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ISSN 2595-9093

Diretoria de Promoção e Educação em Direitos Humanos

Secretaria Nacional de Cidadania

Ministério dos Direitos Humanos


Gustavo do Vale Rocha
Ministro de Estado dos Direitos Humanos

Marcelo Dias Varella


Secretário Executivo

Herbert Barros
Secretário Nacional de Cidadania

Juciara Rodrigues
Diretora de Promoção e Educação em Direitos Humanos

M665r


Revista Científica de Direitos Humanos/Ministério dos Direitos Humanos.
Vol. 1, n. 1, novembro de 2018. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos.
– Semestral
23 cm.

ISSN 2595-9093

1. Direitos Humanos. 2. Cidadania. 3. Igualdade Racial. 4. Pessoa com
Deficiência. 5. Criança e Adolescentes. 6. Pessoa Idosa. 7. Políticas Públicas.
8. Mulheres. I. Ministério dos Direitos Humanos. II. Título.

CDU 342.7

Ministério dos Direitos Humanos


Esplanada dos Ministérios, Bloco A
CEP: 70.054-906 – Brasília/DF
E-mail: revista@mdh.gov.br
revistadh.mdh.gov.br

© Ministério dos Direitos Humanos, 2018

O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.


Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
A Revista Científica de Direitos Humanos é uma publicação semestral, organizada
pelo Ministério dos Direitos Humanos, com o objetivo de incentivar a elaboração e a
difusão de artigos científicos nacionais e internacionais de alta qualidade sobre a temá-
tica, fortalecendo a cultura de paz e a promoção de valores de solidariedade e respeito
às diversidades.

Equipe Técnica
Coordenação editorial
Juciara Rodrigues

Gestão de artigos
Jessica Paula de Melo
Thaís Soares Caramuru
Thaís Maria de Machado Lemos Ribeiro

Revisão de idiomas
Thaís Maria de Machado Lemos Ribeiro

Revisão geral
Juciara Rodrigues

Projeto gráfico, capa e diagramação


Luís Felipe Oliveira da Silva

Conselho Editorial
José Heder Benatti
Doutorado em ciência e desenvolvimento socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do corpo docente per-
manente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Consultor ad hoc do
CNPq e da CAPES. Pesquisador do CNPq, Professor Associado III da Universidade Fe-
deral do Pará e Diretor Geral do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA.

Valter Shuenquener de Araújo


Doutorado em Direito Público pela UERJ. KZS pela Ruprecht-Karls Universität Heidel-
berg. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Conferencista da
EMERJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ (PPGD).
Gabriela Maia Rebouças
Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Estágio Pós-doutoral
pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/PT. Autora da obra “Tra-
mas entre subjetividades e direito: a constituição do sujeito em Michel Foucault e os
sistemas de resolução de conflitos”, publicada pela Lumen Juris, 2012.

Regina Célia Martinez


Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Consultora
Jurídica. Atua na área de Ciência Política, com ênfase em Análise do Processo Decisório,
principalmente nos temas: administração pública, meio ambiente, cidadania, legislação,
história, educação e direito.

Roberto Freitas Filho


Doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado pela Universi-
dade de Wisconsin (Madison, EUA). Atua na área de Direito, com ênfase em Filosofia e
Teoria Geral do Direito, principalmente nos seguintes temas: filosofia do direito, sociolo-
gia do direito, ensino jurídico, direito do consumidor, contratos e responsabilidade civil.

Danielle Anne Pamplona


Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Titular
da Pós-Graduação e da Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. In-
ternational Visiting Scholar na Washington College of Law na American University em
Washington, DC.

Margareth Vetis Zaganelli


Doutorado em Direito (Ciências Criminais) pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Estágio Pós-doutoral na Scuola di Giurisprudenza da Università degli Studi
di Milano - Bicocca (UNIMIB). Estágio Pós-doutoral na Scuola di Giurisprudenza da
Alma Mater Studiorum Università di Bologna (UNIBO). Visiting Professor do Ateneo e
da Scuola di Giurisprudenza da Università degli Studi di Milano-Bicocca (UNIMIB). Vi-
siting Researcher do Centro Interdipartimentale di Ricerca in Storia del Diritto, Filosofia
Giuridica, Informatica Giuridica e Bioetica (CIRSFID) da Alma Mater Studiorum Uni-
versità di Bologna (UNIBO). Professora Titular de Direito Penal e processual penal e Te-
oria do Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), atuando como docente
no Curso de Graduação em Direito e no Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública.
Sumário
Editorial ...................................................................................................................... 7

1 Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos


fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida
Gustavo do Vale Rocha, Natália Vilar Pinto
Ribeiro e Christianne Dias Ferreira .................................................................. 11

2 A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos


réus: uma breve análise do processo e do julgamento
do Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes
do direito humano fundamental da criança à educação
Luís Carlos Martins Alves Jr. ................................................................................ 35

3 Das políticas às ações: direitos da pessoa idosa no Brasil


Andréia Ribeiro e Simone Martins .................................................................... 58

4 Direito à educação de pessoas LGBT: uma


transformação na e a partir da escola
Alexandre Bortolini e Thaís Pimentel ............................................................... 82

5 A política de inclusão da pessoa com deficiência


como questão de direitos humanos
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior ......................................................... 105

6 Do direito de identificação ao direito à identidade


Sílvio Silva Brasil ..................................................................................................... 132

7 Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das


práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
Roberta Gregoli e Sope Otulana .......................................................................... 153

8 Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada:


o uso do atabaque e o meio ambiente
Andréa Letícia Carvalho Guimarães ............................................................... 179
Editorial
Caros leitores e leitoras.
É com grande entusiasmo que o Ministério dos Direitos Humanos
lança o primeiro número da Revista Científica de Direitos Humanos, co-
memorativo aos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O principal objetivo desta publicação é apresentar, semestralmente,
resultados de estudos e de pesquisas que promovam reflexões, provoquem
argumentações e incentivem ações, ancoradas em princípios e métodos
científicos. Para tanto, os oito artigos publicados nesta edição, foram sub-
metidos a um corpo de especialistas ad hoc que, atuando de forma inde-
pendente e respeitando o anonimato, avaliaram os textos. O processo edi-
torial foi conduzido, igualmente, com a máxima lisura, a fim de que este
periódico receba o reconhecimento acadêmico por sua qualidade e pela
importância dos temas abordados.
O primeiro artigo, “Entre a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida”,
escrito pelo Ministro de Estado dos Direitos Humanos, Gustavo do Vale
Rocha, em coautoria com a Doutora Natália Vilar Pinto Ribeiro e Chris-
tianne Dias Ferreira, traz uma importante análise acerca dos fluxos migra-
tórios no Brasil e no mundo, com ênfase nas estratégias atuais, adotadas
pelo governo brasileiro, para acolher o exponencial fluxo migratório de
venezuelanos que solicitam refúgio.
O Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do
Ministério dos Direitos Humanos, Doutor Luís Carlos Martins Alves Jr.,
no segundo artigo, intitulado “A educação domiciliar (homeschooling) no
banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do Recurso
Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental
da criança à educação”, apresenta os fundamentos normativos e os argu-
mentos jurídicos contidos no referido recurso. As manifestações exaradas
pelas partes, pelos magistrados e outros atores processuais são examinadas
detalhadamente para que seja possível observar se estão em consonância
ao direito humano fundamental da criança à educação.
No terceiro artigo, “Das políticas às ações: direitos da pessoa idosa no
Brasil”, as doutoras Andréia Ribeiro e Simone Martins analisam estudos
voltados ao envelhecimento e à Política do Idoso no Brasil, a partir de in-
formações coletadas em periódicos indexados no Portal Capes nos últimos
cinco anos, e constatam a necessidade da participação efetiva das pessoas
idosas em discussões e deliberações políticas de seu interesse.
Os autores Alexandre Bortolini e Thaís Pimentel discorrem, no
quarto artigo, “Do direito à educação de pessoas LGBT: uma transforma-
ção na e a partir da escola”, a imperiosa necessidade de um novo discurso
educacional nas escolas brasileiras, cuja narrativa seja voltada à inclusão e
à valorização de todas as pessoas, sobretudo àquelas que são racializadas e
sexualmente reguladas.
O quinto artigo, de autoria da professora Izabel Maria Madeira de
Loureiro Maior, trata sobre “A política de inclusão da pessoa com deficiên-
cia como questão de direitos humanos”, considerando a política pública de
inclusão da pessoa com deficiência no Brasil e defendendo a importância
da gestão responsável do orçamento e da atuação da fiscalização e dos con-
selhos de direitos da pessoa com deficiência para melhorias na área.
Além dos problemas e dos avanços oriundos da Política de Promoção
do Registro Civil de Nascimento e Acesso à Documentação Básica, o autor
Sílvio Silva Brasil, discorre sobre o Compromisso Nacional pela Erradica-
ção do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Docu-
mentação Básica, no sexto artigo, intitulado “Do direito de identificação ao
direito à identidade”. O autor ressalta, também, a discriminação e a exclu-
são social que recai sobre povos e grupos populacionais brasileiros priva-
dos deste direito humano, imprescindível ao exercício pleno da cidadania.
O sétimo artigo, “Prevenção à violência contra as mulheres: uma re-
visão das políticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil”, escrito
pela Doutora Roberta Gregoli, em coautoria com Sope Otulana, apresenta
argumentos favoráveis à prevenção à violência contra as mulheres, como
eixo de atuação urgente e prioritário. As autoras revisam intervenções in-
ternacionais, na área de prevenção à violência contra mulheres e meninas,
demonstrando que abordagens participativas são mais eficazes para pro-
duzir mudanças em normas sociais que geram a violência.
Finalmente, o último artigo, “Os direitos dos povos de terreiros na
encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente”, da autora Andréia
Letícia Carvalho Guimarães, analisa as violências e as discriminações so-
fridas pelos povos de terreiro, assim como a negação de suas práticas tra-
dicionais religiosas no Brasil, apresentando possibilidades para a proteção
dos direitos dessas comunidades.
A publicação da Revista Científica dos Direitos Humanos é fruto do
esforço das servidoras da Diretoria de Promoção e Educação, do Ministé-
rio dos Direitos Humanos, da competência de autoras, autores e pareceris-
tas. Os agradecimentos especiais são dedicados aos membros integrantes
do Conselho Editorial.
Ótima leitura!
Artigos
1
ENTRE A DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS E OS NOVOS
FLUXOS MIGRATÓRIOS: UM RESGATE DA
HUMANIDADE PERDIDA
GUSTAVO DO VALE ROCHA
Mestre em Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília, Bacharel em
Direito pelo Centro Universitário de Brasília, professor universitário. Ministro
de Estado dos Direitos Humanos, Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa
Civil da Presidência da República e Conselheiro Nacional do Ministério Público.

NATÁLIA VILAR PINTO RIBEIRO


Doutora em Teoria e História do Direito e Teoria e História dos
Direitos Humanos pela Università Degli Studi di Firenze, Bacharel
em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Assessora
Especial do Ministro de Estado dos Direitos Humanos.

CHRISTIANNE DIAS FERREIRA


Doutoranda em Direito, Mestre em Direito e Políticas
Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Especialista
em Direito Empresarial e professora universitária.

RESUMO
O presente artigo tem por objetivo analisar aspectos atuais no Brasil e no
mundo a respeito dos fluxos migratórios e do desenvolvimento de uma po-
lítica internacional de Direitos Humanos. Intenta-se, antes de tudo, resga-
tar a humanidade e, consequentemente, os direitos dos imigrantes, as ca-
racterísticas do atual e intenso fluxo migratório proveniente da Venezuela
para o Brasil e as estratégias que o governo brasileiro traçou para acolhê-lo.
Assim, este artigo trata, principalmente, das pessoas por trás dos números
e das porcentagens que aparecem em relatórios e jornais, ressaltando que
estas são titulares de Direitos Humanos Universais independentemente de
nacionalidade, cor, gênero ou religião.

Palavras-chave
Direitos Humanos. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mi-
gração. Refugiados.

11
ABSTRACT
This article analyses aspects of the migration flows and the development of
an international policy of Human Rights in contemporary times both in
Brazil and worldwide. First, there is an attempt to restore humanity and,
therefore, the migrants’ rights, the characteristics of the current and inten-
se migration flow from Venezuela to Brazil and the strategies that the Bra-
zilian Government has designed to welcome it. Thus, this article is main-
ly about the people hidden behind the numbers and stats that appear in
newspapers and reports, emphasizing that they are holders of the Universal
Human Rights regardless of their nationality, colour, gender or religion.

Keywords
Human Rights. Universal Declaration of Human Rights. Migration.
Refugees.

12
Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

1 INTRODUÇÃO
No aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, o presente artigo pretende fazer breves considerações acerca deste
importante instrumento jurídico internacional e tratar do atual e comple-
xo cenário migratório no Brasil e mundo.
Primeiramente, serão apresentadas breves considerações acerca da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 70 anos, a referida decla-
ração cumpriu importante papel na história da humanidade, fornecendo
uma base sólida para o desenvolvimento de uma política internacional de
Direitos Humanos e dotando todos os indivíduos, indistintamente, de di-
reitos tidos como fundamentais. Tendo em vista o contexto no qual esse
instrumento foi pensado, as questões relativas a fluxos migratórios eram,
de alguma maneira, por ele contempladas.
Em seguida, o presente texto analisará – a partir do art. 1º da De-
claração Universal de Direitos Humanos, que dispõe que todos são iguais
perante a lei, unicamente pelo fato de constituírem a espécie humana –
possíveis motivos pelos quais algumas categorias de indivíduos, dentre eles
os imigrantes, ficam à margem desses direitos, tidos como universais.
Finalmente, serão tecidas breves considerações acerca das migrações
no Brasil e no mundo, a fim de apresentar o contexto no qual se insere o
fluxo migratório venezuelano para o Brasil, os dados sobre a imigração
venezuelana e as estratégias utilizadas pelo governo brasileiro para tratar
dessa nova demanda.

2 SETENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS


DIREITOS HUMANOS: BREVES CONSIDERAÇÕES
Em um contexto de pós-guerras, de violência desmedida e de inúme-
ras violações a direitos, em 10 de dezembro de 1948, na Assembleia Geral
das Nações Unidas em Paris, surgiu a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Elaborada por uma Comissão de Direitos Humanos da Orga-
nização das Nações Unidas, composta por pessoas de diversas regiões do
mundo e de diferentes origens jurídicas, a declaração tem como proposta
apresentar uma norma comum a ser seguida e respeitada por todos os po-
vos e nações.

13
Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

Quase 20 anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos


ter sido assinada, foram aprovados o Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Sociais Econômicos e Cul-
turais. Juntos, esses três instrumentos formam a Carta Internacional dos
Direitos Humanos. A intenção da carta é que os dois pactos sejam sempre
interpretados à luz da Declaração, dando sistematicidade à proteção dos
direitos humanos internacionais.
O contexto do pós-guerra e o terror vivido por milhões de pessoas
influenciaram, sobremaneira, na ideia, no conteúdo e nos objetivos desse
importante instrumento jurídico internacional. Aspectos do Direito Natu-
ral ressurgiram como resposta ao positivismo, que priorizava a forma em
detrimento do conteúdo, o que deu margem ao totalitarismo e aos regimes
burocrático-autoritários. Os horrores da legalidade totalitária incitaram
uma reflexão ideológica e, assim, a perspectiva da existência de direitos
universais básicos a todos os indivíduos – independente de sexo, idioma,
religião, opinião política, origem nacional ou social, riqueza, nascimento
ou qualquer outra condição – ganhou força (LAFER, 1988).
Diante desse contexto histórico, o tema das migrações ficou mais
sensível nos períodos de guerra e pós-guerra. As migrações sempre existi-
ram e determinadas conjunturas influenciaram o deslocamento de pessoas
no mundo – vide, por exemplo, a grande migração que seguiu os movi-
mentos revolucionários de 1848 ou, ainda, movimentos migratórios de ju-
deus e ciganos. Entretanto, tais migrações não chegaram a afetar o padrão
de normalidade do sistema interestatal.
No fim da Primeira Guerra Mundial, as ideologias nacionalistas e
protecionistas e o aumento do desemprego contribuíram para a restrição
das políticas públicas de livre circulação das pessoas e o aumento do nú-
mero de apátridas1, acentuado com as políticas de desnacionalização dos
regimes soviético, fascista e nazista. Os institutos de asilo territorial, natu-
ralização e repatriação vigentes não serviram às inúmeras pessoas que se
tornaram apátridas, simplesmente pelo que eram e não pelo que fizeram.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, no contexto das discussões
que precederam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o tema das

1 Pessoas sem nacionalidade reconhecida.

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Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

displaced persons2 foi de extrema relevância e contemplado em diversos


artigos deste instrumento internacional:
Artigo XIII:
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e resi-
dência dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusi-
ve o próprio, e a este regressar.
Artigo XIV:
1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procu-
rar e de gozar asilo em outros países.
Artigo XV:
1.Todo homem tem direito a uma nacionalidade. (ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).

Ao reconhecer o direito à liberdade de locomoção, à residência, à


nacionalidade e o de procurar asilo, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos protege os direitos do emigrante, permitindo a saída de pesso-
as de seus estados. Entretanto, é silente especificamente quanto à entrada,
permanência e cidadania de imigrantes em território de determinado país.
O assunto foi abordado por outros instrumentos que se seguiram
à declaração e fazem parte do Sistema Global de Direitos Humanos. Em
1951 ocorreu a Convenção e o Protocolo sobre o Estatuto do Refugiado;
em 1954, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas; em 1961, a Con-
venção para Redução dos Casos de Apatridia; em 1990, a Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos de Todos os Trabalhadores Imigrantes e
suas Famílias; e, em 2016, a Declaração de Nova York sobre refugiados e
migrantes. Nesta última, constam ainda a realização do Pacto Global para
Migração Segura, Ordenada e Regular e do Pacto Global para Refugiados.
Ainda no que diz respeito ao contexto histórico, ressaltam-se as di-
ficuldades encontradas para a consecução do objetivo da Organização das
Nações Unidas de proteger os direitos humanos, previstos na carta de São
Francisco, tendo em vista a Guerra Fria que sucedeu a Segunda Guerra
Mundial e o antagonismo de dois de seus mais influentes membros, Rússia
e Estados Unidos (RAMOS, 2018). A própria declaração, que se propunha
universal, foi aprovada sem consenso e somente por 56 estados. Os países
africanos, muitos dos quais ainda eram colônias, à época das discussões
da Comissão, não tiveram voz nesse processo e não reconheciam esse ins-
2 Deslocados; pessoas forçadas a sair do local onde vivem.

15
Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

trumento jurídico internacional. Ademais, frequentemente era atribuído


à declaração um caráter ocidental, como motivo para a sua não utilização
pelos Estados Orientais. É possível afirmar que nem mesmo os estados
redatores iniciais dispuseram-se a, de fato, cumprir a Declaração Universal
dos Direitos Humanos em um primeiro momento.
Entretanto, com o arrefecimento da bipolaridade da Guerra Fria e a
gradativa incorporação dos direitos consagrados nesse documento ao coti-
diano, à cultura, aos discursos e às legislações das Nações ao redor de todo
o mundo, as objeções à declaração terminaram por sucumbir. Tendo sido
utilizada na luta pela descolonização na África, pelo fim do apartheid, em
defesa da causa palestina e de tantas outras, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos legitimou-se e o argumento da ocidentalidade dos Di-
reitos Humanos não mais é a ela contraposto.
Após a adoção dos dois pactos que constituíram a Carta Internacional
de Direitos Humanos, a ONU estimulou a adoção de inúmeros outros
instrumentos internacionais, os quais foram adotados por países das mais
diversas culturas e sistemas sociopolíticos ao redor do mundo. Destaca-se,
nesse sentido, a Conferência Mundial dos Direitos Humanos, ocorrida em
Viena, em 1993, a qual reuniu todos os países de um mundo praticamente sem
colônias. Essa aderência ao sistema global ou onusiano de Direitos Humanos
ratifica a legitimação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Em seus 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pro-
clamada pelas Nações Unidas em 1948, cumpriu um importante papel na
história da humanidade. Utilizando parte de análise feita por Alves (2005),
destaca-se que esta codificou as esperanças de todos os oprimidos, forneceu
linguagem autorizada à semântica de suas reivindicações, proporcionou base
legislativa às lutas políticas pela liberdade e igualdade, inspirou a maioria das
constituições nacionais na positivação dos direitos ligados à cidadania, es-
tabeleceu parâmetros para aferição da legitimidade de governos, estimulou
ações solidárias e lançou bases, não só para um sistema legislativo interna-
cional, mas para uma verdadeira comunidade internacional.

3 A DESUMANIZAÇÃO DO HUMANO E O ESTRANGEIRO


O primeiro artigo da declaração brada que todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos (ORGANIZAÇÃO DAS NA-

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Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

ÇÕES UNIDAS, 1948). Para Arendt (2008), as pessoas não nascem iguais,
mas tornam-se iguais em direitos, visto que participam de uma coletivida-
de, a qual garante direitos iguais a todos. Assim, todos são plurais na esfera
privada e iguais na esfera pública. Segundo a autora, o primeiro direito, do
qual decorrem todos os outros, é a cidadania, por se constituir no direito
a ter direitos. Uma pessoa privada de cidadania não tem direitos e fica res-
trita à esfera do privado, não participando da vida política da comunidade
em que está inserida.
Na lógica arendtiana a existência de seres humanos sem lugar no
mundo contribui para que as pessoas sejam vistas como supérfluas, o que
justifica as cenas bárbaras e desumanas que diariamente ocorrem, mas
que, gradualmente, parecem não nos comover como antes – frutos, talvez,
de uma mídia e de uma opinião pública que apresentam sinais da “fadiga
da tragédia dos refugiados”(BAUMAN, 2017, p. 8). São embarcações nau-
fragadas, crianças afogadas, muros erguidos, inúmeras pessoas em centros
de detenções, crianças enjauladas e separadas de seus familiares, pessoas
exaustas e famintas que caminham por grandes extensões e entre cercas de
arame farpado, sob condições desumanas. Somente no ano de 2015 foram
registradas 4.913 mortes ocorridas na travessia do Mar Mediterrâneo (FA-
RAH, 2017).
Conforme clama o preâmbulo da Declaração Universal, cada um de
seus 30 artigos são ideais comuns a serem atingidos por todos os povos e
todas as nações. Essa tem por cerne “o reconhecimento da dignidade ine-
rente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família
humana” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). Isto é, ela
consagra direitos intrínsecos a todas as pessoas físicas pelo simples fato de
serem humanas.
Desta feita, a violação deliberada desses direitos, segundo Alves (2005),
frequentemente ocorre a partir de uma postura que denega a condição hu-
mana da vítima. Existiria, pois, uma “desqualificação, ostensiva ou velada,
de certas categorias de indivíduos como integrantes verdadeiros da espécie”
(ALVES, 2005, p. 3), em um processo de desumanização do humano.
No Direito Romano Arcaico havia um instituto capaz de expulsar
alguém da jurisdição humana, o Homo Sacer – indivíduo julgado por um
delito pelo qual não era lícito sacrificá-lo, contudo, quem o matasse não
seria punido por essa conduta. O Homo Sacer representava uma pessoa

17
Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

expulsa da jurisdição humana sem que fosse alçada à esfera divina. Trata-
va-se, em verdade, de uma dupla exclusão, tanto do ius humanum quanto
do ius divinum. Essa dupla exclusão e a violência à qual o indivíduo era
exposto definiam sua condição (AGAMBEN, 2010).
Em outras palavras, o Homo Sacer era incluído no ordenamento uni-
camente por meio de sua exclusão, o que em muito se aproxima da situação
dos imigrantes irregulares em diversos países, cuja simples existência den-
tro do território constitui uma distorção. Às margens da lei, a única manei-
ra de estabelecer um vínculo com o ordenamento jurídico é rompendo-o,
pois, embora este não reconheça a pessoa como cidadã, detentora de direi-
tos, permite a sua punição como a qualquer cidadão (AGAMBEN, 2010).
Para Bauman (2017, p. 20-21), os imigrantes são a versão atualiza-
da dos “homens-sanduíche”3 de 1920. Carregando anúncios de que “o fim
do mundo tal como o conhecemos está próximo”, transportam más notí-
cias e lembram a vulnerabilidade da condição humana e a fragilidade de
seu bem-estar. Embora o fim do mundo não seja trazido por seus próprios
mensageiros, estes frequentemente são culpados pelo conteúdo da mensa-
gem de que são portadores.
Assim, os inúmeros imigrantes, refugiados ou não, que escapam de
situações de extrema pobreza, guerras, catástrofes naturais e governos au-
toritários, não apenas anunciam a crise, mas se materializam nela. Tendo
em vista a dificuldade de lidar com temores difusos e desconhecidos, os
imigrantes são a corporificação necessária para que se tenha um adversá-
rio mais específico e tangível (BAUMAN, 2017).
Eles são o novo “bode expiatório”, estereótipos de perseguição que
surgem geralmente em época de crise, uma vez que se faz necessário en-
contrar uma causa acessível para uma crise. Isto é, uma vez que não é pos-
sível agir diretamente sobre as causas naturais da crise enchentes, epide-
mias, guerras ou desafios políticos, econômicos e sociais – a culpa desses
acontecimentos recai sobre um indivíduo ou uma classe, transformando-
-os em seres extremamente nocivos à sociedade (GIRARD, 2004). Foi o que
ocorreu com os judeus, no século XIV, acusados de terem disseminado a
peste negra, e com as bruxas, no século XVI.

3 Também chamados de “homens-placas”, os homens-sanduíches carregavam placas com frases


apocalípticas ou midiáticas.

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Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

A representação dos perseguidores demonstra-se irracional, pois


parte do individual para o geral, invertendo a relação entre a situação glo-
bal da sociedade e a transgressão individual. Ao invés de ver no individual
um reflexo do nível global, essa representação procura no indivíduo a ori-
gem e causa de tudo o que a fere. O indivíduo passa a ser culpado, não por
suas ações, mas pelo estado de crise. Ao invés da crise geral ter ocasionado
determinada situação individual, esta última passa a ser responsável pela
primeira, em uma distorção que procura a origem de algo inatingível por
sua generalidade. Persegue-se, pois, o efeito da crise, e não sua causa (GI-
RARD, 2004).
Isso acontece, não obstante seja a migração algo comum e natural,
uma atitude humana responsável, inclusive, pela configuração da ordem
mundial que hoje se apresenta. Ocorre, no entanto, que quanto mais dis-
tante do status social comum, maiores os riscos de perseguição (GIRARD,
2004) e, em tempos de era digital, os discursos de ódio e xenofobia maxi-
mizam-se e propagam-se rapidamente. Desta feita, a educação em Direitos
Humanos, a promoção da não violência e a cultura de paz são importantes
fatores que devem ser fortificados em situações de grande fluxo migratório.

