra afirma que
"é lícito concluir que por meio do processo de mandado de segurança se busca
atender a pelo menos duas das três necessidades de proteção do direito subjetivo
identificadas no início deste trabalho, a saber, a necessidade de alteração da
situação jurídica existente, quando para a proteção do direito líquido e certo é
suficiente a anulação de um ato administrativo, e a necessidade de realização
concreta do direito subjetivo quando a proteção do direito do impetrante requer a
prática de algum ato, ou a realização de alguma prestação por parte da autoridade
coatora, ou da pessoa jurídica a qual esteja ligada. Na primeira hipótese, busca-se,
por meio do mandado de segurança, a prestação de tutela constitutiva,
caracterizando-se, obviamente, a sentença concessiva de segurança, nesses casos,
como sentença constitutiva. Na segunda hipótese, o que se pretende, por meio do
mandado de segurança, é a prestação de tutela executiva e a sentença aí proferida,
nessas situações, sendo sentença que reconhece a existência de direito a ser
concretamente satisfeito, qualifica-se como sentença condenatória".281


279
GUERRA, Marcelo Lima. Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois,
p. 611, 615.
280
GUERRA, Marcelo Lima. Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois,
p. 618, 622.
281
GUERRA, Marcelo Lima. Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois,


Ao não limitar o mandado de segurança à condenação, Humberto Theodoro


Júnior discorda de Marcelo Lima Guerra, mas ambos afirmam que a efetivação da
sentença em mandado de segurança não necessita de outro procedimento. Nas
palavras de Humberto Theodoro Júnior, "o mandado de segurança não é um simples
processo de conhecimento para declaração de direitos individuais. Nem se limita à
condenação para preparar futura execução forçada contra o Poder Público. É
procedimento especial com imediata e implícita força executiva contra os atos
administrativos". Em sentido semelhante, Marcelo Lima Guerra afirma que "se a
lesão ou ameaça a direito líquido e certo, por parte da autoridade coatora, é daquela
que faz surgir a necessidade de realização prática do mesmo direito, vale dizer, de
sua respectiva tutela executiva, não é razoável que o mandado de segurança preste-
se tão-somente a preparar a necessária sentença condenatória, reservando a
prestação da tutela executiva, propriamente dita, para outro processo", sendo
necessário prestar a tutela executiva no procedimento do mandado de segurança.282
A concepção de tutela executiva em sede do mandado de segurança
esboçada por Marcelo Lima Guerra não se confunde com a expedição de ofício à
autoridade coatora - "ato de mera ciência, não se configurando como medida
executiva, propriamente dita" - ainda que o ofício contenha ordem cujo
descumprimento possa configurar desobediência à ordem legal, prevaricação,
improbidade administrativa ou a estranha e esotérica denominação atentado à
dignidade da Justiça em caso de violação do artigo 14, inciso V, do Código de
Processo Civil de 1973 com correspondente no artigo 77, inciso lV, do Código de
Processo Civil de 2015.


p. 639. A sentença no mandado de segurança, em conformidade com a teoria neoinstitucionalista
do processo, prescinde da tutela constitutiva, pois os direitos fundamentais líquidos e certos já
foram indicados pelo constituinte originário (LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização
inconstitucional da coisa julgada, p. 26-27).
282
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais, p.
490. GUERRA, Marcelo Lima. Execução de sentença em mandado de segurança, p. 641-642. Em
sentido contrário, Alfredo Buzaid afirma que “o mandado de segurança é uma ação de
conhecimento que começa com uma petição inicial [...] e termina por uma sentença, que põe
termo ao processo, julgando ou não o mérito”. Barbosa Moreira afirma que "o processo do
mandado de segurança tende à emissão de uma sentença, e como tal o processo é de natureza
cognitiva" e Celso Agrícola Barbi indica que “o mandado de segurança é ‘ação de cognição’, que
se exerce através de um procedimento especial da mesma natureza, de caráter documental, pois
só admite prova dessa espécie, e caracterizado também pela forma peculiar da execução do
julgado” e admite que, nos casos em que é impetrado contra ato judicial para “dar efeito
suspensivo ao recurso interposto que não tenha por lei esse efeito”, o mandado de segurança
“tem caráter de ação cautelar, e não de ação de conhecimento” (BUZAID, Alfredo. Do mandado
de segurança, p. 75. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Mandado de segurança, p. 86. BARBI,
Celso Agrícola. Do mandado de segurança, p. 50-52).


Marcelo Lima Guerra afasta qualquer limitação ao "uso de medidas


executivas para assegurar a realização prática do direito líquido e certo reconhecido
na sentença concessiva de segurança. Nessa ordem de idéias, admitidas possíveis,
em princípio, o uso de autênticas medidas executivas contra o Poder Público - quer
sub-rogatória, quer as propriamente coercitivas - pretender circunscrever a execução
da sentença concessiva de segurança à mera expedição de ofício à autoridade
coatora, transmitindo-lhe o inteiro teor da sentença, é reduzir drasticamente a força
deste remédio de status constitucional". Caso a autoridade coatora não cumpra a
sentença, Marcelo Lima Guerra afirma que o juiz "pode adotar as medidas
executivas que se revelarem mais adequadas ao caso concreto, a fim de assegurar
a realização prática do direito líquido e certo (tutela executiva)", elencando a
intervenção judicial inspirada no direito norte-americano e a multa diária como
exemplos de medidas executivas cabíveis em caso de descumprimento da sentença
concessiva de segurança.283
Apesar da importante contribuição de Marcelo Lima Guerra para o estudo da
execução de sentença no mandado de segurança, as hipóteses do autor merecem
reparos. Sobre a "falta de norma admitindo qualquer medida executiva para
assegurar a realização prática do direito reconhecido no mandado de segurança",
Marcelo Lima Guerra assevera que tal lacuna no ordenamento jurídico deve ser
interpretada como "autorização do legislador para o juiz adotar as medidas
executivas que se revelarem mais adequadas ao caso concreto".284
O protagonismo decisório do juiz tem consequências nefastas para o
procedimento e a maior delas é a fundamentação das decisões jurisdicionais
desvinculada do contraditório exercido pelas partes procedimentais. Se o
ordenamento jurídico é silente quanto a certo aspecto da execução, essa lacuna só
pode ser resolvida no espaço processual com a presença da hermenêutica
isomênica entre as partes e não pelo juiz isoladamente.
As hipóteses elaboradas por Marcelo Lima Guerra contribuem para a
elucidação do caráter executivo do mandado de segurança, pois a efetivação da
sentença proferida em sede de mandado de segurança ocorre por meio da
prestação de tutela executiva, não se limitando às penalidades de desobediência à


283
GUERRA, Marcelo Lima. Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois,
p. 644-647. BRASIL. Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
284
Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois, p. 646.


