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V ENCONTRO VIRTUAL DO CONPEDI

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS

SAMYRA HAYDÊE DAL FARRA NASPOLINI

VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA

ANA PAULA MARTINS AMARAL


Copyright © 2022 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
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D597
Direito internacional dos direitos humanos [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI
Coordenadores: Ana Paula Martins Amaral; Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; Vladmir Oliveira da Silveira –
Florianópolis: CONPEDI, 2022.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-5648-487-7
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: Inovação, Direito e Sustentabilidade
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Encontros Nacionais. 2. Direito internacional. 3. Direitos humanos. V
Encontro Virtual do CONPEDI (1: 2022 : Florianópolis, Brasil).
CDU: 34

Conselho Nacional de Pesquisa


e Pós-Graduação em Direito Florianópolis
Santa Catarina – Brasil
www.conpedi.org.br
V ENCONTRO VIRTUAL DO CONPEDI
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Apresentação

Artigos neste Grupo de Trabalho

OS REFUGIADOS NA ATUALIDADE: DIREITO HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E


INSEGURANÇA

CAMPOS DE REFUGIADOS E SANEAMENTO BÁSICO: ANÁLISE DOS DESAFIOS E


PERSPECTIVAS DIANTE DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL À LUZ DOS DIREITOS
HUMANOS

A FALTA DE PROTEÇÃO JURÍDICA ESPECÍFICA AOS REFUGIADOS AMBIENTAIS


NO ÂMBITO INTERNACIONAL E A CONSEQUENTE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A GOVERNANÇA MIGRATÓRIA E O DIÁLOGO DE FONTES NORMATIVAS NA


PROMOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DE TRABALHADORES MIGRANTES

DIÁLOGOS TRANSATLÂNTICOS ENTRE OS SISTEMAS AFRICANO,


INTERAMERICANO E BRASILEIRO PARA OS DIREITOS DAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA

O MEDO DAS MINORIAS E A DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

DIREITOS DE PERSONALIDADE: O USO DA LÍNGUA DE SINAIS COMO PRIMEIRA


LÍNGUA NA EDUCAÇÃO DE SURDOS NO BRASIL APÓS DECLARAÇÃO DE
SALAMANCA DE 1994

CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS DOS IDOSOS EM PERSPECTIVA: ENTRE DISCURSOS
HOMOGENEIZADORES E O RECONHECIMENTO DA ALTERIDADE

A DEMOCRACIA E AS VIOLAÇÕES MAIS GRAVES AOS DIREITOS HUMANOS: A


SIMETRIA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PERMANENTE E
COMPLEMENTAR ANTE AO ESTATUTO DE ROMA
DEVIDO PROCESSO PENAL CONVENCIONAL: ADOÇÃO DOS PARÂMETROS
INTERPRETATIVOS INTERAMERICANOS NO BRASIL

ENCARCERAMENTO FEMININO SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS:


SISTEMA DE JUSTIÇA E NORMAS INTERNACIONAIS.

CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA O RACISMO E A EQUIPARAÇÃO


REALIZADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM RELAÇÃO À
IMPRESCRITIBILIDADE DO CRIME DE INJÚRIA RACIAL

A AVALIAÇÃO DO PRECEDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO COM


RELAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DE INCLUSÃO E ACESSIBILIDADE DO
AMBIENTE DO TRABALHO

TRABALHO DECENTE: DE FILADELFIA À DECLARAÇÃO TRIPARTITE- UM


COMPROMISSO COM O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

DIREITOS HUMANOS E EXCLUSÕES ABISSAIS: O CASO DOS EMPREGADOS DA


FÁBRICA DE FOGOS DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES VS.
BRASIL

O SER HUMANO SUSTENTÁVEL: SUSTENTABILIDADE E AS GARANTIAS


FUNDAMENTAIS

UMA PERSPECTIVA DE DIREITOS HUMANOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL: A NECESSIDADE DE UMA ABORDAGEM DE DIREITOS
HUMANOS PARA A AGENDA 2030

UNIVERSALIDADE E MULTICULTURALISMO EM DIREITOS HUMANOS:


ALTERNATIVAS PARA ENFRENTAR OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI NA
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

OS DESAFIOS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E OS


ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO EM CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES:
O CASO BARBOSA DE SOUZA
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – CAMINHO PARA A
RECONSTRUÇÃO DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA MORAL

O CONTEÚDO JURÍDICO DAS LIBERDADES RELIGIOSAS E SEU


RECONHECIMENTO INTERNACIONAL: UM PANORAMA JUNTO AO SISTEMA
CONVENCIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES
UNIDAS

MINUSTAH: ABUSOS E FALTA DE TRANSPARÊNCIA NAS PUNIÇÕES

CONCEPÇÃO POLÍTICA DE TERRITÓRIO E A BUSCA DE COOPERAÇÃO NA


PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A GARANTIA DO SIGILO FISCAL E O COMPARTILHAMENTO DE INFORMAÇÕES


FISCAIS ENTRE PAÍSE
DIREITOS HUMANOS E EXCLUSÕES ABISSAIS: O CASO DOS EMPREGADOS
DA FÁBRICA DE FOGOS DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES
VS. BRASIL
HUMAN RIGHTS AND ABISSAAL EXCLUSIONS: CASE OF THE WORKERS OF
THE FIREWORKS FACTORY OF SANTO ANTÔNIO DE JESUS AND THEIR
FAMILY MEMBERS VS. BRAZIL

Gabriel Pedro Moreira Damasceno


Lara Santos Zangerolame Taroco
Janriê Rodrigues Reck

Resumo
Em 2020, a Corte Interamericana de Direitos condenou o Brasil no caso da Fábrica de Fogos
de Santo Antônio de Jesus. A partir desse caso, este estudo analisa as obrigações
estabelecidas pela Corte ao Estado brasileiro, tendo como problema de pesquisa: qual a
relação entre as exclusões abissais e não abissais e as condenações estabelecidas pela Corte?
Esta pesquisa é orientada pelo referencial teórico descolonial e pelas contribuições de
Boaventura de Souza Santos. A investigação se sustenta na metodologia do estudo de caso,
valendo-se da revisão bibliográfica e da análise documental como técnicas de pesquisa.

Palavras-chave: Corte interamericana de direitos humanos, Fábrica de fogos, Direito


humanos, Exclusões abissais, Colonialidade

Abstract/Resumen/Résumé
In 2020, the Inter-American Court of Rights condemned Brazil in the case of the Fábrica de
Fogos de Santo Antônio de Jesus. Based on this case, this study analyzes the obligations
established by the Court to the Brazilian State, having as a research problem: what is the
relationship between the abyssal and non-abyssal exclusions and the convictions established
by the Court? This research is guided by the decolonial theoretical framework and by the
contributions of Boaventura de Souza Santos. The investigation is based on the case study
methodology, using the literature review and document analysis as research techniques.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Inter-american court of human rights, Santo antônio


de jesus fire factory, Human rights, Abyssal exclusions, Coloniality

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1 INTRODUÇÃO

Em 15 de julho de 2020 a Corte Interamericana de Direitos condenou o Estado brasileiro