4 MIGRAÇÕES NO BRASIL E NO MUNDO


O tema das migrações não é algo novo. A ordem mundial constituiu-
-se como hoje se vislumbra, graças aos movimentos humanos. Estados, na-
ções, imperialismos e guerras decorrem deles. “Não precisamos buscar na
arqueologia a descoberta de nosso nomadismo. Ao contrário, mais esforços
precisamos fazer para explicar a formação do que é fixo, tais como os limites
fronteiriços” (JARDIM, 2017, p. 17). Os movimentos transnacionais são con-
tínuos, porém os grandes aumentos no fluxo migratório são pendulares e ge-
ralmente estão diretamente ligados a guerras, desastres naturais, seca, fome,
perseguições e situações de extremo desrespeito aos Direitos Humanos.
Apesar dos deslocamentos e das migrações no Brasil e no mundo
não serem um fenômeno novo, ganharam relevância política nas últimas
décadas, motivo pelo qual Castles, Haas e Miller (2014) chamam este perí-
odo de “era das migrações”. Em verdade, a migração assumiu novos papéis
durante a expansão europeia do século XVI, e na Revolução Industrial,
no século XIX, com o auge da migração europeia para América, Nova Ze-
lândia e África do Sul, entre meados do século XIX e a Primeira Guerra

19
Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

Mundial. Foram cerca de 59 milhões de pessoas que migraram da Europa


para as mencionadas localidades entre os anos de 1846 e 1939 (CASTLES;
HAAS; MILLER, 2014).
Além da mencionada relevância política das migrações no atual ce-
nário mundial, outras das principais características da “era da migração”
são o fenômeno de globalização das migrações como uma diversificação
dos fluxos migratórios ao redor do mundo e sua difusão em escala glo-
bal, a feminização da migração laboral e a mudança de direção dos fluxos
migratórios dominantes que ocorrem, cada vez mais, nos eixos Sul-Sul e
Norte-Sul (CASTLES; HAAS; MILLER, 2014).
Segundo relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR), ao final de 2016, cerca de 65,6 milhões de pessoas,
representando uma em cada 113 pessoas em todo mundo, foram forçadas a
deixar seus locais de origem por perseguição, conflitos, violência ou viola-
ções de Direitos Humanos. Dessas, cerca de 22,5 milhões eram refugiadas
e 2,8 milhões, solicitantes de reconhecimento da condição de refugiada
(UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2017).
Atualmente, 55% dos refugiados do mundo são provenientes de
apenas três países, Síria, Afeganistão e Sudão do Sul, sendo que o maior
quantitativo provém da Síria. Dois terços desta população deslocaram-se
interna ou externamente durante os conflitos, perfazendo5,58 milhões de
refugiados e 7,6 milhões de deslocados internos. De outro lado, os países
que mais recebem refugiados no mundo são a Turquia (2,9 milhões), o Pa-
quistão (1,4 milhão) e o Líbano (um milhão) (UNITED NATIONS HIGH
COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2017).
Assim, historicamente, a maioria dos refugiados não vai para paí-
ses desenvolvidos, mas para países em desenvolvimento. Em 2014, 86% do
total de refugiados estavam abrigados em países em desenvolvimento. O
Líbano, nesse contexto, abriga o maior número de refugiados per capita no
mundo: quase um quarto da população libanesa atual é formada por sírios.
De maneira similar, os países da América Latina acolheram 100 mil refu-
giados europeus em seus territórios entre os anos de 1947 e 1952, durante o
pós-guerra (MOREIRA, 2005).
Segundo relatório de 2016 do ACNUR, o número de refugiados no
Brasil subiu 9,3% e o número de pedidos de refúgio aumentou em 23,6%

20
Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

(UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2017).


Até 2017, o Brasil reconheceu a situação de refugiado a 10.145 pessoas e
teve 86.007 solicitações de reconhecimento em trâmite (BRASIL, 2018f),
sendo o país que mais acumula pedidos de asilo, processados na Améri-
ca Latina, e o sexto no mundo (UNITED NATIONS HIGH COMMIS-
SIONER FOR REFUGEES, 2018). Similarmente ao que ocorre no restante
do mundo, a nacionalidade com maior número de refugiados, reconheci-
dos pelo governo brasileiro, é a Síria, segundo o Comitê Nacional para os
Refugiados, o Conare (BRASIL, 2018f). Contudo, esse número tende a se
modificar, -visto que atualmente as nacionalidades com maior número de
solicitações de reconhecimento da condição de refugiados são Venezuela,
com 17.865 pedidos; Cuba, com 2.373; e Haiti, com 2.362 (BRASIL, 2018f).
A imigração de sírios e haitianos no Brasil deu-se, principalmente,
entre os anos de 2010 e 2015. Depois da Primavera Árabe, com protes-
tos pacíficos que clamavam por uma reforma democrática, iniciou-se uma
guerra civil que matou mais de 465 mil sírios, deixou mais de um milhão
de feridos, e 13,16 milhões de pessoas deslocadas internamente ou refu-
giadas (A CRISE..., 2018). O Haiti é um país historicamente caracterizado
por grande fluxo emigratório. Catástrofes naturais, indenizações devidas à
França e os embargos comerciais que se seguiram à sua independência, no
início do século XIX, geraram fragilidade econômica, instabilidade políti-
ca, ocupações e guerras civis. No início de 2010, um terremoto de grande
magnitude assolou o país e agravou os problemas sociais, ocasionando o
abandono da capital haitiana por cerca de 500 mil pessoas (FARAH, 2017).
De 2010 a 2015, segundo Sistema de Tráfego Internacional da Polícia
Federal brasileira, 85.084 haitianos migraram para o Brasil (CAVALCANTI;
OLIVEIRA; ARAUJO, 2016). Uma vez que a situação dos haitianos não se
enquadrava na definição de refugiado prevista no Estatuto dos Refugiados,
foram acolhidos pelo Brasil por meio do visto humanitário garantido pelo
Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980. A partir de
2015, entretanto, o trânsito de haitianos inverteu-se, ocorrendo a saída do
território brasileiro por fatores ligados às instabilidades política e econômica.
Mais recentemente, em função das crises política, econômica e social
em seu país de origem, principalmente devido à escassez de alimentos e
remédios, o fluxo migratório de estrangeiros venezuelanos para o Brasil
intensificou-se. Entre 2017 e junho de 2018 entraram 127.778 venezuelanos

21
Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

pela fronteira da cidade de Pacaraima, em Roraima. Desse total, ainda se


encontram no país cerca de 58.810. A maioria, 35.540, é solicitante de refú-
gio e 11.100 são residentes temporários (POLÍCIA FEDERAL, 2018).
O aumento do fluxo é exponencial. Em 2015, o número de vene-
zuelanos solicitantes de refúgio era 829, aumentando para 3.368 em 2016
(SIMÕES, 2017). Em 2017 foram registradas 17.865 solicitações de reco-
nhecimento da situação de refugiado (BRASIL, 2018f). Segundo pesquisa
realizada pela Cátedra Sérgio Vieira de Melo, pode-se afirmar que se trata
de um fluxo recente e sem precedentes (SIMÕES, 2017).
Relatório do Ministério dos Direitos Humanos, produzido pela Or-
ganização Internacional para as Migrações, demonstra que 67% dos mi-
grantes venezuelanos deixaram seu país por razões econômicas e laborais
e 22% por falta de acesso a alimentos e serviços médicos. Segundo o relató-
rio, o perfil dos venezuelanos que se encontram em Boa Vista e Pacaraima
é, majoritariamente, jovem (93% têm entre 15 e 49 anos)4, masculino (58%),
solteiro (50% são solteiros e os outros 50% dividem-se em casados, divor-
ciados e viúvos) e com um bom grau de escolaridade (51% cursaram até o
segundo grau, 26% concluíram o ensino superior e 2% são pós-graduados)
(BRASIL, 2018d).
No que diz respeito aos fatores de integração social, o acesso à docu-
mentação é primordial à efetiva inclusão social e ao acesso a direitos e, a
despeito da maioria dos venezuelanos chegar ao Brasil sem status regular
ou com visto de turista, a mencionada pesquisa aponta que 77% estão regu-
larizados depois do primeiro mês no Brasil (BRASIL, 2018d). Este número
tende a aumentar, uma vez que, após as entrevistas, foram inaugurados os
Postos de Recepção e Identificação e de Triagem na fronteira brasileira com
a Venezuela.
A maioria dos entrevistados afirmou ter acesso aos serviços básicos
e 40% recebeu algum tipo de apoio institucional. No entanto, 37% ainda
consomem menos de três refeições por dia (BRASIL, 2018d) e, segundo o
relatório da Reach Resource Centre, referente a junho de 2018, um número
significativo de venezuelanos em Boa Vista vive em espaços públicos, como
prédios desativados, praças e terminais de ônibus (REACH RESOURCE

4 Todos os entrevistados eram maiores de 18 anos ou emancipados, de modo que os dados devem
ser analisados com este recorte específico.

22
Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

CENTRE, 2018). Essa população acaba tendo acesso limitado a saneamen-


to básico e à eletricidade.
Apesar disso, casas alugadas e compartilhadas são a principal opção
de moradia dos migrantes e refugiados venezuelanos fora dos abrigos em
Boa Vista (REACH RESOURCE CENTRE, 2018). Algumas casas podem
acomodar até 20 pessoas, mas, em média, vivem duas a três famílias na
mesma casa, num total entre seis e dez pessoas. O estudo afirma que mui-
tos venezuelanos, vivendo fora dos abrigos em Boa Vista, residem em es-
paços cedidos por membros da comunidade anfitriã (REACH RESOURCE
CENTRE, 2018).
Os venezuelanos reportam ter uma boa relação com a comunida-
de. Atitudes de generosidade e receptividade, como doações de alimentos
e roupas, foram relatadas. Entretanto, há também crescentes indícios de
tensões e desconfiança, entre eles o assédio moral e sexual a mulheres e
atos de intimidação, praticados por motoristas contra pedestres venezue-
lanos. Soma-se a isso, o estigma que muitas das mulheres venezuelanas
sofrem, sendo comumente associadas à prostituição, e as tensões relacio-
nadas à superlotação dos serviços de saúde e ao receio, por parte dos brasi-
leiros, de perder oportunidades de trabalho para os venezuelanos (REACH
RESOURCE CENTRE, 2018).
A inserção no mercado de trabalho, de fato, constitui-se em impor-
tante fator para a integração social. Não obstante o bom nível de escolari-
dade do fluxo migratório venezuelano, 57% dos imigrantes venezuelanos
entrevistados em Roraima estavam desempregados. Ademais, 82% desem-
pregados estavam em postos de trabalho informais e 83% recebiam menos
que o salário mínimo brasileiro (BRASIL, 2018d).
Os números e proporções impressionam. Porém, não mais que as
imagens das ruas e dos abrigos de Roraima, não mais que os relatos dos
milhares de venezuelanos que resolveram recomeçar a vida em outro lugar,
deixando quase tudo para trás. Famílias que dormem em praças; mulheres
que se prostituem para sobreviver, antes por 80, agora por 30 reais, pois
são muitas; placas de papelão mostram o valor da diária de trabalho nos
semáforos. Esses são alguns dos retratos da imigração. Pais que vieram
sem os filhos; mulheres que se preocupam em como enviar dinheiro para
sua família que ficou; juízes e médicos que passaram a ser artistas de rua;
os reais que aparentam ser pouco, mas significam a subsistência de uma fa-

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Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

mília inteira do outro lado da fronteira; a violência sofrida em decorrência


de sua nacionalidade. Esses são alguns dos relatos da imigração.

5 MIGRAÇÃO VENEZUELANA NO BRASIL: CONTEXTO


E ESTRATÉGIAS
Destaca-se, primeiramente, que a imigração venezuelana está ocor-
rendo sob a égide da nova lei de migração, diferentemente do que ocorreu
com a síria e a haitiana. Anteriormente à Lei n. 13.445, de 24 de maio de
2017 (BRASIL, 2017), a matéria era regida pela Lei n. 6.315, de 19 de agosto
de 1980, o Estatuto do Estrangeiro (BRASIL, 1980), e pela Lei n. 9.474, de
22 de junho de 1997, a Lei de Refúgio (BRASIL, 1997). Ambas as normas
apoiavam-se nos preceitos de segurança nacional e ordem pública e viam
o estrangeiro como ameaça nacional. Dessa forma, o destinatário da legis-
lação era o próprio país e não os imigrantes e refugiados (FARAH, 2017).
O Estatuto do Estrangeiro foi criado durante o período da ditadura militar
no Brasil e tinha a característica da primazia da Segurança Nacional ainda
mais presente. Este estatuto enxergava o estrangeiro como inimigo e, por-
tanto, apresentava inúmeros aspectos contrários à Constituição Federal de
1988 (BRASIL, 1988).
A nova Lei de Migração (BRASIL, 2017) vem ajustar a legislação
migratória aos interesses e às garantias da Constituição Cidadã. A Lei n.
13.445/2017, ao invés da Segurança Nacional, tem como cerne os Direitos
Humanos e vislumbra o estrangeiro não como inimigo, mas como sujeito
de direitos em condição de igualdade com os nacionais, nos termos da
lógica fraterna da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). Se o Estatuto do
Estrangeiro era, em muitos aspectos, discriminatório e atrasado, a nova Lei
de Migração é a vanguarda da legislação mundial no tema, pois concede aos
imigrantes uma série de prerrogativas até então só conferidas para nacionais.
Entre as principais mudanças, destacam-se a desburocratização do
procedimento para regularização migratória, a institucionalização da po-
lítica de vistos humanitários, a não criminalização por razões migrató-
rias, além da previsão de uma série de novos direitos anteriormente não
concebidos. Dentre estes: o direito à liberdade de circulação em território
nacional; o direito à reunião familiar do imigrante com seu cônjuge ou
companheiro e os seus filhos, familiares e dependentes; o direito de trans-

24
Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

ferir recursos decorrentes de sua renda e economias pessoais a outro país,


observada a legislação aplicável; o acesso a serviços públicos de saúde e
de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discri-
minação em razão da nacionalidade e da condição migratória; o acesso à
justiça e à assistência jurídica integral gratuita, mediante comprovação de
insuficiência de recursos; o direito à educação pública; a garantia de cum-
primento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das
normas de proteção ao trabalhador; o direito à abertura de conta bancária;
o direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional,
ainda que pendentes os pedidos de residência, de prorrogação de estada
ou de transformação de visto em residência; e a isenção ao imigrante das
taxas previstas na lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica
(GUERRA, 2017).
A nova Lei de Migração (BRASIL, 2017) introduziu uma gama de
alternativas migratórias seguras, ordenadas e regulares. Ademais, regulou
o acesso a diversos direitos garantidos como universais na Constituição
Federal e, assim, trouxe maior segurança jurídica para a implementação de
políticas públicas pelos órgãos relacionados à temática.
No Brasil, diversos órgãos encarregam-se do tema. Para além dos
serviços básicos, disponibilizados sem distinção à população brasileira e
aos imigrantes, o país possui um Conselho Nacional da Imigração (CNIg).
Coordenado pelo Ministério do Trabalho, é constituído pela integração de
vários ministérios, associações de patrões e trabalhadores, que discutem
sobre a migração laboral. As Organizações não Governamentais (ONG) e
as organizações internacionais podem participar das reuniões do conselho
na condição de observadores.
De parceria do CNIg com a Universidade de Brasília e o Instituto
Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), nasceu o Observatório das Mi-
grações Internacionais, que analisa registros e publica relatórios anuais e
trimestrais sobre imigração. Ademais, no âmbito acadêmico, 21 universi-
dades de todo Brasil, organizações não governamentais e organizações in-
ternacionais integram a Cátedra Sérgio Vieira de Melo e se comprometem
a realizar ações de ensino, pesquisa e extensão em benefício dos refugiados.
A iniciativa contempla o ensino do português, os estudos sobre imigração,
as facilidades para refugiados ingressarem no ensino superior, entre outros.

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Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

O Brasil possui, ainda, um órgão responsável por decidir e revisar


todas as solicitações de refúgio no Brasil, bem como por definir a política
brasileira de refúgio, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do
Ministério da Justiça. Esse Comitê é constituído por representantes dos
Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, do Trabalho e Emprego,
da Saúde e da Educação, bem como pela Polícia Federal, atualmente ligada
ao Ministério da Segurança Pública, e por organizações da sociedade civil
dedicadas à assistência, integração local e proteção dos refugiados no Bra-
sil. Para além do Comitê Nacional, diversos estados brasileiros possuem
comitês estaduais de atenção a migrantes, refugiados, apátridas e vítimas
de tráfico de pessoas.
Ressalta-se, ainda, que o Brasil ratificou as principais convenções so-
bre o tema, como as relativas ao Estatuto do Refugiado, à Convenção dos
Trabalhadores Migrantes, ao Estatuto do Apátrida e à Convenção para a
Redução dos Casos de Apatridia. Além disso, o país é signatário de inú-
meros acordos bilaterais e o próprio Mercosul possui diversas disposições
sobre a temática.
Tudo isso demonstra que existe um movimento do Estado brasileiro
e da sociedade civil no sentido de bem acolher e integrar o imigrante, o
que é reconhecido mundialmente. No entanto, o Brasil ainda padece de
problemas estruturais que vão além da questão migratória e agravam-se
com movimentos populacionais substanciais, dificultando esse processo
de acolhimento.
Com a intensificação do fluxo de imigrantes provenientes da Vene-
zuela, o governo brasileiro federalizou a questão e estabeleceu – por meio
da Medida Provisória n. 820, de 15 de fevereiro de 2018 (BRASIL, 2018c)
– medidas de assistência emergencial para o acolhimento a pessoas em si-
tuação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por
crise humanitária. Para tanto, a medida provisória instituiu um Comitê
Federal de Assistência Emergencial – posteriormente regulamentado pelo
Decreto n. 9.286, de 15 de fevereiro de 2018 (BRASIL, 2018b) – e reconhe-
ceu a situação de vulnerabilidade do Estado de Roraima, tendo em vista o
fluxo migratório proveniente da Venezuela, por meio do Decreto n. 9.285,
de 15 de fevereiro de 2018 (BRASIL, 2018a).
Esse comitê é constituído pela Casa Civil, pelo Gabinete de Seguran-
ça Institucional da Presidência da República e por dez Ministérios, além de

26
Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

contar com a participação de organismos internacionais. O seu objetivo é


somar esforços para pensar projetos, atividades e estratégias para lidar com
o fluxo migratório e monitorar a execução destes. Desta feita, os Ministé-
rios envolvidos priorizaram e desenvolveram políticas específicas para a
região e incrementaram os repassasses para ela.
O Comitê Federal instituiu três subcomitês por meio de resoluções:
o Subcomitê Federal para Interiorização dos Imigrantes que se encontram
no estado de Roraima, o Subcomitê Federal para Recepção, Identificação
e Triagem dos Imigrantes e o Subcomitê Federal para Ações de Saúde aos
Imigrantes. Foi criado um plano operacional para assistência emergencial
aos imigrantes com o objetivo de ordenar a fronteira brasileira com a Vene-
zuela bem como ampliar e qualificar os abrigos para imigrantes na região,
sendo destinados 190 milhões para financiamento da operação por meio
da Medida Provisória n. 823 (BRASIL, 2018e).
O plano operacional do Governo Federal para tratar da questão ba-
seia-se no tripé ordenamento de fronteira, acolhimento e interiorização. O
ordenamento de fronteira, primeiro pilar da estratégia, tem por objetivo
recepcionar, orientar, regularizar a situação do imigrante e documentá-lo,
visto que uma migração ordenada e regular é também mais segura.
O posto de recepção e identificação recepciona o estrangeiro, presta
orientações sobre a legislação brasileira e instrui sobre as possibilidades de
regularização de sua situação, conforme o caso. Posteriormente, a Polícia
Federal faz a identificação e, por fim, são disponibilizadas vacinas para
imunização. Todos os estrangeiros que ultrapassam a fronteira devem pas-
sar pelo posto de identificação, no entanto somente aqueles que desejam
permanecer no país, e não estão regularizados e documentados, devem se-
guir para o posto de triagem.
Neste último é feito o cadastro do estrangeiro; a regularização mi-
gratória pela Polícia Federal; a documentação, com a retirada de Cadastro
de Pessoa Física (CPF); e o atendimento social realizado pelo Ministério
dos Direitos Humanos, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e pelo
Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA). O ACNUR e a Or-
ganização Internacional de Migração (OIM) são importantes atores nesse
processo e participam da operação por meio da orientação e do cadastro
dos estrangeiros.

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Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

Devidamente documentados e instruídos, os imigrantes que não


possuem recursos para custear uma moradia digna têm direito a abriga-
mento. Trata-se do segundo pilar da estratégia, o acolhimento. Nos pri-
meiros sinais de intensificação do fluxo migratório em Roraima, não havia
abrigos disponíveis no estado. Assim, foram improvisadas estruturas em
ginásios de esportes. No fim de 2016, foi criado um abrigo para acolher ve-
nezuelanos indígenas de etnia Warao, o Pintolândia, e, posteriormente, em
outubro de 2017, outro ginásio foi destinado a venezuelanos não-indígenas.
Quando da federalização das ações de assistência aos venezuelanos
existiam quatro abrigos em Roraima. Foram, então, construídos mais seis
e ainda há previsão de construção de mais dois, além das reformas estrutu-
rais nos existentes. A gestão dos abrigos passou a ser exercida diretamente
pelo Governo Federal e pelo ACNUR. Dos dez abrigos existentes, oito são
em Boa Vista e um em Pacaraima. Dois destes abrigos são destinados à
população indígena proveniente da Venezuela, composta, em sua maioria,
pela etnia Warao. Juntos, os abrigos construídos comportam, em média,
4.800 venezuelanos em situação de vulnerabilidade e a meta é abrigar um
total de 6.000 pessoas com a construção dos demais.
A construção de abrigos, entretanto, por si só, mostra-se inviável
como estratégia para lidar com o grande fluxo de imigrantes que chegam
todos os dias em Roraima, pois estima-se que há um incremento de cerca
de 400 venezuelanos por dia. É certo que os abrigos não se destinam a
este total, mas somente aos mais vulneráveis que permanecem no esta-
do. Entretanto, as chances de inserção social e no mercado de trabalho
diminuem, conforme o número de venezuelanos aumenta no estado, que
já apresenta sinais claros de saturação.
Assim, o terceiro cerne do plano operacional desenvolvido pelo Bra-
sil é a interiorização. Esta consiste na transferência dos imigrantes que as-
sim desejarem a outras cidades brasileiras. O objetivo dessa estratégia é
oferecer maior oportunidade de inserção socioeconômica aos imigrantes
venezuelanos e diminuir a pressão sobre os serviços públicos do Estado de
Roraima. São interiorizados somente os imigrantes devidamente regulari-
zados, imunizados, avaliados clinicamente e que manifestem vontade de
fazê-lo por meio de termo de voluntariedade.
Segundo os dados levantados pela OIM (BRASIL, 2018d), 52% dos
imigrantes entrevistados em Roraima desejam ir para outro país. Dos 48%

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Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

dos imigrantes que desejam continuar no Brasil, 78% desejam sair de Ro-
raima, a maioria para o Amazonas (59%) (BRASIL, 2018d). Essa estratégia
depende do interesse da cidade de destino e da disponibilidade de vagas
para os imigrantes em abrigos públicos ou da sociedade civil. São priori-
zados, neste processo, os imigrantes que residem nos abrigos de Roraima,
tendo em vista a vulnerabilidade que a eles geralmente está associada e
a possibilidade de abertura de novas vagas de abrigamento. O perfil dos
imigrantes selecionados é, ainda, determinado pelo público que o abrigo
de destino acolhe, sendo requerido que estejam documentados com o CPF
e a carteira de trabalho.
A estratégia de interiorização teve início em abril de 2018 e, até ju-
lho de 2018, foram realizadas cinco etapas. Assim, 820 pessoas saíram de
Boa Vista (RR) para São Paulo (SP), Cuiabá (MT), Manaus (AM), Igarassu
(PE), Jacumã (PB), Brasília (DF) e Rio de Janeiro (RJ). A principal razão
apontada pelos migrantes venezuelanos para desejarem se deslocar é a pos-
sibilidade de emprego (79,6%), seguida de ajuda econômica (11,2%) e ajuda
com moradia (5,2%). Aqueles que não gostariam de se deslocar para outros
estados (14,9% do total) apresentam como justificativa o fato de estar inte-
grados em Roraima (37,2%) e de preferir ficar próximos à fronteira (38,3%)
(SIMÕES, 2017).

6 CONCLUSÃO
Não obstante as inúmeras dificuldades, como o desabastecimento de
alimentos e remédios em seu país de origem, a caminhada cansativa até o
Brasil, o contato com a nova língua e os insultos e insatisfações de parte da
população brasileira, há, de outro lado, a mobilização de órgãos federais,
estaduais e municipais brasileiros, organizações internacionais, ONGs e
entidades que atuam juntos em um esforço coletivo para bem acolher. Há
também o descanso depois de dias de caminhada; a alimentação ofere-
cida depois de um jejum forçado; a documentação que vai possibilitar o
acesso a serviços básicos; a carteira de trabalho brasileira e a inserção no
mercado de trabalho; os novos brasileiros nascidos como frutos do deslo-
camento dos pais venezuelanos; e a expectativa de poder recomeçar a vida
em outro lugar.
A experiência brasileira com imigrações anteriores certamente ajuda
a lidar com esse novo e intenso fluxo de venezuelanos. O Brasil, tal como

29
Gustavo do Vale Rocha - Natália Vilar Pinto Ribeiro - Christianne Dias Ferreira

o conhecemos, é fruto de grandes movimentos populacionais e tem, em


seu bojo, uma das cidades que, historicamente, mais acolhe refugiados e
solicitantes de refúgio da América Latina. São Paulo é constituída por mi-
grantes brasileiros e estrangeiros de, aproximadamente, 80 nacionalidades
diferentes e é um retrato vivo da miscelânea cultural de nosso país (FA-
RAH, 2017). Não obstante essa bagagem histórico-cultural, as dificulda-
des são inúmeras e há muito para aprimorar, pois cada imigração possui
características próprias que precisam ser levadas em consideração para a
formulação de políticas públicas eficazes.
Em um mundo globalizado, torna-se cada vez mais difícil falar em
fronteiras, principalmente em fronteiras que barram o acesso a direitos,
dignidade e humanidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos
previu isso há 70 anos sob uma ótica de direitos, o que também ocorreu
em outras áreas, tendo em vista a economia, a informação, a produção e o
mercado de trabalho globalizados.
O Brasil precisa fazer valer sua legislação avançada e não transfor-
mar o estrangeiro no bode expiatório de nosso tempo. Visando à sua maior
efetividade, após a Nova Lei de Imigração, vários decretos foram criados a
fim de que a sua prática fosse regulamentada e seus preceitos não ficassem
só no papel. Nesse sentido, uma educação sob o ponto de vista dos Direi-
tos Humanos, baseada no multiculturalismo, na tolerância e na empatia é
mister para a efetivação dos direitos dos imigrantes plasmados na Lei de
Refúgio (BRASIL, 1997) e na Nova Lei de Migração (BRASIL, 2017).
No aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos e de 30 anos da Constituição da República Federativa do Brasil,
nossos vizinhos venezuelanos vêm nos lembrar muito mais do que a nossa
condição frágil e mutável. Eles vêm nos lembrar da importância da fra-
ternidade, da dignidade e dos direitos inerentes a todos os membros da
família humana e nos dão a oportunidade de efetivar o que preceituam
esses instrumentos fundantes do ordenamento jurídico brasileiro. Que se-
jam bem-vindos.

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Entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os novos fluxos migratórios: um resgate da humanidade perdida

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34
2
A EDUCAÇÃO DOMICILIAR
(HOMESCHOOLING) NO BANCO DOS
RÉUS: UMA BREVE ANÁLISE DO PRO-
CESSO E DO JULGAMENTO DO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO N. 888.815, SOB AS LU-
ZES DO DIREITO HUMANO FUNDAMEN-
TAL DA CRIANÇA À EDUCAÇÃO

LUÍS CARLOS MARTINS ALVES JR.


Bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí. Doutor em Direito
Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais. Professor
Titular de Direito Constitucional, Centro Universitário de Brasília.
Procurador da Fazenda Nacional. Secretário Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos.

RESUMO
Analisar, a partir da leitura das peças processuais e da oitiva dos votos
dos ministros do Supremo Tribunal Federal, por ocasião das sessões de
julgamento do feito, os principais fundamentos normativos e os mais rele-
vantes argumentos jurídicos, deduzidos pelas partes, magistrados e outros
atores processuais nos autos do Recurso Extraordinário n. 888.815, que
apreciou a questão da educação domiciliar (homeschooling), verificando se
essas manifestações estão em sintonia com o direito humano fundamental
da criança à educação.

Palavras-chave
Direitos Humanos Fundamentais. Direitos das Crianças. Educação Domi-
ciliar. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 888.815.

35
ABSTRACT
Analyze, based on procedural parts and on the Federal Supreme Court
ministers’ votes during trial sessions, main normative grounds and
most relevant legal arguments deduced by parties, magistrates and other
procedural actors in the case of Extraordinary Appeal n. 888.815, which
appreciated homeschooling and verified if these manifestations are in line
with the human fundamental right of children to education.

Keywords
Fundamental Human Rights. Children’s rights. Homeschooling. Federal
Supreme Court. Extraordinary Appeal n. 888.815.