ordem legal, prevaricação, improbidade administrativa ou infração ao disposto no


artigo 14, inciso V, do Código de Processo Civil de 1973 com equivalente no artigo
77, inciso lV, do Código de Processo Civil de 1973, em caso de descumprimento da
ordem contida na sentença.
Como se pode perceber, os autores analisados abordam a sentença no
mandado de segurança de maneira heterogênea. A sentença é caracterizada ora
pela ordem contida na sentença de procedência, ora pelas medidas coercitivas em
caso de descumprimento da sentença, sendo incluída na categoria das sentenças
condenatórias, devido ao reconhecimento do direito que deve ser concretizado, ou
como integrante de categoria autônoma, por ser meio para futura execução. A
ordem, por sua vez, é interpretada como autossuficiente, isso é, sem necessidade
de outros atos procedimentais que a façam valer, ou em função das medidas
coercitivas ou de execução que a acompanham. As medidas coercitivas se resumem
ao âmbito administrativo e penal e as medidas de execução apontadas são a
intervenção judicial e a multa diária.
É preciso desatar os nós que envolvem os aspectos controvertidos da
sentença em mandado de segurança. Do exposto e para tentar tratar a sentença de
maneira clara e concisa, é possível estabelecer que a sentença proferida em sede
de mandado de segurança é espécie de sentença declaradora-executiva, pois,
observados os princípios da fundamentação das decisões jurisdicionais e do
contraditório, contém ordem para a execução de direitos fundamentais líquidos e
certos por meio de medidas sub-rogatórias e coercitivas, sem a necessidade de
novo ou reiterado pedido do impetrante ou de procedimento subsequente.285
Além disso, importante ressaltar que o procedimento do mandado de
segurança não pode ser caracterizado pela eficácia da sua sentença, mas pela
obediência ao disposto no artigo 5º, incisos LXlX e LXX, da Constituição de 1988, na
Lei n° 12.016/2009 e no Código de Processo Civil. Por sua vez, a eficácia da


285
A classificação das sentenças é feita, portanto, pelo seu conteúdo e não pelos possíveis efeitos.
Neste sentido, a sentença de procedência proferida em sede de mandado de segurança é espécie
de sentença declaradora-executiva por conter ordem para a execução de direito fundamental
líquido e certo contra ilegalidade ou abuso de poder por parte de “autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”, na dicção do artigo 5º, inciso LXlX,
da Constituição de 1988 (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
Segundo André Del Negri, "em sendo pública a função do juiz, é estranhável falar que ele irá, por
intermédio de sentença, constituir direitos, uma vez que essa decisão judicial é declaradora-
executiva, ou seja, ela declara apenas o cumprimento, não o direito, pois este já foi declarado no
plano constituinte" (Teoria da constituição e do direito constitucional, p. 306).


sentença tem caráter eminentemente executivo de direitos fundamentais líquidos e


certos. Por isto, as medidas coercitivas, embora possíveis, não excluem a adoção
das medidas executivas.
A execução no mandado de segurança não autoriza o juízo a substituir o
agente público na elaboração de planos para a destinação dos recursos públicos,
mas significa que o espaço processual oportunizado pelo mandado de segurança
assegura a construção de decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas pelo
povo, pois a não concretização de direitos fundamentais do impetrante pelo Estado
(autoridade coatora) tem, como uma de suas origens, a escolha de prioridades na
aplicação de recursos públicos e na definição de políticas públicas. Desta maneira, o
procedimento constitucional do mandado de segurança é necessário para a
execução de direitos fundamentais líquidos e certos, pois submete as partes
procedimentais e o juízo à ampla defesa, contraditório e isonomia.
Os dispositivos do Código de Processo Civil de 2015 aplicáveis na execução
de direitos fundamentais no mandado de segurança são os artigos 497, 536, 537 e,
subsidiariamente, os artigos 814 a 823, que tratam do julgamento e da execução de
obrigação de fazer e não fazer, respectivamente.
Segundo Rosemiro Pereira Leal, a Constituição de 1988 é título executivo
extrajudicial e, conforme Barbosa Moreira, a execução de obrigação de fazer é
"peculiar, hoje, aos casos de título extrajudicial", posicionamento compartilhado por
José Miguel Garcia Medina, para o qual "em princípio, as medidas executivas
previstas no art. 461, § 5º, do CPC, também se aplicam à execução de obrigação de
fazer e não fazer fundada em título extrajudicial".286
Dessa maneira, a Constituição de 1988 pode ser considerada título executivo
extrajudicial, pois a força executiva ao qual alude o artigo 784, inciso Xll, do Código
de Processo Civil de 2015 é atribuída pela própria Constituição no artigo 5º, § 1º,
podendo ser concretizada com a incidência dos artigos 497, 536, 537 e 814 a 823 do
Código de Processo Civil de 2015.
Os direitos fundamentais prescindem de prévia atividade cognitiva
jurisdicional, pois a Constituição, considerada título executivo extrajudicial, já contém


286
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e
reflexões jurídicas, p. 26-27, 38. Constituição e processo: a contribuição do processo ao
constitucionalismo democrático brasileiro, p. 285. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo
processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento, p. 221. MEDINA, José Miguel
Garcia. Execução civil: aspectos polêmicos, p. 210.


norma jurídica que disciplina os direitos fundamentais e impõe o dever de


concretizá-los ao Estado. Embora não aborde a Constituição de 1988, Barbosa
Moreira afirma que "em certas hipóteses, contudo, especificamente previstas,
tornava-se (e continua a tornar-se) desnecessária a prévia atividade cognitiva: a lei
confere eficácia executiva a certos títulos, considerando que neles já se acha
contida a norma jurídica disciplinadora das relações entre as partes, com suficiente
certeza para que o credor se tenha por habilitado a pleitear, desde logo, a realização
dos atos materiais tendentes a efetivá-la".287
A utilização da expressão cumprimento de obrigação no artigo 461, caput, do
Código de Processo Civil de 1973, não parece acertada, pois, como assevera
Barbosa Moreira, "na tradição da linguagem jurídica brasileira, 'cumprimento' é
vocábulo empregado para designar cumprimento voluntário" e a determinação de
providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento
pressupõe o descumprimento da obrigação, o que desautoriza o emprego do termo
cumprimento.288 O artigo 497, caput, do Código de Processo Civil de 2015 eliminou
o termo cumprimento, preferindo utilizar prestação.
No mandado de segurança, a expressão resultado prático equivalente
constante no artigo 497, caput e 536, caput, do Código de Processo Civil de 2015
não significa que o objeto da prestação (direito fundamental líquido e certo) é
fungível, mas que o resultado será alcançado com o adimplemento do Estado ou de
terceiro às custas do Estado, conforme indica o artigo 816 do Código de Processo
Civil de 2015.
Eduardo Talamini afirma que "a eficácia executiva lato sensu do provimento
concessivo de tutela (antecipada ou final) ex art. 461 abrange a efetivação das
medidas destinadas à produção do 'resultado prático equivalente', incluindo a
definição do terceiro que irá realizá-la, e, quando praticamente viável e juridicamente
possível [...], a obtenção do numerário para o custeio da atividade sub-rogatória".
Apesar das críticas à expressão execução lato sensu, a correlação entre o artigo
461 e a nomeação de terceiro como medida cabível para a obtenção do resultado
prático equivalente ao do adimplemento parece acertada, tendo em vista o artigo


287
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do
procedimento, p. 205.
288
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Revista Dialética de Direito Processual, p. 64.