no caso da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus (BA). O empreendimento armazenava
materiais para produção de fogos de artifício de forma ilegal e em 1998 uma explosão causou
a morte de 60 pessoas e danos a outras seis, entre todas as vítimas, 22 eram crianças e
adolescentes entre 11 e 17 anos. A localidade é conhecida pela produção ilegal de fogos de
artifício, sendo que a mão-de-obra empregada nessa atividade é predominantemente negra e
conta com remunerações baixas.
Após a explosão de 1998 não houve indenização ou qualquer outra forma de reparação
às vítimas e aos familiares. Em que pese a existência e utilização de diversos mecanismos
jurídicos internos para responsabilização e consequente indenização e assistência aos afetados,
até a submissão do caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 19 de
setembro de 2018, não houve condenação dos responsáveis no âmbito interno, seja para o
pagamento de indenização, outras formas de reparação ou responsabilização penal.
Frente a essas circunstâncias, a Corte reconheceu a violação por parte do Estado
brasileiro dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, constantes dos artigos 8 e 25,
em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Sendo o Estado
também responsável pela violação dos direitos à vida (art. 4.1), violação dos direitos à
integridade pessoal (art.5.1), direitos da criança (art. 19), à igual proteção da lei e à proibição
de discriminação (art. 24) e ao trabalho (art. 26), em relação ao artigo 1.1, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos.
A condenação decorrente das violações mencionadas é composta por medidas
indenizatórias, iniciativa legislativa, obrigatoriedade de conclusão de processos judiciais,
monitoramento, inspeção e apresentação de relatórios e execução de políticas públicas para
atender aos trabalhadores da região. Esta pesquisa parte da metodologia do estudo de caso,
orientada pelo referencial teórico descolonial e pelas contribuições de Boaventura de Souza
Santos para investigar: como essas obrigações estabelecidas pela Corte ao Estado brasileiro
podem se compreendidas a partir da distinção entre exclusões abissais e não abissais e quais as
repercussões disso, considerando às peculiaridades das violações ocorridas, o contexto
socioeconômico das vítimas e a necessidade de evitar sua perpetuação e recorrência?
Para tanto, a primeira parte deste trabalho apresenta as principais categorias que
orientam a base teórica deste estudo, identificando a formação e manutenção da linha abissal
para apontar como ela produz diferentes formas de exclusão, que carecem de compreensão e
respostas distintas, em especial dada a lógica da colonialidade em que opera. Posteriormente, a
segunda parte analisa os elementos do caso, a partir da sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no Caso empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares vs. Brasil, para identificar as repercussões práticas da diferenciação entre as
exclusões não abissais e abissais.
O método de procedimento adotado na primeira parte é o bibliográfico, selecionado de
maneira qualitativa; na segunda parte a pesquisa será bibliográfica e documental. O referido
caso foi selecionado por duas razões principais: a primeira é a atualidade da decisão, datada de
outubro de 2020; a segunda corresponde à constatação de discriminação estrutural e
intersecional das vítimas envolvidas no caso, o que permite explorar as categorias da
colonialidade e das exclusões abissais, a fim de considerá-las para analisar os termos da
condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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2 EPISTEMOLOGIAS DO SUL E A LINHA ABISSAL: A LÓGICA DA
COLONIALIDADE

Identificar o contexto sócio-político na contemporaneidade é tarefa árdua, uma vez que


este irá depender da posição dos indivíduos no sistema mundial: a vida de uma pessoa nos
Estados Unidos ou na Europa é diferente da vida de quem vive na África, na América do Sul
ou na Ásia. São realidades diferentes e perspectivas diferentes. Santos (2011) acrescenta que
também existem diferenças entre as posições políticas dos indivíduos, pois alguns podem estar
mais próximos das classes e grupos dominantes e outros, ao contrário, dos grupos e classes dos
oprimidos. De tal modo, o diagnóstico do contexto sócio-político dependerá tanto da posição
política do indivíduo quanto da região do mundo em que se vive.
Considerando isso, em todo o mundo intensas violações de Direitos Humanos são
fundadas na hierarquização social, seja ela geográfica ou política. Isso sinaliza que estas
violações podem ocorrer em qualquer parte do globo, seja no Norte Global em razão de cor,
sexo, orientação sexual, classe social; ou no Sul Global, pelas mesmas razões, mas também por
exploração promovida pelas potências imperialistas, sendo que no Sul Global também há
espaço para hierarquizações internas.
Diante desta realidade, Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2019) destaca que as
ideologias modernas de contestação política foram cooptadas pelo neoliberalismo produzindo
respostas como a social-democracia, o keynesianismo e o estado de bem-estar, que são formas
de tentar oferecer uma solução dentro do próprio capitalismo. Identificando-as como soluções
ineficientes, Santos propõe a elevação das epistemologias do Sul com o objetivo de permitir
que os grupos sociais oprimidos apresentem uma visão do mundo através da sua própria ótica
e nos seus próprios termos, uma vez que apenas assim serão capazes de transformá-lo de acordo
com suas aspirações (SANTOS, 2019).
As epistemologias do Sul são capazes de o oferecer um diagnóstico crítico sobre essa
realidade, tendo como elemento constitutivo a possibilidade de reconstruir, formular e legitimar
alternativas para uma sociedade mais justa e livre, ocupando o conceito de epistemologia para
o ressignificarem enquanto instrumento de interrupção das políticas dominantes e dos
conhecimentos que a sustentam (SANTOS, 2011, 2019).
A partir da ótica de Santos (2011) as epistemologias do Sul são a reivindicação de novos
processos de produção, de valorização de saberes válidos, sejam eles científicos ou não
científicos. Também de novas relações entre diferentes saberes, por meio de práticas das classes
e grupos sociais que sofrem sistematicamente a destruição, opressão e discriminação
provocadas pelo capitalismo, colonialismo e todas as naturalizações da desigualdade em que se
desdobraram.
Aqui, a utilização do plural ressalta que não se trata de apenas uma epistemologia, mas
de um conjunto de epistemologias, que parte “de um Sul que não é geográfico, mas metafórico:
o Sul anti-imperial” (SANTOS, 2011, p.16). É metafórico na medida em que trata do Sul que
há no Norte, e também do Norte que há no Sul, considerando as dinâmicas de exclusão e
desigualdades da própria Europa e também o domínio das elites locais no Sul global. O ponto
de partida das epistemologias do Sul é o reconhecimento de que desde a conquista e o início do
colonialismo moderno, a injustiça cognitiva funda todas as outras formas de injustiça que
reconhecemos na modernidade, sejam elas socioeconômicas, sexuais ou raciais, históricas,
injustiças geracionais. Assim elucida Santos (2011, p. 16 tradução nossa):
(...) Não há injustiça pior do que essa, porque é a injustiça entre saberes. É a ideia de
que existe apenas um conhecimento válido, produzido como conhecimento perfeito
em grande parte no Norte global, que chamamos de ciência moderna. Não é que a
ciência moderna esteja, em princípio, errada. O que está errado, ou criticado pelas
Epistemologias do Sul, é essa reivindicação de exclusividade rigorosa. Do nosso

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ponto de vista, este contexto tem em sua base um problema epistemológico, de
conhecimento, por isso é necessário partir das Epistemologias do Sul (...)