36
A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

1 INTRODUÇÃO
O presente texto visa analisar os principais fundamentos normati-
vos e os mais relevantes argumentos jurídicos deduzidos por ocasião do
processo e do julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815 (BRASIL,
2018a) no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a educação
domiciliar (homeschooling) não está autorizada no Brasil.
Este artigo descansa sua justificativa no fato de que muitas famílias
brasileiras instruíam seus filhos fora do ambiente escolar, fortes na convicção
de que em casa a criança desenvolveria os seus potenciais intelectuais de
um modo mais apropriado do que na escola. Além desse aspecto fático, há
o conflito normativo, visto que as famílias entendem possuir a liberdade de
instruir os seus filhos fora da escola, enquanto que o Poder Público entende
que a criança deve ser educada na escola, seja a estatal ou a não-estatal.
A finalidade deste artigo consiste, no entanto, em apresentar os prin-
cipais fundamentos normativos, e os mais relevantes argumentos jurídi-
cos, deduzidos pelos atores processuais (partes e magistrados) no curso do
feito, levando em consideração as prescrições normativas, nacionais e in-
ternacionais, sobre os direitos humanos fundamentais das crianças, mor-
mente o de ser instruída e educada, a fim de verificar se as razões das partes
e dos magistrados são consistentes, convincentes e coerentes.
Para alcançar esse desiderato, o caminho a ser percorrido consiste
em analisar os autos do processo, lendo com atenção e rigor todos os expe-
dientes relevantes, escutar o áudio das sessões de julgamento do feito, dis-
ponibilizado em plataforma midiática, apreciar os textos normativos perti-
nentes e colher adequados subsídios no apropriado magistério doutrinário.
Nesse percurso, será visitado, inicialmente, o direito humano fundamental
da criança de ser educada. Depois, tratado o feito judicial.

2 O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL DA CRIANÇA


À EDUCAÇÃO

Está prescrito no caput do art. 6º da Constituição Federal (BRASIL,


1988) que a educação é um dos direitos sociais. No inciso XXV do art.
7º desse citado diploma político-normativo está enunciado o direito do

37
Luís Carlos Martins Alves Jr.

trabalhador à assistência gratuita aos seus filhos e dependentes, desde o


nascimento até cinco anos de idade, em creches e pré-escolas. Nessa toa-
da, entre os arts. 205 e 214 da Constituição consta uma seção apenas para
cuidar do tema “educação”. Dentre esses comandos normativos recorda-se
o caput do art. 205 que prescreve ser a educação direito de todos e dever do
Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Nos demais
comandos constitucionais, há a regulação da educação escolar formal a ser
prestada ou na rede pública ou na rede privada. No art. 227 está prescrito
que o Estado, a família e a sociedade assegurarão à criança, ao adolescente
e ao jovem, com absoluta prioridade, vários direitos, dentre eles o direito
à educação. Assim, sem maiores esforços interpretativos, à luz do quanto
prescrito na Constituição, houve a opção normativa preferencial pela edu-
cação formal escolar, concedendo aos pais a liberdade de escolher entre
uma escola pública ou uma escola particular. Cuide-se, a bem da verdade,
que a Constituição não veda explicitamente a possibilidade de educação
domiciliar. Daí que poderia o legislador infraconstitucional regulamentar
esse modelo alternativo de educação. Porém, essa regulamentação infra-
constitucional legal não adveio.
Com efeito, no plano infraconstitucional, a Lei n. 8.069, de 13 de ju-
lho de 1990 (BRASIL, 1990a), que dispõe sobre o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), estabelece, no art. 4º, em regulamentação ao texto
constitucional, o dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e
do poder público, com absoluta prioridade, a efetivação do direito referente
à educação, dentre outros direitos constitucionalmente assegurados. Ainda
no ECA, entre os arts. 53 e 59, há um extenso rol de preceitos que reco-
nhecem às crianças o direito de serem educadas em escolas, públicas ou
privadas, e o consequente dever da família e do Poder Público de viabilizar
que esse direito à educação escolar reitere-se.
A reforçar esse direito da criança, e o consequente dever da família e
do Estado, recorde-se o disposto na Lei das Diretrizes e Base da Educação
Nacional (LDB), (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) que preceitua
enunciados específicos sobre o tema da educação (BRASIL, 1996). O art.
1º dessa citada lei enuncia que a educação abrange os processos formativos
que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no traba-
lho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e or-

38
A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

ganizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. No § 1º desse


mencionado art. 1º está enunciado que a educação escolar desenvolve-se,
predominantemente, por meio do ensino em instituições próprias. E, no
art. 6º, está prescrito ser dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula
das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade. Para
as autoridades públicas está disposto, no §4º do art. 5º, que comprovada
a negligência da autoridade competente, para garantir o oferecimento do
ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.
Cuide-se que nessa LDB, entre os arts. 58 e 60, há a regulamentação
para a educação especial, entendida como a modalidade de educação esco-
lar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades
ou superdotação, e nessas hipóteses, sempre que, em função das condições
específicas dos alunos, não for possível sua integração nas classes comuns
de ensino regular, serão possíveis serviços especializados (BRASIL, 1996).
Portanto, se acaso for melhor para a criança, tendo em vista suas peculiares
características, sua não participação na escola formal, poderá ser autoriza-
da, excepcionalmente, a educação especial em serviços especializados. As-
sim, se a família comprovar que o melhor para a criança for sua não partici-
pação na escola, pública ou privada, poderá o órgão competente autorizar a
aplicação de modelo extraordinário de educação especial.
No plano normativo internacional, recorde-se o disposto na
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948), que prescreve, no art. 26, o direito
humano à instrução e, dentre outros comandos, o direito dos pais à
prioridade na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus
filhos. Por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992 (BRASIL, 1992),
o Brasil promulgou e internalizou o Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, que estabelece, em seu art. 13,
o direito das crianças à educação e o dever dos Estados Partes à garantia
desse direito, inclusive o direito dos pais de escolherem escolas distintas
das públicas. Nesse sentido, garante-se o direito de escolher uma escola,
mas não se dá o direito de não matricular em escola alguma. Tenha-se, por
fim, o Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990 (BRASIL, 1990b), que
promulgou e internalizou a Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo
art. 28 enuncia que os Estados Partes reconhecem o direito da criança à
educação e o seu exercício progressivo em igualdade de condições. Todos

39
Luís Carlos Martins Alves Jr.

esses citados diplomas internacionais não estipulam o modelo educacional,


conquanto sinalizem em favor da educação escolar, sem vedar a educação
ou o ensino domiciliar.
O tema da educação domiciliar (homeschooling) havia sido objeto
de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Mandado de
Segurança n. 7.407 (BRASIL, 2005), ocasião na qual o Tribunal negou o
direito à educação domiciliar, uma vez que não há previsão constitucio-
nal ou legal reconhecendo essa modalidade de ensino. Pede-se licença para
transcrever excertos do voto vencedor do ministro Peçanha Martins:
É inconteste que na conjuntura atual, quando se procura
erradicar o analfabetismo, reduzir o absenteísmo escolar,
retirar menores e adolescentes das ruas, estimular o retorno
às escolas etc., o ordenamento jurídico em vigor no país
pertinente ao ensino básico fundamental, constante de
preceitos constitucionais e legais, dispõe que a educação
é direito de todos e dever do Estado e da família, com
colaboração da sociedade, competindo ao poder público,
aos pais ou responsáveis e aos estabelecimentos de ensino
controlar a frequência às escolas, que não poderá ser inferior
a setenta e cinco por cento do total de horas do período letivo
para a aprovação.
São comoventes as constantes reportagens da TV sobre
professoras abnegadas e pessimamente remuneradas, nos
mais distantes rincões do país, improvisando salas de aulas;
alunos encanecidos desenhando letras com as mãos calejadas
pela labuta diária; crianças percorrendo quilômetros a pé, ou
em transportes precários como frágeis canoas nos igarapés
amazonenses, a fim de comparecerem às escolas. Outro
tanto se diga em relação a programas desenvolvidos por
diversas entidades privadas e governamentais, despertando o
interesse de menores e adolescentes por atividades culturais
e esportivas.
Os filhos não são dos pais, como pensam os Autores. São
pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se
devem forjar desde a adolescência em meio a iguais, no
convívio social formador da cidadania. Aos pais cabem,
sim, as obrigações de manter e educar os filhos, consoante
a Constituição e as leis do País, asseguradoras do direito
do menor à escola (art. 5º e 53, I, da Lei n. 8.096/90) e
impositivas de providências e sanções voltadas à educação
dos jovens como se observa no art. 129, e incisos, da Lei n.
8.096/90 supra transcritos, e art. 246, do Código Penal, que

40
A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

define como crime contra a assistência familiar “deixar, sem


justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade
escolar”, cominando a pena de “detenção de quinze dias a um
mês, ou multa, de vinte centavos a cinquenta centavos”.
Esses os motivos pelos quais, à míngua de direito líquido e
certo dos Autores, denego a segurança (BRASIL, 2005).

Nada obstante esse precedente superior, o Poder Judiciário foi no-


vamente instado a se manifestar sobre essa importante questão. Esse novo
processo, apreciado pelo STF, será apresentado a seguir.

3 O PROCESSO E O JULGAMENTO DO RE 888.815


O feito originou-se em um mandado de segurança (BRASIL,
2018a), impetrado em face de ato praticado pela Secretaria de Educação do
Município de Canela, Estado do Rio Grande do Sul, que não autorizou a
solicitação dos pais em educar a sua filha por meio da educação domiciliar.
O ato questionado está vazado no seguinte teor:
Em resposta a sua solicitação de educar sua filha, no Sistema
de Ensino Domiciliar, esta Secretaria, conforme decisão
do Conselho Municipal de Educação, e amparada na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e Estatuto da
Criança e do Adolescente, orienta para a imediata matrícula
de Valentina Dias na rede regular de ensino, assim como o
compromisso com a frequência escolar (BRASIL, 2018a).

A impetração aduziu que a convivência com outras crianças de di-


ferentes idades e com distintas formações culturais poderia ser prejudicial
para a criança impetrante, por aspectos morais, religiosos e até sexuais. Os
pais invocaram a liberdade de crença religiosa em favor de sua postulação
e evocaram a falência da educação pública brasileira para justificar a edu-
cação domiciliar. Na impetração aludiu-se inexistir normas proibitivas da
educação domiciliar e aludiram a uma lacuna normativa sobre o tema. O
ponto central da impetração reside na tese de que a primazia na educação
dos filhos pertence à família, de sorte que somente na hipótese de falência
familiar competiria ao Estado cuidar da educação das crianças. Segundo a
impetração, os pais não têm o direito de educarem domiciliarmente, mas o
dever de educarem no domicílio familiar. E, segundo a impetração, o Esta-
do é, portanto, uma estrutura auxiliar e subsidiária da família no processo
educacional das crianças.

41
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Na impetração, evocaram fundamentos normativos que dariam con-


forto à postulação e estariam ancorados em textos normativos constitucio-
nais, legislativos e internacionais, que, segundo a impetração, conduziriam
à tese segundo a qual a educação domiciliar é um dever familiar. E que os
pais possuem o direito natural de criarem e educarem os seus filhos, que
somente não poderão exercer esse direito/dever se não houver condições
de seu exercício. Ademais, a impetração recorda a legislação que autoriza
ao aluno ingressar em algum nível da educação básica sem necessidade
de ter frequentado anteriormente a escola, bastando a realização de uma
avaliação que meça seu grau de desenvolvimento. Nessa perspectiva, se-
gundo a impetração é possível que aquele que foi educado em casa possa se
submeter ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o que resultaria no
reconhecimento implícito da validade da educação domiciliar.
A impetração recordou como direito fundamental à liberdade de
crenças e de consciência, de sorte que obrigar os pais ao dever de matri-
cular os filhos em escolas (públicas ou privadas) seria uma violação a esses
dois direitos fundamentais. Na impetração concluiu-se:
1. O ensino domiciliar não é proibido no Brasil. Não há ne-
nhuma norma jurídica que, expressamente, o considere invá-
lido. E casos como esse, aplica-se o princípio constitucional
da legalidade, que considera lícito qualquer ato que não seja
proibido por lei;
2. O ensino domiciliar é um dever que os pais ou responsá-
veis têm com relação aos filhos. A educação, em sentido am-
plo, deve ser dada principalmente em casa, sendo a instrução
escolar apenas subsidiária;
3. O ensino domiciliar também é um direito dos pais, pois,
conforme o Código Civil, uma das atribuições decorrentes
do poder familiar é a de dirigir a educação dos filhos. A es-
colarização somente é necessária se os pais não puderem ou
não quiserem educar os filhos em casa;
4. Essa interpretação foi adotada implicitamente pelo Minis-
tério da Educação ao dispor que a obtenção de determinada
pontuação no Enem dá direito a um certificado de conclusão
do ensino médio, sendo desnecessária qualquer comprova-
ção escolar;
5. A matrícula em instituição de ensino somente é obrigató-
ria, nos termos da LDB e do ECA, para os menores que não
estejam sendo ensinados em casa ou cuja educação domici-
liar revele-se, indubitavelmente, deficiente;

42
A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

6. Somente há crime de abandono intelectual se não for


provida instrução primária aos filhos. O CP, ao prever essa
conduta, não colocou como requisito que essa instrução deva
ser dada na escola; e
7. O Conselho Tutelar tem o poder, assegurado legalmente,
de fiscalizar a educação recebida por crianças e adolescentes,
podendo, inclusive, submeter aqueles educados em casa a
avaliações de desempenho intelectual condizente com sua
idade. Não pode, porém, determinar o modo como serão
educados, em casa ou na escola, o que constituiria abuso
de autoridade por intromissão indevida na esfera do poder
familiar dos pais (BRASIL, 2018a).

O juiz de primeiro grau sentenciou (BRASIL, 2018d), indeferindo de


pronto a inicial, forte no argumento de que não havia direito líquido e cer-
to a viabilizar a pretensão contida no mandado de segurança e entendeu
que não existia possibilidade jurídica do pedido por absoluta falta de am-
paro legal. E o juiz assinalou:
O convívio em sociedade implica respeitar as diferenças que
marcam a personalidade de cada indivíduo. Em tenra idade,
a escola é o primeiro núcleo em que a pessoa se vê diante des-
sas diferenças. Há contato com colegas de diferentes religiões,
cor, preferência musical, até de nacionalidades distintas, etc.
O mundo não é feito de iguais.
Uma criança que venha a ser privada desse contato possi-
velmente terá dificuldades de aceitar o que lhe é diferente.
Não terá tolerância com pensamentos e condutas distintos
dos seus.
A escola é um ambiente de socialização essencial na formação
dos indivíduos. Nela se aprende a conviver com o outro, de-
senvolvendo-se a alteridade necessária à vida em sociedade.
Ademais, a orientação religiosa de um cidadão não se sobre-
põe à observância das normais legais que regem o país em
que vive.
No Brasil, a educação é dever do Estado e da família, confor-
me estabelece o artigo 205 da Constituição Federal. Assim
sendo, foi devidamente regulamentada mediante a sua divi-
são em ensino infantil, fundamentai, médio e superior.
Consequentemente, cabe à impetrante frequentar o ensino
regularmente estabelecido e reconhecido pelo Poder Público.
Nada impede, evidentemente, que em horário não colidente
com o da escola, tenha contato com outros métodos de en-
sino, inclusive religiosos, que seus pais entendam adequados

43
Luís Carlos Martins Alves Jr.

ao seu desenvolvido físico e psíquico, até porque a formação


moral compete à família.
Se o aluno recebe uma boa educação em casa, estabelecendo
os limites do certo e do errado, o que for ensinado na vida dis-
cente apenas acrescentará valores à sua formação. Não será,
entretanto, capaz de mudar-lhe o comportamento a ponto de
negar os ensinamentos que recebeu no lar (BRASIL, 2018d).

Irresignados, os impetrantes manejaram os competentes recursos e


interpuseram recurso de apelação para o Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul. Em seu apelo, os impetrantes reiteraram as principais
razões contidas na petição inicial. Perante o tribunal gaúcho, o Ministé-
rio Público (BRASIL, 2018e) opinou pela manutenção da sentença e in-
deferimento da impetração. Essa opinião fundou-se no cânone de que a
educação é um dever do Estado e dos pais, e que consiste em um direito
social fundamental da criança à educação, e que não há o direito de não
frequentar a escola, cabendo aos pais zelar por essa frequência escolar. E,
segundo o Parquet, no conflito entre os direitos ideológicos e religiosos dos
pais e os deveres deles com a educação escolar dos filhos, há de prevalecer
este sobre aqueles.
O acórdão do Tribunal de Justiça (BRASIL, 2018f) negou provi-
mento ao apelo dos impetrantes e manteve a sentença, reforçando o as-
pecto de que não há que se falar em “direito líquido e certo”, visto que não
há Lei confortando o interesse postulado. A decisão do TJ encampou os
fundamentos normativos e os argumentos jurídicos deduzidos na sentença
judicial. Nada obstante, vez mais irresignados, os impetrantes interpuse-
ram recurso extraordinário para o STF (BRASIL, 2018g) e alegaram:
a) A obrigatoriedade de ensino prevista no art. 208, I, da
Constituição, dirige-se somente ao Estado;
b) A Constituição não pretende criar um Estado totalitário e
paternalista que possa validamente se substituir aos pais na
escolha da melhor educação a ser dada aos filhos (arts. 1º,
caput, - ‘Estado Democrático de Direito’, e V – ‘pluralismo
político’; 3º, I; 206, II e III);
c) Cabe, sim, ao Poder Público fiscalizar as condições em
que o ensino privado é ministrado, mas jamais proibir uma
modalidade de ensino sem qualquer razão para tanto – a
escola não é o único lugar em que as crianças podem ter
contato com a diversidade;

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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

d) Ademais, é necessário, no presente caso, a aplicação do


princípio da razoabilidade por tratar-se ‘de um valioso
instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do
interesse público, [...] por funcionar como a medida com que
uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a
melhor realização do fim constitucional nela embutido ou
decorrente do sistema”. Assim, os dispositivos da Lei n. 8.069,
de 13 de julho de 1990, e da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que obrigam a matrícula devem ser interpretados
dessa maneira: Os pais são obrigados a dar educação aos
filhos, mas têm liberdade para escolher o melhor meio para
tanto, considerados o interesse da criança e as suas convicções
pedagógicas, morais, filosóficas e religiosas. Nesse contexto,
somente poderão ser obrigados a matricular seus filhos na
rede regular de ensino se, de outra forma, não puderem
prover à educação dos filhos(BRASIL, 2018g).

Na petição de recurso extraordinário, além de repisar os fundamen-


tos e argumentos esgrimidos desde a inicial, os recorrentes recordaram vá-
rias decisões no plano do direito comparado, visando demonstrar que em
nações desenvolvidas, o respectivo Poder Judiciário reconheceu o ensino
domiciliar, além de se fiar em respeitável magistério doutrinário justifica-
dor de sua pretensão, bem como invocando preceitos de textos normativos
internacionais que autorizariam o reconhecimento do direito à educação
domiciliar. No apelo extraordinário concluiu-se:
O acórdão da Apelação Cível n. 70052218047 é flagrantemente
inconstitucional, uma vez que ao impedir a educação em casa,
com realização de provas normais em sala de aula, restringe
arbitrariamente o sentido da expressão educar no art. 229 da
CF à realizada em estabelecimento de ensino convencional,
ignorando os diversos princípios constitucionais relativos
à educação, à família, bem como garantias fundamentais
individuais.
Os Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário,
bem como os documentos relativos a direitos humanos de
maior relevância para as modernas democracias são unâni-
mes quanto à garantia do direito fundamental dos pais de
escolherem os meios que julgarem mais apropriados para
educar seus filhos.
Deve-se dar aos arts. 6° da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que
preveem a obrigatoriedade de matrícula em estabelecimento
de ensino, interpretação conforme a Constituição. Os pais

45
Luís Carlos Martins Alves Jr.

são obrigados a dar educação aos filhos, mas têm liberdade


para escolher o melhor meio para tanto, considerados o
interesse da criança e as suas convicções pedagógicas, morais,
filosóficas e religiosas. Nesse contexto, somente poderão ser
obrigados a matricular seus filhos na rede regular de ensino
se, de outra forma, não puderem e prover à educação das
crianças. (BRASIL, 2018g).

Em face desse recurso extraordinário, o Município de Canela apre-


sentou suas contrarrazões (BRASIL, 2018h) e defendeu a manutenção do
acórdão recorrido. Segundo o Município:
O ensino domiciliar não pode ser visto como um substituto
do ensino escolar, mas sim como uma complementação,
uma participação ética e conjunta dos pais na educação de
seus filhos.
A escola proporciona o primeiro contato das crianças com
a sociedade em que vivem, pois é o primeiro lugar que fre-
quentam fora do âmbito familiar.
A participação dos pais na educação das crianças é essencial
para o desenvolvimento escolar de seus filhos, pois são eles
que fornecem suporte moral, social e emocional às crianças,
por isso devem participar efetivamente da vida escolar delas,
acompanhando seus estudos, auxiliando nas tarefas e incen-
tivando a leitura.
Todavia, a ida à escola, o convívio diário com pessoas dife-
rentes, com os professores, a realização de atividades de clas-
se e em grupo são fundamentais, pois propiciam o desenvol-
vimento da criança, proporcionando o desenvolvimento da
criatividade e do descobrimento de seus talentos.
A simples divisão de tarefas em uma atividade em grupo
funciona como propulsora para a formação pessoal como ser
humano, pois visualizam que cada pessoa tem seu papel na
construção de um trabalho comum, aprendendo o porquê da
convivência em sociedade (BRASIL, 2018h).

No STF, o feito restou distribuído ao ministro Luís Roberto Barro-


so, que saneou vícios procedimentais e submeteu ao Tribunal a seguinte
proposta de questão constitucional, que restou acolhida pela Corte: “[...]
saber se o ensino domiciliar (homeschooling) pode ser proibido pelo Es-
tado ou viabilizado como meio lícito de cumprimento, pela família, do
dever de prover educação, tal como previsto no art. 205 da CRFB/1988”
(BRASIL, 2018c).

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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

A relevância da referida controvérsia constitucional provocou a obri-


gatória manifestação da Procuradoria-Geral da República (BRASIL, 2018i),
e manifestações facultativas, como amici curiae, da Advocacia-Geral da
União (BRASIL, 2018j), do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos
Estados e do Distrito Federal (BRASIL, 2018k) e da Associação Nacional de
Educação Domiciliar (BRASIL, 2018l).
O Procurador-Geral da República (PGR) opinou no sentido do des-
provimento do recurso extraordinário e pela ilicitude do ensino domici-
liar. Eis trechos relevantes da ementa do parecer ministerial:
1 - Proposta de Tese: A utilização de instrumentos e métodos
de ensino domiciliar (homeschooling) para crianças e adoles-
centes em idade escolar em substituição à educação em esta-
belecimentos escolares, por opção dos pais ou responsáveis,
não encontra fundamento próprio na Constituição Federal.
2 [...].
3 - Pais e responsáveis legais não têm autorização para,
mediante invocação do poder familiar, negar aos filhos
educação nos parâmetros legais, ainda que na forma da
escusa constitucional de consciência e de crença (art. 52,
VI, da CF I 1988). Inexiste estipulação legal de prestação
alternativa que lhes permita escusar-se da obrigação legal a
todos imposta de matricular seus filhos e mantê-los na escola
(art. 52, VIII, da CF/1988).
4 - É inconcebível tutelar juridicamente práticas deliberadas
de desescolarização no país, sem que haja previsão legal que
as autorize e compatibilize com o imperativo constitucional
de formação integral e socialização do educando.
5 - A Carta elevou a educação ao patamar de direito consti-
tucional. Não está vedada, pela Constituição, a criação legal
de estratégias alternativas ao ensino escolar, desde que res-
guardado o projeto constitucional de socialização e formação
plena do educando. Novas formas de escolarização, meios de
aferição da frequência escolar e outras variáveis do padrão
pedagógico de ensino devem ser autorizados pelo Poder Le-
gislativo, locus republicano de debate e deliberação públicos
por excelência, dada a forte implicância política do tema.
6 - Impossibilidade de considerar, no que se refere ao caso
sub judice, o ensino domiciliar, ministrado pela família,
como meio lícito de cumprimento do dever de educação
(BRASIL, 2018i).

47
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Em seu parecer, o PGR formulou duas indagações para enfrentar o


mérito da questão:
a) A utilização de instrumentos e métodos de ensino do-
miciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, em
substituição à educação em estabelecimentos escolares, por
opção dos pais ou responsáveis, tem fundamento na própria
Constituição Federal?
b) Em caso de resposta negativa para a primeira questão, é
possível a adoção, pela via legislativa, dos referidos instru-
mentos e métodos de ensino domiciliar para crianças e ado-
lescentes em idade escolar, sem entrar em conflito com as
disposições constitucionais? (BRASIL, 2018i)

Para alcançar suas conclusões às indagações acima elencadas, o PGR


partiu da correta premissa de que a educação não se resume ao processo
ensino-aprendizagem de conteúdos curriculares, mas integra a iniciação
da vida em sociedade, mediante o reconhecimento do outro e o respeito à
diversidade e pluralidade. De porte dessa pré-compreensão, o PGR cons-
truiu suas alegações no sentido de que, enquanto não advier lei específica,
regulando o ensino domiciliar, não há espaço para esse modelo alternativo
educacional em nosso país. Nesse caminho, o PGR buscou suporte nas ex-
periências estrangeiras e colheu opiniões de respeitáveis especialistas edu-
cacionais, para concluir que a educação domiciliar, em si, não está vedada,
mas que, no Brasil, ela necessita de autorização legal, o que não existe.
O Advogado-Geral da União (AGU) também se manifestou pelo des-
provimento do recurso extraordinário, forte na tese de que o ordenamento
jurídico exige a frequência escolar para as crianças, competindo aos pais e
professores zelarem por essa regularidade. Ademais, entende o AGU que
o processo educacional é complexo e deve ser praticado tanto pela escola
quanto pela família, com o auxílio da comunidade, de sorte que não há es-
paço para a exclusividade educacional familiar ou domiciliar, em prejuízo
da educação escolar, sobretudo para as famílias mais carentes. Outrossim,
na escola, a criança terá acesso a outros conhecimentos que talvez a família
não consiga oportunizar, o que é válido para o seu processo de amadureci-
mento, como sucede com ensinamentos e práticas sobre diversidade, tole-
rância e pluralidade. Nessa perspectiva, escola e família, segundo a legisla-
ção brasileira, devem ser instituições galvanizadoras do desenvolvimento
integral da criança.

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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

O Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Dis-


trito Federal, na mesma toada do PGR e do AGU, manifestou-se pelo des-
provimento do recurso extraordinário. Em sua manifestação, o Colégio
aduziu aspectos metajurídicos sobre o processo educacional, sobre os pa-
péis da família, da escola e da comunidade. Também invocou decisões de
outros tribunais e documentos normativos internacionais em favor de sua
postulação. No entanto, o Colégio assinalou que um dos papeis da escola
é preservar os filhos de seus pais. Essa perspectiva é arriscada, pois coloca
em xeque o papel central da família e dá valor sobranceiro à escola. Nada
obstante, o Colégio reconheceu a importância de uma escola capaz de ensi-
nar, além de conhecimentos, valores indispensáveis para uma boa vida em
sociedade. Daí que, para o Colégio, qualquer forma de ensino domiciliar é
inconstitucional na medida em que afasta a criança da escola formal.
A Associação Nacional de Educação Domiciliar (Anede), forte no
fato de que a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural é a famí-
lia, achegou pesquisa junto às famílias praticantes da educação domiciliar
e recordou os Princípios do Rio, elaborados e assinados pelos participantes
do Global Home Education, no ano de 2016, reiterando o papel sobranceiro
da família na formação e educação dos filhos em face do Estado e, por essa
razão, seria possível uma leitura do texto constitucional autorizadora de
modelos educacionais alternativos aos modelos oficiais. Em sua manifes-
tação, a Anede recordou decisões judiciais e o magistério doutrinário que
colocam a dignidade da pessoa humana e o pluralismo ideológico (políti-
co, moral, religioso etc.) como fundamentos do Estado democrático e da
sociedade brasileira. Isso implicaria o reconhecimento de modos de viver
alternativos, mas dentro da normalidade institucionalizada, como sucede
com o interesse ao homeschooling.
Nessa linha, a Anede reforçou a tese do caráter subsidiário do Esta-
do em face da família, mormente em matéria educacional. Para isso, adu-
ziu diplomas normativos internacionais de direitos humanos que, ao seu
ver, endossariam a pretensão deduzida. Também evocaram a liberdade de
crença religiosa em favor de sua postulação, na medida em que pretendem
evitar que os filhos tenham acesso a magistério contrário ao das fés dos
pais das crianças. Defenderam que a socialização das crianças participan-
tes do homeschooling não é pior do que as das crianças das escolas formais
e que teriam, inclusive, melhores desempenhos intelectuais e emocionais
do que as outras crianças. Ao final, a Anede requereu:

49
Luís Carlos Martins Alves Jr.

a) O reconhecimento do modelo educacional conhecido no


Brasil como Educação Domiciliar como um direito constitu-
cional autoaplicável, podendo o Estado brasileiro, se assim o
desejar, adotar os procedimentos necessários para registrar
os educandos e seus responsáveis legais que optem pela prá-
tica, podendo, ainda, adotar parâmetros educacionais, peda-
gógicos e psicopedagógicos atuais para medir os resultados
educacionais dessas famílias optantes, em tudo levando-se
em conta os ideais e princípios basilares de liberdade que
fundamentam o Estado Democrático de Direito brasileiro, a
necessária colaboração da sociedade, assim como as finali-
dades da Educação Nacional insculpida na Constituição da
República Federativa do Brasil;
b) Alternativamente, o reconhecimento do direito fundamen-
tal democrático à objeção de consciência como fundamento da
adoção da educação domiciliar pelas famílias (BRASIL, 2018l).

A Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente


(BRASIL, 2018n) apresentou nota técnica sobre essa questão e manifes-
tou-se no sentido de que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, au-
torização normativa para o homeschooling e que para que esse modelo
passe a existir, no Brasil, é necessária a edição de lei regulamentando
com rigor esse modelo educacional, visto que a criança tem o direito de
frequentar uma escola, ou pública ou privada, e os pais têm o dever de
matriculá-la. Essa tem sido a opção normativa do Estado brasileiro, daí
que somente se houver lei aprovada pelos legítimos representantes eleitos
do povo é que se pode cogitar um modelo educacional alternativo ao mo-
delo educacional escolar. A escola é um espaço que ocupa lugar relevante
no processo de amadurecimento da criança, sem diminuir ou substituir
o espaço central que é indiscutivelmente da família. Mas ambas devem
ter como perspectiva o melhor interesse da criança, seu desenvolvimento
moral, espiritual, intelectual e sua capacidade de conviver em uma socie-
dade plural e complexa.
De posse dessas alegações, os ministros do STF enfrentaram o tema.
O relator, ministro Luís Roberto Barroso, expôs a controvérsia a partir de
duas indagações redutoras de complexidade:
1. Podem os pais ou responsáveis por uma criança optarem
pelo ensino domiciliar para a educação dos filhos ou a Cons-
tituição exige a matrícula das crianças na escola?

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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

2. No caso de se admitir a educação domiciliar, quais são os


requisitos e obrigações a serem observados, considerando
que não há uma lei específica que regulamente o ensino do-
miciliar? (BRASIL, 2018c).

Segundo o ministro relator, do ponto de vista jurídico não há norma


constitucional específica sobre o tema, visto que a Constituição só trata
do ensino oficial. Logo, há duas possibilidades interpretativas, segundo o
relator: uma, a de que somente é possível o ensino formal, escolar ou, a se-
gunda, de que como a Constituição não veda o ensino domiciliar, deve-se
respeitar a autonomia dos pais na escolha do modelo educacional dos seus
filhos. O relator parte de quatro premissas: primeira, o Estado brasileiro
é gigantesco e ineficiente, e pratica políticas públicas inadequadas e sem
qualquer tipo de monitoramento; segunda, os resultados das avaliações
educacionais estão sendo desoladores e revelam a falência da educação
pública brasileira; terceira, por convicção filosófica, o relator é favorável
à autonomia e à emancipação das pessoas, do que ao paternalismo e às
intervenções heterônomas do Estado, salvo onde essas intervenções são
indispensáveis; e quarta, e última, o fato de se admitir a possibilidade de
educação domiciliar não significa um juízo de valor sobre a eventual supe-
rioridade desse modelo em relação à educação escolar, mas que cabe a cada
pai escolher qual o melhor modelo para os seus filhos.
Depois de fincar essas premissas, o relator passou a tecer comentá-
rios sobre o homeschooling, analisando a situação e as várias modalidades.
Assim, elencou sete razões para que os pais escolhessem essa modalida-
de educacional: primeira, o desejo de conduzir diretamente o desenvolvi-
mento dos filhos; segunda, o fornecimento de instrução moral, científica,
filosófica e religiosa da forma que os pais consideram a mais adequada;
terceira, a proteção da integridade física ou mental dos educandos, reti-
rando-os de ambientes escolares agressivos, incapacitantes ou limitadores;
quarta, o descontentamento com a real eficácia do sistema escolar ofertado
pela rede pública ou privada; quinta, o desenvolvimento de um plano de
ensino personalizado e adaptado às peculiaridades das crianças e dos ado-
lescentes; sexta, a crença da superioridade do método de ensino doméstico
em relação aos métodos tradicionais empregados pela rede regular de en-
sino; e sétima, a dificuldade de acesso a instituições de ensino tradicionais
em virtude de dificuldades financeiras ou geográficas. Para o relator, as
preocupações dos pais com o desenvolvimento educacional e emocional

51
Luís Carlos Martins Alves Jr.

dos seus filhos são genuínas, pois nenhum pai ou mãe faz essa opção por
preguiça, visto que é mais difícil educar em casa do que encaminhar o filho
para a escola.
No decorrer de seu voto, o relator buscou as exitosas experiências
estrangeiras sobre o homeschooling, bem como de julgamentos de outras
cortes sobre o tema, e depois passou a enfrentar os argumentos contrários
a esse modelo educacional, basicamente para dizer que não há na Consti-
tuição preceito que vede a adoção dessa modalidade educacional, e que a
criança seria avaliada periodicamente para aferir o seu aprendizado. Ade-
mais, recordou pesquisas empíricas, demonstrando a inexistência de pro-
blemas de socialização de crianças que participam da educação domiciliar,
e recordou diretivas internacionais que autorizaram aos pais escolher o gê-
nero de educação dos filhos, inclusive em respeito à ampla livre iniciativa,
não apenas no aspecto econômico, mas, inclusive, no plano das liberdades
ideológicas, como as religiosas, de consciência e de convicções filosóficas
ou políticas. Na finalização de seu voto, o relator fixou as seguintes teses
para efeitos de repercussão geral:
a) É constitucional a prática de ensino domiciliar a crianças e
adolescentes em virtude da compatibilidade com finalidades
e os valores da educação infanto-juvenil, expressos na Cons-
tituição de 1988;
b) Para evitar eventuais ilegalidades e garantir o desenvolvi-
mento acadêmico das crianças e adolescentes, e avaliar quali-
dade do ensino até que seja editada lei específica sobre tema
com fundamento no artigo 209, os seguintes parâmetros de-
vem ser seguidos:
1 Os pais ou responsáveis devem notificar secretaria munici-
pal de educação a opção pela educação domiciliar de modo a
se manter cadastro e registros dessas famílias que adotaram
essa opção de ensino naquela localidade;
2 Educandos domésticos, mesmo que autorizados ao ensino
em casa, devem ser submetidos às mesmas avaliações peri-
ódicas a que se submetem os demais estudantes de escolas
públicas ou privadas;
3 As secretarias municipais de educação, a partir do cadastro,
devem indicar escola pública em que a criança irá realizar
avaliações periódicas com preferência em estabelecimento de
ensino mais próximo ao local de residência;
4 As secretarias municipais de educação podem comparti-
lhar informações do cadastro com demais autoridades, como

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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

ministério público, conselhos municipais de direitos e/ou


conselhos tutelares; e
5 Em caso de comprovada deficiência na formação acadêmica
verificada por meio do desempenho nas avaliações periódicas
anuais, cabe aos órgãos públicos competentes notificarem os
pais e na hipótese em que não haja melhoria do rendimento
dos testes periódicos, determinar a matricula das crianças e
adolescentes submetidas ao ensino doméstico na rede regular
de ensino. (BRASIL, 2018b).

Segundo o relator, com essas regras estariam conciliados os diferen-


tes interesses em jogo: o dos pais em educar os seus filhos em casa, e os do
Estado em verificar se o ensino domiciliar está permitindo o pleno desen-
volvimento da criança. Em que pese os judiciosos argumentos do relator,
a maioria do tribunal dele divergiu. Essa divergência foi inaugurada pelo
ministro Alexandre de Moraes (BRASIL, 2018m), que restou secundado
pelos demais ministros da corte presentes na sessão de finalização do jul-
gamento (Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Cármen Lúcia).
Em sua divergência vencedora, o ministro Alexandre de Moraes
partiu de três premissas: a primeira, saber se a Constituição veda expres-
samente a educação domiciliar; a segunda, se não vedar expressamente,
qual modelo de ensino domiciliar pode ser válido; e terceira, se o ensino
domiciliar é autoaplicável ou se há necessidade de regulamentação legal
pelo Congresso Nacional.
E, segundo o ministro Alexandre de Moraes, não há vedação cons-
titucional ao ensino domiciliar. Nada obstante, o ministro Alexandre di-
ferencia educação de ensino. Para ele, há uma solidariedade na educação
envolvendo a família, o Estado e a sociedade, que devem compartilhar as
responsabilidades pela educação das crianças, dos adolescentes e dos jo-
vens. Daí que inafastável a participação da família na formação (educação,
no sentido amplo) da criança, sem prejuízo da atividade de ensino (educa-
ção formal) da escola. E que nas democracias as famílias devem participar
do processo de ensino e não se pode afastar a escola da educação. Há uma
relação solidária e simbiótica para que ambas cooperem, como parceiras,
em favor dos interesses das crianças e dos adolescentes. Nessa perspectiva,
segundo o ministro Alexandre de Moraes, a educação domiciliar possível
é aquela que respeita os comandos constitucionais e legais, pertinentes e
similares à educação escolar, aceitando inclusive a participação estatal com

53
Luís Carlos Martins Alves Jr.

a fiscalização e com os conteúdos básicos mínimos, a fim de aferir periodi-


camente os conhecimentos assimilados pelas crianças.
Porém, segundo o ministro Alexandre de Moraes, e eis a divergência
central com o voto do relator ministro Luís Roberto Barroso, esse direito
não é autoaplicável e diretamente extraído da Constituição, pois necessita
da intermediação legislativa do Congresso Nacional. Assim, somente have-
ria direito à educação domiciliar se houvesse lei específica regulando esse
tema. É que, para o ministro Alexandre de Moraes, todas as normas cons-
titucionais e infraconstitucionais conduzem à educação escolar, mas não
vedam a possibilidade de educação domiciliar, desde que, reitera o minis-
tro, haja legislação específica regulamentando o tema. Os demais ministros
da corte acompanharam a divergência e entenderam que não há direito à
educação domiciliar à míngua de amparo legal. Em seus votos, os minis-
tros acolheram os principais argumentos aduzidos pelas partes contrárias
ao provimento do recurso.

4 CONCLUSÃO
A escola não deve substituir a família naquilo que é de competência
desta, nem a família deve substituir a escola no que é de competência da-
quela. A família educa e também ensina, e a escola ensina e também educa.
Ambas exercem de modo simbiótico uma relação cooperativa em favor da
criança. Nas hipóteses de famílias disfuncionais, a escola é um refúgio para
a criança e, na hipótese de escola disfuncional, a família é o esteio da crian-
ça. Daí que a decisão do STF foi adequada, visto que, enquanto não advier
lei regulando homeschooling, toda criança tem o direito de frequentar a
escola e é dever dos pais e do Estado garantirem o exercício desse direito.

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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

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em 12 set. 2018. 2018h. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=ukcCsqDKlAA>. Acesso em: 23 set. 2018.

56
A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus: uma breve análise do processo e do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.


855.815. Parecer do Procurador-Geral da República. Julgamento
em 12 set. 2018. 2018i. Disponível em: < https://www.youtube.com/
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______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.


855.815. Manifestação do Advogado-Geral da União. Julgamento
em 12 set. 2018. 2018j. Disponível em: <https://www.youtube.com/
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______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815.


Manifestação do Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados
e do Distrito Federal. Julgamento em 12 set. 2018. 2018k. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ukcCsqDKlAA>. Acesso em: 25 set.
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______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815.


Manifestação da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned).
Julgamento em 12 set. 2018. 2018l. Disponível em: < https://www.
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______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815.


Voto ministro Alexandre de Moraes. Julgamento em 12 set. 2018. 2018m.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ukcCsqDKlAA>.
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______. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional dos


Direitos da Criança e do Adolescente. Nota Técnica: processo n.
00135212349/2018-02. 2018n. Disponível em: <http://www.mdh.gov.br/
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal


dos Direitos Humanos: proclamada em 10 de dezembro de 1948.
Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.
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57
3
DAS POLÍTICAS ÀS AÇÕES: DIREITOS DA
PESSOA IDOSA NO BRASIL
SIMONE MARTINS
Mestre e Doutora em Administração. Professora do Departamento
de Administração e Contabilidade da Universidade Federal de
Viçosa (UFV). Coordenadora do grupo de trabalho do Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO). Líder do Grupo de
Pesquisa/CNPq em Espaços Deliberativos e Governança Pública.

ANDRÉIA QUEIROZ RIBEIRO


Mestre e Doutora em Ciências Farmacêuticas. Professora do Departamento
de Nutrição e Saúde da UFV. Orientadora no Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Nutrição da UFV. Coordenadora do Grupo de Estudos e Práticas em
Envelhecimento, Nutrição e Saúde da UFV. Coordenadora técnico-científica do
Programa Municipal da Terceira Idade da UFV/Prefeitura Municipal de Viçosa.

RESUMO
As mudanças no perfil populacional sinalizam desafios e requerem ações
transformadoras para o combate à discriminação etária e para um enve-
lhecimento ativo, saudável, cidadão e sustentável. O objetivo do presente
artigo é realizar uma análise dos estudos sobre as temáticas “envelheci-
mento” e “Política do Idoso” no Brasil, a partir de levantamento bibliográ-
fico em periódicos nacionais, indexados no Portal Periódicos Capes nos
últimos cinco anos, e compreender como os resultados desses estudos dia-
logam com os marcos legais voltados à promoção e proteção dos direitos
das pessoas idosas no Brasil. Conclui-se que o tema envelhecimento requer
que se viabilize, nas agendas políticas, mecanismos e instrumentos para
que se efetivem as ações propostas pelo conjunto dos marcos legais. É ne-
cessário, ainda, criar condições para que a pessoa idosa seja protagonista
nas discussões e deliberações políticas de seu interesse.

Palavras-chave
Envelhecimento. Política do Idoso. Protagonismo. Direitos.

58
ABSTRACT
The changes in population profile signal challenges and require transfor-
mative actions to combat age discrimination and active, healthy, citizen
and sustainable aging. In an exploratory and descriptive way, the objective
of this study is to conduct an analysis of the studies on the themes “aging”
and “Elderly Policy” in Brazil, based on a bibliographical survey in natio-
nal journals indexed in the Portal Periodical Capes, in last five years, and
to understand how the results of these studies dialogue with the main legal
frameworks aimed at promoting and protecting the rights of the elderly
in Brazil. The conclusion is that the issue of aging requires mechanisms
and instruments to take place in political agendas as to make the actions
proposed by all the legal frameworks effective. It is also necessary to create
conditions for the elderly to be protagonists in the discussions and political
deliberations of its interest.

Keywords
Aging. Elderly. Policy. Protagonism. Rights.

59
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

1 INTRODUÇÃO
As mudanças no perfil populacional sinalizam desafios e exigem
ações transformadoras para o combate à discriminação etária e para um
envelhecimento ativo, saudável, cidadão e sustentável (ORGANIZACIÓN
MUNDIAL DE LA SALUD, 2015; BRASIL, 2018b).
A proporção de pessoas idosas, em relação à população total, é cres-
cente em todo o mundo, aumentando de 8%, em 1950, para 12% em 2013,
e há projeções de 21%, em 2050. A população idosa mundial, que era de
962 milhões em 2017, deve chegar a mais de 2 bilhões em 2050 (UNITED
NATIONS, 2017).
Nos anos 1990 o Brasil ingressou em um processo de envelhecimento
demográfico, com particularidades, que o destacam na escala mundial. Em
1940, a proporção de pessoas idosas no Brasil era de 2,4%, correspondendo
a menos de um milhão (BRITO, 2007). No Censo de 2000, esse número
era de 14,5 milhões (8% da população total). Em 2010, a população idosa
correspondia a 10,8% dos brasileiros, chegando a 13,7% em 2014 (BRASIL,
2010), 14,6% em 2017 (BRASIL, 2018a) e com projeções de 30% para 2050
(UNITED NATIONS, 2017).
O Estado Brasileiro precisou de menos de 25 anos para que a propor-
ção de pessoas idosas duplicasse de 7% para 14%, ao passo que essa mesma
mudança ocorreu ao longo de 70 a 115 anos em países como França, Sué-
cia, Austrália e Estados Unidos (UNITED NATIONS, 2017).
Por um lado, o aumento da longevidade das populações pode ser
considerado como uma das maiores conquistas das sociedades mundiais, a
despeito das diferenças na magnitude do processo de envelhecimento entre
países e, ainda, entre regiões de um mesmo país. Isto porque o envelheci-
mento, como conquista, reflete a melhoria das condições de vida das popu-
lações, com ampliação do acesso a serviços médicos preventivos e curati-
vos, avanço da tecnologia médica, ampliação da cobertura de saneamento
básico, aumento da escolaridade e da renda, entre outros determinantes
(BRASIL, 2015). Por outro lado, se traduz em um grande desafio, na medi-
da em que viver mais não basta por si só; gera uma série de demandas para
uma longevidade com dignidade, autonomia e qualidade de vida (MEN-
DES; SOARES; MASSI, 2015).

60
Das Políticas às Ações: Direitos da Pessoa Idosa no Brasil

Em todo o mundo, considera-se que o envelhecimento da população


é a principal transformação social desse século, com implicações impor-
tantes para os mais variados setores da sociedade, nos quais se incluem tra-
balho e mercado financeiro, demanda por bens e serviços (moradia, trans-
porte e proteção social), além dos desafios decorrentes dos novos arranjos
de familiaridades e intergeracionais (UNITED NATIONS, 2017). A mag-
nitude dessas implicações é maior nos países em desenvolvimento, como o
Brasil, frente à necessidade de adaptação mais rápida a essa nova dinâmica
populacional em um contexto de menor desenvolvimento econômico.
Diante desta complexidade, de forma exploratória e descritiva, apre-
senta-se como objetivo do presente estudo realizar uma análise das publi-
cações sobre as temáticas “envelhecimento” e “política do idoso” no Brasil,
a partir de um levantamento bibliográfico em periódicos nacionais indexa-
dos no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesso-
al de Nível Superior (Capes), com ênfase nos últimos cinco anos.
O modo de busca na plataforma foi por assunto para identificação
de artigos originais, utilizando as palavras-chave “política do idoso” e
“envelhecimento” conjuntamente. Esta busca foi refinada com a inclusão
das palavras: “qualidade de vida”; “Brasil” e “idoso”. Nesta busca foram
identificados 63 artigos, sendo descartados 36, por não se enquadrarem na
proposta deste artigo. Para a apresentação dos resultados dos 27 artigos se-
lecionados, foi utilizada a análise de conteúdo, com grade aberta, baseada
em Bardin (2011).
Assim, este artigo está organizado em quatro seções. Além desta in-
trodução, na seção seguinte apresenta-se o marco legal das políticas volta-
das para os/as idosos/as no Brasil. Na sequência são apresentados e discu-
tidos os resultados dos estudos identificados. Por último, as considerações
finais são apresentadas na última seção.

2 POLÍTICAS PARA A PESSOA IDOSA NO BRASIL


No âmbito internacional, as discussões sobre a proteção aos direitos
e ao bem-estar das pessoas idosas tiveram início em 1982, com a I Assem-
bleia Mundial sobre Envelhecimento, resultando na elaboração do Plano
de Ação de Viena sobre Envelhecimento. Esse plano é considerado o pri-
meiro instrumento internacional sobre envelhecimento, tendo o intuito
de sensibilizar governos e sociedade para a importância da formulação e

61
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

implantação de políticas públicas voltadas para as pessoas idosas, além do


desenvolvimento de estudos futuros sobre os aspectos do envelhecimento.
As recomendações do Plano de Viena referiam-se à saúde e nutrição; à pro-
teção ao consumidor idoso; à moradia e ao meio ambiente; ao bem-estar
social; à previdência social; ao trabalho, à educação e à família (NACIO-
NES UNIDAS, 1982).
Dez anos depois, na Assembleia da ONU de 1992, foi aprovada a
Proclamação sobre o Envelhecimento, estabelecendo, dentre outras ques-
tões, o ano de 1999 como o Ano Internacional dos Idosos, com o slogan
“Uma sociedade para todas as idades” (CAMARANO; PASINATO, 2004).
O envelhecimento saudável foi evocado dentre as dimensões: situação dife-
renciada da população idosa, seu desenvolvimento individual continuado,
relações multigeracionais e inter-relação entre envelhecimento e desenvol-
vimento social.
Mais dez anos se passaram e, em 2002, foi realizada a Segunda As-
sembleia Mundial das Nações Unidas sobre o Envelhecimento, em Madri,
na Espanha. Com vistas ao desenvolvimento de uma política internacional
para o envelhecimento no século XXI, a Assembleia adotou o Plano de
Ação Internacional sobre o Envelhecimento, o qual apontava para o desa-
fio de se construir uma sociedade para todas as idades. O Plano de Madri
deu especial atenção ao envelhecimento nos países em desenvolvimento
e elegeu como temas centrais a realização de todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais das pessoas idosas, seus direitos civis e políticos,
e a eliminação de todas as formas de violência e discriminação contra a
pessoa idosa (NACIONES UNIDAS, 2003).
Estes são os marcos para o estabelecimento de políticas públicas para
as pessoas idosas no mundo, com grandes preocupações com os direitos
humanos. A ênfase recai sobre a manutenção da vida ativa dos idosos na
sociedade, com ações como de combate à pobreza, de integração e de segu-
ridade; sobre o estímulo à saúde e ao bem-estar na velhice, com políticas
voltadas a um desenvolvimento saudável; e sobre a criação de um ambiente
propício e favorável às pessoas idosas, com políticas focadas na solidarie-
dade intergeracional. Para enfrentar os desafios, diante do envelhecimento
populacional, ressalta-se a importância da parceria entre os estados e a so-
ciedade civil na consideração sobre estes importantes temas sociais.

62
Das Políticas às Ações: Direitos da Pessoa Idosa no Brasil

No Brasil, embora a Lei Eloy Chaves, de 1923, seja um marco le-


gal para a proteção à pessoa idosa, por tratar do sistema previdenciário
(AFONSO, 2003) e, ainda, que os avanços observados nos anos 1970 não
possam ser desconsiderados – quando em 1976 foram registradas atenções
públicas em relação à “velhice” (RODRIGUES, 2001) – somente em 1986,
durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, emergiu a proposta de elabo-
ração de uma política global de assistência à população idosa, influenciada
pelo Plano de Viena. Desde então, o envelhecimento passou a ser pauta das
políticas públicas nacionais.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e a Política Nacional
do Idoso (PNI), instituída pela Lei n. 8.842/1994 (BRASIL, 1994), são mar-
cos recentes no Brasil. A Constituição Federal assegurou à pessoa idosa,
pela primeira vez, o direito à vida e à cidadania e reforçou a importância da
parceria entre o Estado e a sociedade civil na implementação das políticas
(BRASIL, 1988).
A PNI é fruto da reivindicação da sociedade e de amplos debates
e consultas ocorridos nos estados, com a participação de pessoas idosas
(ativas e aposentada), pesquisadores, profissionais da área de gerontologia
e geriatria e diferentes entidades representativas desse segmento, os quais
elaboraram um documento que serviu de referência para o texto base da
lei (NOTARI; FRAGOSO, 2011). Em relação aos países da América do Sul,
o Brasil destaca-se como pioneiro na institucionalização de políticas volta-
das à população idosa, demonstrando seu alinhamento com as discussões
sobre o envelhecimento populacional em nível mundial.
O texto da PNI foi influenciado pelas discussões internacionais sobre
a questão do envelhecimento, de forma a evidenciar a pessoa idosa não
apenas como um sujeito de direitos, mas a enfatizar a importância de sua
autonomia, integração e participação efetiva como instrumento de cidada-
nia (VERAS; OLIVEIRA, 2018; NOTARI; FRAGOSO, 2011).
A primeira década do ano 2000 foi marcada por grandes avanços na
promoção dos direitos das pessoas idosas no Brasil, como se destaca a seguir.
Em 2002 foi criado o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso
(CNDI), órgão superior de natureza e deliberação colegiada, no âmbito do
Ministério da Justiça (MJ) (BRASIL, 2002). Atualmente, o conselho inte-
gra a estrutura regimental do Ministério dos Direitos Humanos (MDH)

63
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

(BRASIL, 2017a) e tem, dentre suas competências, a de elaborar diretrizes


para a formulação e implementação da PNI (BRASIL, 2002). O CNDI tem
importante papel na promoção dos direitos das pessoas idosas no Brasil.
No ano seguinte foi sancionado o Estatuto do Idoso, considerado
como um dos efeitos da II Assembleia das Nações Unidas em Madri (VE-
RAS; OLIVEIRA, 2018; BRASIL, 2015; NOTARI; FRAGOSO, 2011). Re-
sultado de intensa mobilização da sociedade e forte atuação do CNDI, o
Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) abrange as dimensões de direito à
vida, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à alimentação, à saúde e à convi-
vência familiar e comunitária (BRASIL, 2003). Sua aprovação representou
um passo importante na legislação brasileira, pois sua adequação às orien-
tações do Plano de Madri cumpriu o princípio referente à construção de
um entorno propício e favorável para as pessoas de todas as idades (BRA-
SIL, 2003).
Em 2004 foi aprovada a Política Nacional de Assistência Social
(PNAS), regida por vários princípios, dentre os quais a universalização dos
direitos sociais, a dignidade e a autonomia do cidadão, o direito a bene-
fícios e serviços de qualidade, além de defender a igualdade de direitos
(BRASIL, 2005a).
Em 2005 destaca-se o Plano de Ação para o Enfrentamento da Vio-
lência contra a Pessoa Idosa, o qual estabelece ações de prevenção e enfren-
tamento da violência. Trata-se de um esforço conjunto entre o Governo
Federal, o Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos e os movimentos
sociais (BRASIL, 2005b).
A Política Nacional de Saúde do Idoso (PNSI), sancionada em 2006,
pela Portaria n. 2.528 (BRASIL, 2006a), em consonância com os princípios
e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), fundamenta a ação do setor
saúde na atenção integral à população idosa e em processo de envelheci-
mento, assegura os direitos dos/das idosos/as e cria condições para a pro-
moção da autonomia, integração e participação dos/das idosos/as na socie-
dade. Neste mesmo ano destaca-se também a Lei n.11.433/2006 que institui
o dia 1º de outubro como o Dia Nacional do Idoso (BRASIL, 2006b).
Em 2013, o governo brasileiro assinou o Decreto n. 8.114/2013 no
qual estabeleceu o Compromisso Nacional para o Envelhecimento Ativo
com o objetivo de conjugar esforços da União, estados, Distrito Federal,

64
Das Políticas às Ações: Direitos da Pessoa Idosa no Brasil

municípios e sociedade civil para valorização, promoção e defesa dos direi-


tos da pessoa idosa (BRASIL, 2013). Um avanço importante no sentido de
favorecer o diálogo em prol do compromisso nacional foi a instituição de
comissão interministerial com o objetivo de monitorar e avaliar as ações
promovidas no âmbito deste compromisso e promover a articulação de ór-
gãos e entidades públicos envolvidos em sua implementação.
A aprovação da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Di-
reitos Humanos dos Idosos, pelo Conselho Permanente da Organização
dos Estados Americanos (OEA), ocorreu em 2015 e também constitui um
avanço importante no contexto das políticas para as pessoas idosas. A con-
venção é o primeiro instrumento internacional, juridicamente vinculante,
voltada à proteção e à promoção dos direitos das pessoas idosas nas Amé-
ricas, sendo o Brasil um dos signatários. Conforme texto da convenção,
esta deve ser “instrumento para fomentação de um envelhecimento ativo
em todos os âmbitos” (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS,
2015, p. 1).
Por fim, em 2018, a Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa, insti-
tuída pelo Decreto Presidencial n. 9.328 (BRASIL, 2018c), foi desenvolvi-
da pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) em parceria com o
Ministério da Saúde (MS), o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organi-
zação Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde
(OMS) (BRASIL, 2018b). A estratégia tem como objetivo levar qualidade de
vida às pessoas idosas e promover o envelhecimento ativo, saudável, cida-
dão e sustentável da população. A iniciativa foi lançada em abril, reunindo
ações dos setores governamentais, organismos internacionais e instituições
públicas e privadas para atingir os seus objetivos, incentivando o incre-
mento de uma rede de proteção à pessoa idosa nos municípios, criando
oportunidades para inovar na gestão pública e torná-la protagonista nos
processos políticos.
Nos principais aparatos legais apresentados, observa-se a relativiza-
ção das responsabilidades e a tendência de reforçar o protagonismo da pes-
soa idosa nos processos políticos, o que requer o fortalecimento da parti-
cipação social e a governança democrática para avanços no enfrentamento
dos problemas coletivos relativos à população idosa.