644 do Código de Processo Civil de 1973.289


Os artigos 499 e 500, e as partes dos artigos 816, 821, parágrafo único, e o
artigo 823, do Código de Processo Civil de 2015 relativos a perdas e danos não são
aplicáveis no mandado de segurança, pois a certeza do direito fundamental impõe
que o inadimplemento da sua execução não possa ser convertido em indenização
por perdas e danos.
O artigo 461, § 5º, do Código de Processo Civil de 1973 tratava da efetivação
da tutela específica e a expressão tais como indicava que o rol de medidas
necessárias elencadas é exemplificativo e não exaustivo.290 O artigo 536 do Código
de Processo Civil de 2015 preferiu indicar que o juiz poderá determinar as medidas
necessárias à satisfação do exequente. Contudo, a possibilidade de o juízo
determinar medidas necessárias sem o requerimento do autor e sem a oportunidade
de influência da outra parte deve ser rechaçada, pois, apesar da expressa indicação
legal nesse sentido, qualquer decisão jurisdicional deve ser lastreada pela
argumentação desenvolvida pelas partes, sem a qual lhe faltaria a legitimidade
necessária. Além disso, o princípio da vinculação da atividade jurisdicional à
iniciativa da parte veda que o juízo, representado pelo juiz, decida a lide fora dos
limites em que foi proposta.291


289
Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de entrega de
coisa: CPC, arts. 461 e 461-A, CDC, art. 84, p. 299, 420. A crítica mais contundente feita à
expressão sentença executiva lato sensu vem de Barbosa Moreira, segundo o qual “só tem
sentido acrescentar a qualquer denominação o complemento ‘lato sensu’ caso se conceba a
existência de algo a cujo respeito se possa usar a mesma denominação com o complemento
‘stricto sensu’: ali se estaria aludindo ao gênero, aqui a uma espécie. Quem quer que se refira a
‘sentença executiva lato sensu’ deve, pois, esclarecer em que consiste a espécie ‘sentença
executiva stricto sensu’ e indicar a diferença específica que a caracterizaria. Sem tal cuidado,
aquela expressão soa inexpressiva, para não dizer carente de sentido” (Revista da Academia
Brasileira de Letras Jurídicas, p. 132).
290
No mesmo sentido, Eduardo Talamini afirma que “a enumeração de medidas constante do § 5.º
não é exaustiva – o que se depreende da locução conjuntiva ‘tais como’, que a antecede. Este é o
entendimento assente” e indica, em posição não seguida por essa dissertação por desconsiderar
as garantias do contraditório, da fundamentação racional das decisões jurídicas e o princípio da
vinculação da atividade jurisdicional ao pedido, que “o juiz, além disso, não fica vinculado às
medidas que eventualmente o autor pleiteie [...]. Não se trata, no entanto, de poder ilimitado.
Primeiro, fica afastada a adoção de qualquer medida que o ordenamento vede [...]. Depois,
mesmo no universo de medidas em tese admissíveis, terão de ser considerados os princípios
gerais da proporcionalidade e razoabilidade, que norteiam toda a atuação estatal” (Tutela relativa
aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de entrega de coisa: CPC, arts.
461 e 461-A, CDC, art. 84, p. 270).
291
Segundo Carlos Henrique Soares e Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias “a prestação da atividade
jurisdicional está adstrita ao pedido. É o que determina o art. 128 do CPC. Assim, não pode existir
sentença que dê mais que o pedido (sentença ultra petita), menos que o pedido (sentença citra
petita) ou fora do pedido (sentença extra petita” (Manual elementar de processo civil, p. 12). Sobre
o mandado de segurança, Gregório Assagra de Almeida, Mirna Cianci e Rita Quartieri afirmam
que “a ele são aplicáveis todas as disposições processuais previstas para as tutelas jurisdicionais


Nos estudos em que realizou, ao discorrer sobre a exigibilidade em juízo dos


direitos fundamentais a prestações positivas do Estado, Eduardo Talamini afirma
que "na Constituição brasileira, significativa parcela das prestações estatais
destinadas à satisfação de interesses sociais, econômicos e culturais foi, em termos
explícitos, constitucionalmente vinculada a direitos fundamentais" e que há indicação
constitucional para a "aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos
fundamentais (CF, art. 5.º, § 1.º)" com a consequente impossibilidade de "uma
recusa geral e absoluta à efetivação judicial dos direitos sociais constitucionalmente
assegurados, afastando o argumento de que o tema constituiria apenas matéria de
política pública, submetida a uma suposta discricionariedade estatal impassível de
controle pela Jurisdição". O autor distingue duas situações, a saber, "as hipóteses de
que se extrai apenas o dever de o Estado realizar políticas públicas de caráter social
e aquelas que, mais do que a imposição de diretrizes objetivas estatais, embasam
direitos subjetivos públicos". Na primeira situação, Eduardo Talamini indica que
"dentro de certas condições, poder-se-á falar em restrições mais amplas à tutela
jurisdicional", enquanto na segunda situação, "em regra é viável o recurso do
cidadão ao Judiciário, para a fruição concreta da utilidade assegurada pelo direito
fundamental de cunho social". Dentro da segunda situação, "existem casos em que
não só o objeto do direito social é indeterminado, como sua realização implica
necessariamente uma política social ampla, não individualizável", diante dos quais
"invoca-se como argumento a discricionariedade do legislador e do administrador, na
definição de políticas públicas: o Judiciário, nessa ótica, estaria autorizado apenas a
controlar a legalidade e não abusividade das ações desenvolvidas pelos outros
'poderes'; não lhe seria dado - sob pena de afronta à separação constitucional de
funções - impor a adoção de programas de ação governamental. A realização de
políticas públicas dependeria da prévia disponibilidade de recursos orçamentários, e,
nessa matéria, não caberia ao Judiciário imiscuir-se".292
Dessa maneira, Eduardo Talamini rejeita parcialmente a hipótese que veda o
controle jurisdicional de políticas públicas. Parcialmente, pois encontra no óbice
material, ou seja, nos recursos econômicos limitados do Estado, um impeditivo para

ordinárias, desde que sejam compatíveis com os seus pressupostos constitucionais e possam ser
meios eficazes para garantir a sua efetividade, tais como as medidas de apoio do § 5º do art. 461
do CPC” (Mandado de segurança: introdução e comentários à Lei 12.016, de 7-8-2009 (artigo por
artigo), com indicação do PLS n. 222/2010, p. 43).
292
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos
deveres de entrega de coisa: CPC, arts. 461 e 461-A, CDC, art. 84, p. 139-142.


o controle jurisdicional. Neste sentido, "não há discricionariedade na adoção, ou não,


das políticas públicas em exame - e, sim, na eleição orçamentária das prioridades e
na eventual definição do conteúdo da ação". Contudo, a discricionariedade quanto
ao orçamento encontra seus limites explícitos nas "normas meramente
programáticas, com carga mínima" e nas escassas "normas impositivas de políticas
de ação governamental acompanhadas de parâmetros de concretização e de
sanções por sua inobservância", exemplificada nos artigos 208, § 2º, e 212 da
Constituição de 1988 referentes às políticas públicas de educação. Os limites
implícitos atingem, inclusive, "a discricionariedade derivada das regras
programáticas com grau mínimo de impositividade" e "advém da necessidade de
ponderação concreta de valores constitucionais [...] trata-se de aplicar o princípio da
proporcionalidade", ressaltando que "cabe ao Judiciário examinar cada caso que lhe
é trazido, a fim de verificar em que medida se põem tais limites à discricionariedade
da Administração".293
Apesar dos avanços representados pelas hipóteses acima expostas de
Eduardo Talamini, principalmente na possibilidade de discussão jurisdicional de
políticas públicas, o pensamento do autor merece reparos, tendo em vista o que já
foi analisado nesta dissertação.
Apesar de defender a admissão de controle jurisdicional em matérias
discricionárias de efetivação dos direitos sociais, a importância que Eduardo
Talamini confere à limitação dos recursos econômicos do Estado e ao papel deste
óbice material na definição do grau de discricionariedade dos atos estatais, levam o
controle processual de políticas públicas à inocuidade.
Em segundo lugar, a aplicabilidade do artigo 497, caput, 536 e 537 não se
limitam aos direitos sociais, mas abrange todos os direitos fundamentais constantes
no Título ll (artigos 5º ao 17), intitulado "Dos direitos e garantias fundamentais", da
Constituição de 1988.
Por último, não se trata de controle judicial das decisões jurisdicionais,
legislativas e administrativas, mas de controle processual de políticas públicas que
ocorre por meio de procedimentos constitucionalizados, dentre os quais, o mandado
de segurança em caso de inadimplemento do Estado na execução de direitos
fundamentais líquidos e certos. Diferentemente do controle judicial no qual o juiz