O pensamento de Santos (2011) parte então de três premissas: 1) que a compreensão do


mundo é muito mais ampla do que a compreensão europeia do mundo; 2) que a diversidade do
mundo é infinita; e 3) que a grande diversidade do mundo, que pode e deve ser ativada, bem
como transformada teórica e praticamente de muitas maneiras plurais, não pode ser
monopolizada por uma teoria geral.
Quanto a primeira premissa, significa dizer que a compreensão do mundo é muito mais
ampla do que a compreensão ocidental do mundo, razão pela qual a transformação do mundo
também pode ocorrer de maneiras e métodos impensáveis para o Ocidente ou para as formas
eurocêntricas de transformação social; a segunda premissa nos alude a entender que há
diferentes formas de se pensar, de se sentir, de se relacionar com outros humanos ou com a
natureza, porém, essa pluralidade é invisibilizada pelo pensamento hegemônico, o que leva a
terceira premissa; a inexistência de uma teoria geral que possa cobrir adequadamente todas
essas infinitas diversidades do mundo permite buscar formas plurais de conhecimento
(SANTOS, 2011).
Importante ressaltar que não se trata de uma busca pela inversão, ou seja, de uma nova
hierarquização onde se pretende estabelecer novas hierarquias, onde o pensamento do Norte
seria colocado como inferior e subalterno aos pensamentos do Sul, mas sim de uma transversão,
ou seja, do reconhecimento da pluralidade que permita um diálogo intercultural, sem dominação
e sem hierarquias. Apesar disso, as epistemologias do Sul não são compatíveis com a existência
do pensamento moderno hegemônico liberal, pois este tem a sua base e fundamentação no
colonialismo gerador dessa hierarquização social.
O capitalismo necessita da manutenção das hierarquias para existir, bem como continua
as gerando e as mantendo na contemporaneidade. O liberalismo, conforme apontado por
Culleton e Bragato (2015) se trata de uma teoria que desconsidera fatores determinantes da
pobreza e das desigualdades sociais – desde inaptidões físicas, etnia, nacionalidade –,
consubstanciando-se em uma teoria da Justiça para proprietários. Wallerstein (2002), nesse
sentido, demonstra que o processo de acumulação de capital inerente ao liberalismo não permite
que se rompa com a exploração econômica do Sul combinada com o racismo contra o Sul.
No cerne do pensamento hegemônico existe a ideia de humanidade como totalidade
construída no projeto de direitos humanos universais, herdada do humanismo renascentista
(BARRETO, 2013). Certas premissas são assumidas de modo incontestável para justificar os
direitos humanos como “um desdobramento natural do pensamento liberal e das lutas políticas
europeias da Modernidade, cujo liberalismo clássico e suas ideias de liberdade individual e
igualdade formal são consideradas o núcleo duro destes direitos” (BRAGATO, 2014, p.204).
Nessa acepção, os direitos humanos são entendidos como “um projeto moral, jurídico e político
criado na Modernidade Ocidental e que, depois de ter sido suficientemente desenvolvido e
amadurecido, foi exportado ou transplantado para o resto do mundo” (BRAGATO, 2014,
p.205).
Dadas essas origens e sua posterior dinâmica de exportação, os direitos humanos pouco
se relacionam e se fundamentam na história e na racionalidade dos povos que não habitam o
ocidente. Ao tratar da fundamentação teórica do discurso dominantes dos direitos humanos,
Fernanda Bragato (2014, p.206) destaca tanto suas origens histórico-geográficas, quanto seu
fundamento antropológico-filosóficos, chaves essenciais para compreender as características
de uma teoria dominante dos direitos humanos. Do ponto de vista histórico-geográfico, a
identificação das origens dos direitos humanos se dá em relação as lutas inglesas, francesas e
norte-americanas, as quais se inserem no contexto dos séculos XVII e XVIII.
No que concerne ao fundamento antropológico-filosófico, também há predominância de
um discurso dominantes, pautado pelo “sistema mental da modernidade e, portanto, relaciona-

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se intimamente com o percurso histórico dos direitos naturais do homem” (BRAGATO, 2014,
p.206). Há aqui uma abordagem pautada por uma essência universal do homem, enquanto
atributo compartilhado, que o difere dos demais seres e igualmente permite fundamentar sua
superioridade, sendo a racionalidade o elemento identificador, capaz de transformar, fazer
conhecer e sentir (BRAGATO, 2014).
A lógica da colonialidade opera entrelaçando e criando uma situação de
interdependência entre o status pleno de ser humano e a proteção integral dos direitos humanos,
como trata Bragato (2016). Isso se dá justamente em virtude da manutenção desse discurso
racional-individualista, que opera com base na colonialidade, identificando, classificando e
definindo, de forma seletiva, os sujeitos então percebidos como integralmente humanos. Dessa
lógica parte um processo de não garantia de direitos a todos, que se dá por meio da
discriminação em nome de um padrão de humanidade constituído pelo discurso (BRAGATO,
2016), cujas bases excludentes remetem a colonialidade.
O colonialismo se apresenta como processo de poder exercido nas relações de
dominação colonial, ao passo que a colonialidade é uma característica proveniente deste
processo (QUIJANO, 2008), que remanesce de diferentes formas como no neocolonialismo
global ou colonialismos internos. A matriz colonial de poder, objeto das análises críticas do
pensamento descolonial, sustenta-se pela “codificação das diferenças entre conquistadores e
conquistados na ideia de raça” (QUIJANO, 2005, p.227), compreendida como uma estrutura
biológica reputada como diferente, permitindo que alguns sejam naturalmente inferiores que
outros dadas essas circunstâncias biológicas; e também pela “constituição de uma nova
estrutura de controle do trabalho e dos seus recursos, da escravidão, da servidão, da pequena
produção mercantil independente, em conjunto e sobre a base do capital e do mercado mundial”
(QUIJANO, 2005, p.227).
Há, portanto, uma estreita conexão entre identidade e diferença e as relações de poder,
sobretudo, o “poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das
relações mais amplas de poder” (SILVA, 2012, p. 68). Com isso, considerando a própria
construção do discurso colonial no contexto dessas assimetrias de poder, esse processo não
pode ser compreendido como natural, decorrente do desenvolvimento das sociedades. O
pensamento abissal é produzido discursivamente, operando por meio da lógica da colonialidade
para classificar e hierarquizar saberes e também pessoas. Assim, Santos (2009, p. 23) afirma:
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de
distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As
distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a
realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o
universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece
enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente.
Inexistência significa (...).

A epistemologia política pensada a partir das epistemologias do Sul é uma crítica a


caracterização da razão moderna como um pensamento abissal, aquele que opera estabelecendo
e radicalizando distinções entre conhecimento elaborado no Norte e no Sul (BARRETO, 2014).
Para Santos (2009), habitar a zona da inexistência é o mesmo que não existir sob qualquer forma
de ser relevante ou compreensível. Isso porque, tudo que é produzido como inexistente é
excluído de forma radical, uma vez que permanece exterior ao universo que a própria concepção
aceite de inclusão considera como sendo o Outro.
O pensamento abissal é caracterizado fundamentalmente pela impossibilidade de co-
presença dos dois lados da linha: “(...) este lado da linha só prevalece na medida em que esgota
o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência
não dialética (...)” (SANTOS, 2009, p. 23-24). Assim, a existência dessa linha abissal marca a