65
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

3 ESTUDOS PRIORITÁRIOS À PROTEÇÃO DAS PESSOAS


IDOSAS E AO ENVELHECIMENTO ATIVO E SAUDÁVEL
A coletânea de 27 estudos, publicados na plataforma periódicos da
Capes, tratam dos seguintes temas categorizados: cuidado/cuidador (7);
qualidade de vida (7); saúde do idoso (3); participação (4); funcionalida-
de (3) e riscos de vulnerabilidade (3). Tais temas coincidem com aqueles
priorizados pelos organismos internacionais e pelas políticas nacionais que
visam dar proteção à pessoa idosa e ao envelhecimento ativo e saudável.

3.1 CUIDADO/CUIDADOR
Na categoria cuidado/cuidador, os pesquisadores demonstram pre-
ocupação tanto na perspectiva da formação dos cuidadores e no preparo
para o exercício de sua função, quanto na perspectiva das pessoas idosas
que recebem os cuidados em seu ambiente familiar e em Instituições de
Longa Permanência para Idosos (ILPI).
Quando o assunto é o cuidador, a importância das habilidades sociais
é destacada no estudo de Pinto, Barham e Del Prette (2016) concluindo que
expressar sentimentos positivos, controlar a agressividade e conversar para
resolver problemas são habilidades importantes para realizar as tarefas e
amenizar os conflitos vivenciados pela pessoa idosa.
Quanto à domiciliar, Magalhães et al. (2015) alertam que os agen-
tes comunitários não recebem orientações para atuar junto às famílias das
pessoas idosas. Destacam que o foco da atenção permanece na doença e na
oferta de insumos e procedimentos e concluem que ainda não foi percebida
a reorientação do modelo assistencial, como previsto na Política Nacional
de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI).
A mudança no modelo de atenção é destacada como necessária, tam-
bém, no estudo de Oliveira et al. (2016), devendo dar foco à saúde preventi-
va, com preocupação econômica, a fim de de evitar a sobrecarga do sistema
de saúde. Martins et al. (2014), em estudo realizado em Porto Alegre (RS),
ao confrontarem a prática do cuidado com a saúde de pessoas idosas, com
o que se instituiu como diretrizes no arcabouço teórico-legal, verificaram
um descompasso entre o esperado e o praticado, com exceção para a quali-
ficação dos profissionais que na avaliação dos autores tem melhorado.

66
Das Políticas às Ações: Direitos da Pessoa Idosa no Brasil

Sobre a qualificação dos profissionais, Mendes, Soares e Massi (2015)


alertam que a formação de graduação não é específica e tampouco suficien-
te para a prática profissional direcionada às pessoas idosas.
Nas instituições de permanência, que se convertem em uma alter-
nativa de moradia para a pessoa idosa, Fagundes et al. (2017) observam a
necessidade de reestruturação do ambiente, considerando a demanda cres-
cente e os aspectos negativos que a institucionalização pode trazer para
essa população. De acordo com os autores, é importante que a estrutura
e organização das ILPI tenham possibilidades reais de atender às neces-
sidades biopsicosocioespirituais das pessoas idosas. Sobre tais aspectos,
no estudo de Alves-Silva, Scorsolini-Comin e Santos (2013) é destacada a
orientação e qualificação de cuidadores e proposto o trabalho em equipe
multiprofissional como alternativa para favorecer a qualidade de vida das
pessoas idosas nestes locais.
Os resultados dos estudos analisados nessa categoria chamam a aten-
ção para a importância da efetiva implantação das diretrizes da PNSPI,
com destaque para a atenção integral e integrada à saúde da pessoa ido-
sa, além da formação e educação permanente dos profissionais de saúde
do SUS na referida área (BRASIL, 2006a). Nesse sentido, merece menção
os recentes esforços do governo no sentido de incentivar e subsidiar com
orientações técnicas a Implantação da “Linha de Cuidado para a Atenção
Integral à Pessoa Idosa no SUS” (BRASIL, 2017b). Essa linha estabelece um
percurso longitudinal, para o cuidado integral nos diferentes pontos de
atenção da rede de saúde, desde a atenção básica à especializada, e promove
a articulação e integração de ações com as demais políticas públicas.
No que diz respeito à diretriz de formação/educação permanente dos
profissionais de saúde, destaca-se a estratégia da PNSPI para a realização de
cursos de educação a distância em envelhecimento e saúde da pessoa idosa.

3.2 QUALIDADE DE VIDA


O termo qualidade de vida tem sido definido na literatura conside-
rando-se a percepção do sujeito em relação à sua posição na vida, no con-
texto de sua cultura e dos sistemas de valores nos quais está inserido, bem
como em relação a seus objetivos e expectativas.

67
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

Considerando-se a percepção do sujeito idoso, a partir de um estudo


realizado com pessoas idosas em um centro de referência em Belo Hori-
zonte (MG), Miranda, Soares e Silva (2016) revelam que a maioria delas
que, neste caso não se encontram em situação de dependência, acredita ter
uma boa qualidade de vida e estar bem com a sua saúde.
Para Moreira et al. (2013) a qualidade de vida é influenciada pela au-
tonomia, independência, prática de atividades físicas e laços sociais. Aze-
vedo Filho et al. (2018), ao buscarem avaliar a associação entre qualidade
de vida e práticas de atividade física, em Brasília (DF), identificaram que as
pessoas idosas que praticam esse tipo de atividade tendem a aumentar sua
percepção de qualidade de vida.
Os resultados encontrados no estudo de Roncon (2015) indicam a
existência de uma associação entre a idade e as várias dimensões da qua-
lidade de vida. Este autor verificou que “quanto maior a idade, menor a
qualidade de vida física, psicológica e social, menor a capacidade funcio-
nal, maior a depressão e o estresse familiar” (RONCON, 2015, p. 91). Evi-
denciou, ainda, que maior dependência está inversamente associada à qua-
lidade de vida, bem como estado civil e escolaridade. Nesse caso, pessoas
idosas casadas ou em união estável são aquelas com maior grau de escola-
ridade e qualidade de vida.
Quanto à escolaridade, um estudo realizado em São Paulo (SP),
com pessoas idosas matriculadas em universidades, também confirma
que fatores como ensino superior, idade avançada, ausência de doenças e
residência estão associados à qualidade de vida (DAWALIBI; GOULART;
PREARO, 2014).
Campos, Ferreira e Vargas (2015), com a proposta de construir
um indicador para o envelhecimento ativo, concluem que a qualidade de
vida e a participação em grupos são os principais determinantes para o
envelhecimento ativo e que os demais fatores associados são diferentes em
cada gênero.
Ao realizar um estudo comparado entre Brasil, EUA e Espanha, o
qual contempla a situação social, política, econômica e de saúde da popula-
ção idosa, Walter (2010) confirma a melhoria na qualidade de vida e na in-
serção social e política. Entretanto, quando Costa (2014) direciona os seus
estudos para a realidade brasileira, afirma a tendência a não materialização

68
Das Políticas às Ações: Direitos da Pessoa Idosa no Brasil

dos direitos. Nos estudos analisados, nota-se que o conceito de qualidade


de vida é amplo e afetado de forma complexa e dinâmica pela saúde física,
psicológica, social e ambiental, devendo ser atribuído conforme a percep-
ção de mundo do sujeito idoso.
À luz da legislação de proteção e promoção dos direitos da pessoa
idosa, pode-se considerar que sua qualidade de vida constitui um tema
transversal aos principais marcos legais referenciados no presente estudo.
Excluindo-se a idade, como um importante determinante da qualidade
de vida, há que se destacar que os demais determinantes identificados
guardam estreita relação com a inclusão e participação da pessoa idosa no
meio em que vive. Este é um aspecto central da PNI e do Estatuto do Idoso,
na medida em que enfatizam a importância da autonomia, da integração
e da participação efetiva da pessoa idosa na sociedade (BRASIL, 2003;
BRASIL, 1994).

3.3 SAÚDE
Os estudos identificados nesta categoria contemplam a preocupação
com a saúde das pessoas idosas sobre o acesso aos serviços de saúde e à
informação sobre saúde.
Cerqueira e Rodrigues (2016) ao entrevistarem idosos portadores do
vírus HIV identificam fatores associados à vulnerabilidade, como baixa
renda e baixa escolaridade, além da percepção de relações fundamenta-
das em assimetrias de poder entre gêneros e a falta de informações que
resultam na falta de proteção. Os resultados sinalizam para o problema
da invisibilidade sexual da população idosa e para a necessidade de ações
e informações com o intuito de que a vida sexual na velhice seja saudável.
Na utilização de serviços de saúde no nordeste brasileiro, Pedraza
et al. (2018) alertam para as barreiras que as pessoas idosas enfrentam em
termos de acessibilidade organizacional, destacando a quantidade de aten-
dimentos por dia e o recebimento de medicamentos.
Em determinada cidade do interior de São Paulo, idosos foram entre-
vistados com o objetivo de avaliar o seu conhecimento sobre os serviços de
geriatria. No estudo realizado por Souza, Campos e Panhoca (2016) obser-
vou-se que, embora conhecessem a especialidade, ainda assim não tiveram
a oportunidade de serem atendidos por consulta médica. Para eles faltam

69
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

informações sobre a disponibilidade de consultas, o que se configura como


uma dificuldade no acesso.
Contrariando ao preconizado no Estatuto do Idoso e na PNSI, os
resultados desses estudos sinalizam um cenário de fragilidade no acesso à
informação e aos próprios serviços de saúde pela população idosa. Assim,
ainda que essas questões sejam contempladas no arcabouço legal que pode
ser considerado avançado no objetivo de proteger e promover a saúde da
população idosa no Brasil, a realidade ainda se apresenta insatisfatória.

3.4 PARTICIPAÇÃO
A participação social e política da população idosa são esperadas
como forma de integração para a construção de uma sociedade solidária.
Como benefícios, considerando o idealizado compartilhamento de poder,
Costa (2014) destaca a possibilidade de concretização de direitos, enquanto
que Groisman (2014) sinaliza para o desafio no cenário contemporâneo
em que se nota o retraimento de direitos e a crise das políticas de bem
estar social.
Segundo Groisman (2014) o momento requer o fortalecimento da
participação social das pessoas idosas, que pode ser institucionalizado e
viabilizado por meio de conselhos, comitês, fóruns ou outras formas de
participação para deliberações sobre a PNI. Apesar da existência e da im-
portância dos conselhos nacional, estaduais e municipais de direitos da
pessoa idosa, ainda se está muito longe do ideal de autonomia desses ór-
gãos de participação e controle social. Por um lado, o Poder Executivo,
via de regra, não concede autonomia a essas instâncias, não as dotando
de condições mínimas de funcionamento e não escutando e incorporando
suas deliberações na agenda de políticas públicas. Por outro, falta a consci-
ência cidadã para ocupar os espaços destinados ao exercício da cidadania
(MARTINS, 2015).
A participação que se observa ocorre no nível micro, nos ambientes
familiares ou em grupos sociais para a integração da população idosa, vol-
tados para o seu bem-estar. Ainda que o foco nesses ambientes não seja o
engajamento político, faz-se importante este tipo de participação para o
fortalecimento de vínculos e para a inserção social da pessoa idosa, o que
contribui para melhorar a percepção sobre a sua qualidade de vida.

70
Das Políticas às Ações: Direitos da Pessoa Idosa no Brasil

Nos centros de convivência, compreendidos por Moura e Veras


(2017) como um espaço de transformação na forma de lidar com o enve-
lhecimento, verificou-se a necessidade de oportunizar relações intergera-
cionais e evitar a segregação de idade. No estudo de Castro, Lima e Duarte
(2016), ao avaliarem a percepção de pessoas idosas sobre a sua participação
em jogos recreativos, os autores apontam que elas as identificam como ati-
vidades que oportunizam melhoria na saúde e na socialização. Ressaltam,
ainda, que o protagonismo dos idosos como coautores na proposição dos
programas de exercícios físicos é um aspecto que contribui para a sua ade-
são e permanência em intervenções esportivas, recreativas e de lazer, volta-
das à promoção do envelhecimento saudável.
Os resultados revelam que participar no nível micro ou macro exer-
ce uma função educativa da maior importância, contribuindo para que as
pessoas idosas estejam preparadas para exercer sua função como cidadãs,
na luta pela concretização dos seus direitos.

3.5 FUNCIONALIDADE
Os estudos dessa categoria destacam que a prática de atividade física
é considerada importante para uma vida autônoma e vice-versa, e, conse-
quentemente, encontra-se relacionada positivamente à qualidade de vida
(GORDIA et al., 2007; GUIMARÃES et al., 2012). Santos e Griep (2013)
alertam que os grupos de maior risco para a incapacidade funcional são
as mulheres, os mais velhos e os de menor escolaridade. Tais achados si-
nalizam maior atenção a esses grupos na proposição de ações que visem
melhorar a qualidade de vida da população idosa.
Em consonância com a PNSI, em sua diretriz de promoção do en-
velhecimento ativo e saudável, iniciativas do Ministério da Saúde buscam
estimular a prática de atividades físicas e de lazer, assim como o acesso a
alimentos saudáveis e à redução do tabagismo, para melhorar a funcio-
nalidade. Tais iniciativas podem ser observadas no Programa Academia
da Saúde, de 2011, e no Programa Brasil Saudável e Sustentável, de 2016,
dentre outras ações. Nessas iniciativas, nota-se a preocupação com a so-
cialização do conhecimento, do convívio e da autonomia da pessoa idosa.
Esta última pode ser compreendida como “a habilidade de controlar, lidar
e tomar decisões pessoais, como se deve viver diariamente, de acordo com
as suas próprias regras e preferências” (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERI-
CANA DA SAÚDE, 2005).

71
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

3.6 RISCOS DE VULNERABILIDADE


Diversos fatores de risco podem levar a população idosa a uma situ-
ação de vulnerabilidade, que passam por questões de saúde, econômicas,
políticas e sociais.
Quanto à saúde da pessoa idosa, a depressão - ainda que seja uma
doença que acomete qualquer faixa etária, não se tratando de algo direta-
mente relacionado à população idosa - foi foco de um dos estudos na cate-
goria riscos de vulnerabilidade. Costa et al. (2012) observam que a mudan-
ça no modelo de assistência curativo para o preventivo é importante para
o combate à depressão na velhice. Em pesquisa realizada em um hospital
do Rio de Janeiro (RJ), os autores constataram a importância da mudança
na estrutura física do hospital, associada à opção por equipes de assistência
multidisciplinar para reduzir o estado de depressão das pessoas idosas.
Com relação ao tema violência, também destacado como risco de
vulnerabilidade, Castro et al. (2013), identificam que a Política de Proteção
ao Idoso emerge na maioria das discussões sobre violência. Destacam, ain-
da, que o foco dos pesquisadores é a violência doméstica. Em se tratando
de fatores políticos e sociais, a ênfase recai sobre a PNI que, segundo Mon-
teiro (2013), resulta no incremento de serviços a serem ofertados a partir
da assistência social.
No estudo de Reis, Koetz e Périco (2016) observa-se um alerta para
a falta de conhecimento dos gestores públicos sobre a PNI, importante
instrumento para a promoção do envelhecimento ativo e saudável, como
preconizam todas as orientações nacionais e internacionais. Tal fato,
segundo os autores, resulta em perdas para a população idosa que, em sua
maioria, tem baixa escolaridade e encontra dificuldade para se inserir nos
processos políticos.

72
Das Políticas às Ações: Direitos da Pessoa Idosa no Brasil

4 CONCLUSÃO
A discussão sobre as políticas públicas - voltadas à pessoa idosa e ao
envelhecimento ativo, saudável, cidadão e sustentável no Brasil - indica um
momento de disruptura.
Temas importantes foram abordados pelos pesquisadores, que cha-
mam atenção para as questões da saúde, da qualidade de vida, da participa-
ção e dos desafios para a democratização da política. Ao contrário do que
se espera com os direcionamentos constantes no arcabouço legal que ins-
titui a PNI, os resultados desta pesquisa sinalizam para o retraimento dos
direitos e o desafio do exercício da cidadania por parte da população idosa.
A partir dos estudos aqui abordados é possível inferir que o foco dos
pesquisadores mantém-se na linha do cuidado, da assistência, da saúde e
da proteção dos direitos da pessoa idosa. Ainda que se julgue importante e
relevante os temas apresentados nesses estudos, seria igualmente esperada
a ênfase na mudança de paradigma que conecta a sociedade às inovações
na gestão da PNI e às soluções para lidar com as complexidades atreladas
ao processo de envelhecimento.
Assim, percebe-se a evidente necessidade de novos modelos de ges-
tão, pois os autores constatam a discrepância entre o idealizado - nas di-
mensões internacionalmente compartilhadas para um envelhecimento ati-
vo - com o que se observa nas ações efetivas ofertadas às pessoas idosas no
Brasil. Os autores alertam para a perpetuação de problemas antigos, que
dizem respeito a uma gestão desconectada e desconectante, na qual o ges-
tor demonstra não compreender o objeto de execução, neste caso, a PNI.
A julgar pela amostra de estudos avaliada, ainda não está incorpo-
rada às agendas dos pesquisadores brasileiros a problematização sobre os
desafios de se tornar a pessoa idosa protagonista nas discussões e delibera-
ções políticas de seu interesse.
Conclui-se que o tema envelhecimento exige uma urgente inclusão
nas agendas políticas e que o envelhecimento populacional é um fato que
requer ações urgentes para lidar com o bônus e o ônus da longevidade.

73
Simone Martins - Andréia Queiroz Ribeiro

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81
4
DIREITO À EDUCAÇÃO DE PESSOAS
LGBT: UMA TRANSFORMAÇÃO NA E A
PARTIR DA ESCOLA

ALEXANDRE BORTOLINI
Mestre em Educação pela PUC-Rio e doutorando pelo
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (USP). Ativista LGBT e educador.

THAÍS PIMENTEL
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Pedagoga,
professora de educação básica e feminista negra.

RESUMO
Este artigo parte da problematização da narrativa hegemônica sobre a
construção dos direitos humanos, em especial o direito à educação, a qual
se contrapõe às críticas decolonial, racial, feminista, assim como àquelas
oriundas dos estudos gays e lésbicos e à teoria queer. Busca evidenciar o
quanto o sujeito desses direitos é generificado, racializado, sexualmente
regulado e etnicamente localizado. Parte-se dessa reflexão para pensar os
processos de escolarização e sua desigual distribuição, com foco na situação
de pessoas LGBT. Os avanços vividos com a formulação de um discurso
educacional, especificamente voltado à inclusão e valorização destes
sujeitos, além de se mostrarem precários, apontam para uma distribuição
desigual dos seus frutos. Define-se essa precariedade e desigualdade, com
ênfase em suas dimensões de gênero, raça e classe, em especial no que se
relacionam às lutas para a definição destes sujeitos como sujeitos de direito
em um contexto em que ganham força projetos políticos de desumanização.

Palavras-chave
Educação. LGBT. Direito. Gênero.

82
ABSTRACT
This article presents a hegemonic narrative problematization about human
rights development, especially regarding the right to education, which
opposes decolonial, racial and feminist critics, as well as those from gay
and lesbian studies and queer theory. It attempts to demonstrate how much
the subjects of these rights are genderized, racialized, sexually regulated
and ethnically located. It starts from this reflection to think about the
schooling process and its unequal distribution, focusing on LGBT people
situation. Current advances in educational narrative formulation, which is
specifically directed towards inclusion and valorization of these subjects,
besides being precarious, points to an unequal distribution of its results.
Precariousness and inequality are defined with emphasis on gender, race
and class dimensions, especially in relation to the struggles towards these
subjects definition as rights holders in a context in which dehumanization
political projects gain strength.

Keywords
Keywords: Education. LGBT. Right. Gender.

83
Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

1 INTRODUÇÃO
Diferentemente de uma historiografia corrente da educação, que
reconhece “escola” e “sistemas de ensino” como fenômenos históricos
muito distintos, o surgimento e o desenvolvimento da “forma” escolar, tal
qual a conhecemos hoje, é um fenômeno moderno. É o lugar estratégico
da escolarização na consolidação de uma nova ordem urbana e do Estado
nas emergentes sociedades capitalistas que torna a educação passível de ser
concebida como um direito de socialização (LAHIRE e VINCENT, 2001).
Não como o direito de um ser humano abstrato, essencial e eterno, sub-
traído do fluxo da história, mas como construção histórica, “produto não
da natureza, mas da civilização humana”, suscetível à transformação e à
ampliação (BOBBIO, 2004, p. 20).
Há uma narrativa que entende a construção dos direitos humanos,
dentre eles o direito à educação, como “um projeto moral, jurídico e polí-
tico criado na Modernidade Ocidental e que, depois de ter sido suficiente-
mente desenvolvido e amadurecido, foi exportado ou transplantado para
o resto do mundo” (BRAGATO, 2014, p. 205). Um processo histórico in-
tra-europeu, do Norte ou do Ocidente, fruto não só “das lutas políticas
inglesas, francesas e norte-americanas dos séculos XVII e XVIII”, mas da
“tradição teórica racionalista da modernidade”, cujas origens têm “pouco
ou nada a ver com a história e a racionalidade dos povos não ocidentais”
(BRAGATO, 2014, p. 206). Essa narrativa assume uma perspectiva que re-
conhece a Europa, o Norte global ou o Ocidente como território sobre o
qual se assentam sociedades mais “avançadas” cujos valores civilizatórios e
modelos de organização se propagariam às regiões “menos desenvolvidas”,
“primitivas” ou “periféricas” do mundo.
Essa narrativa, entretanto, não resiste a uma investigação crítica das
origens histórico-geográficas e do fundamento antropológico-filosófico
dos direitos humanos (BRAGATO, 2014). A esta perspectiva hegemônica é
possível contrapor uma crítica decolonial e racial a uma crítica feminista,
assim como aquela oriunda dos estudos gays e lésbicos e da teoria queer.

2 DIREITO À EDUCAÇÃO: DIREITO DE QUEM?


Partindo de uma análise histórica da geopolítica do conhecimento,
o pensamento decolonial reconhece a “existência de um conhecimento

84
Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

hegemônico” que, embora localizado e particular, se assume e se impõe


como universal, investindo “na possibilidade de contestá-lo a partir de suas
próprias inconsistências e na consideração de conhecimentos, histórias e
racionalidades tornadas invisíveis pela lógica da colonialidade moderna”
(BRAGATO, 2014, p. 205).
A crítica racial explicita os processos históricos e epistemológico, por
meio dos quais a humanidade foi racializada e, assim, hierarquizada em um
projeto de construção da hegemonia europeia das elites colonizadoras e de
seus descendentes, que manteve a noção de humano restrita ao grupo étni-
co dominante, excluindo populações da garantia de direitos, expondo-as ao
genocídio, à escravidão e, mais recentemente, à hiperexploração capitalista.
A crítica feminista denuncia como os sistemas políticos modernos
foram organizados a partir de determinado ordenamento de gênero, pro-
duzindo sujeitos como homens e mulheres, garantindo aos primeiros os
direitos civis, políticos e econômicos, próprios do espaço “público” e, às
últimas, o espaço “privado” do trabalho reprodutivo, não remunerado e
vazio de direitos.
Os estudos gays e lésbicos e, recentemente, a teoria queer evidenciam
a ação das regulações cis-heteronormativas1 do corpo, da identidade e da
sexualidade, por meio do pensamento cristão e do discurso médico, os
quais marginalizam ou excluem sujeitos não heterossexuais e não cisgêne-
ros da categoria do humano e do acesso pleno aos direitos.
O projeto colonial que formou a sociedade brasileira e sua ordem oli-
gárquica, assim como em outras sociedades latino-americanas, constitui-se
como projeto político e econômico que teve na racialização, na imposição
de um ordenamento de gênero e na regulação da sexualidade instrumentos
de sua realização. Pecheny e De La Dehesa (2011, p. 36) explicam que:
A ordem colonial e logo oligárquica, inerentemente exclu-
dente e hierárquica, baseada na exploração social etnicamen-
te atravessada também foi estruturada em uma ordem de
gênero e reguladora de sexualidades (de acordo com classe e
etnia, de modo diferencial).

1 Cisnormatividade é o dispositivo social que, em um sistema de sexo-gênero binário, faz reco-


nhecer como legítimos apenas os corpos/sujeitos que guardam determinada correspondência entre
seu “sexo”, entendido como pré-discursivo, natural, inato e inescapável, e sua (auto)identificação.
Heteronormatividade é o dispositivo que, deste mesmo sistema sexo-gênero binário, define a hete-
rossexualidade como natural e compulsória, de forma a reiterar essas posições de gênero.

85
Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

Se o colonialismo, como sistema político, acabou em 1822, a colo-


nialidade, como dimensão do poder, manteve-se. Os direitos políticos, ad-
vindos das constituições brasileiras durante o Império, excluíam por raça,
gênero ou condição econômica grande parte da população. Mesmo finda a
escravidão, proclamada a república e aprovado o voto feminino, a maioria
das mulheres e dos homens, por não ser alfabetizada, seguia à margem dos
direitos políticos. Por muito tempo a cidadania republicana, herdeira do
colonialismo, permaneceu restrita a homens cis-heteros brancos, letrados
e proprietários. Essas são as características que definem o sujeito de direi-
tos “original”, a partir do qual os direitos humanos no Brasil e no mundo
foram pensados e concebidos.
A definição da educação como direito e sua distribuição no Brasil
não foi concebida como “universal”, mas “marcada pelos traços dominan-
tes da nossa cultura católica, agrícola e escravocrata, refletidos em um sis-
tema de ensino desorganizado, elitista e seletivo” (RANIERI, 2018. p. 16.).
A educação no Brasil, embora seja um direito garantido desde a cons-
tituição de 1934, reafirmado pela constituição de 1988, foi historicamente
negada aos mais pobres, aos negros, aos indígenas, às mulheres. Mesmo
em um contexto de universalização da educação básica, o direito à educa-
ção ainda tem uma “potência declarativa bem mais contundente que sua
eficácia política” (GENTILI, 2009, p. 1060). A universalização foi marcada
por “intensos processos de diferenciação e segmentação dos sistemas esco-
lares” e os mecanismos de exclusão transferidos para o interior das escolas,
definindo “um conjunto de oportunidades altamente desiguais” (GENTI-
LI, 2009, p. 1064).
[...] os que estão excluídos do direito à educação não estão
excluídos somente por permanecerem fora da escola, mas
também por formarem parte de um conjunto de relações
e circunstâncias que os afastam desse direito, negando ou
atribuindo-lhes esse direito de forma restrita, condicionada
ou subalternizada. [...] Hoje, esse direito é negado quando
não lhes é oferecida outra alternativa a não ser a de
permanecer em um sistema educacional que não garante
nem cria condições para o acesso efetivo a uma educação
de qualidade, quando se limitam as condições efetivas de
exercício desse direito pela manutenção das condições de
exclusão e desigualdade que se transferiram para o interior
do próprio sistema escolar (GENTILI, 2009, p. 1062).