293
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos
deveres de entrega de coisa: CPC, arts. 461 e 461-A, CDC, art. 84, p. 143-144.


ocupa lugar de protagonismo e decide a lide solitariamente e com base em


duvidosos e insondáveis juízos de equidade e na ponderação concreta de valores
constitucionais, o controle processual permite a participação dos litigantes em
hermêneutica isomênica e com a garantia do contraditório e da fundamentação
racional das decisões jurisdicionais, afastando qualquer decisão interlocutória,
sentença ou acórdão que despreze a argumentação desenvolvida pelas partes e o
ordenamento jurídico brasileiro.
Com relação à nomeação de terceiro para a satisfação da obrigação, cumpre
destacar que os artigos 814 a 823 do Código de Processo Civil de 2015 são
aplicáveis, mediante requerimento do exequente e se o devedor não satisfazer a
obrigação no prazo fixado pelo juízo. Desta maneira, no mandado de segurança,
caso o Estado (autoridade coatora) não satisfaça a obrigação, o impetrante poderá
pedir que terceiro o faça às custas do Estado. É importante ressaltar, mais uma vez,
que a certeza se refere à infungibilidade jurídica e não ao prestador.294
Ao escrever sobre a Lei n° 11.382/2006, Barbosa Moreira esquematiza o
procedimento de escolha de terceiro para a prestação do fato nos seguintes tópicos:
"a) a requerimento do exequente, pode o juiz determinar que o fato seja prestado por
terceiro, à custa do executado (art. 634, caput); b) segue-se atividade capaz de
proporcionar aos terceiros eventualmente interessados a apresentação de
propostas, dentro do prazo a ser fixado pelo órgão judicial; c) caso se apresente
uma única proposta, poderá o exeqüente manifestar desde logo, no qüinqüídio
subseqüente, a vontade de exercer o direito de preferência, em igualdade de
condições (art. 637, parágrafo único); d) se várias propostas tiverem sido
apresentadas, competirá ao juiz, ouvidas as partes, aprovar aquela que lhe haja


294
As disposições dos artigos 632 a 643 se aplicam subsidiariamente ao artigo 461 no cumprimento
de sentença relativa a obrigação de fazer ou não fazer, por força do artigo 644 do Código de
Processo Civil de 1973. Com relação ao Código de Processo Civil de 2015, as disposições do
Livro l da Parte Especial, na qual os artigos relativos ao cumprimento de sentença que reconheça
a exigibilidade da obrigação de fazer ou de não fazer estão inseridos, são aplicadas
subsidiariamente ao processo de execução, assim como o cumprimento da sentença será feito
com observância do disposto no Livro ll da Parte Especial do Código, denominado “Do Processo
de Execução”. É o que está indicado no artigo 513, caput, “o cumprimento da sentença será feito
segundo as regras deste Título, observando-se, no que couber e conforme a natureza da
obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial deste Código” e no artigo 771, “este Livro
regula o procedimento da execução fundada em título extrajudicial, e suas disposições aplicam-
se, também, no que couber, aos procedimentos especiais de execução, aos atos executivos
realizados no procedimento de cumprimento de sentença, bem como aos efeitos de atos ou fatos
processuais a que a lei atribuir força executiva. Parágrafo único. Aplicam-se subsidiariamente à
execução as disposições do Livro I da Parte Especial” (BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março de
2015. Código de Processo Civil).


parecido mais vantajosa (art. 634, parágrafo único, fine), ressalvado ao exequente o
direito de preferência".295 Na teoria neoinstitucionalista do processo, ouvir as partes
significa que a decisão jurisdicional deve ser fundamentada de acordo com a
argumentação desenvolvida pelas partes em contraditório e não ato meramente
formal de oportunizar a manifestação das partes sem influência decisiva no
procedimento.
Conforme leciona Humberto Theodoro Júnior, "qualquer que seja o título
executivo (sentença ou contrato), o juiz pode autorizar a execução pelo credor ou
por terceiro de sua escolha orientando-se pela previsão ampla que, para os títulos
judiciais, já se achava assentada no artigo 461 do CPC, segundo o qual, na
procedência do pedido de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz
determinará 'providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento' [...]. É essa singeleza das execuções dos títulos judiciais (art. 461)
que a Lei n° 11.382/2006 pretendeu estender aos títulos extrajudiciais, no campo da
execução do fato pelo próprio credor, ou preposto, ao revogar todos os parágrafos
do art. 634".296
Não se trata de execução dos direitos fundamentais em um instante, mas em
espaços processualizados nos quais as partes produzam provas, exerçam o
contraditório e construam a decisão jurisdicional que não fique em um dos dois
extremos, a saber, na carência de recursos públicos que impede a efetivação de
direitos fundamentais e a amplitude das discussões processualizadas sobre a
destinação de recursos públicos, de um lado e, de outro, na efetivação de direitos
fundamentais sem planejamento e irresponsavelmente.297
Se o Estado arguir que não há verbas suficientes para se executar
determinado direito fundamental, como o direito à moradia; que juízos de
conveniência e oportunidade guiam os procedimentos policiais de abordagem da


295
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, p. 9.
296
A reforma da execução do título extrajudicial, p. 39-40. BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março de
2015. Código de Processo Civil.
297
Dissertando sobre a importância do planejamento econômico na implementação dos direitos
fundamentais, Roberta Beatriz Bernardes da Silva e Andréa Queiroz Fabri argumentam que “o
planejamento econômico deve prever não só medidas destinadas a corrigir desajustes
monetários, mas principalmente medidas destinadas a implementar os direitos fundamentais do
cidadão [...]. Com todas essas obrigações impostas ao Estado, percebe-se a relevância da
atividade de planejar, pois ela propiciará o controle dos gastos públicos e da atuação estatal” e
defendem que “a elaboração, execução e fiscalização do planejamento devem ser oportunizadas,
de forma irrestritas, ao cidadão, considerado não só destinatário de seus direitos, mas
principalmente seu coautor” (Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 208-209).


população em situação de rua ou se arvore vagamente na reserva do possível e no


mínimo existencial, a outra parte litigante poderá discutir processualmente esses e
outros argumentos, não bastando que o Estado apenas alegue, pois é necessário
que produza provas das suas afirmativas e que essas provas possam ser refutadas
pelo impetrante.
Para Gregório Assagra de Almeida e Flávia Vigatti Coelho de Almeida, "é
insustentável, por exemplo, a tese de necessidade de reserva de orçamento como
alegação formal impeditiva a imposição ao Estado de implementação de políticas
públicas para cumprir as exigências do art. 3º da CF/88".298
Não é possível que se fale em carência de recursos financeiros se o Estado
brasileiro arrecada cerca de R$ 1.000.000.000.000 (um trilhão de reais!) de tributos
anualmente e gaste enorme quantia de dinheiro com eventos esportivos
dispensáveis como a Copa das Confederações de 2013, a Copa do Mundo de 2014
e as Olimpíadas de 2016 e com diminuta importância prática para a maioria da
população brasileira ou que gaste enorme soma de verbas com o pagamento de
benefícios impensáveis para a maioria dos brasileiros com congressistas cujos
trabalhos, em sua grande maioria, carecem de qualidade técnica e aplicações
práticas.299
Para que o Estado, qualquer seja ele, realmente não tenha recursos
financeiros para serem aplicados na execução de direitos fundamentais, para que se
chegue nesse ponto de implosão de sistemas econômicos e sociais, é necessário
que o dinheiro público não seja desperdiçado com futilidades, pagamentos de
verbas exorbitantes e irrealistas para agentes públicos ou seja perdida nos caminhos
propositalmente tortuosos e quase indecifráveis da burocracia e da caixa-preta das