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divisão radical entre as formas de sociabilidade metropolitana e formas de sociabilidade
colonial (SANTOS, 2019).
Essa divisão é responsável pela divisão do mundo em dois: o metropolitano e o colonial.
O primeiro corresponde ao “nós”, aos integralmente humanos. Admite-se aqui a existência de
tensões e exclusões, todavia, ainda existe o pertencimento ao “nós”, a sua equivalência e
reciprocidade básicas. Santos (2019) afirma que as exclusões geradas no mundo metropolitano
são exclusão não abissais. Deste lado da linha, as lutas contra as exclusões são realizadas por
meio da emancipação social: busca-se a substituição da atual regulação social com escopo de
substituí-la por outra regulação social menos excludente.
O segundo corresponde ao “eles”, o mundo colonial é habitado pelos não inteiramente
humanos, razão pela qual é inimaginável se pensar em qualquer existência de equivalência ou
reciprocidade: estão do outro lado da linha abissal. Deste lado da linha as exclusões são abissais
e a sua gestão ocorre por meio da dinâmica de apropriação e da violência: são mantidos por
meio do Estado colonial e neocolonial, racismo, apartheid, trabalho forçado e trabalho escravo,
tortura, guerra, acumulação primitiva de capital, campos de internamento para refugiados,
violência doméstica, etc.
Aqui, a luta contra a apropriação e a violência é pela sua completa libertação da
regulação social colonial. Nesse sentido Santos (2019, p. 44) afirma: “(...) ao contrário da luta
pela emancipação social, no lado metropolitano da linha abissal, a luta pela libertação não visa
a uma forma melhor e mais inclusiva de regulação colonial. Visa sim a sua eliminação (...)”.
Apesar de as epistemologias do Sul priorizarem às exclusões abissais, esclarece-se que as
exclusões não abissais e as lutas contra ela são igualmente importantes, uma vez que esses
mundos coexistem simultaneamente, ainda que radicalmente diferentes. Aliás, como aponta
Santos (2019, p. 45), alguns grupos sociais podem experenciar a linha abissal ao cruzarem os
dois mundos na sua vida cotidiana:
(...) numa sociedade predominantemente branca e com preconceito racial, um jovem
negro que estuda numa escola secundária vive no mudo da sociabilidade
metropolitana. Pode considerar-se excluído, quer porque os colegas por vezes o
evitam ou porque o plano de estudo contém matérias que são insultuosas para a cultura
ou a história dos povos afrodescendentes. No entanto, tais exclusões não são abissais,
pois ele faz parte da mesma comunidade estudantil e, pelo menos em teoria, tem ao
seu dispor mecanismos para argumentar contra tais discriminações. Entretanto,
quando este jovem, de regresso à casa, é interceptado pela polícia visivelmente apenas
porque é negro (ethnic profiling) e é violentamente espancado, está cruzando, nesse
momento, a linha abissal e passando do mundo da sociabilidade metropolitana para o
mundo da sociabilidade colonial. A partir daí a exclusão é abissal e qualquer
invocação de direitos não é mais que uma cruel fachada.

Como apontado por Santos (2019), a exclusão abissal sofrida reside na ideia de não se
aceitar a vítima como pertencente do “nós”, por não atender ao padrão de humanidade
discursivamente constituído, não podendo, portanto, possuir o mesmo tratamento do
inteiramente humano, o “nós”. O referido exemplo trazido pelo autor ilustra três pontos
importantes: o primeiro é a vivacidade pela qual se identifica a possibilidade de existência de
exclusões abissais e não abissais no cotidiano de um mesmo local geográfico; o segundo é que,
através desse exemplo, é possível verificar que ambas as lutas – seja a luta por emancipação ou
por libertação – são igualmente relevantes e precisam ser solucionadas e; por fim, o terceiro é
a necessidade de respostas distintas por se tratarem de modelos de exclusão distintos.
A luta por libertação exige a necessidade de uma re-existência. No entanto, enquanto o
capitalismo, colonialismo e patriarcado vigorarem, “(...) grandes grupos sociais viverão, de
forma sistemática, embora de modos diversos conformes as diferentes sociedades e contextos,
esse fatal atravessar da linha abissal (...)” (SANTOS, 2019, p. 46). Reconhecer a existência da

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linha abissal é reconhecer que os diferentes tipos de exclusão não podem ser estabelecidos como
exclusões de um mesmo tipo. Assim, o próximo tópico, por meio da análise do caso da Fábrica
de Fogos, pretende apontar as repercussões práticas da não diferenciação entre as exclusões não
abissais e abissais, que opera a partir da lógica da colonialidade.

3 O CASO DA FÁBRICA DE FOGOS

3. 1 RESUMO DO CASO

O presente caso trata da explosão de uma fábrica de fogos de artifício em Santo Antônio
de Jesus, ocorrida em 11 de dezembro de 1998, em que 60 pessoas morreram e seis
sobreviveram, entre elas 22 crianças (CORIDH, 2020). O município de Santo Antônio de Jesus
se encontra na região do Recôncavo Baiano, localizando-se a 187 km de Salvador, capital do
Estado da Bahia. Referida região possui uma significativa presença histórica de pessoas
afrodescendentes, principalmente em razão do recebimento de pessoas escravizadas a partir do
século XVI (CORIDH, 2020).
Ainda depois da conquista da liberdade, a população afrodescendente enfrentou a
negação de diversos direitos por parte do Estado, possuindo restrições ao exercício da cidadania
e dificuldades para o pleno exercício dos direitos à moradia, à propriedade e à entrada no
mercado de trabalho (CORIDH, 2020). De tal modo, na região dos fatos, após a abolição da
escravidão, muitos afrodescendentes permaneceram em condições de servidão e em relações
trabalhistas marcadas pela informalidade e pelo uso predominante de mão de obra não
qualificada, conservando boa parte dessa população em condições de pobreza, razão pela qual,
no momento dos fatos, a fabricação de fogos de artifício era a única opção de trabalho daquela
população afrodescendente (CORIDH, 2020). Em consequência da situação de pobreza, não
possuíam alternativa senão a realização deste trabalho de alto risco, com mísera remuneração e
sem medidas de segurança adequadas. Cumpre ressaltar que o próprio Estado brasileiro
reconheceu, em audiência realizada em 19 de outubro de 2006, a persistência de pobreza
extrema em Santo Antônio de Jesus, levando muitas famílias a trabalharem em fábricas
clandestinas (CORIDH, 2020).
Geralmente, a fabricação de fogos de artifício ocorre regiões periféricas da cidade, em
tendas clandestinas e insalubres, não possuindo as condições mínimas de segurança exigidas
para este tipo de atividade, expondo os trabalhadores à possibilidade de queimaduras, lesões
por esforço repetitivo, irritação ocular e das vias respiratórias superiores e doenças pulmonares
(CORIDH, 2020). Ocorre que, apesar de muitas vezes clandestina e sem respeito às normas de
segurança, a fabricação de fogos de artifício gera emprego e renda em Santo Antônio de Jesus.
Conforme dados apontados na decisão, em 2005, estimava-se que 10% da população de 80.000
habitantes sobrevivia com a remuneração proveniente dessa atividade e que, em 2008, entre dez
mil e quinze mil pessoas trabalhavam na produção de fogos de artifício no município
(CORIDH, 2020).
Identifica-se que, as trabalhadoras desse setor são frequentemente mulheres
marginalizadas na sociedade, sem outras opções de trabalho, uma vez que, em sua maioria, não
concluíram o ensino fundamental e começaram a trabalhar na indústria entre os 10 e os 13 anos
(CORIDH, 2020). Assim, as empregadas da fábrica de fogos eram impossibilitadas de ter
acesso a alternativas de trabalho, pois, devido à sua falta de alfabetização, não conseguiam um
trabalho no comércio local (CORIDH, 2020). No trabalho nas fábricas não eram oferecidos
equipamentos de proteção individual nem treinamento ou capacitação às trabalhadoras, bem