86
Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

Uma escola que não foi pensada no feminino, à qual as mulheres


chegaram em segundo lugar, submetidas a um currículo dedicado a lhes
preparar para a posição de subalternidade na vida social (RANIERI, 2018;
SAFFIOTI, 1976). Uma escola que excluiu negros, indígenas e pobres. E
que segue expulsando travestis, bichas, lésbicas e mais quem se constitua
ameaça à hegemonia cis-heteronormativa.
Sobre essa escola, que permite a determinados grupos usufruir do
direito à educação, enquanto outros são excluídos ou marginalizados,
lançaram-se diferentes lutas sociais. Investimentos políticos que, por um
lado, “alargaram” os limites do sujeito do direito à educação, abarcando
um número cada vez maior de pessoas e, por outro, reorganizaram as defi-
nições desse direito, para dar conta de diferentes modos de vida e projetos
de mundo. A apropriação do direito à educação entre os sujeitos que pro-
tagonizam esses processos de alargamento é, no entanto, diferenciada, a
depender da posição social complexa que cada pessoa ocupa, persistindo
uma distribuição assimétrica e assíncrona.

3 DESIGUALDADE NO ACESSO À ESCOLARIZAÇÃO


POR PESSOAS LGBT2
Não há dados estatísticos para identificar as desigualdades de acesso
ao direito à educação de pessoas LGBT ou informações quantitativas sobre
casos de violência homolesbobitransfóbica na escola. Assim, não há como
mapear trajetórias escolares afetadas em função da orientação sexual ou
da identidade de gênero. Os principais instrumentos nacionais de produ-
ção de dados educacionais, como os do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica (Saeb), do Exame Nacional de Desempenho de Estudan-
tes (Enade) e do Censo Escolar da Educação Básica e da Educação Supe-
rior não trazem informações sobre a orientação sexual ou a identidade de
gênero dos respondentes. A partir de 2015, a possibilidade de solicitar o
uso do “nome social” para pessoas trans, em alguns sistemas de ensino e
no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), abriu caminho para gerar
2 A sigla LGBT é utilizada para identificar Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, mas
sua compreensão pode ser ampliada para se referir a outras identidades. O acróstico, ainda que
seja majoritariamente utilizado, não está livre de problematizações e disputas. O movimento agrega
sujeitos que se identificam de múltiplas formas em relação ao gênero e à sexualidade, multiplicidade
que a sigla LGBT tenta, mas recorrentemente falha, em abarcar.

87
Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

dados, mas ainda limitados, pois são capturadas somente informações de


quem faz a solicitação. Não há, portanto, informação quantitativa sobre o
universo de estudantes e de profissionais LGBT nas escolas ou sobre suas
trajetórias de formação e de trabalho.
Nesse contexto, para compreender as discriminações e exclusões
vividas por pessoas LGBT no ambiente escolar, é necessário recorrer aos
poucos estudos quanti-qualitativos produzidos no país. Esses estudos evi-
denciam como a experiência educacional destes sujeitos é atravessada pela
violência física e simbólica (agressões físicas e verbais, discriminação, iso-
lamento, negligência, assédio) que acontecem na escola, perpetradas não
só por estudantes, como por gestores e profissionais da educação. Cada
profissional de educação traz consigo um conjunto de representações sobre
gênero e sexualidade que interfere na forma como desenvolve seu trabalho
pedagógico. Há expectativas sexuais e de gênero conduzidas, muitas vezes,
por estigmas e estereótipos que produzem efeitos negativos ao desenvolvi-
mento de alunos, alunas e alunes3, com implicações que chegam à expulsão
escolar (BRASIL, 2018).
Mesmo quando permanecem na escola, esses sujeitos estão submeti-
dos a um currículo cis-heteronormativo e a um ambiente escolar marcado
pelo sexismo, pela misoginia, pela trans-bi-homo-lesbofobia4. A cisnor-
matividade define a quem serão atribuídos comportamentos masculinos
e femininos que, embora não instituídos por diretrizes pedagógicas, são
recorrentemente reforçados. Há um intenso compromisso com a heteros-
sexualização compulsória, expresso num conjunto de práticas, saberes e
regulações que reiteram a heteronorma. Esses modelos estão expressos nos
materiais didáticos (LIONÇO; DINIZ, 2009), nos currículos, nas práticas
pedagógicas e nas formas de gestão (LOURO, 1999; JUNQUEIRA, 2009),
constituindo ambientes escolares violentos, discriminatórios e excludentes
a pessoas não heterossexuais e não cisgêneras.
Entre 2006 e 2009, o Ministério da Educação e a Universidade de São
Paulo desenvolveram uma pesquisa sobre discriminação no ambiente es-

3 O uso da letra “e” no lugar das flexões com “a” e “o” é tanto uma forma de apresentar uma lingua-
gem neutra, não sexista e pronunciável na língua falada, quanto um modo de se referir a sujeitos.
Nesse caso, alunes refere-se a estudantes cuja identidade de gênero não se define no binário mascu-
lino/feminino.

4 Preconceito e discriminação voltados a distintas orientações sexuais e identidades de gênero.

88
Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

colar. A pesquisa mediu o distanciamento social de diretores, professores,


funcionários, estudantes e responsáveis em relação a determinados gru-
pos. Verificou-se que entre pobres, negros, indígenas, ciganos, moradores
de periferia/favela, moradores de áreas rurais e pessoas com deficiência,
os maiores percentuais de distanciamento foram atribuídos às pessoas ho-
mossexuais. A pesquisa evidenciou, também, a relação entre o preconceito
e a discriminação no ambiente escolar e o rendimento na Prova Brasil:
[...] escolas em que os escores que medem o preconceito e o
conhecimento de práticas discriminatórias apresentam valo-
res mais elevados tendem a apresentar médias menores para
as avaliações na Prova Brasil (MAZZON, 2009).

Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,


Bissexuais, Travestis e Transexuais sobre a situação de pessoas LGBT na
escola retrata:
[...] níveis elevados e alarmantes de agressões verbais e físicas,
além de violência física; ao mesmo tempo expõe níveis baixos
de respostas nas famílias e nas instituições educacionais que
fazem com que tais ambientes deixem de ser seguros para
muitos estudantes LGBT, resultando em baixo desempenho,
faltas e desistências, além de depressão e o sentimento de não
pertencer a estas instituições por vezes hostis (2016, p. 13).

Esses ambientes escolares inseguros e segregadores afetam distinta-


mente os sujeitos que compõem a “comunidade LGBT”, a começar pelo
modo como cada pessoa descumpre, desestabiliza e desafia a cis-hetero-
norma. Se gays, lésbicas e bissexuais cisgêneros vivenciam processos de
discriminação na escola, pessoas transgêneras enfrentam experiências in-
tensas de exclusão e, até mesmo, de expulsão.
Em pesquisas realizadas durante as paradas do orgulho LGBT, por
exemplo, foram identificados níveis de escolaridade inferiores entre pesso-
as travestis e transexuais em relação a outros grupos sociais que compõem
o universo presente nas marchas (Carrara, Ramos, Caetano, 2003; Carrara,
Ramos, 2005; Carrara et. al., 2006 e Carrara, 2007). Em 2016, um levanta-
mento realizado junto às pessoas trans, atendidas pelo Programa Transci-
dadania, ação da Prefeitura de São Paulo, apontou que 71% afirmaram ter
parado de estudar com mais de 15 anos de idade, 24% entre 11 e 14 anos,
e 5% entre 7 e 11 anos. Destas, 55% pararam de estudar entre o quinto e

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Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

nono ano do ensino fundamental, 23% entre o primeiro e quarto ano, e


22% no ensino médio. A transfobia foi o motivo da evasão dos estudos por
45% das pessoas, 33% por razões de trabalho e 17% por conflitos familiares
(CONCÍLIO, 2017). Esses dados não alcançam a totalidade da população
de pessoas travestis e transexuais, mas configuram claramente uma situ-
ação de vulnerabilidade deste grupo no que diz respeito à garantia do seu
direito à educação (BRASIL, 2018).
A exclusão de pessoas trans do seu direito à educação reitera sua con-
dição de abjeção, vulnerabilidade e marginalização com impacto na garan-
tia do direito à vida. Segundo dados do relatório Trans Murder Monitoring
(TMM), a maior incidência de assassinatos de pessoas trans, entre 2008 e
2017, concentrou-se na América Latina. Dentre as 2.609 mortes registradas
no período, 1.100 ocorreram no Brasil, colocando-o no lugar de país que
apresenta maior índice de assassinatos de pessoas trans no mundo (TRANS
RESPECT, 2017).
Em cotidianos escolares, saturados de heterossexismo e vigilância de gê-
nero, o “armário”5 é instrumento de negociação, quando não de sobrevivência.
As “brincadeiras” heterossexistas e homofóbicas (não raro,
acionadas como recurso didático) constituem-se poderosos
mecanismos heterorreguladores de objetivação, silenciamen-
to (de conteúdos curriculares, práticas e sujeitos), domina-
ção simbólica, normalização, ajustamento, marginalização e
exclusão. Essa pedagogia do insulto se faz seguir de tensões
de invisibilização e revelação, próprias de experiências do
armário. Uma pedagogia que se traduz em uma pedagogia
do armário, que se estende e produz efeitos sobre todos/as
(JUNQUEIRA, 2009, p. 69).

Quando o armário não é uma opção, pela impossibilidade de um


corpo ou de uma performance evidente fora da norma ou por um posi-
cionamento político, há tendência de intensificação dos processos de dis-
criminação, exclusão e violência. Na negociação com a norma, algumas
performances gays, lésbicas ou trans podem ser aceitáveis e passíveis de
assimilação, especialmente aquelas que se adequam às noções hegemôni-
cas de família e masculinidade/feminilidade binárias, passíveis de serem

5 “Armário” é uma metáfora para representar a experiência de invisibilização/disciplinamento/si-


lenciamento a que muitas pessoas LGBT têm que se submeter para sobreviver em contextos discri-
minatórios e violentos.

90
Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

“incluídas” sem desestabilizar a hegemonia cis-heterossexual. Outras, que


atacam frontalmente essas noções hegemônicas, como as bichas afemina-
das, as travestis sem passabilidade6, as trans não binárias e tantas mais,
permanecem excluídas.
As diferentes formas de exclusão não residem apenas nas diferenças
“internas” à dimensão sexual e de gênero ou em contraposições como cis/
trans, orientação sexual/identidade de gênero ou a homens/mulheres. Se
essas distinções explicam parte das assimetrias vividas nos processos de
exclusão/inclusão, em cada um desses “grupos”, se tomados isoladamen-
te, há significativas desigualdades, produzidas pelas diferentes posições
étnicas, raciais e de classe ocupadas por cada sujeito. Essas desigualdades
explicam porque algumas formas de identificação sexual e de gênero pro-
liferam, alcançam visibilidade e reconhecimento, enquanto outras perma-
necem marginalizadas, subalternizadas ou excluídas.
Neste ponto, é indispensável uma análise interseccional7, que busque
compreender como as diferentes formas de discriminação (gênero, raça,
geração, classe, etc.) articulam-se e sobrepõem-se, afetando a vida de múl-
tiplos sujeitos.
As transgressões da norma cis-hetero são encontradas entre pessoas
de quaisquer classes econômicas e grupos raciais. Porém, a forma como a
transgressão é percebida socialmente, como se materializa em subjetivida-
de e o impacto que isso produz na vida dos sujeitos, inclusive no direito à
educação, é bastante distinta. Ofensas raciais, classistas e LGBTfóbicas não
apenas se somam, mas se articulam, para colocar o sujeito-alvo em uma
posição de subalternidade específica.
O racismo e a estratificação de classe são instrumentos para a desu-
manização e a negação de direitos, inclusive do direito à livre orientação
sexual e à identidade de gênero. É justamente o que os ativismos de traves-

6 A expressão passabilidade refere-se à possibilidade de um sujeito, em uma posição de margina-


lização social, ser percebido como parte do grupo privilegiado, contornando, ao menos momen-
taneamente, as experiências de discriminação a que está exposto, caso fosse identificado. É o que
permite, por exemplo, a uma mulher trans, percebida como uma mulher cisgênera, não se tornar
alvo da transfobia.

7 A interseccionalidade pode ser compreendida, além de uma crítica à noção tradicional de direitos
humanos, como uma teoria que reivindica a articulação das categorias de gênero e raça, simultane-
amente, nos debates sobre direitos humanos (CRENSHAW, 2012).

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Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

tis (MOIRA, 2017), trans negres (PEÇANHA, 2016) e bichas pretas (COS-
TA, 2018) denunciam ao chamar a atenção para como as experiências trans
ou homossexuais são vivenciadas, significadas e percebidas distintamente,
a depender da posição social, do pertencimento racial e de classe, evocan-
do “existências que questionam de maneira recorrente tanto a branquida-
de quanto a cis-heteronormatividade hegemônicas” (OLIVEIRA, 2018, p.
171). Bichas pretas, lésbicas pobres e travestis da periferia estão mais vulne-
ráveis à violação de direitos, pela precariedade material e pela desvaloração
simbólica que sua condição racial e de classe impõe. Essas pessoas não são
percebidas como sujeitos de direito e têm menos recursos econômicos, so-
ciais e jurídicos para lidar com as violações. A pobreza gera situações de
maior exposição, pois falta acesso a recursos de proteção que, numa socie-
dade capitalista, são transformados em mercadoria e acessíveis somente a
quem por eles pode pagar. Têm de expor seus corpos e suas performances
disruptivas nos transportes públicos, viver em áreas precárias e violentas
da cidade, e estão de fora dos espaços seguros que o pink money8 pode
comprar. Dependem unicamente dos sistemas públicos de ensino. Simul-
taneamente, o machismo, o racismo e o “ódio ao pobre” (SOUZA, 2017)
autorizam que violência recaia sobre elas, inclusive a LGBTfóbica. Não são
dignas da presunção de inocência e são percebidas a partir de uma série de
estigmas, seja pela polícia ou por profissionais da educação.
A discriminação e a precariedade vivenciadas por pessoas LGBT nas
escolas,, não se restringem, de modo isolado, a “questões de gênero e sexu-
alidade”. Processos de exclusão, hierarquização e desumanização consti-
tuem a história da formação social brasileira que, de modo concomitante
e articulado, definem quais pessoas são detentoras do direito à educação
e como podem acessar um sistema de ensino diferenciado e estratificado,
que naturaliza a desigualdade, a precariedade e a ausência de direitos.

4 UMA POLÍTICA EDUCACIONAL PARA LGBT


Em 2004, o Governo Federal lançou o Programa Brasil Sem Homo-
fobia (BSH) com o objetivo de “promover a cidadania de gays, lésbicas,

8 Pink money, do inglês, significa “dinheiro rosa” e refere-se ao poder de compra de parte da popu-
lação LGBT, alvo de interesse do mercado, e serve à crítica de processos em que o acesso a bens e
direitos se dá sob a lógica do consumo.

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Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

travestis, transgêneros e bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do


combate à violência e à discriminação homofóbicas” (BRASIL, 2004, p. 11).
A primeira Conferência Nacional LGBT, em 2008, resultou em um
conjunto de demandas, originando um Plano Nacional, lançado um ano
após. Outras conferências foram realizadas, em 2011 e em 2016, com a par-
ticipação de ativistas e gestores públicos, para produzir documentos e defi-
nir diretrizes e ações a serem implementadas nas diferentes esferas e áreas
de governo. Os encontros e os documentos nele produzidos representaram,
no campo das políticas públicas, a expansão da agenda promovida por
um ativismo articulado em torno de identidades sexuais e de gênero, que
emergiu a partir da redemocratização do país e consolidou-se no que hoje
é conhecido como movimento LGBT (FACCHINI, 2005; GREEN, 2000).
Nessa agenda LGBT, negociada com o Estado, a educação tem papel
estratégico. Nos planos e programas, a escola assume papel fundamental
no enfrentamento a violências, discriminações e exclusões e na promoção
dos direitos de pessoas LGBT. Se por um lado afirma-se a necessidade de
superar a homo-bi-lesbo-transfobia, como barreira à garantia do direito
à educação, por outro se reconhece na escola, mais precisamente, nas po-
líticas de escolarização, uma plataforma para a promoção dos direitos de
pessoas LGBT. Se a escola é instituição central para a garantia dos direi-
tos individuais, é também a partir da escola que se produziria uma ampla
transformação social. Esses objetivos implicam mudanças nas formas de
gestão, nas práticas pedagógicas e nos currículos. Mudanças que afetam
não apenas um público imediato, mas que incidem no conjunto da comu-
nidade escolar e para além dela. Para dar conta destas transformações são
previstas uma série de ações, como formação continuada, incentivo à pes-
quisa, elaboração de diretrizes. Ações que vêm, em parte, sendo concreti-
zadas nos últimos anos (FERNANDES, 2011; MELLO et al, 2012; IRINEU,
2014; CARREIRA, 2015; DANILIAUSKAS, 2011), envolvendo gestores
públicos, profissionais da educação, ativistas e pesquisadores. Essas ini-
ciativas, embora dispersas e descontínuas, se consideradas em conjunto,
constituem o que se poderia caracterizar como uma política pública edu-
cacional em gênero e sexualidade, mais precisamente, uma política pública
educacional contra-cis-heteronormativa.
Essa política não se constitui apenas a partir de documentos oficiais,
como uma sequência coerente de ações, da formulação à implementação,

93
Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

ou como um produto de um poder estatal, que age soberano sobre a socie-


dade, mas é o efeito de um processo dinâmico, sustentado em uma econo-
mia de poder que reúne um complexo de disputas políticas entre diferentes
agentes sociais e cuja dinâmica define formas específicas de ação do Estado
(BALL, 1994; 2006).
A atuação difusa e concomitante de diferentes agentes (acadêmicos,
ativistas, profissionais de educação, gestores públicos) engajados na cons-
trução e operacionalização dessa política, produziu, em seu conjunto, um
discurso pedagógico, sob muitos aspectos, inovador. Um discurso que se
distingue das políticas de educação sexual dos anos de 1990, voltadas espe-
cialmente à prevenção das DST/Aids e da gravidez na adolescência (RIBEI-
RO, 1990; BRASIL, 1994), ou mesmo das políticas focadas exclusivamente
na promoção dos direitos das mulheres. Construído a partir da chave do
reconhecimento e do enfrentamento à violência e à discriminação, esse
discurso questiona como a escola trata questões como sexo, corpo, identi-
dade, família, sexualidade, a partir da problematização da cis-heteronor-
matividade. Por meio de uma abordagem que não parte do modelo cis-he-
terossexual hegemônico, visibilizou e valorizou um conjunto de vivências
e de sujeitos que, de diferentes modos, tencionam a norma, trazendo uma
narrativa positiva sobre mulheres lésbicas, homens gays, pessoas bissexu-
ais, travestis e transexuais, denunciando como violentos e discriminatórios
discursos e práticas até então naturalizados na escola.
A partir de um ponto de vista sociológico, opondo-se ao determi-
nismo biológico e à naturalização das relações sociais, esse discurso peda-
gógico questiona uma série de representações e normas que têm orientado
práticas e relações sociais, definido certa ordem de gênero e regulação da
sexualidade na sociedade brasileira. Se, por um lado, problematizou a ge-
nerificação heteronormativa das práticas de afeto, prazer e conjugalidade,
por outro, propôs a desnaturalização do binarismo de gênero e a desco-
nexão do enlace cisnormativo entre corpos sexuados e identidades gene-
rificadas, apontando para uma perspectiva construcionista e histórica da
sexualidade e das relações de gênero. As possibilidades de existência não
estariam submetidas a uma norma cis-heterossexual, devendo ser reco-
nhecidas e valorizadas em sua diversidade. Homem, mulher, família não
seriam mais categorias universais fixas, mas ao contrário, mutáveis e po-
lissêmicas, cujos sentidos podiam ser – e continuam sendo – disputados.

94
Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

Esse discurso articula enunciados de diferentes campos – dos quais


são oriundos os agentes que lhe produzem. Um “discurso comum”, embo-
ra interpretado e reinterpretado de múltiplas formas, fruto e condição da
comunicação entre estes diferentes agentes e seus campos e que, por isso,
permite uma ação política articulada. Um discurso que traz ideias do cam-
po da educação (diversidade, inclusão), do meio acadêmico (gênero, he-
teronormatividade), do ativismo (homofobia, lesbofobia, transfobia) e das
políticas públicas (direitos humanos), produzindo uma ferramenta passível
de ser acionada nos enfrentamentos locais. Expressões como “diversida-
de sexual”, “gênero e diversidade” e “escola sem homofobia” sintetizaram,
popularizaram e tornaram compreensíveis ideias e demandas políticas até
então estranhas, dispersas ou ininteligíveis para a escola.
Ainda que sustentada em um posicionamento governamental va-
cilante e contraditório, cujo exemplo patente é a declaração presidencial
pós-veto ao kit anti-homofobia, essa política, em muitos momentos, assu-
me ares de discurso oficial. Consideradas as suas fragilidades jurídicas e
políticas, ainda ocupa o lugar de política estatal, beneficiando seus exe-
cutores e apoiadores da legitimidade que esse lugar produz. Mesmo com
um orçamento irrelevante e um programa de ação limitado, essa política
pública educacional segue colocando em questão uma série de práticas e
enunciados recorrentes nas escolas, nos quais a ordem de gênero é tensio-
nada por multidões de sujeitos insubmissos (PRECIADO, 2011). O embate
discursivo que essa política provocou têm produzido efeitos nos últimos
anos, tanto no que diz respeito à garantia do direito à educação de pessoas
LGBT, quanto no que se refere à atuação da escola no processo de transfor-
mação social das relações de gênero e regulações da sexualidade. Apesar
de sua dimensão reduzida, essa política incitou o debate em um incontável
número de escolas, produziu impacto nos sistemas de ensino, na produção
acadêmica (VIANNA, 2012) e na legislação educacional (BRASIL, 2013),
gerando um embate que transbordou a comunidade escolar e as áreas de
gestão e que permanece em disputa em diversas arenas públicas.

5 CONCLUSÃO: AVANÇOS PRECÁRIOS EM BUSCA DE


UMA ESCOLA TRANSFORMADORA
Os avanços vividos com a formulação de uma política educacional
e de um discurso pedagógico especificamente voltado à inclusão e valori-

95
Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

zação de pessoas LGBT, parecem ainda bastante precários (MELLO; BRI-


TO e MAROJA, 2012; IRINEU, 2014; BENTO, 2014), sobretudo no que diz
respeito às lutas para a definição dessas pessoas como humanas e sujeitos
de direito em uma sociedade extremamente desigual e num contexto no
qual ganham força projetos políticos de desumanização, hierarquização e
marginalização social.
No Brasil, o acesso à educação e a universalização do ensino público
foram, por muito tempo, bandeiras de movimentos sociais ligados à educa-
ção. Porém, atualmente, percebe-se que o acesso à escola não é garantia de
permanência ou sucesso escolar, pois a universalização do ensino não as-
segura a igualdade em relação ao direito à educação. O direito à educação
encontra-se ameaçado por fatores ancorados nas relações de desigualdade
estabelecidas socialmente. Nesse cenário, marcadores como raça, gênero,
orientação sexual e classe são determinantes para definir quem são os su-
jeitos que devem ou não permanecer na escola, colocando à prova o “cará-
ter universal” da educação.
Mesmo quando os excluídos adentram a escola, antes reservada ao
grupo privilegiado, esta mantém sua matriz eurocêntrica, masculinista,
cis-heterossexista, normalizadora, submetendo os “novos públicos” a uma
educação colonizadora. A colonialidade do saber (QUIJANO, 2005) per-
siste na escola e uma pedagogia colonizadora não reconhece direitos ou
respeita os corpos de quem coloniza. Ao contrário, as violações são parte
do seu processo “educativo” e seus agentes não hesitam em acionar ins-
trumentos de violência simbólica para “civilizar” os “incivilizados” e nor-
malizar os “anormais”. Instrumentos que agem sobre seus corpos, que si-
lenciam suas narrativas, que desqualificam seus saberes e censuram seus
modos de compreender e explicar a realidade.
A expulsão de pessoas LGBT da escola é também uma expulsão epis-
temológica das formas de saber e dos modos de significação do mundo que
esses sujeitos são capazes de produzir. A cis-heteronorma impõe-se como
pensamento único, naturaliza-se pelo silenciamento de qualquer outro
ponto de vista distinto daquele que lhe reitera. Expulsa, apaga, invisibiliza
modos de vida que não aqueles que ela pretende reproduzir. Explica a vida,
o corpo, a história e as relações sociais de formas que reiteram sua natura-
lidade e universalidade.

96
Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

A luta pela inclusão de pessoas LGBT na escola é também epistemo-


lógica. A escola sem LGBTfobia é aquela capaz de incorporar os saberes
produzidos a partir da disruptura da cis-heteronorma. Saberes produzidos
por gays, como Michel Foucault, lésbicas, como Judith Butler, e pessoas
trans, como Paul Preciado. Saberes da África, indígenas, negros, feminis-
tas, queer. Formas de perceber os corpos, a sexualidade e as identidades que
desafiam as narrativas hegemônicas. Saberes que criam a possibilidade de
uma existência simbólica para pessoas cujos corpos, afetos e identidades
não podem e não querem se enquadrar à cisgeneridade heterossexual ou à
branquitude ou à cultura da classe dominante.
O direito à educação de pessoas LGBT é, acima de tudo, o direito de
não ser colonizado pela cis-heteronormatividade racista, classista e mascu-
linista que ainda impregna os currículos, a prática pedagógica e os cotidia-
nos escolares. É o direito a ser sujeito (não objeto) do processo educativo,
por meio de uma pedagogia que opere para a autonomia (não para a sub-
missão) intelectual, moral, política (FREIRE, 1996). É o direito a compar-
tilhar múltiplos saberes, produzidos não apenas por uma matriz cultural
(masculina, branca, heterossexual, cisgênera), imposta e dissimulada como
universal, mas a partir de diversas posições de sujeitos. Sujeitos vindos de
diferentes lugares de fala (RIBEIRO, 2017), capazes de produzir uma com-
preensão e uma narrativa do mundo, das pessoas e das relações sociais, a
partir de múltiplos pontos de vista e experiências sociais.
A escola sem LGBTfobia é aquela que dialoga sobre gênero e sexu-
alidade, que faz o debate racial e o de classe, que desafia o processo de
reprodução da sociedade na qual está inserida. É, portanto, uma escola
“incômoda” aos sujeitos e às instituições que têm interesse na manutenção
dessa ordem social de privilégios e vantagens. Essa escola contra hegemô-
nica e contra-cis-heteronormativa é reconhecida pelas hegemonias morais,
estabelecidas no Brasil, como verdadeira ameaça, tornando-se alvo de um
intenso investimento reacionário. É uma escola que, a despeito de ser cen-
surada, e, até mesmo, judicializada ou ameaçada não cede à sua liberdade
de ensinar e aprender.
Esse embate passa pelas escolas e, para além delas, ganha centrali-
dade nas disputas políticas dos últimos anos, evidenciando a relação en-
tre poder, gênero e sexualidade. Relação cujos indícios são encontrados
na convergência do pânico moral e do conservadorismo político, os quais

97
Alexandre Bortolini - Thaís Pimentel

reivindicam a restauração simultânea da ordem social, política, sexual e de


gênero. Essa convergência pode ser exemplificada pela aliança entre o com-
bate à “ideologia de gênero” - sintagma cunhada por grupos reacionários
que investem na “(re)naturalização das concepções de família, maternida-
de, parentesco, (hetero)sexualidade, diferença sexual”, reforçando “as dis-
posições relativas às normas de gênero, à heterossexualidade obrigatória e à
heteronormatividade” (JUNQUEIRA, 2009, p. 26) - e o Escola Sem Partido
(ESP), movimento de ataque e censura à crítica histórico-social nas escolas
(FRIGOTTO, 2017).
A primeira metade da década de 2010 foi marcada por um significa-
tivo número de projetos de lei, com propostas voltadas a regular ou a vetar
a abordagem de conteúdos na escola, voltados a estas questões, indican-
do, inclusive, retaliações a profissionais de educação que insistissem em
abordá-los. Ainda que, evidentemente inconstitucionais, essas iniciativas
ganharam visibilidade e, articuladas a formas difusas de pressão, foram
eficazes em instalar um clima de receio e censura em diversas escolas.
Não por acaso a escola tornou-se um dos palcos centrais dessa dis-
puta, visto que sua função social reconhecida é justamente a formação dos
sujeitos e sua preparação para a vida social. A educação escolar e os siste-
mas de ensino são pontos de imbricação de jogos de verdade e técnicas de
poder, de disciplinamento e biopolítica (FOUCAULT, 1988), refletindo nos
processos de subjetivação, na construção e regulação dos corpos, na gestão
das populações e da vida. As escolas fazem circular discursos e incidem,
intencionalmente, na formação dos sujeitos. São palco, concomitantemen-
te, da proliferação de estratégias de resistência. A escolarização obrigatória,
a audiência cativa, a aplicabilidade de técnicas de disciplina, a capilaridade,
que permite, difundir discursos e práticas, a capacidade e a legitimida-
de para produzir verdade, tornam a política educacional ponto de apoio e
fruição de uma série de estratégias de poder e de saber e objeto de disputa
de vários os grupos sociais que demandam acesso a este instrumental para
a partir dele instaurar suas estratégias.
Diante da reação conservadora, o ativismo LGBT segue defendendo
a escola como instituição responsável pela formação dos sujeitos, reconhe-
cida como uma instituição estratégica para a transformação cultural da
sociedade, plataforma para a difusão de discursos que problematizam a
hegemonia cis-heteronormativa, que contrariam o sexismo, o machismo e

98
Direito à educação de pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola

a LGBTfobia e que valorizam o reconhecimento da diversidade sexual e de


gênero de forma ampla. A Escola Sem Homofobia não é apenas a escola que
não violenta, não discrimina ou não exclui as pessoas da sua própria comu-
nidade, mas também aquela que promove publicamente o reconhecimento
da diversidade sexual e de gênero. É a escola que reconhece e valoriza o que
antes era abjeto, que presta contas das suas próprias práticas de desuma-
nização e que se torna promotora da igualdade de gênero e do respeito às
diferentes práticas de afeto e de prazer.