298
Direitos fundamentais e a função do Estado nos planos internos e internacional, p. 232.
299
Só em 2014, a arrecadação do Governo Federal com tributos chegou a cerca de R$ 1,188 trilhão
(FERNANDES, Sofia. Folha de São Paulo). É importante colacionar posicionamento crítico acerca
da relação entre as manifestações populares de junho de 2013 e os gastos do Estado com
eventos esportivos feito por Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, segundo o qual “as manifestações
populares tinham por objetivo protestar contra os gastos expressivos feitos pelo Estado brasileiro
nos preparativos do certame esportivo chamado Copa do Mundo, notadamente despesas
elevadíssimas efetuadas nas construções e reformas de mais de uma dezena de estádios de
futebol, ao invés de o Estado empregá-los, prioritária, racional e convenientemente na melhoria
dos serviços públicos em geral, principalmente nos fragilizados setores da educação, da saúde, da
mobilidade urbana e da segurança pública. Nessas questões temáticas, é público e notório, a
carência no Brasil é sempre brutal, aviltante à dignidade da pessoa humana, escandalosa e
manifestamente ofensiva à Constituição que configurou o Estado Democrático de Direito, já que
seu texto obriga o Estado a prestar ao povo tais serviços públicos de forma adequada e eficiente,
o que não vem ocorrendo há muito tempo” (Processo constitucional e estado democrático de
direito, p. 77-79).


finanças estatais. Somente nessa conjectura assombrosa e ainda distante da


realidade brasileira, pois se gasta muito dinheiro público para que poucos
empresários e políticos ganhem, é que se poderá falar em carência de recursos
financeiros estatais e, neste caso, todas as alegações devem ser provadas e
submetidas ao contraditório em sede de mandado de segurança quando
relacionadas com direitos fundamentais líquidos e certos.
O estudo da sentença de procedência no mandado de segurança não se
resume apenas às medidas posteriores destinadas à execução dos direitos
fundamentais, como é feito pelos autores analisados ao centrar a categorização da
decisão jurisdicional nos atos e momentos posteriores à sentença.
A sentença é espécie de decisão jurisdicional que deve ser fundamentada,
por força do disposto no artigo 93, inciso lX, da Constituição de 1988, segundo o
qual "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]" e em consonância
com o Código de Processo Civil de 2015, que trata do tema no artigo 11, “todos os
julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas
as decisões, sob pena de nulidade” e no artigo 489, inciso ll, segundo o qual são
elementos essenciais da sentença “os fundamentos, em que o juiz analisará as
questões de fato e de direito” e § 1º, no qual está disposto que “não se considera
fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou
acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato
normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II -
empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua
incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra
decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de,
em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar
precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos
determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles
fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou
precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso
em julgamento ou a superação do entendimento”.300


300
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. BRASIL. Lei n° 13.105, de 16 de março
de 2015. Código de Processo Civil. Em virtude da recalcitrância de parte dos agentes públicos
julgadores em não aceitar os referidos dispositivos em prol da suposta celeridade processual, não


Discorrendo sobre o princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais,


Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias afirma que a justificação das razões pelas quais o
órgão estatal julgador proferiu a decisão jurisdicional "não pode ser abstrata,
desordenada, desvairada, ilógica, irracional, discricionária ou arbitrária, formulada ao
influxo de 'ideologias', do particular sentimento de justiça, do livre espírito de
equidade, do prudente arbítrio ou das convicções pessoais do agente público
julgador, marginalizando as questões e os argumentos posicionados pelas partes no
processo, porque o julgador não está sozinho no processo, não é seu centro de
gravidade e não possui o monopólio do saber" e acrescenta que "o entrelaçamento
técnico dos princípios da reserva legal, do contraditório e da fundamentação das
decisões jurisdicionais, que se concretizam pela garantia do devido processo
constitucional, tolhe a nefasta intromissão desses anômalos e patológicos
'sentimentos', 'ideologias', 'ativismos', 'protagonismos' e quejandos no ato estatal de
julgar", para concluir que "urge compreender-se de uma vez por todas que, no
Estado Democrático de Direito, a justificação adotada no pronunciamento
jurisdicional decisório tem de ser feita dentro de um conteúdo estrutural normativo
que as normas processuais lhe impõem, em forma tal que o agente público julgador
dê motivação racional à decisão prolatada, sob a prevalência do ordenamento
jurídico em vigor e indique a legitimidade das escolhas adotadas, em decorrência da
obrigatória análise dos argumentos desenvolvidos pelas partes, em contraditório, em
torno das questões de fato e de direito sobre as quais estabeleceram discussão".301
Em obra que versa as bases em que se assentam a fundamentação legítima
das decisões judiciais no Estado Democrático de Direito, André Cordeiro Leal critica
as abordagens tradicionais quanto à apreciação da prova e a afirmativa segundo a
qual "o juiz é livre para decidir, bastando que motive 'racionalmente' sua decisão, é
exatamente a da própria 'racionalidade' decisional no Estado Democrático de Direito,
porque o juiz, mediante mera indicação de textos legais e de fórmulas de que se
utilizara para a aplicação das normas ao aso posto extirparia das partes o direito
fundamental de construir discursivamente a própria racionalidade decisória. Mais do
que garantia de participação das partes em simétrica paridade, portanto, o


causa espanto as vaias da plateia composta majoritariamente por juízes contra a defesa da
fundamentação das decisões jurisdicionais feita por Lenio Luiz Streck no 3º Congresso da
Magistratura Laboral (RODAS, Sérgio. Revista Consultor Jurídico).
301
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrático de direito, p.
169-172.


contraditório deve efetivamente ser entrelaçado com o princípio (requisito) da


fundamentação das decisões de forma a gerar bases argumentativas acerca dos
fatos e do direito debatido para a motivação e das decisões. Uma decisão que
desconsidere, ao seu embasamento, os argumentos produzidos pelas partes no iter
procedimental será inconstitucional e, a rigor, não será sequer pronunciamento
jurisdicional, tendo em vista que lhe faltaria a necessária legitimidade".302 Portanto, o
princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais está atrelado ao princípio do
contraditório.
Lembra enfaticamente Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias que "unem-se
inseparavelmente o princípio do contraditório e o princípio da fundamentação, como
se fossem irmãos siameses, ambos atuando na dinâmica fática e jurídica do
procedimento, de forma que propicie a geração democrática de uma decisão
jurisdicional participada, em concepção revisitada do processo, adequada ao Estado
Democrático de Direito".303
Qualquer diálise acerca da sentença proferida em sede de mandado de
segurança deve levar em consideração os princípios do contraditório e da
fundamentação das decisões jurisdicionais, ao lado do cumprimento da sentença e
dos meios executivos e coercitivos. Certamente, a decisão jurisdicional
mandamental não fundamentada ou fundamentada sem vinculação com a
argumentação das partes procedimentais será nula e os seus possíveis efeitos
contribuem para a inaceitável existência de direitos fundamentais não
processualizados.
Por esses motivos, o mandado de segurança não é mero instrumento a
serviço da jurisdição encarnada na figura do juiz que enxerga a liquidez e certeza
dos fatos que concede a ordem de segurança e encerra (aniquila, esconde
sorrateiramente) o conflito entre as partes. Tampouco a sentença proferida no
mandado de segurança é caracterizada apenas pela presença do verbo que
expressa ordem ou pelas medidas executivas e coercitivas indicadas.
Pelo estudo feito nesta dissertação, se percebe que a interpretação adotada
por grande parte dos estudiosos do mandado de segurança é cadáver insepulto de
1934 e não passou pelas mudanças teóricas conquistadas pela ciência do direito no

302
LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual
democrático, p. 104-105.
303
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado democrático de direito, p.
177.