147
como se consta a existência de várias crianças trabalhando na fábrica desde os seis anos de
idade (CORIDH, 2020).
O fato trazido à Corte ocorreu em 11 de dezembro de 1998, quando, por volta do meio-
dia, ocorreu uma explosão na fábrica de “Vardo dos Fogos”. De acordo com a denúncia
promovida pelo Ministério Público, apesar da ciência dos proprietários da fábrica do perigo
iminente, possuía autorização estatal para o seu funcionamento. Em razão da explosão,
morreram 60 pessoas – 40 mulheres, 19 meninas e um menino – e seis sobreviveram – três
mulheres, dois meninos e uma menina (CORIDH, 2020).
Consta-se que houve realização de perícia técnica pela Polícia Civil no dia 8 de janeiro
de 1999, que constatou que explosão ocorreu em virtude da falta de segurança no local em razão
do armazenamento incorreto e utilização indevida dos propulsores e acessórios explosivos
(CORIDH, 2020). Assim, foram iniciados processos civis, trabalhistas, penais e
administrativos, porém, transcorridos mais de 18 anos, até a data de aprovação do Relatório de
Admissibilidade e Mérito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH – só
haviam sido concluídos os processos na via administrativa e alguns trabalhistas, porém, ainda
nestes casos, não houve a execução da reparação (CORIDH, 2020). Por esta razão, a CIDH foi
provocada através do protocolo de petição em 3 de dezembro de 2001 (CORIDH, 2020).
A Comissão promoveu uma audiência pública sobre o caso na data de 19 de outubro de
2006, na qual o Estado informou que não questionaria a admissibilidade do caso e também
reconheceu sua responsabilidade quanto à falta de fiscalização (CORIDH, 2020). Assim,
propôs que as partes iniciassem um processo de solução amistosa. De tal modo as partes
acordaram em iniciar um processo de solução amistosa, porém, em 18 de outubro de 2010, a
parte peticionária solicitou à Comissão a suspenção do procedimento de solução amistosa e
emitisse o Relatório de Mérito, uma vez que as violações alegadas continuavam sem reparação.
Esse pedido foi ratificado em 17 de dezembro de 2015 (CORIDH, 2020).
Em 2 de março de 2018, a Comissão emitiu o Relatório de Admissibilidade e Mérito
No. 25/18 apresentando recomendações ao Estado, notificando-o mediante comunicação de 19
de junho de 2018 (CORIDH, 2020). Ocorre que, após transcorrido o prazo de dois meses para
informar sobre o cumprimento das recomendações, o Brasil não apresentou informação a
respeito (CORIDH, 2020). De tal modo, em 19 de setembro de 2018, a Comissão submeteu à
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CorIDH – a totalidade dos fatos e
supostas violações de direitos humanos descritas no Relatório, solicitando à Corte que
concluísse e declarasse a responsabilidade internacional do Estado pelas violações constantes
de seu Relatório (CORIDH, 2020).

3. 2 A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Após a análise dos fato, provas e argumentos apresentados, a CorIDH entendeu que o
Estado brasileiro é responsável pela violação dos direitos à vida (art. 4.1) e da criança (art. 19),
bem como por não respeitar os direitos e liberdades e a garantia de seu livre e pleno exercício
a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação (art. 1.1), em prejuízo das
sessenta pessoas falecidas na explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, ocorrida
em 11 de dezembro de 1998 (CORIDH, 2020).
Em seguida, a Corte entendeu pela responsabilidade do Estado pela violação dos direitos
à integridade pessoal e da criança (art. 5.1 e art. 19), em relação ao artigo 1.1 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo dos seis sobreviventes da explosão (CORIDH,
2020). Em relação a todas as sessenta pessoas falecidas e às seis sobreviventes da explosão, a
Corte entendeu pela responsabilização do Brasil pela violação dos direitos da criança (art. 19),

148
à igual proteção da lei e à proibição de discriminação (art. 241) e ao trabalho (art. 262) em
relação ao artigo 1.1 da Convenção (CORIDH, 2020).
Em relação aos seis sobreviventes e dos familiares das vítimas da explosão da fábrica
de fogos, a Corte entendeu pela responsabilidade do Estado pela violação dos direitos às
garantias judiciais (art. 83) e à proteção judicial (art. 254) em relação ao artigo 1.1 da
Convenção (CORIDH, 2020). Quanto aos familiares das pessoas falecidas e dos sobreviventes
da explosão, a Corte entendeu que o Brasil é responsável pela violação do direito à integridade
pessoal (art. 5.1) em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento (CORIDH, 2020).
A CorIDH determinou ao Estado brasileiro a continuidade aos processos penal, às ações
civis de indenização por danos morais e materiais e aos processos trabalhistas ainda em
tramitação, para, em prazo razoável, julgar e, caso pertinente, punir os responsáveis pela
explosão da fábrica de fogos (CORIDH, 2020). Ainda, foi determinado que o Brasil forneça,
gratuita e imediatamente, tratamentos médico, psicológico ou psiquiátrico às vítimas do
presente caso que o solicitem. Segundo a Corte, deve, ainda, o Estado brasileiro, no prazo de
seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, publicar:

a) o resumo oficial da presente Sentença, elaborado pela Corte, uma só vez, no Diário
Oficial, em um corpo de letra legível e adequado; b) o resumo oficial da presente
Sentença, elaborado pela Corte, uma só vez, em um jornal de ampla circulação
nacional, em um corpo de letra legível e adequado; e c) a presente Sentença na íntegra,
disponível por um período de um ano, em uma página eletrônica oficial do Estado da
Bahia e do Governo Federal (CORIDH, 2020, p. 78).

Também foi determinada a veiculação de material para rádio e televisão, de não menos
de cinco minutos, em que apresente o resumo da sentença (CORIDH, 2020). Além dessas
publicações na ordem interna, a Corte determinou ao Estado que realize um ato público de
reconhecimento de responsabilidade internacional, em relação aos fatos do presente caso
(CORIDH, 2020).
Fora, ainda, determinado o dever de inspecionar sistemática e periodicamente os locais
de produção de fogos de artifício, bem como a elaboração e execução de programa de
desenvolvimento socioeconômico – consultando-se as vítimas e seus familiares –, objetivando
a promoção da inserção de trabalhadoras e trabalhadores dedicados à fabricação de fogos de
artifício em outros mercados de trabalho, possibilitando a criação de alternativas econômicas
(CORIDH, 2020). Determinou-se a necessidade de apresentação de relatório sobre o andamento
da tramitação legislativa do Projeto de Lei do Senado Federal do Brasil PLS 7433/2017, que
dispõe sobre a fabricação, o comércio e o uso de fogos de artifício e revoga a normatização
atual (CORIDH, 2020).
A Corte estabeleceu a necessidade de apresentação de relatório sobre a aplicação das
Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, bem como o pagamento dos valores
fixados na Sentença a título de indenizações por dano material, dano imaterial e custas e gastos
(CORIDH, 2020). Por fim, determinou-se o prazo de um ano, contado a partir da notificação
da Sentença, para a apresentação de um relatório sobre as medidas adotadas para seu
cumprimento, cabendo à Corte a supervisão de seu cumprimento integral (CORIDH, 2020).

149
4 DIREITOS HUMANOS, COLONIALIDADE E EXCLUSÕES ABISSAIS: AS
MEDIDAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS NO CASO DA
FÁBRICA DE FOGOS

Após apresentadas o resumo do caso tratado e as determinações da CorIDH ao Estado