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104
5
A POLÍTICA DE INCLUSÃO DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA COMO QUESTÃO DE
DIREITOS HUMANOS

IZABEL MARIA MADEIRA DE LOUREIRO MAIOR


Mestre em Medicina Física e Reabilitação pela Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ex-Secretária Nacional da
Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da
Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Conselheira do Conselho Municipal
de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro.

RESUMO
Apresenta-se a luta do movimento social das pessoas com deficiência por
seus direitos como parte do conjunto dos movimentos sociais e sua relação
com os direitos humanos. Analisa-se a nova conceituação de pessoa com
deficiência como parte da diversidade humana e sujeito de direitos. Enfa-
tiza-se o valor da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia, tratado da ONU, ratificado no Brasil como emenda constitucional em
2008. Avalia-se a inserção da política pública de inclusão da pessoa com
deficiência desde a criação da área de direitos humanos no governo federal.
Defende-se a educação em direitos humanos e a interseção entre os movi-
mentos sociais que atuam por dignidade e contra discriminação e violação
dos direitos. Com isso, pretende-se obter força política e defender priorida-
de para os direitos humanos, visando ultrapassar as desigualdades sociais.
Conclui-se que avanços para mais pessoas com deficiência dependem de
gestão responsável, orçamento e atuação da fiscalização e dos conselhos de
direitos da pessoa com deficiência,

Palavras-chave
Pessoas com deficiência. Direitos Humanos. Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência. Movimento social. Políticas públicas.

105
ABSTRACT
This paper presents the struggle of persons with disabilities for their rights,
as a part of the whole social movement and its relationship with the human
rights. We analyze the new concept of “person with disability” as part of
human diversity and as subject of rights. The value of the Convention on the
Rights of Persons with Disabilities, a UN treaty and ratified by Brazil as a
constitutional amendment in 2008, is emphasized. The effectiveness of the
public policies for the inclusion of persons with disabilities since the intro-
duction of the Human Rights area in the federal government is evaluated.
The importance of education on human rights and the interaction between
the social movements that strive for dignity and against discrimination
and violations is defended. In this fashion, one intends to attain political
power and impose priority for human rights, in order to overcome social
inequalities. The conclusion is that promotion for persons with disabilities
depends upon responsible management, funding, monitoring body and
action by the Councils for the Rights of Persons with Disabilities.

Keywords
Persons with disabilities. Human Rights. Convention on the Rights of
Persons with Disabilities. Social movement. Public policies.

106
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

1 INTRODUÇÃO
A conquista dos direitos pelas pessoas com deficiência no Brasil sur-
giu no século XX. Existiram duas fases distintas: o envolvimento e a con-
dução do processo, por famílias e profissionais dedicados ao atendimento
dos deficientes e, posteriormente, a participação direta das pessoas com
deficiência, apoiadas por familiares e técnicos, que compreenderam a nova
realidade. Em ambas, predominou a atuação das associações da sociedade
civil, as quais lutaram por espaço para as pessoas com deficiência na agen-
da pública. Da tutela à autonomia, o movimento social procurou vencer a
discriminação, a desvalorização e a falta de atenção por parte dos governos
(MAIOR, 2015b).
O enfrentamento do assistencialismo trouxe avanços e o Brasil tor-
nou-se reconhecido mundialmente por mudanças paradigmáticas relativas
às pessoas com deficiência. O cenário alterou-se a partir do protagonismo
do movimento político para a inserção de seus direitos básicos nos diver-
sos artigos da Constituição Federal de 1988. Como consequência, as leis
referentes às políticas setoriais como saúde, assistência social, educação e
trabalho contemplaram o tema e houve a criação de estruturas de gestão
de projetos à promoção e atenção aos direitos do segmento, favorecendo a
inclusão social.
Em 1995 foi criada a Secretaria dos Direitos de Cidadania, no âmbito
do Ministério da Justiça, após intensa negociação do movimento social e, in-
ternamente, nas instâncias governamentais, a Coordenadoria Nacional para
a Política de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde). Insti-
tuída em 1986 obteve novo lócus institucional, deixando a assistência social
para vincular-se aos direitos humanos (BRASIL, 2018). Desse novo momen-
to, enfatiza-se a aproximação do movimento das pessoas com deficiência aos
demais segmentos sociais, em busca de dignidade e direitos fundamentais.
Além das propostas específicas para a inclusão, o ideário da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1948) ganhou destaque na agenda política adotada pelas lideran-
ças, visando às novas conquistas. Entretanto, mesmo com a afirmação da
universalidade dos direitos humanos, faltavam no mundo e no Brasil, leis
e normas técnicas que determinassem, por exemplo, a obrigatoriedade da
acessibilidade, elemento fundamental para a equiparação de oportunida-
des. A violação dos direitos humanos na vida das pessoas com deficiência

107
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

é retratada nos indicadores sociais relativos à pobreza, baixa escolaridade,


desemprego e dificuldade de receber atendimento igual nos serviços dis-
poníveis à população. Em 2018, são celebrados os 70 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos e o marco dos 10 anos da ratificação, com
equivalência constitucional, da Convenção Internacional sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2008).
O Brasil participou do comitê ad hoc estabelecido na ONU, por sua
compreensão sobre o cenário global dos direitos humanos e pela contri-
buição que poderia oferecer ao debate internacional e reforçar suas agen-
das de trabalho internamente. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (CDPD), ratificada em 2008 e promulgada pelo Decreto
n. 6.949/2009 (BRASIL, 2009a), adotou o modelo social da deficiência, in-
seriu respeito à diversidade humana, à mudança de atitude e à remoção
de barreiras entre os princípios gerais e como obrigações aos governos e à
sociedade. Vê-se o ressurgimento do movimento social para impulsionar
essa grande conquista no país (PAULA; MAIOR, 2008).
A inserção do órgão gestor das políticas públicas para pessoas com
deficiência no âmbito dos direitos humanos, desde 1995, contribuiu para
a defesa da convenção como constitucional e mostrou-se fundamental na
articulação e integração dos programas setoriais. Com a Secretaria Nacio-
nal de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, a partir de 2010,
foram impulsionadas agendas políticas mais abrangentes à autonomia e à
participação ativa do segmento na sociedade (BRASIL, 2018). Defende-se a
manutenção dessa secretaria como indispensável à realização de suas atri-
buições legais, com destaque, à transversalidade das ações.
Cabe, entretanto, analisar em que medida a vinculação ao Ministé-
rio dos Direitos Humanos contribui, de forma efetiva e célere, para resol-
ver aspectos de gestão, coordenação entre as áreas setoriais e dotação orça-
mentária, correspondentes ao cumprimento das obrigações assumidas com
a ratificação da convenção e do protocolo facultativo. O protocolo permite
petições individuais ou feitas por organizações ao comitê da convenção, que
monitora as denúncias da violação dos direitos das pessoas com deficiência,
em situações nas quais instâncias nacionais não tenham revertido os agra-
vos. É necessário que a secretaria desenvolva agendas compartilhadas com
as demais instâncias internas do ministério para potencializar resultados e,
fortalecidos, transformarem os direitos humanos em política de Estado.

108
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

2 DIREITOS HUMANOS, DIVERSIDADE E PESSOA COM


DEFICIÊNCIA
A diversidade humana comporta incontáveis diferenças na estrutura
e no desempenho funcional, no pensar e agir, no conhecimento e em sua
aplicação, nas escolhas diárias e nas relações interpessoais. Os componen-
tes da humanidade não são homogêneos, mas indivíduos singulares. Para
promover e manter as relações, a sociedade reconheceu a dignidade ineren-
te ao ser humano como o maior valor existente. Dignidade humana não se
explica, pois é o verdadeiro elo organizacional das sociedades para afastar
a violência e manter a racionalidade, a justiça e a paz.
A convivência entre todas as pessoas pressupõe arranjos sociais com
liberdade e igualdade de direitos e um acordo de mútua cooperação, racio-
nal e consciente: os direitos humanos. O direito à vida, à livre expressão, a
não ser discriminado e ter reconhecimento igual perante as leis são alguns
dos direitos básicos. Esse ideário, em tese, promove e assegura a todas as
pessoas iguais direitos ao desenvolvimento econômico, social, cultural e
ambiental.
Direitos humanos e pessoa com deficiência estão intrinsecamente as-
sociados, pois o direito de ser diferente não retira de qualquer pessoa a sua
titularidade de sujeito de direitos. E, quando se fala de sociedade inclusiva,
trata-se daquela capaz de promover e defender os direitos das pessoas com
deficiência como o faz para todos os seus cidadãos (MAIOR, 2004). Dessa
forma, a sociedade pluralista e inclusiva deve prover as necessidades espe-
cíficas de cada sujeito de direitos e, mediante atitudes e fatores contextuais
facilitadores, assegurar a autonomia, independência e a participação social
das pessoas com deficiência.
A educação em direitos humanos, em particular no contexto da edu-
cação não-formal, deve ser difundida em formato simples para fomentar o
interesse da base da população, dos segmentos sociais habitualmente des-
protegidos e submetidos às formas persistentes de opressão, discrimina-
ção e violação dos direitos humanos. As pessoas com deficiência merecem
destaque por sua condição de pobreza e por não encontrarem fontes de
consulta com acessibilidade para pessoas cegas, surdas e com deficiência
intelectual ou múltipla. A educação em direitos humanos, como conteúdo
curricular no ensino fundamental, pode contribuir para o respeito às mi-

109
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

norias, como medida de prevenção e combate ao bullying e prestar impor-


tante reforço à educação inclusiva, direito fundamental e indisponível das
pessoas com deficiência (FÁVERO, 2004).
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos preconiza a
divulgação dos direitos humanos, concebido com desenho universal, com
os recursos de acessibilidade, em especial, acessibilidade à informação e à
comunicação, sem perder de vista os aspectos da mobilidade e do espaço
físico acessíveis. O acesso ao conteúdo, digital, por áudio ou escrito, a dis-
tância ou presencial e a possibilidade de envolver-se nos debates, depen-
dem dos meios, modos, formatos e sistemas que serão usados e precisam
seguir as normas técnicas (BRASIL, 2006).
O conhecimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos e
dos pactos complementares é essencial para o entendimento da origem e
valorização da CDPD (BRASIL, 2009a). Conhecer direitos faz parte do
fortalecimento e da capacidade de propor mudanças substantivas para ele-
var o padrão de vida do conjunto da população. Enquanto esse conheci-
mento estiver restrito a poucos indivíduos não haverá massa crítica para
demandas e efetivação dos direitos, sem reação e sem denúncias da dis-
criminação em razão da deficiência, bem como das formas de violência,
crimes tipificados na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência
(LBI), Lei n. 13.146/2015 (BRASIL, 2015).

3 A ONU E SUA ATUAÇÃO VOLTADA ÀS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA
A ONU reconhece a prioridade das pessoas com deficiência, pois são
15% da população mundial, ou cerca de um bilhão de pessoas, a maior das
minorias. Elas persistem como o segmento social submetido à constante e
intensa discriminação, violação dos direitos humanos e desigualdade estru-
tural, o que impacta inclusive os indicadores de desenvolvimento mundial
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE; BANCO MUNDIAL, 2012).
Nos anos 1970 surgiram declarações sobre os direitos das pessoas
com deficiência. Entretanto, declarações são documentos não vinculantes,
que exortam os países a voltarem sua atenção para o problema e tomar
medidas saneadoras.

110
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

A Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, adotada em 1971


(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1971) foi considerada pelos
ativistas como insuficiente, pois reduziu o acesso aos direitos humanos ao
admitir exceções associadas ao grau da deficiência. O artigo 1º estabelece que:
“o deficiente mental deve gozar, na medida do possível, dos mesmos direitos
que todos os outros seres humanos”. Em contraste, no artigo 7º encontra-se:
Se, em virtude da gravidade da sua deficiência, certos defi-
cientes mentais não puderem gozar livremente os seus direi-
tos, ou se impuser uma limitação ou até a supressão desses
mesmos direitos, o processo legal utilizado para essa limita-
ção ou supressão deverá preservá-los legalmente contra toda
e qualquer forma de abuso. Esse processo deverá basear-se
numa avaliação das suas capacidades sociais feita por peritos
qualificados. Essa limitação ou supressão de direitos deverá
compreender o direito de recurso a instâncias superiores.
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1971).

Permaneceu no âmbito dos compêndios médicos a definição ou ca-


racterização dos mentalmente retardados, conforme tradução literal do tí-
tulo da declaração (mentally retarded). O texto autorizou a interdição dos
direitos civis da pessoa com deficiência, fato replicado nas leis como regra,
inclusive no Brasil. O assunto retornou ao debate por ocasião da elaboração
da convenção de 2006 (BRASIL, 2009a).
A seguir foi adotada a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficien-
tes, em 1975, texto que pela primeira vez jogou luz sobre o público destina-
tário, quando dispôs que:
1 - O termo “pessoas deficientes” [disabled person] refere-se a
qualquer pessoa incapaz [unable] de assegurar por si mesma,
total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual
ou social normal, em decorrência de uma deficiência
[deficiency] congênita ou não, em suas capacidades físicas ou
mentais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1975).

Os termos originais em inglês encontram-se entre parênteses para


permitir o acompanhamento da alteração terminológica usada na ONU,
espelhando as mudanças decorrentes da pressão social, os desdobramen-
tos e a influência nas leis e nas políticas nacionais. Essa declaração ainda
desconsiderou os fatores ambientais, porém a inserção da palavra “pessoa”
colaborou para a redução do estigma (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1975).

111
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

Em 1976, a ONU proclamou 1981 como o Ano Internacional da Pes-


soa Deficiente, com o lema “igualdade e plena participação”. Entre os ob-
jetivos constavam conscientizar a sociedade e estimular a organização das
pessoas com deficiência. A ONU avaliou que programas referentes às limi-
tações físicas e mentais não seriam suficientes para integrar o segmento,
pois o aspecto preponderante correspondia às atitudes da sociedade con-
trárias à participação das pessoas com deficiência (BRASIL, 1981).
Segundo Figueira se “até aqui a pessoa com deficiência caminhou
em silêncio, excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981, o Ano
Internacional da Pessoa Deficiente, promulgado pela ONU, passou a se or-
ganizar politicamente” (FIGUEIRA, 2008). Os ativistas, no Brasil, consi-
deram que foi esse o marco da mudança da luta por autonomia e políticas
públicas sociais. Houve a diferenciação entre as associações para o atendi-
mento e tratamento (modelo biomédico) e as organizações de pessoas com
deficiência, autodefensoras de suas ideias e demandas (modelo social da
deficiência) (LANNA JUNIOR, 2010).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou, em 1980, a
Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens
(Cidid) como complementar à CID. Definiram desvantagem como
resultante de uma deficiência ou uma incapacidade, que limita ou
impede o desempenho de um papel que é normal para aquela pessoa
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1989). Viu-se pouco avanço
conceitual, persistindo a comparação com a normalidade. Enunciado
similar consta no inciso I, do artigo 3º, do Decreto n. 3.298/1999, o qual
dispõe que “deficiência é toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou
função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o
desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser
humano” (BRASIL, 1999).
Enquanto a OMS persistiu com a definição de deficiência e incapa-
cidade estritamente sobre as limitações do corpo da pessoa, outros textos
internacionais contemporâneos adotados pela ONU passaram a considerar
o ambiente, o contexto e a sociedade como barreiras e demonstraram que
as mudanças precisavam ser gerais, não mais restritas aos indivíduos com
deficiência ou à prevenção da deficiência (MAIOR, 2015a).
A ONU lançou o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com
Deficiência, em 1982, o qual inovou ao afirmar que:

112
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

A incapacidade [handicap no original] existe em função da


relação entre as pessoas deficientes e o seu ambiente; a in-
capacidade ocorre quando essas pessoas se deparam com
barreiras culturais, físicas ou sociais que impedem o seu
acesso aos diversos sistemas da sociedade que se encontram
à disposição dos demais cidadãos. Portanto, a incapacidade
é a perda, ou a limitação, das oportunidades de participar da
vida em igualdade de condições com os demais (ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1982).

O programa foi o primeiro a assumir o modelo social da deficiência,


enfatizando a interface entre a pessoa e a realidade social. (ORGANIZA-
ÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1982).
Após a avaliação da Década das Pessoas com Deficiência, em 1993,
a ONU homologou as Normas de Equiparação de Oportunidades, docu-
mento de compromisso ético e político com medidas à garantia dos direi-
tos do grupo e aos pressupostos do modelo social da deficiência:
Nos finais dos anos 60, as organizações de pessoas com
deficiência em alguns países começaram a formular um novo
conceito de deficiência, que punha em evidência a estreita
relação existente entre as limitações sentidas por indivíduos
portadores de deficiência, o meio circundante no qual se
inscrevia a sua vida quotidiana, e as atitudes da população
em geral a seu respeito (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1993).

Esse documento apresentou a acessibilidade ao meio físico, à comu-


nicação, à informação e recursos e sistemas de tecnologia assistiva como
fundamentais para a igualdade de oportunidades (ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 1993).
A legislação e as políticas públicas brasileiras não espelharam os
avanços, pois a Lei n. 7.853/1989 e o Decreto n. 3.298/1999 mantiveram o
parâmetro da OMS, modelo biomédico da deficiência, usando o CID na
categorização da deficiência (BRASIL, 1989, 1999).
No âmbito regional, a Organização dos Estados Americanos (OEA)
adotou, em 1999, a Convenção Interamericana de Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência, ratificada
pelo Decreto n. 3.956/2001 (BRASIL. 2001). O artigo 1º apresenta:

113
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

O termo “deficiência” significa uma restrição física, mental


ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que
limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades
essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente
econômico e social (BRASIL, 2001. grifo da autora).

A convenção menciona a deficiência, ao invés de aludir à pessoa com


deficiência, porém evoluiu ao avaliar atividades e reconhecer que o am-
biente influencia o desempenho da pessoa (MAIOR, 2015).
A OMS, em 2001, adotou a Classificação Internacional de Funciona-
lidade, Incapacidade e Saúde (CIF). A classificação destinou-se a avaliar os
impedimentos (estrutura e função do corpo), a limitação nas atividades e
a restrição na participação social (envolvimento nas situações da vida) sob
a concepção biopsicossocial da deficiência. Apesar das inovações, a CIF
ainda manteve insuficiências na avaliação do contexto e não se destinou
a avaliar pessoas “em graus de deficiência”. Coube aos países elaborarem
instrumentos próprios de valoração da situação de deficiência em suas rea-
lidades culturais e socioeconômicas (FARIAS; BUCHALLA, 2005).

4 FORMULAÇÃO DO MODELO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA


Nos documentos aqui apresentados menciona-se o aspecto biológi-
co e o contexto social como deficiência, um em oposição ao outro. De fato,
a mudança foi demorada, dos anos 1960 até a adoção da convenção em
2006, fato que acarretou que leis nacionais, tanto do Brasil como de outros
países, transitassem entre textos e conceituações diferentes da ONU e da
OMS. Entretanto, deve-se ao movimento internacional das pessoas com
deficiência as novas teorias que levaram à mudança do modelo biomédico
para o modelo social (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009).
Ressalte-se que o conceito social da deficiência surgiu antes da Con-
venção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2009a). Da
mesma forma, a troca conceitual não é derivada da CIF (ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE, 2003). O conceito social é anterior, mas a conven-
ção e a CIF provocaram repercussão, mostrando a deficiência como con-
ceito em evolução, construído socialmente.
Os programas de tratamento das pessoas com deficiência em insti-
tuições das décadas de 1950 a 1990, ou no caso das escolas especiais exclu-

114
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

sivas para alunos com deficiência, são exemplos do modelo biomédico da


deficiência, o qual interpreta a deficiência como consequência de doença
ou acidente, gerando alguma incapacidade a ser superada. O modelo está
vinculado à integração social e aos esforços de normalização das pessoas
com deficiência para atenderem padrões de desempenho e estética exigi-
dos pela sociedade. O modelo tem como foco a limitação funcional que se
encontra na pessoa, desconsiderando as barreiras presentes no contexto
social (MAIOR, 2017).
O modelo biomédico da deficiência demonstra a resistência da
sociedade em aceitar mudanças em suas estruturas e atitudes (SASSAKI,
2003). De acordo com Shapiro, na década de 1970, estudantes com severa
deficiência física iniciaram manifestações no campus da Universidade da
Califórnia em Berkeley, pleiteando independência e suporte institucional,
visando a iguais oportunidades. Surgiu um novo movimento por direitos
civis e foram criados os Centros de Vida Independente, geridos pelas pes-
soas com deficiência, que influenciaram a legislação e a política norte-ame-
ricana voltada aos direitos do segmento (SHAPIRO, 1994).
Conforme Diniz (2007), nos anos 1960 e 1970, a Liga dos Lesados
Físicos contra a Segregação, composta por estudantes de sociologia no
Reino Unido, questionou a compreensão tradicional da deficiência: di-
ferentemente das abordagens biomédicas, deficiência não deveria ser en-
tendida como um problema individual, uma “tragédia pessoal”, mas sim
uma questão eminentemente social. Segundo eles, a responsabilidade pela
opressão experimentada pelos deficientes deveria ser transferida para a in-
capacidade social em prever e incorporar a diversidade (DINIZ, 2007).
Apesar das restrições da ditadura militar no Brasil, no final dos
anos 1970, as pessoas com deficiência organizaram-se, especialmente
àquelas dos centros de reabilitação para deficientes físicos e as oriundas
das instituições de educação para cegos e surdos. Esses grupos percebe-
ram que a integração social era insuficiente, pois sua participação depen-
dia de mudanças nos sistemas, serviços e ambientes, responsáveis pela
exclusão social. O paradigma da integração exigia permanente “supera-
ção individual” de obstáculos, perpetuando-se a indiferença do poder
público (MAIOR, 2015b).
O modelo social visava à transformação das condições existentes
mediante políticas públicas inclusivas. Segundo Sassaki, no modelo social

115
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

da deficiência cabe à sociedade eliminar todas as barreiras físicas, progra-


máticas e atitudinais para que as pessoas possam ter acesso aos serviços,
lugares, informações e bens necessários ao seu desenvolvimento pessoal,
social, educacional e profissional (SASSAKI, 2003). Nesse modelo, as po-
líticas universais contemplam as especificidades do segmento das pessoas
com deficiência (BERMAN-BIELER, 2005).
Ao se referir à inserção do modelo social da deficiência na convenção
da ONU, Fonseca ressalta que o conceito de deficiência é revolucionário,
devido à percepção de que a deficiência está na sociedade, não nos atribu-
tos dos cidadãos que apresentam impedimentos e, na medida em que as
sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e atitu-
dinais, as pessoas com impedimentos têm assegurada (ou não) a sua cida-
dania (FONSECA, 2007).

5 CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS


COM DEFICIÊNCIA
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)
foi desejada pelo movimento internacional desde 1981, por ocasião da
apresentação do primeiro texto. Somente duas décadas depois a assembleia
geral autorizou a composição de um comitê ad hoc para avaliar a necessi-
dade de uma convenção.
Piovesan (2006) sustenta que é insuficiente tratar o indivíduo de for-
ma genérica, geral e abstrata, vez que determinados sujeitos de direitos,
ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e
diferenciada. Dessa forma justificam-se os tratados de direitos relativos a
públicos como crianças, negros, mulheres, migrantes e pessoas com de-
ficiência. A autora acrescenta que “ao lado do direito à igualdade, surge,
também, como direito fundamental, o direito à diferença” (PIOVESAN,
2006, p. 39).
O comitê ad hoc, do qual o Brasil participou, discutiu de 2002 a 2006,
a elaboração da convenção, um documento que reforça e faz o detalha-
mento de como devem ser promovidos e assegurados os direitos de um
conjunto, naquela época, correspondente a 14,5% da população brasileira,
conforme dados do censo do IBGE, de 2000. Atualmente, segundo a meto-
dologia usada no censo de 2010, perfazem 23,9% da população, dos quais

116
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

8,6% relataram grande dificuldade e impossibilidade em uma ou mais ati-


vidades perguntadas (BRASIL, 2003, 2012).
A proposta de uma convenção específica enfrentou dois complicado-
res centrais. O primeiro ligado ao perfil do segmento, vez que, ao contrá-
rio de grupos sociais visivelmente homogêneos e com necessidades com-
partilhadas, as pessoas com deficiência têm, na própria diversidade, uma
de suas mais evidentes características (CARVALHO; ALMEIDA, 2012).
Outro ponto de tensão foi o paradigma social ou dos direitos humanos a
ser adotado, no qual a sociedade precisa aceitar a pessoa com deficiência
como parte da diversidade humana, respeitar e atender suas especificida-
des (MAIOR, 2015b). Destaca-se que:
A convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
foi homologada pela Assembleia das Nações Unidas em 13
de dezembro de 2006, em homenagem ao 58° aniversário da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. A mais recente
das Convenções dirigidas a um segmento marginalizado da
sociedade - nem por isto reduzido em tamanho - entrou em
vigência em 3 de maio de 2008, após ultrapassar o mínimo de
vinte ratificações [177 ratificações em 2018]. O processo de
elaboração, aprovação e ratificação pelos países que culmi-
nou neste documento é um exemplo desta nova concepção e
geração de direitos, trazendo especificidades que tornam efe-
tivos para as pessoas com deficiência os direitos e as garan-
tias fundamentais do texto de 1948. A leitura de cada um dos
30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
está referida diretamente nos 40 artigos de conteúdo da con-
venção estreante na ordem jurídica internacional, incluídos
os artigos do Comitê e da Conferência dos Estados Partes.
Agora este segmento da humanidade pode dizer que é parte
dos iguais na diversidade e no valor inerente de cada pessoa.
(PAULA; MAIOR, 2008, p. 37).
Tão importante quanto a convenção é o Protocolo Faculta-
tivo, pois se não forem suficientes as instâncias nacionais, o
Comitê da Convenção atuará no monitoramento e na apu-
ração de denúncias de violações dos direitos humanos, indi-
viduais e coletivas, oriundos dos países signatários do docu-
mento opcional (PAULA; MAIOR, 2008, p. 38).