interregno de 81 anos. No âmbito da Constituição de 1934, o mandado de


segurança surgiu como procedimento para defesa de direito certo e incontestável de
maneira célere. Nessa hipótese, certeza e incontestabilidade significavam a
existência de fato ou direito provados indubitavelmente pela parte na impetração do
mandado de segurança e essa concepção restou inalterada após a mudança para a
expressão direito líquido e certo.
Ainda hoje, os teóricos do mandado de segurança parecem escrever como se
estivessem no ano de 1934 e desconsideram o fato de que institutos jurídicos da
atualidade, como as tutelas provisórias, dispostas nos artigos 294 a 311 do Código
de Processo Civil de 2015, são suficientes para responder os problemas para os
quais o mandado de segurança foi criado em 1934, pois abarcam a tutela de direitos
em menor intervalo de tempo e têm como requisito a probabilidade do direito na
tutela de urgência e "prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do
autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável" na tutela de
evidência, segundo artigo 311, inciso lV, do Código de Processo Civil de 2015.
Com relação à tutela de urgência, Gregório Assagra de Almeida e Flávia
Vigatti Coelho de Almeida afirmam que "não há estudos voltados para a tutela de
urgência das pessoas em situação de vulnerabilidade, especialmente em relação às
pessoas em situação de rua. No que concerne a estas, pela própria situação de
riscos a que são expostas, a tutela de urgência protetiva deveria imperar em todas
as dimensões dos direitos. Não somente no campo do direito processual, mas
especialmente no plano do direito constitucional e do direito administrativo, impondo-
se a tomadas de decisões para a implementação de políticas públicas que protejam
essas pessoas".304
A coincidência entre a interpretação usual do mandado de segurança e as
tutelas provisórias, dentre as quais está a tutela de urgência, no Código de Processo
Civil de 2015 permite elaborar duas hipóteses. Em primeiro lugar, as situações
abrangidas pelo mandado de segurança para a defesa de direito líquido e certo
entendido como fatos indubitáveis para o juiz são abarcadas pelas tutelas
provisórias, fazendo com que o mandado de segurança perca a sua razão de existir
nos moldes em que é interpretado por grande parte da doutrina.
Em segundo lugar, a persistência de figuras processuais não problematizadas


304
Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, p. 257.


na antecipação de tutela e nas tutelas provisórias segundo o princípio do Estado


Democrático de Direito, tais como prova inequívoca, verossimilhança das alegações,
probabilidade do direito e dúvida razoável contribuem para o protagonismo decisório
do juiz e para o cerceamento na ampla defesa, isonomia e contraditório, pois a
decisão jurisdicional se baseia em elementos estranhos ao processo e impassíveis
de críticas. A repetição de ideologias concernentes ao papel do juiz no Código de
Processo Civil de 2015 revela a ausência de pesquisa científica na seara do direito
processual e a elaboração de artigos de diplomas legislativos inconstitucionais.
Portanto, se rotula de novo, aquilo que já está velho e carcomido pelo tempo e pelas
desigualdades socioeconômicas mortíferas reproduzidas convenientemente no
processo.
Dessa maneira, as hipóteses de 1934 sobre o mandado de segurança,
repetidas com poucas variações até hoje, devem ser superadas e a teoria
neoinstitucionalista do processo oferece estoque teórico suficiente para a formulação
de hipóteses em conformidade com a Constituição de 1988.
Nos moldes da teoria neoinstitucionalista do processo, o mandado de
segurança é instituto jurídico regido pelo procedimento constitucional indicado no
artigo 5º, incisos LXlX e LXX, da Constituição de 1988, na Lei n° 12.016/2009 e nos
artigos 497, caput, 536, 537, 784, inciso Xll, 814 a 823 do Código de Processo Civil
de 2015, se definindo pela conjunção dos princípios institutivos do processo (ampla
defesa, isonomia e contraditório) e pelo princípio da aplicabilidade imediata das
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais expresso no artigo 5º, § 1º,
da Constituição de 1988, podendo ser utilizado por todos devido ao direito de ação,
para assegurar a execução de direitos fundamentais líquidos e certos, não
amparados por habeas corpus ou habeas data, em face da inadimplência do Estado.
Ainda com fundamento na teoria neoinstitucionalista do processo, liquidez e
certeza são atributos dos direitos fundamentais e já foram decididas
processualmente em bases constituintes, estando isentas de posteriores
reconfigurações pelo juiz no exame das condições do procedimento ou da matéria
de mérito; a "prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor,
a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável" é requisito da tutela
de evidência, segundo artigo 311, inciso lV, do Código de Processo Civil de 2015, e
não da concessão do mandado de segurança e a liquidez e certeza podem ser
definidas, respectivamente, como autoexecutividade e infungibilidade.


A ressignificação das noções de liquidez e certeza, aplicabilidade imediata


dos direitos fundamentais, prova, sentença mandamental, título executivo
extrajudicial e execução contra o Estado por meio de medidas sub-rogatórias
possibilitam nova interpretação do instituto jurídico do mandado de segurança e
apontam para a necessidade impostergável de criação de novos procedimentos
constitucionais para a execução de direitos fundamentais.
Dessa maneira, a teoria neoinstitucionalista do processo aplicada ao instituto
jurídico do mandado de segurança está em consonância com o Estado Democrático
de Direito e abrange, ainda que provisoriamente, tema ainda incipiente nas
pesquisas jurídicas, a saber, os procedimentos constitucionais de execução dos
direitos fundamentais. Além disso, compreender o instituto jurídico do mandado de
segurança em espaços processualizados abertos à testificação incessante, permite
que as leis aplicáveis, as decisões jurisdicionais e os argumentos das outras partes
sejam falseáveis, motivo pelo qual as partes procedimentais não serão meros
destinatários no procedimento e criaturas da lei, mas criadores dos significados da
lei.
São hipóteses e na concepção popperiana, toda hipótese está sujeita a
críticas incessantes. Contudo, os erros das hipóteses elaboradas nesta dissertação
não representam desestímulo a continuidade da pesquisa científica no campo da
execução processualizada dos direitos fundamentais líquidos e certos. Os erros são
convites indeclináveis para a continuidade da pesquisa científica que encontre na
realidade fonte inesgotável de inquietações e não barreiras supostamente
intransponíveis, na esperança de criação de teorias cada vez mais resistentes.305
 


305
Segundo Rosemiro Pereira Leal, “o realismo popperiano nada tem a ver com a frase positivista:
‘realmente é assim, fazer o quê?’. Em Popper, a realidade nunca tem essa autoridade, mesmo a
partir de experiências repetidas e bem sucedidas, porque, em sendo teoricamente enunciada,
sujeita-se à interrogação dos seus respectivos conteúdos lógico-informativos como compromisso
de expansão da crítica que é o âmbito de atuação de uma sociedade aberta (democrática no
sentido de Popper)” (Processo como teoria da lei democrática, p. 197-198).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resumo das pesquisas científicas desenvolvidas e das hipóteses


formuladas em torno dos temas relacionados a utilização do mandado de segurança
como procedimento constitucional de execução dos direitos fundamentais líquidos e
certos da população em situação de rua, é possível chegar às considerações finais
que se seguem.

1. A teoria neoinstitucionalista do processo contribui para o esclarecimento e


concretização dos direitos fundamentais em conformidade com a Constituição
de 1988, retirando o âmbito de criação, interpretação, modificação e extinção
das normas jurídicas da esfera exclusiva dos agentes estatais, em prol da
abertura dos significados do ordenamento jurídico para o povo. Esta
conjectura pioneira nas letras jurídicas nacionais e internacionais permite a
problematização da situação de rua pelos próprios sujeitos de direito que a
vivenciam, contribuindo para a correção gradual e planejada de situações
problemáticas e para o ajustamento da realidade ao Estado Democrático de
Direito.