brasileiro, a fim de alcançar os objetivos deste trabalho, a presente análise irá focar em três
pontos principais de apresentação de resposta às violações ocorridas: 1) a condenação à
indenização; 2) a condenação à apresentação de relatório sobre o andamento da tramitação
legislativa do Projeto de Lei do Senado Federal do Brasil PLS 7433/2017; 3) a condenação a
de apresentação de relatório sobre a aplicação das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e
Direitos Humanos; e 4) a determinação do dever de inspecionar sistemática e periodicamente
os locais de produção de fogos de artifício e a elaboração e execução de programa de
desenvolvimento socioeconômico.
Para tanto, inicialmente, cabe analisar a possível caracterização das violações enquanto
provenientes de exclusões abissais. Conforme apontado por Almeida (2019), a filosofia, a
ciência política, a teoria do direito e a teoria econômica mantêm, ainda que implicitamente, um
diálogo com o conceito de raça. Segundo o autor, a existência do racismo é estrutural, o que
significa dizer que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da
sociedade, fornecendo o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de
desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea.
A ideia de raça enquanto referência a distintas categorias de seres humanos é um
fenômeno da modernidade que remonta o início do século XVI e a colonização (QUIJANO,
1992; ALMEIDA, 2019). Segundo Quijano (1992), por meio da colonização, a conquista das
sociedades e culturas da América Latina dá início à formação de uma ordem mundial, que
culmina, 500 anos depois, em uma ordem global que se articula em todo o planeta. De tal modo,
esse processo contribuiu para a concentração dos recursos mundiais, sob o controle e em
benefício da pequena minoria europeia e, sobretudo, das suas classes dominantes. Essa estrutura
do poder colonial é responsável pela produção das discriminações sociais que foram
posteriormente codificadas como "raciais", étnicas, "antropológicas" ou nacionais.
Segundo Quijano (1992), enquanto estrutura de poder, o colonialismo era e ainda é o
arcabouço a partir do qual se operam as demais relações sociais, de tipo de classe ou de status.
Com efeito, ao se observar as principais linhas de exploração e dominação social em escala
global, verifica-se que as principais linhas do poder mundial atual, sua distribuição de recursos
e trabalho entre a população mundial, possui como grande maioria dos explorados, dominados,
discriminados os membros das "raças", das "etnias" ou das "nações" em que as populações
colonizadas foram categorizadas, no processo de formação dessa potência mundial, a partir da
conquista da América. Assim, Almeida (2019) ressalta o papel central da raça, que, por meio
da classificação e hierarquização dos seres humanos, possibilita a convergência simultânea
existente entre a universalidade da razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo e da
escravidão.
No contexto da lógica classificatória da colonialidade, raça é a categoria discursiva
produzida a partir de uma diferença arbitrariamente destacada, visando inferiorizar um outro a
partir da diferença. O conceito de “raça ainda atua como um marcador aparentemente
inerradicável de diferença social” (BRAH, 2006, p.331), ainda que se compreenda mediante
dados e estudos contemporâneos seja uma abordagem vazia. Avtar Brah (2006) propõe pensar
a diferença como categoria analítica e para tanto sugere quatro maneiras pelas quais a diferença
pode ser conceituada: diferença como experiência, diferença como relação social, diferença
como subjetividade e diferença como identidade.
Para os fins desse estudo, a diferença como relação social é a que assume destaque, ao
passo que se refere a diferença constituída e organizada em relações sistemáticas através de

150
discursos econômicos, culturais e políticos e práticas institucionais. A diferença como relação
social pode ser entendida como as trajetórias históricas e contemporâneas das circunstâncias
materiais e práticas culturais que produzem as condições para a construção das identidades de
grupo (BRAH, 2006). Esse conceito se volta para o que se designa como “entretecido de
narrativas coletivas”, as quais são compartilhadas dentro de sentimentos de comunidades
existentes ou imaginadas pelos sujeitos. Para exemplificar, Brah (2006) identifica como ecos
da diferença como relação social os discursos que retomam o legado da escravidão, do
colonialismo ou do imperialismo, por exemplo.
É possível tratar desse conceito em termos locais e globais, na medida em que as
relações sociais são constituídas e operam em todos os lugares de uma formação social, sendo
possível tratar tanto de relações sociais como de experiências sem prejuízo para ambos
desdobramentos. Em termos de relações sociais, o que se ressalta é como a diferença é definida,
ou seja, se as percepções de diferença atuam para afirmar a diversidade ou como mecanismo de
práticas excludentes e discriminatórias; ainda, se reforçam e legitimam os discursos da
diferença política de estado progressistas ou opressivas (BRAH, 2006).
Desse modo, o conceito de diferença remete a uma variedade de formas pelas quais o
discurso da diferença é constituído e contestado, sendo que “algumas construções da diferença,
como o racismo, postulam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente
diferentes” (BRAH, p.370). Outras partem de uma abordagem relacional e mais contingente,
que não é tão associada a hierarquização e a opressão. É nesse sentido que é possível verificar
que a raça, enquanto categoria produzida a partir de uma diferença que historicamente nos
países marcados pelo colonialismo foi reprodutora de hierarquização, se apresenta como forma
de exclusões abissais. A linha abissal separa, fundamentada na raça, o branco europeu do negro,
do indígena e de outros grupos sociais do Sul global. De tal modo, uma das exclusões abissais
gerada pela raça se consubstancia no racismo, entendido por Almeida (2019, p. 22) como:
(...) uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que
se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em
desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual
pertençam.

Como apontado pelo autor, o racismo não se trata de um ato isolado ou um conjunto de
atos discriminatório, mas, sim, possui um caráter sistemático de criação e manutenção de
condições de subalternidade e de privilégio distribuídas entre grupos raciais, reproduzem-se nos
âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas (ALMEIDA, 2019). O racismo
decorre, portanto, da própria estrutura social das relações políticas, econômicas, jurídicas e até
familiares, não o entendendo, desta forma, como sendo uma patologia social ou um desarranjo
institucional. O racismo se apresenta como estrutura, mas o uso desse termo não significa:

(...) que o racismo seja uma condição incontornável e que ações e políticas
institucionais antirracistas sejam inúteis; ou, ainda, que indivíduos que cometam atos
discriminatórios não devam ser pessoalmente responsabilizados. Dizer isso seria
negar os aspectos social, histórico e político do racismo. O que queremos enfatizar do
ponto de vista teórico é que o racismo, como processo histórico e político, cria as
condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados
sejam discriminados de forma sistemática. Ainda que os indivíduos que cometam atos
racistas sejam responsabilizados, o olhar estrutural sobre as relações raciais nos leva
a concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a sociedade deixe
de ser uma máquina produtora de desigualdade racial (ALMEIDA, 2019, p.34).

Ao afirmar que, além de se adotar medidas que busquem coibir as expressões individuais
ou institucionais do racismo, é necessário que se produza mudanças profundas nas relações
sociais, políticas e econômicas, Almeida (2019) se aproxima da proposta de Boaventura (2019),

151
para quem, como já apresentado, as lutas por libertação, objetivando acabar com as exclusões
abissais, demandam a destruição de uma regulação social colonial, que opera a partir da lógica
classificatória manejada para identificar o outro como degenerado e menos digno de proteção
e garantia de direitos humanos.
O racismo estrutural é identificado no contexto da explosão da Fábrica de Fogos, ao
passo que a população localizada em Santo Antônio de Jesus, majoritariamente negra, estava
em condição de negação de seus direitos por parte do Estado brasileiro. Essa situação
perpetuava uma histórica condição de trabalhos degradantes, uma vez que, em razão da pobreza,
não lhe restavam alternativas senão a realização de atividades de alto risco, mal remuneradas e
sem medidas de segurança adequadas.
Em razão da raça, pessoas como os familiares e as vítimas da explosão na fábrica de
fogos, bem como os demais trabalhadores que seguem em condições precárias e submetem-se
ao subemprego, e são impedidas de serem vistas enquanto seres humanos em sua totalidade. As
omissões por parte do Estado brasileiro, em especial no que diz respeito a adoção de medidas
administrativas e judiciais preventivas e repressivas demonstra a manutenção de um discurso
de gradação da humanidade, o qual por meio de hierarquias e classificações define e relativiza
o status de ser humano (BRAGATO, 2016), excluindo pessoas da proteção do Estado:

Em relação à explosão de 11 de dezembro de 1998, foram iniciados processos civis,


trabalhistas, penais e administrativos. Até a data de aprovação do Relatório de
Admissibilidade e Mérito da Comissão, só haviam sido concluídos os processos na
via administrativa e alguns trabalhistas, sem que se houvesse conseguido a execução
da reparação nesses últimos. Os demais processos, passados mais de 18 anos, se
encontravam pendentes em diversas etapas (CIDH, 2020, p.26).