2. A teoria neoinstitucionalista do processo foi fortemente influenciada pelo


racionalismo crítico popperiano, permitindo a testificação de outras teorias
processuais, das decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas, dos
argumentos das outras partes e da própria teoria neoinstitucionalista do
processo.

3. Utilizado no processo constitucional, o critério de demarcação aponta para a


não cientificidade das decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas
quando estas se baseiam em critérios metajurídicos, a saber, na moral,
equidade, ponderação, bons costumes e senso de justiça, pois não há
delimitação das competências do juízo e as decisões jurisdicionais não
podem ser refutadas adequadamente, pois podem abarcar praticamente tudo,
até contra legem, em favor de valores metajurídicos insondáveis que tenham
a pacificação social como objetivo.


4. Para afastar a ideologia e conferir caráter científico às decisões jurisdicionais,


deve ser observado o entrelaçamento dos princípios do juízo constitucional
ou juízo natural, vinculação da jurisdição ao Estado Democrático de Direito,
supremacia da Constituição, reserva legal, devido processo constitucional e
da fundamentação das decisões jurisdicionais que, por sua vez, estão
submetidas ao ordenamento jurídico e ao devido processo constitucional,
delimitando o âmbito de atuação do juízo e permitindo a refutação crítica no
processo constitucional.

5. O contraditório possibilita a crítica e eliminação de erros dos problemas


discutidos, pois é a partir do elemento influência presente no quadrinômio
estrutural do contraditório que as partes procedimentais discutem os
significados do ordenamento jurídico, argumentos da outra parte e as
decisões jurisdicionais.

6. O Estado Democrático de Direito não é promessa, pois os atributos de


liquidez e certeza dos direitos fundamentais dispostos na Constituição de
1988 exigem execução imediata e não a posteriori, e não é realidade, devido
a persistências de práticas autoritárias em desconformidade com a
Constituição de 1988.

7. É possível afirmar ad hoc se as decisões jurisdicionais, legislativas e


administrativas, ato de servidor público, teorias do direito e o próprio
ordenamento jurídico são informados ou não pelo princípio do Estado
Democrático de Direito. O projeto do Estado Democrático de Direito se
consolida por meio da engenharia social gradativa, o que equivale a dizer que
este projeto constitucional não se concretiza repentina e milagrosamente,
mas com a identificação e correção gradual e incessante de erros nas normas
jurídicas, práticas sociais e processos constitucionais legislativo, jurisdicional
e administrativo por meio do contraditório, ampla defesa e isonomia.

8. A lei, entendida como ordenamento jurídico, não tem significado unívoco ou


acessível somente para as mentes privilegiadas. Por isto, a criação,
interpretação, modificação e extinção da lei deve ser feita por linguagem


capaz de propor, modificar e refutar hipóteses. A própria lei, decisão


jurisdicional, administrativa ou legislativa e os argumentos desenvolvidos
pelas partes procedimentais devem ser entendidos como hipóteses refutáveis
e provisórias. Para que os erros sejam superados e as contradições,
sanadas, nenhuma esfera jurídica deve permanecer imune às críticas.

9. Na teoria neoinstitucionalista, o processo não é o espaço de significados já


prontos e impostos coercitivamente pelo juiz às partes, mas o espaço de
construção de significados do ordenamento jurídico ad hoc pelos legitimados
ao processo em hermenêutica isomênica, viabilizando a construção gradual
do Estado Democrático de Direito, desgarrada da ideologia de sociedades e
linguagem pressupostas ou de soluções infalíveis impostas pelo Estado. Em
tal conjectura, o sujeito de direito constrói o seu próprio mundo com a
utilização dos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa e
isonomia.

10. A concepção de cidadania está atrelada à participação do povo nas instâncias


decisórias e ao princípio do Estado Democrático de Direito e não na simples
capacidade eleitoral. Além disto, entender a cidadania como direito
fundamental de autoilustração e de participação ativa nas instâncias
decisórias permite romper a hipótese do Estado caridoso que somente por
bondade concretiza direitos fundamentais.

11. A judicialização dos direitos fundamentais não contribui para a sua


concretização, mas para enfraquecer a participação das partes
procedimentais e reforçar o protagonismo do juiz, cujas decisões poderão
conter elevada dose de discricionariedade e de valores metajurídicos
supostamente identificados com os valores da sociedade pressuposta,
homologatória e beneficiada pela realidade violenta e desigual. A
concretização dos direitos fundamentais deve ser processualizada em
correlação com o contraditório, isonomia e ampla defesa, que evitarão o
protagonismo decisório do juiz e submeterão os órgãos estatais competentes
pelo exercício da função jurisdicional ao princípio do Estado Democrático de
Direito, pois não é possível afirmar que o erroneamente denominado poder


judiciário não se submete aos princípios da Constituição, podendo negar a


participação ostensiva das partes na elaboração das decisões jurisdicionais.

12. O termo situação na terminologia pessoa em situação de rua, não significa


que aquele estado é transitório, mas que a localidade da rua é utilizada como
espaço de moradia, sociabilidade, convivência e trabalho, de forma
passageira ou não. O cerne da questão está em não concluir que a situação
de rua implique na ausência de formas de vida, pois as pessoas em situação
de rua são excluídas de condições socioeconômicas elevadas e do acesso
aos recursos financeiros e não da vida. Detrás da imagem estigmatizada do
mendigo doente, louco, perigoso e sujo, há um sujeito de direito com uma
história de vida, ideias, paixões, necessidades, desejos e peculiaridades que
não impedem a elaboração de decisões jurisdicionais, legislativas e
administrativas pelas pessoas em situação de rua. Por isto, a inclusão da
população em situação de rua deve ser abordada como autoinclusão pelo
processo na fruição de direitos fundamentais e na participação ostensiva da
elaboração de decisões jurisdicionais, legislativas e administrativas e não
uma inclusão por terceiros bondosos.

13. A população em situação de rua é excluída dos padrões socioeconômicos


elevados e dos recursos financeiros. Contudo, a desigualdade
socioeconômica não implica em desigualdade de direitos fundamentais,
extensíveis a todos independentemente da condição financeira ou de
aspectos pessoais. Além disto, a exclusão socioeconômica da população em
situação de rua, assim como de grande parte do povo, não é uma exceção ou
dano colateral, mas, antes, a normalidade e característica fundamental do
sistema econômico brasileiro que relega parte considerável do povo à
pobreza financeira e péssimas condições de vida que propiciam, de outro
lado, altos padrões de vida para parcelas diminutas do povo.

14. A pessoa em situação de rua é homo sacer quando o âmbito de fruição


jurídico-econômica lhe é vedado. Em que pese esta aproximação, há
diferenças entre a pessoa em situação de rua e o homo sacer estudado por
Agamben, por dois motivos, quais sejam: 1º.)- A multiplicidade de formas de


vida presentes na situação de rua desautoriza a completa aproximação das


pessoas em situação de rua da vida nua, exclusivamente biológica e sem
direitos fundamentais; 2º.)- O homo sacer é incluído para ser morto e a
pessoa em situação de rua é excluída da fruição jurídico-econômica para ser
morta.

15. A matabilidade impunível da pessoa em situação de rua ocorre na forma


do agente estatal que monopoliza a elaboração de decisões jurisdicionais,
legislativas e administrativas, vedando a participação do sujeito de direito em
situação de rua e contribuindo para a não execução dos direitos fundamentais
e consequente exposição das pessoas em situação de rua à morte e na forma
do homicídio não esclarecido e sem punição de pessoas em situação de rua.

16. A morte das pessoas em situação de rua no âmbito dos direitos


fundamentais ocorre com a transformação do juiz em soberano e do processo
em campo, ou seja, no espaço de aplicação da lei pela sua suspensão, pois a
construção dos significados da lei é feita solitariamente pelo juiz. Desta
maneira, a parte litigante se submete incondicionalmente ao juiz e se torna
homo sacer, eis que sua morte se opera no plano dos direitos fundamentais,
sepultados pela equiparação entre processo e julgamento e pela onipotência
do juiz. A suspensão dos direitos fundamentais pela sua não execução, sob
argumentos metajurídicos da reserva do possível, fatal lacuna normativa ou
qualquer outro que não se ofereça à crítica no processo constitucional e que
contribua para o protagonismo decisório do juiz, constitui forma requintada e
sofisticada de violação da Constituição sob a aparência da legalidade, pois a
Constituição de 1988 é suspensa, mas permanece em vigência.

17. A graduação da eficácia das normas constitucionais relativas à direitos e


garantias fundamentais, entre a normatividade mínima obrigatória e um
máximo possível - mas oportunamente postergado - gera o subjetivismo
decisional incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois caberia ao
agente público a decisão acerca da fruição ou não de determinado direito
fundamental de acordo com as possibilidades do Estado e ao juiz a definição
sobre o que é a normatividade mínima. Neste sentido, se compactua com a


anomalia do direito fundamental imediata, mas minimamente aplicável.

18. O artigo 5º, §1º, permite concluir que a Constituição de 1988 é título executivo
extrajudicial, pois a força executiva a qual se refere o artigo 784, inciso Xll, do
Código de Processo Civil de 2015 é atribuída pela própria Constituição ao
dispor sobre a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais. Por conseguinte, a execução de direitos
fundamentais será feita com base nos artigos 497, caput, 536, 537, 814 a 823
do Código de Processo Civil de 2015. Para possibilitar a operacionalização
dos direitos fundamentais, o princípio da aplicabilidade imediata disposto no
artigo 5º, §1º, da Constituição de 1988, deve ser interpretado em conjunto
com as normas do mandado de segurança.

19. O artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988 acolhe princípio que estabelece
diretrizes gerais indutoras do direito e não mero dispositivo que deixa a cargo
do agente estatal definir solitariamente qual é a dimensão dessa
aplicabilidade imediata. O princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e
garantias fundamentais define o instituto do mandado de segurança ao lado
dos princípios institutivos do processo (ampla defesa, isonomia e
contraditório) e é balizador do direito líquido (autoexecutável).

20. A teoria neoinstitucionalista do processo possibilita nova leitura do mandado


de segurança e da eficácia das normas constitucionais relativas aos direitos
fundamentais, criando uma conjectura na qual os sujeitos de direito em
situação de rua utilizam o procedimento do mandado de segurança para a
execução processualizada de direitos fundamentais líquidos e certos já
acertados no plano constituinte originário.

21. Os direitos fundamentais são líquidos, devido ao disposto no artigo 5º, § 1º,
mas não são certos (infungíveis), necessariamente, a exemplo do artigo 5º,
incisos V e X e do artigo 7º, inciso l, da Constituição de 1988. A liquidez e
certeza do direito não são condições da ação ou matérias de mérito, mas
pressupostos, uma vez que são balizados pelo princípio da aplicabilidade
imediata contido no artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988 e não permitem


flexibilizações incompatíveis com a aplicação imediata dos direitos e garantias


fundamentais.

22. A liquidez e certeza dos direitos requerem executividade imediata sendo,


portanto, anteriores a própria instauração do procedimento do mandado de
segurança e livres da criação pelo juiz solipsista in limine litis por meio do seu
convencimento produzido pelo instrumento de prova. O procedimento do
mandado de segurança é executivo, não cabendo indagações sobre a
liquidez e certeza de direito já acertado no plano constituinte originário, motivo
pelo qual a liquidez e certeza do direito não são matérias de mérito.

23. Não há fundamento legal para o estrangulamento da produção de provas em


único momento procedimental. Esta restrição decorre de construção
doutrinária ultrapassada e deficitária que enxerga no caráter sumário do
procedimento do mandado de segurança, motivo para que a prova seja pré-
constituída, sem explicar que o instituto da prova, no Estado Democrático de
Direito, não encontra guarida em momentos e espaços alheios à
procedimentalidade jurídica. Assim, a noção equivocada de prova pré-
constituída confunde elemento com instrumento de prova e faz crer que a
liquidez e certeza podem ser comprovadas apenas por meio de documentos e
no momento de impetração do mandado de segurança.

24. A prova não se destina a manifestar a liquidez e certeza do direito, sequer se


exprime unicamente sob a forma documental. A prova é muito mais e, como
instituto jurídico, pode demonstrar formalmente a ação ou omissão do Estado
na concretização dos direitos fundamentais já acertados no plano constituinte
originário.

25. A única fase da procedimentalização da prova que é reservada


exclusivamente ao juízo é a admissão que pode ser objeto de recurso,
enquanto a proposição e a produção são exercidas somente pelas partes e a
valoração é feita tanto pelas partes quanto pelo juízo. As provas no mandado
de segurança não se destinam ao juiz, mas ao processo, e não se resumem à
juntada de documentos na petição inicial, mas na produção de provas no


espaço procedimental e durante o tempo e por todas as formas estabelecidas


em lei.

26. Sentença proferida em sede de mandado de segurança é espécie de


sentença declaradora-executiva, pois, observados os princípios da
fundamentação das decisões jurisdicionais e do contraditório, contém ordem
para a execução de direitos fundamentais líquidos e certos por meio de
medidas sub-rogatórias e coercitivas, sem a necessidade de novo ou
reiterado pedido do impetrante ou de procedimento subsequente.

27. A execução no mandado de segurança não autoriza o juízo a substituir o


agente público na elaboração de planos para a destinação dos recursos
públicos, mas significa que o espaço processual oportunizado pelo mandado
de segurança assegura a construção de decisões jurisdicionais, legislativas e
administrativas pelo povo, pois a não concretização de direitos fundamentais
do impetrante pelo Estado (autoridade coatora) tem, como uma de suas
origens, a escolha de prioridades na aplicação de recursos públicos e na
definição de políticas públicas. Desta maneira, o procedimento constitucional
do mandado de segurança é necessário para a execução de direitos
fundamentais líquidos e certos, pois submete as partes procedimentais e o
juízo à ampla defesa, contraditório e isonomia.

28. O mandado de segurança é instituto jurídico regido pelo procedimento


constitucional indicado no artigo 5º, incisos LXlX e LXX, da Constituição de
1988, na Lei n° 12.016/2009 e nos artigos 497, caput, 536, 537, 784, inciso
Xll, 814 a 823 do Código de Processo Civil de 2015, se definindo pela
conjunção dos princípios institutivos do processo (ampla defesa, isonomia e
contraditório) e pelo princípio da aplicabilidade imediata das normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais expresso no artigo 5º, § 1º,
da Constituição de 1988, podendo ser utilizado por todos devido ao direito de
ação, para assegurar a execução de direitos fundamentais líquidos e certos,
não amparados por habeas corpus ou habeas data, em face da inadimplência
do Estado.


29. A ressignificação das noções de liquidez e certeza, aplicabilidade imediata


dos direitos fundamentais, prova, sentença proferida em sede do mandado de
segurança, título executivo extrajudicial e execução contra o Estado por meio
de medidas sub-rogatórias possibilitam nova interpretação do instituto jurídico
do mandado de segurança e apontam para a necessidade impostergável de
criação de novos modelos procedimentais e constitucionais para a execução
de direitos fundamentais.



 


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