A repercussão prática desse processo pautado pela colonialidade é a seletividade na


proteção dos direitos humanos, pautada em discursos desumanizantes, os quais justificam tanto
uma proteção parcial, quanto uma condição não integral de humanos para as pessoas
destinatárias dos discursos discriminatórios (BRAGATO, 2016). Além da própria ausência do
Estado, em termos de prestações positivas de direitos básicos como a moradia, educação,
trabalho digno, o mesmo também foi silente diante das condições precárias em que eram
mantidas as mulheres e crianças trabalhadoras da clandestina Fábrica de Fogos “Vardo dos
Fogos” – condições estas que resultaram em morte e em danos físicos e mentais para as vítimas
e seus familiares – bem como, nega-se o efetivo acesso à justiça visando a reparação de danos
e condenação penal dos responsáveis.
No que diz respeito aos termos da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, o primeiro ponto a ser analisado trata da condenação ao Estado brasileiro a
indenizar as vítimas e seus familiares em razão das violações realizadas. Se por um lado a
determinação de indenização é essencial diante da necessidade de reparação dos direitos
violados, por outro lado, ela não possui a capacidade de realizar a construção de uma nova
regulação social que extirpe o racismo estrutural proveniente da colonização.
Esse apontamento não se traduz em uma rejeição à indenização monetária por violação
de direitos, mas, sim, na sua insuficiência como medida adotada para se lutar pela eliminação
de exclusões abissais. Em realidade, tal instituto, apesar de necessário, precisa ser
cuidadosamente aplicado, para não se equivalha os direitos humanos a bens materiais e quantias
em dinheiro.
Essa reflexão se faz a partir do pensamento de Zarka (2014), para quem, a
contemporaneidade é caracterizada pela apropriação – ou seja, a transformação em propriedade
– não limitada a bens materiais, mas estendida aos bens culturais, à imagem, ao nome, à vida
privada e, acrescentamos, a apropriação dos direitos violados em razão de exclusões abissais
podem gerar a apropriação do próprio ser. Desse modo, aponta-se que a indenização monetária

152
por danos causados a violações de direitos ocasionadas por exclusões abissais não se trata de
medida que, sozinha, seja capaz de promover a eliminação da regulação social colonial, a fim
de não permitir a repetição dos atos causados em razão do racismo estrutural, como no Caso da
Fábrica de Fogos.
A segunda condenação realizada pela CorIDH determina a apresentação de relatório
sobre o andamento da tramitação legislativa do Projeto de Lei do Senado Federal do Brasil PLS
7433/2017. O Projeto de Lei a que a sentença se refere dispõe sobre a fabricação, o comércio e
o uso de fogos de artifício e revoga o Decreto-Lei nº 4.238, de 8 de abril de 1942. O Referido
Projeto de Lei foi proposto pelo Senador Cyro Miranda (PSDB-GO) em 2013, enviado à
Câmara dos Deputados para revisão da Câmara dos Deputados por meio do ofício n. 297/2017
(BRASIL, 2017) e foi apensado ao PL 3381/2015, que dispõe sobre a comercialização de
sinalizador náutico em todo o território nacional (BRASIL, 2015) e persiste em trâmite no
Congresso Nacional.
O PLS 7433/2017 prevê em seu art. 3º que a emissão de licença ou documento similar
deverá ocorrer “(...) de forma independente entre os órgãos competentes, de modo a não se
restringir direito do interessado em razão de divergências normativas entre os organismos
responsáveis” (BRASIL, 2017). Em seu art. 5º, o Projeto prevê que a instalação de fábrica de
fogos de artifício só será permitida em zona rural, observando-se as disposições de regulamento
específico emitido pelo órgão competente, exigindo-se, para o seu funcionamento, responsável
técnico de profissional qualificado e, proibindo, em seu art. 6º a exposição e a venda, a varejo
ou por atacado, de fogos de artifício não certificados pelo órgão competente (BRASIL, 2017).
Já em seu art. 12, o Projeto prevê que os locais destinados ao comércio, ao
armazenamento e à preparação de fogos de artifício para montagem de espetáculos pirotécnicos
devem estar distantes das áreas de segurança – sede de governo nas esferas federal, estadual e
municipal –, de proteção – hospitais, estabelecimentos de ensino, estádios e terminais
ferroviários, rodoviários, metroviários e aeroviários – e de risco – depósitos de combustíveis e
inflamáveis e tubulações de combustíveis e inflamáveis, exceto as subterrâneas.
Em outras palavras, a conceção de licenças para fabricação, comércio e queima
permanecerá descentralizada, priorizando-se os interesses dos executores dessas atividades, que
poderão buscar a sua realização onde as normas para aquisição da licença seja mais favorável.
Ademais, apenas infrações administrativas são previstas em caso de violação das normas
propostas pelo Projeto. Por outro lado, a mudança legislação proposta não parece capaz de
solucionar os problemas relacionados à má distribuição de renda e a precarização do trabalho
que leva as pessoas da região a atuarem em fábricas clandestinas sob as condições já citadas.
Tal constatação nos leva a um outro ponto: mudar a legislação acerca da fabricação,
comercialização e uso de fogos poderia ser eficaz em locais onde houvesse efetiva fiscalização,
porém, o contexto das violações ocorridas no presente caso denuncia a própria ausência de
intenção do Estado em proteger pessoas do outro lado da linha abissal. Portanto, não há
nenhuma proposta normativa no PLS 7433/2017 que se mostre efetiva na busca de eliminação
da regulação social colonial, reconhecendo as circunstâncias abissais que distinguem a
condição dos trabalhadores e pessoas em situação de vulnerabilidade que habitam a região.
Já no que concerne à condenação ao Estado em apresentar relatório sobre a aplicação
das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, a Corte exigiu ao Estado a
implementação e aplicação das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. A
nova legislação deve promover apoio a medidas de inclusão e não discriminação, mediante a
criação de programas de incentivo à contratação de grupos vulneráveis, bem como a
implementação, por parte das empresas, de atividades educacionais em direitos humanos,
incluindo-se divulgação da legislação nacional e dos parâmetros internacionais e enfoque nas
normas relevantes para a prática das pessoas e os riscos para os direitos humanos.

153
Essa medida tem um caráter relevante para a análise pretendida neste estudo porque leva
em consideração a condição dos atores envolvidos, em especial as empresas que operam de
forma ilegal, em uma região conhecida pelo manuseio ilícito de explosivos. Nos termos da
Convenção Americana de Direitos Humanos, a responsabilidade pela violação a ser submetida
à jurisdição da Corte é direcionada aos Estado, tento por isso, ainda que a explosão tenha sido
causada por pessoa jurídica de direito privado, é o Estado brasileiro o responsável
internacionalmente por arcar com a condenação, dada a dinâmica da responsabilidade no
Direito Internacional. Apesar disso, a CorIDH não deixou de indicar medidas em relação às
empresas, embora o teor genérico das determinações tenha caráter pouco eficiente em face da
conhecida arquitetura da impunidade, no que concerne a responsabilidade das empresas por
violações de direitos humanos, seja diretamente ou em relação às cadeias de produção.
Por fim, a Corte também determinou o dever de inspecionar sistemática e
periodicamente os locais de produção de fogos de artifício e a elaboração e execução de
programa de desenvolvimento socioeconômico com o objetivo de promover a inserção de
trabalhadoras e trabalhadores dedicados à fabricação de fogos de artifício em outros mercados
de trabalho. No que concerne à essas duas últimas condenações, verifica-se que a busca por
alternativas de inserção econômica de pessoas nas mesmas condições das vítimas do caso se
apresenta como uma resposta adequada às exclusões não abissais, pois visam uma modificação
da regulação social vigente, tornando-a menos excludente:

A obrigação positiva do Estado, ante a verificação de um padrão de discriminação


intersecional e estrutural como o descrito, consiste no desenvolvimento de linhas de
ação, mediante a elaboração de políticas sistemáticas que atuem sobre as origens e
causas de sua existência (...) Desse modo, considero fundamental que nos
aprofundemos na medida de não repetição vinculada à intersecionalidade de violações
constatada para a consideração do padrão estrutural de discriminação comprovado em
relação a mulheres, crianças e adolescentes (CIDH, 2020, p.11).

O ponto central dessa medida é o conhecimento da condição histórica e estrutural de


vulnerabilidade dessas pessoas. Nas palavras de Brah, a diferença não identifica sempre
discurso discriminatórios, mas é “uma questão contextualmente contingente saber se a
diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e
formas democráticas de agência política” (BRAH, 2006, p.374). Em certos contextos, como no
caso da Fábrica de Fogos, reconhecer as diferenças socioeconômicas das pessoas afetadas pelo
mercado ilegal existente na cidade de Santo Antônio de Jesus é condição de possibilidade para
formatar estratégias e políticas públicas adequadas para o enfrentamento dessa realidade, cuja
potência destrutiva foi exemplificada no caso de 1998, julgado pela Corte em 2020.
Considerando esse aspecto, a Corte determinou medidas específicas relacionas às
políticas públicas, as quais se fundam em um reconhecimento da vulnerabilidade que afeta as
pessoas da região, propiciada tanto pelas omissões do Estado, quanto pela atuação ilegal de
empresas. Por outro lado, essas mesmas medidas parecem ser irreconciliáveis com os padrões
capitalistas que operam e reproduzem de forma contínua exclusões abissais em seu interior,
dado que esse modelo hegemônico considera em suas bases o subemprego e vulnerabilidade
social para a sua sustentação de curto e longo prazo.
Nesse cenário, o pensamento pós-abissal exige que o abismo entre as tradições de
direitos ocidentais, cujas medidas reparatórias geralmente se concentram em indenizações de
caráter pecuniário ou em indicações abstratas e pouco precisas em termos de políticas públicas,
se reconciliem com as não ocidentais, em um diálogo facilitado capaz de reconhecer as
peculiaridades das exclusões em que a tradição liberal do direito ocidental opera. Como
menciona Barreto, esta conversa pode assumir pelo menos duas formas: a primeira forma pode

154
ser decretada reescrevendo a história dos direitos humanos; o segundo pode seguir o caminho
descrito por Santos como um diálogo intercultural.
Reescrever a história dos direitos humanos implica em considerar outras narrativas para
além do discurso hegemônico, que igualmente representam lutas por direitos, para então pautar
uma teoria compreensiva dos direitos humanos (BRAGATO, 2014), cujo compromisso é
considerar todos os eventos modernos como produtores de direitos humanos e lutas de
resistência, inclusive os produzidos no cenário colonial. Esse olhar que aparenta ser para o
passado, tem repercussões concretas para o presente e para futuro. Isso porque, dar conta de um
passado que concebe a integralidade dos sujeitos como aptos para lutar, resistir e fundar direitos
humanos, é também pensar em um projeto de visibilidade do tempo presente, que considera o
que se deu na fábrica de fogos, em 1998, como uma violação de direito humanos, devendo as
pessoas afetadas não mais serem submetidas a uma proteção seletiva, pautada em um discurso
de desumanização.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do caso da Fábrica de Fogos, julgado pela Corte Interamericana de Direitos


Humanos em 2020, este estudo analisou como as violações de direitos humanos ocorridas no
caso podem ser compreendidas como exclusões abissais, operadas a partir da lógica da
colonialidade, explorando quais as repercussões dessa matriz teórica para as determinações
constantes na condenação do Estado brasileiro. Pretendeu-se apresentar a categorias do
pensamento descolonial e as contribuições de Boaventura de Sousa Santos, a fim de melhor
compreender as circunstâncias que permitem a manutenção de uma violação seletiva de direitos
humanos, fundado em um discurso de desumanização, que a partir da diferença constitui uma
inferioridade, a ser manejada para fins de hierarquização social, opressão e exploração do
trabalho.
O Sul epistemológico não necessariamente coincide com o Sul geográfico, em realidade
ele é composto por muitos suis epistemológicos que comungam do fato de serem
conhecimentos nascidos em lutas contra o capitalismo, colonialismo e o patriarcado, podendo
nascer onde quer que ocorram essas lutas, tanto no norte geográfico como no sul geográfico.
As epistemologias do Sul reconhecem a existência de uma linha abissal que separa o Norte e
do Sul Global, valendo-se da metáfora do abismo com a intenção de transmitir a ideia de que o
pensamento ocidental organiza a produção e validação do conhecimento nas linhas de um
precipício que separa as teorias produzidas no Norte daquelas elaboradas no Sul.
Essa linha abissal marca a divisão radical entre as formas de sociabilidade metropolitana
e as formas de sociabilidade colonial que caracterizam o mundo moderno desde o século XV,
sendo responsável pela criação de exclusões não abissais e exclusões abissais, que geram,
respectivamente, lutas por lutas por emancipação social e lutas por libertação social. Um dos
graves problemas das concepções de direitos humanos na contemporaneidade, como se
pretendeu identificar neste estudo, é o tratamento dessas exclusões sem considerar a lógica da
colonialidade que opera sobre os grupos em condição de vulnerabilidade.
Para tanto, foram expostos os termos da condenação do Brasil na CorIDH, assim como
o caso, marcado pela situação de vulnerabilidade das pessoas de Santo Antônio de Jesus, onde
se situava o empreendimento, cuja explosão, em 1998, causou a morte de 60 pessoas. Dentre
as medidas de reparação determinadas pela CorIDH foram destacadas a indenização; a
elaboração de projetos de lei; a determinação para formatação de diretrizes e relatórios
associados a proteção dos direitos humanos por parte das empresas e, também, medidas

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voltadas para reverter a exploração de mão-de-obra na região por atividades de alto risco,
marcada por uma discriminação interseccional, que leva em conta tanto a raça como o gênero.
Considerando isso, passou-se a examinar os elementos que permitem observar não só a
existência de exclusões abissais no referido contexto, mas também suas repercussões para os
direitos humanos. Tais exclusões, como se sustentou neste estudo, demandam medidas
específicas para além das indenizações de caráter pecuniário, para assegurar a proteção integral
das vítimas e evitar que novas violações continuem ocorrendo. As exclusões abissais enquanto
resultado da lógica da colonialidade, que opera classificando e hierarquizando diferenças
produzidas discursivamente, operou não só considerando as condições socioeconômicas da
população da região, mas também a partir do racismo, manejado como mecanismo que propicia
a seletividade na proteção dos direitos humanos.
Mediante um discurso que parte da diferença para propiciar a subordinação, a
classificação social funciona para designar o outro como tipo degenerado, excluindo-o do
âmbito de proteção, legitimando de forma ativa ou omissiva a constante violação seletiva de
pessoas racializadas. Para que possamos abandonar estes traços e recuperar a ideia de que é
possível se pensar em alternativas potenciais provindas das lutas contra a opressão, é preciso
uma nova epistemologia política, como se pretendeu demonstrar a partir das contribuições de
Santos.
Este autor propõe a ocupação do conhecimento por meio das epistemologias do Sul,
com a produção e a validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência dos
grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, da opressão e da destruição
causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado. Esse processo passa pelo
reconhecimento a lógica da colonialidade e suas estratégias de subordinação, como o discurso
racial, e também da identificação das exclusões abissais produzidas pela colonialidade, que se
distinguem de outras formas de exclusão e tanto por isso demandam ações para além do
discurso hegemônico fundado na reparação episódica e de caráter indenizatório.

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