117
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

A convenção é o resultado de uma ampla negociação entre os 192 pa-


íses membros da ONU que, pela primeira vez, contou com a participação
direta da sociedade civil organizada. A presença de protagonistas influen-
ciou as representações diplomáticas e especialistas de países com cultura,
religião, desenvolvimento e regime político diversos. A ONU mudou antes
e transformou-se com o êxito das discussões progressistas da convenção
(MAIOR, 2010). A oportunidade de participar dos debates é uma lembran-
ça para sempre emocionante.
O Congresso Nacional adotou o rito de votação de emenda consti-
tucional e ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Defi-
ciência e seu Protocolo Facultativo, por intermédio do Decreto Legislativo
n. 186/2008 (BRASIL, 2008). De forma inédita, coerente com a proposta
do movimento das pessoas com deficiência, dos especialistas e do gover-
no, a nova Convenção de Direitos Humanos é agora um mandamento da
Constituição Federal. Complementando a ratificação, o Poder Executivo
promulgou o Decreto n. 6.949/2009 (BRASIL, 2009a). No preâmbulo da
convenção consta:
e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução
e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com
deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente
que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas
na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas (BRASIL, 2009a).

Na contextualização, a convenção assumiu o conceito de deficiência


que reconhece a experiência da opressão sofrida pelas pessoas com impe-
dimentos. O novo conceito supera a ideia de impedimento como sinônimo
de deficiência, reconhecendo na restrição de participação o fenômeno de-
terminante para a identificação da desigualdade pela deficiência (DINIZ;
BARBOSA; SANTOS, 2009).
O artigo 1º da convenção dedica-se ao propósito de “promover, pro-
teger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos huma-
nos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e pro-
mover o respeito pela sua inerente dignidade” (BRASIL, 2008). A CDPD
não apresenta uma definição ou uma classificação, mas fornece a conceitu-
ação com a qual os países devem elaborar suas normas internas.

118
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos


de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais,
em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas (BRASIL, 2008).

A organização social e, consequentemente, a forma pelas quais as


normas legais são confirmadas, decorrem mais do conflito do que pelo
acordo, e este é um processo natural na democracia. Fosse diferente, não
haveria necessidade de renovadas regulagens nos acordos sociais, traduzi-
das na forma da legislação. É por isso que a CPCD confirma mais valores
mínimos do que regras e finalidades, porque resulta, em grande medida,
do desejo e da organização das pessoas com deficiência em dar um sentido
mais amplo e completo à sua própria condição humana e cidadania (CAR-
VALHO; ALMEIDA, 2012).
A convenção determinou a acessibilidade como princípio e como
direito, sendo a condição para a garantia de todo e qualquer direito humano
(BEZERRA, 2014). Descumprir a acessibilidade equivale à discriminação
com base na deficiência. Não existe liberdade de expressão sem as tecnologias
de informação e comunicação acessíveis, como não se realiza o acesso ao
trabalho sem respeito pela diferença, transporte e acomodações acessíveis.
A força constitucional da convenção condiciona leis, decretos e ou-
tras normas atinentes às pessoas com deficiência, assim como aumenta as
obrigações do Estado, em todas as esferas de governo, do segundo e tercei-
ro setores, com ativa participação da pessoa com deficiência e das famílias
(MAIOR; MEIRELLES, 2010).
As obrigações assumidas pelo Estado brasileiro, ao ratificar a con-
venção da ONU, assegura o cumprimento das ações a serem implementa-
das, quanto à disseminação do conteúdo do novo tratado de direitos hu-
manos e à capacitação das organizações do movimento das pessoas com
deficiência, resultando em seu fortalecimento. Direitos humanos são ine-
rentes à pessoa humana e lhes conferem dignidade e igualdade. São, por-
tanto, suprapartidários e, ao conhecer seus direitos, cada pessoa inicia o
caminho do exercício do direito, exigindo cidadania em qualquer governo
(MAIOR; MEIRELLES, 2010).

119
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

6 CONSIDERAÇÕES SOBRE DIREITOS HUMANOS


COMO POLÍTICA PÚBLICA
No Brasil, os direitos humanos ainda não alcançaram o reconheci-
mento de Política de Estado. Entretanto, mencioná-los tem o propósito de
estimular o debate científico-acadêmico na formulação das políticas, nas
esferas de decisão política e, com a mesma importância fazer chegar à po-
pulação como informação e formação para a cidadania. Direitos humanos
“é coisa para cidadão”.
Todas as desigualdades sociais precisam ser entendidas, enfrentadas
e combatidas como questões dos direitos humanos. A miséria, a fome e o
abandono são violações de direitos humanos. Ocorre o mesmo na falta de
um sistema educacional inclusivo de qualidade e na inexistência de condi-
ções de trabalho decente e digno. Na outra extremidade, o acesso ao aten-
dimento em saúde e reabilitação com padrões de qualidade e a moradia
acessível devem ser vistos como respeito à dignidade e celebrados como o
alcance da igualdade de direitos.
A fragmentação dos movimentos sociais tradicionais de defesa dos
direitos humanos e a disputa de prioridade na agenda pública corroboram
para situação de instabilidade institucional da pasta de direitos humanos.
A observação superficial mostra que determinadas lideranças disputam a
gestão das suas políticas em separado dos direitos humanos, deixados para
os demais segmentos que não têm a mesma expressão na cena política.
Constitui-se tarefa árdua elaborar agendas convergentes contra a
violação dos direitos humanos, apesar de a violência, a intolerância e a dis-
criminação serem assuntos permanentes nas políticas para crianças e ado-
lescente, juventude, pessoas idosas, população LGBT, diversidade religiosa,
população em situação de rua, trabalho escravo, ciganos, refugiados, ví-
timas e testemunhas ameaçadas, ribeirinhos, indígenas, quilombolas, ne-
gros e mulheres. Cada um dos grupos e situações citadas envolvem pessoas
com deficiência e, pelo mesmo motivo, entre as pessoas com deficiência
encontramos todos os demais. Empiricamente, a partir da vivência tanto
das conferências específicas quanto nas de direitos humanos, arrisca-se di-
zer que faltam o compartilhamento das ideias e o encaminhamento con-
junto das ações como propôs o Programa Nacional de Direitos Humanos

120
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

(PNDH), em especial, no eixo 3, universalizar direitos em um contexto de


desigualdades (BRASIL, 2009b).
A mudança de status, de vinculação e a troca frequente dos titulares
dos órgãos públicos dos direitos humanos no Brasil são reflexos, em parte,
da comentada desarticulação dos defensores dos direitos humanos. A cada
troca de governo, nas esferas da União, dos estados e dos municípios, a
pasta fica sob o risco de fusão ou desaparecimento, independentemente da
orientação partidária.
A área de direitos humanos não existe como estrutura de gestão e
política pública na maioria das unidades federativas, com resultados nega-
tivos para determinados movimentos sociais cuja visibilidade é insuficien-
te no âmbito da proteção dos seus direitos e, lamentavelmente, especifici-
dades são esquecidas ou persistem desarticuladas nas políticas setoriais.
Entende-se como essencial a existência do Ministério dos Direitos
Humanos, com poder político, quadro técnico e recursos orçamentários
suficientes para o enfretamento das múltiplas formas de violação dos direi-
tos e para a promoção da igualdade de oportunidades.

6.1 A GESTÃO DA POLÍTICA DE INCLUSÃO DAS PESSOAS


COM DEFICIÊNCIA NO ÂMBITO DOS DIREITOS
HUMANOS
De acordo com a memória institucional do Plano Governamental de
Ação Conjunta para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência sur-
giu a proposta de criação da Coordenadoria Nacional para a Integração da
Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), instituída por meio do Decreto
n. 93.481, de 29/10/1986 (BRASIL, 1986), ligada ao Gabinete Civil da Presi-
dência da República. No entanto, de 1986 a 1989, a Corde passou por qua-
tro órgãos da estrutura do governo federal. Salienta-se sua recriação pela
Lei n. 7.853/1989 (BRASIL, 1989). Com a mudança de mandato, entre 1990
e 1995 a Corde era um departamento dos ministérios da Ação Social e do
Bem-Estar Social (BRASIL, 2018). Em 1995, sob circunstâncias favoráveis
de articulação social e mobilização política, surgiu a primeira estrutura
dos direitos humanos na esfera federal, a Secretaria dos Direitos de Cida-
dania do Ministério da Justiça. À época, houve a mudança institucional da
Corde e a inserção da política de integração das pessoas com deficiência na

121
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

estreante política de direitos humanos. Pretendeu-se reforçar a dignidade


e as oportunidades do segmento, mediante um novo lugar institucional,
deixando a histórica vinculação à assistência social.
Para os ativistas da inclusão social das pessoas com deficiência, sob a
área dos direitos humanos, surgiram condições de a Corde exercer seu pa-
pel de articulação e coordenação de uma política integral, de acordo com a
Lei n. 7.853/1989. Cabia-lhe elaborar, em conjunto com os órgãos setoriais,
propostas normativas e políticas setoriais e gerais, contemplando as especi-
ficidades dos direitos das pessoas com deficiência (BRASIL, 1989). Foi uma
opção acertada, entretanto as mudanças governamentais provocaram dife-
rentes configurações das Secretarias de Direitos Humanos e fragilizaram a
posição da Corde, especialmente entre 1999 e 2002, reduzindo sua função
de coordenação política.
A partir de 2002, o cargo de dirigente da política nacional passou
a ser ocupado por uma pessoa com deficiência, atendendo a uma antiga
demanda do movimento social para ter identidade e legitimidade. Deve-se
salientar que, antes da mudança, a relação da Corde com a sociedade civil
era pautada pela cooperação e a mudança foi um processo sem rupturas
ou desgaste.
De 2003 a 2009, a Corde ficou vinculada ao gabinete do secretário.
Apesar de equipe técnica e orçamento reduzidos, cumpriu sua missão ins-
titucional, sendo elevada ao status de Subsecretaria Nacional de Promoção
dos Direitos da Pessoa com Deficiência, criada por meio da Lei n. 11.958
de 26 de junho de 2009 (BRASIL, 2009c) e do Decreto n. 6.980, de 13 de
outubro de 2009 (BRASIL, 2009d), passando a Secretaria Nacional de Pro-
moção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio do Decreto n.
7.256, de 4 de agosto de 2010 (BRASIL, 2010). Como Secretaria Nacional, a
equipe pode contar com novos quadros nacionais, entre os quais técnicos
com deficiência, especialistas nos assuntos relativos às políticas públicas.
Posteriormente, permaneceu com o mesmo status, apesar de modifica-
ções da área de direitos humanos na estrutura organizacional do governo
(BRASIL, 2010).
Atualmente, a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com De-
ficiência integra a estrutura do Ministério dos Direitos Humanos, criado
pela Lei n. 13.502, de 1º de novembro de 2017 (BRASIL, 2017).

122
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

6.2 AVANÇOS E DESAFIOS DA POLÍTICA DE INCLUSÃO


DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Apesar das modificações enfrentadas, a inserção da política de in-
clusão das pessoas com deficiência, no âmbito da política de direitos huma-
nos, propiciou possibilidades novas para a Corde. Embora com orçamento
insuficiente para expandir programas e parcerias, o órgão firmou-se como
instância de gestão nacional de promoção e defesa dos direitos e dissemi-
nou a cultura dos direitos humanos, sendo responsável por elaboração da
legislação, pela interlocução com ministérios, estados e municípios.
A presença do país nos fóruns e as parcerias internacionais foram
positivas. A convenção da ONU foi ratificada. Houve diversas capacitações
e publicações especializadas e de legislação. Dois planos nacionais inter-
ministeriais foram realizados: o Compromisso pela Inclusão (2007-2010)
e o Plano Viver sem Limite (2011-2014) (BRASIL, 2013), com resultados
na educação inclusiva e no aumento da escolaridade, expansão da rede de
cuidados à saúde e reabilitação, fiscalização do cumprimento da reserva
de vagas no mercado de trabalho, desenvolvimento de núcleos de pesquisa
de tecnologia assistiva, iniciativas de apoios à acessibilidade cultural, bem
como medidas estaduais e municipais.
A LBI abriu uma nova fase, pois tratou da atualização das normas
nacionais e é o instrumento operacional dos princípios e obrigações da
convenção. Artigos da LBI na área de acessibilidade, como a validação do
instrumento de avaliação biopsicossocial da deficiência, de acordo com as
determinações do Comitê Interministerial, também integrado pelo Cona-
de, ainda devem ser regulamentados.
O cadastro-inclusão, sistema para a compatibilização das informa-
ções e indicadores sobre deficiência, e o auxílio-inclusão, para incentivar a
inserção no mercado de trabalho de pessoas com deficiência de baixa renda
ainda dependentes do Benefício de Prestação Continuada (BPC), estão em
fase de elaboração.
A Lei n. 13.409/2016 (BRASIL, 2016) instituiu reservas de vagas
para alunos com deficiência nas redes federais de escolas de ensino técnico
e na educação superior. É um grande desafio a ser enfrentado pelas univer-
sidades, que recebiam poucos alunos com deficiência.

123
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

No aspecto da participação social, o Conselho Nacional dos


Direitos da Pessoa com Deficiência e os conselhos estaduais estão ativos,
mas é reduzida a rede de conselhos municipais. As conferências nacionais
foram iniciadas em 2006 e a quarta aconteceu em 2016. As conferências,
realizadas nos estados e municípios, envolveram o movimento social, o
qual se manifestou sobre as insuficiências que existem no cotidiano das
pessoas com deficiência, em parte pelas condições de desigualdades
sociais e muito em função do descumprimento da legislação pelos gestores
públicos e empresários.

7 CONCLUSÃO
O lema “igualdade e plena participação” do Ano Internacional da
Pessoa com Deficiência (BRASIL, 1981) continua como objetivo da luta
do movimento. As ferramentas disponíveis se aprimoraram: a conven-
ção, o tratado específico dos direitos humanos, a identidade de pertenci-
mento à diversidade humana, o princípio da autonomia, o direito à aces-
sibilidade, para assegurar a participação, o reconhecimento igual perante
a lei e a reafirmação de todos os direitos humanos, em bases iguais com
as demais pessoas.
Embora definidos na legislação, reconhece-se que os avanços ainda
não são suficientes e a maior parcela de brasileiros com deficiência enfrenta
a pobreza e não tem acesso aos serviços públicos. Persistem situações que
desrespeitam os direitos humanos, por dificuldades na implementação das
políticas públicas, na obtenção dos recursos orçamentários, no monitora-
mento e, especialmente, pela falta de prioridade que os gestores dão aos
direitos das pessoas com deficiência. Da mesma forma, o descumprimento
da lei decorre da ineficiente fiscalização das medidas sob a responsabilida-
de governamental.
A educação inclusiva é realidade. Embora controvérsias, houve
aumento da escolaridade, da inserção no mercado de trabalho, acesso às
tecnologias assistivas, que ainda têm alto custo. Existem lacunas sérias
nas políticas públicas, como a falta de resposta à institucionalização das
pessoas com deficiência que vivem sob formas inadequadas, em abrigos
que violam sua dignidade e seus direitos básicos. Considerável parcela de
pessoas com deficiência não tem liberdade de escolher onde residir, por
não contar com os apoios necessários para se manter com suas famílias ou

124
A política de inclusão da pessoa com deficiência como questão de direitos humanos

em condições comunitárias que lhe enseje a participação social e o acesso


aos serviços públicos disponíveis às demais pessoas. Apesar de ganhos
importantes, a maioria das pessoas com deficiência continua a enfrentar
a invisibilidade, a violência da discriminação e pobreza. A falta de acesso
ao atendimento adequado nos serviços públicos desafia as instâncias de
gestão e de controle social.
Entende-se que medidas articuladas e conduzidas sob a visão dos
direitos humanos refletem melhor as expectativas do movimento social.
Novos pactos entre as unidades federativas devem ser elaborados, com a
definição de responsabilidades na gestão e na dotação orçamentária, para
acelerar e incrementar os direitos básicos das pessoas com deficiência.
Deve-se ter em mente que as conquistas sociais não aconteceram por
acaso ou como benesse dos governantes. Pelo contrário, no Brasil, cada
resultado foi marcado pela luta ininterrupta, notadamente, a partir do final
dos anos 1970, quando o movimento social das pessoas com deficiência
organizou-se como protagonista e, com autonomia, defendeu seus direitos.
Sob o lema “nada sobre nós, sem nós”, as pessoas com deficiência inseri-
ram suas demandas nos direitos humanos, no Brasil e na ONU, e seguem
atentas para que os bons resultados alcancem milhões de pessoas com de-
ficiência que não estão contempladas e têm direito à equiparação das opor-
tunidades e à qualidade de vida.

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131
6
DO DIREITO DE IDENTIFICAÇÃO AO
DIREITO À IDENTIDADE

SÍLVIO SILVA BRASIL


Doutor e Mestre em Ciências Sociais (Sociologia) pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Analista do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), cedido ao Ministério dos Direitos Humanos, onde atua
na Coordenação-Geral de Promoção do Registro Civil de Nascimento.

RESUMO
Nesse artigo são discutidos os rumos atuais da Política de Promoção do
Registro Civil de Nascimento e Acesso à Documentação Básica, direito
humano imprescindível ao exercício pleno da cidadania, habitualmente
comparado a uma porta de acesso, posto que condição necessária para a
satisfação de outros direitos e demandas. A problematização dos avanços
e limites dessa política enfatiza as dificuldades que se impõe à sua plena
efetivação, bem como inciativas bem-sucedidas desenvolvidas ao longo da
última década, em particular o Compromisso Nacional pela Erradicação
do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documen-
tação Básica. Ressalta-se ainda, dentre outros fatores, a carência de recur-
sos, as desigualdades regionais, além da histórica discriminação e exclusão
social que recai sobre determinados povos e grupos populacionais – reco-
nhecimento que conduz à necessidade imperativa de priorizá-los nas ações
desenvolvidas pelo Estado, visando garantir meios e esforços compatíveis
com as necessidades e especificidades de cada território e população.

Palavras-chave
Direitos humanos. Registo civil de nascimento. Documentação básica.
Identidade. Grupos e populações prioritários.

132
ABSTRACT
This article discusses the current directions of the Policy for the Promotion
of the Civil Registry of Birth and Access to Basic Documentation, a human
right essential to the full exercise of citizenship, usually compared to an
access door, as a necessary condition for the satisfaction of other rights and
demands. The problematization of the advances and limits of this policy
emphasizes the difficulties that are imposed to its full realization, as well
as successful initiatives developed during the last decade, in particular the
National Commitment for the Eradication of Civil Birth Sub-Registration
and Expansion of Access to Basic Documentation. Among other factors, the
lack of resources, regional inequalities, and the historical discrimination
and social exclusion that falls on certain peoples and population groups
– recognition that leads to the imperative need to prioritize them in the
actions developed by the State, in order to guarantee means and efforts
compatible with the needs and specificities of each territory and population.

Keywords
Human rights. Birth registration. Basic documentation. Identity. Priority
groups and populations.

133
Sílvio Silva Brasil

1 INTRODUÇÃO
[...] a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma
configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais
e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em
relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma
coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por
inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única
forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida
como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ela é
produto do funcionamento do sistema (SAWAIA, 2011, p. 9).

Dentre os objetivos a que se propuseram alcançar os países que ade-


riram à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável1, está aquele que,
em suas metas, dispõe sobre o compromisso de fornecer identidade legal
para todas as pessoas, incluindo o registro de nascimento2. Tal empenho
expressa a importância e a atualidade do tema da promoção do registro ci-
vil de nascimento e do acesso à documentação básica e como a persecução
dessa meta diz respeito à vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
O Plano Nacional dos Direitos Humanos (BRASIL, 2010a), em sua
terceira edição, trouxe como um dos seus eixos orientadores a universali-
zação de direitos em um contexto de desigualdades. Tal eixo, por sua vez,
encerra como uma de suas diretrizes a garantia dos direitos humanos de
forma universal, indivisível e interdependente, assegurando a cidadania
plena, a partir da qual se almeja alcançar, dentre outros objetivos, a univer-
salização do registro civil de nascimento e a ampliação do acesso à docu-
mentação básica.
Os compromissos e as responsabilidades, aduzidos na agenda e no
plano supracitados, corroboram, explícita e implicitamente, a compreen-
1 A Agenda de Desenvolvimento Sustentável Pós-2015, agora chamada de Agenda 2030, correspon-
de ao conjunto de programas, ações e diretrizes que orientarão os trabalhos das Nações Unidas e
de seus países membros rumo ao desenvolvimento sustentável. Concluídas em agosto de 2015, as
negociações da Agenda 2030 culminaram em documento ambicioso que propõe 17 Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas correspondentes, fruto do consenso obtido pelos
delegados dos Estados-membros da ONU. Os ODS são o cerne da Agenda 2030 e sua implementa-
ção ocorrerá no período 2016 a 2030 (BRASIL, 2016).

2 Corresponde à meta 16.9, do Objetivo 16, que dispõe: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas
para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir institui-
ções eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.” (BRASIL, 2016).

134
Do direito de identificação ao direito à identidade

são do direito à identificação como um expediente, cuja materialização é


imprescindível para a satisfação de outros direitos e demandas, coerentes
com a visão que preconiza os princípios da universalidade, indivisibilida-
de, interdependência e inter-relação de todos os direitos humanos. Sob essa
perspectiva, o direito de ser registrado deve ser entendido como um direito
fundamental, verdadeiro direito humano.
Mais que uma metáfora recorrente, o registro civil de nascimento pode
ser comparado a uma porta de acesso, posto que é condição necessária ao
alcance e exercício de demais direitos. Ainda que a mera posse, e de demais
documentos básicos, não garanta o exercício pleno da cidadania, a ausência
e a indocumentação, por outro lado, privam as pessoas de políticas e serviços
públicos essenciais, fazendo com que se mantenham mais do que confinadas
na esfera da desigualdade de oportunidades, enclausuradas num verdadeiro
estado de exclusão social. A garantia de igualdade real ou substantiva3, para
além da formalidade, inicia-se no ato do registro civil e afirma-se como tare-
fa precípua do Estado e imperativo ético do conjunto da sociedade.
Direito fundamental, o registro civil também se constitui indicador
social imprescindível para o planejamento estatal. O índice de sub-registro
de nascimentos refere-se ao percentual de nascimentos esperados para um
determinado ano, mas que não foi registrado em cartório até o primeiro
trimestre do ano seguinte. Corresponde “à diferença entre os nascimentos
registrados pela pesquisa de estatísticas do registro civil e os nascimentos
previstos na projeção da população por sexo e idade, ambas realizadas pelo
IBGE” (BRASIL, 2015, p.16).
São muitos os elementos que contribuem para a o fenômeno do sub-
-registro. Alcançar e identificar pessoas, cuja situação de invisibilidade lhes
priva do acesso à existência cidadã, não é uma tarefa de simples execução.
Tal condição resulta de uma conjunção de fatores que vão da limitação de
recursos orçamentários estatais, invariavelmente escassos, à falta de infor-
mação das famílias quanto aos procedimentos necessários para o registro;
das inúmeras dificuldades de se chegar a um cartório ou posto de registro
(seja pela distância ou pela falta de recursos para o transporte), às discrimi-
nações e aos preconceitos arraigados, estruturalmente mantidos.

3 Enquanto a primeira dimensão da igualdade remete à questão dos direitos e ao papel do Poder
Judiciário para garanti-los, a segunda remete à justiça social e a uma estrutura socioeconômica e
política que a promova (BÁRCENA; PRADO, 2010).

135
Sílvio Silva Brasil

Cabe, ainda, destacar as características do território nacional – pró-


prias de um continente em sua diversidade social, cultural e econômica –,
quando da análise sobre a política de Registro Civil de Nascimento (RCN)
e o fenômeno do sub-registro. Mas, para além da dimensão geográfica re-
lacionada ao conceito de território – que traz consigo o debate acerca dos
imensos entraves relacionados à mobilidade e à carência de infraestrutura,
especialmente nas regiões mais distantes do centro sul –, é relevante com-
preender a dimensão política do território e, nesse sentido, como a luta pela
regularização e posse da terra assumem papel relevante nessa discussão.
Para determinadas populações, como indígenas, quilombolas, ciga-
nas, ribeirinhas, trabalhadoras rurais e populações extrativistas isso é ain-
da mais notável, vez que a relação entre as condições materiais de fruição
da vida e do exercício do trabalho estão intimamente imbricadas com a
noção de território, espaço e identidade.
O grau de cobertura do registro civil, conforme salientam Wong e
Turra (2006), está correlacionado ao nível de desenvolvimento socioeco-
nômico de cada região – esperam-se graus de cobertura menores em re-
giões mais pobres do país. Para avançar, portanto, na política de RCN, é
necessário lidar com a constatação de que parte do problema é reflexo das
desigualdades regionais. De fato, quando se compara a proporção de re-
gistros tardios de nascimento4 por região (incluindo os registros de pessoas
de todas as idades), as regiões Nordeste e Norte apresentam, aproximada-
mente, o dobro da proporção em relação à média do país. Por outro lado,
as regiões Sul e Sudeste têm proporções de atraso que correspondem quase
à metade da média nacional (WONG; TURRA, 2006).
O Brasil é um dos poucos países em que o registro civil pertence ao
Poder Judiciário, que controla as concessões de cartórios, cuja gestão é pri-
vada e tem fins lucrativos. Para além da desigual distribuição de recursos,
que penaliza as economias dos pequenos municípios, em particular das
regiões Norte e Nordeste do país; dos entraves geográficos e de infraestru-
tura, que dificultam o acesso e potencializam as dificuldades de transporte
e deslocamentos; da histórica discriminação às quais determinados povos
e grupos populacionais se ressentem, outro aspecto é reconhecido como

4 Registro extemporâneo ou registro tardio é o registro de nascimento feito nos cartórios em anos
posteriores ao da sua ocorrência.

136
Do direito de identificação ao direito à identidade

importante fator a ser ponderado quando os índices de sub-registro de nas-


cimento são analisados: a distribuição desigual da malha de cartórios de
registro civil das pessoas naturais5 por todo o território nacional.
A concentração da malha de cartórios no centro sul, em detrimento
das regiões mais pobres e, por conseguinte, dos que lá habitam, é tam-
bém uma expressão das diferenças regionais que citamos acima. Ainda,
segundo pesquisa da Associação dos Notários e Registradores (Anoreg) e
da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), nos Estados
de São Paulo, Santa Catarina, Paraíba e no Distrito Federal, 100% dos car-
tórios estão informatizados. No Norte e Nordeste, entretanto, a proporção
não chega a 50% (BUVINICH; MELLO; GIRADE, 2005).
Ademais, o processo de interligação dos cartórios6 é outro fator que
corrobora as desigualdades regionais ressaltadas. Se, nas regiões Sul e Su-
deste o processo encontra-se bastante avançado, o Norte e Nordeste ainda
se ressentem de uma baixa integração, o que, inegavelmente, não se pode
deixar de associar aos elevados índices de sub-registro populacional que
as estatísticas apontam para essas regiões, expressando parte das visões e
decisões – seja do Estado, seja dos interesses privados –, que contribuem
para a permanência dessas assimetrias.
Apesar da evidente evolução econômica e social vivida nas últimas
décadas, persiste no país um cenário de histórica exclusão social que recai
sobre determinados povos e grupos populacionais, além da injustificada
desigualdade regional, que exige reconhecimento quando do planejamento
de quaisquer políticas públicas, oferecendo meios e esforços governamen-
tais e da sociedade civil, compatíveis com as necessidades e especificidades
de cada território e a população.

5 O sistema cartorial nacional (ou seja, o sistema de registradores) divide-se em cartórios de registro
civil, de imóveis, de transações comerciais, entre outros. São entidades privadas com autorização/
obrigação constitucional para fazer os registros. O registro de uma criança é feito no Cartório de
Registro Civil das Pessoas Naturais (WONG e TURRA, 2006).

6 Sistema informatizado que interliga as serventias extrajudiciais, permitindo a lavratura de atos e


a troca de informações pela via eletrônica de forma célere e desburocratizada. Permite que as mães,
após o parto, deixem as maternidades portando as certidões de nascimento de seus filhos, as quais
serão lavradas eletronicamente nas próprias instalações hospitalares, em decorrência da interligação
dos cartórios.

137
Sílvio Silva Brasil

Nesse sentido, diretrizes voltadas à política de RCN devem conside-


rar as populações específicas em situação de vulnerabilidade e as desigual-
dades regionais, não se prendendo a aspectos meramente metodológicos
ou a decisões discricionárias, que privilegiam determinados grupos ou ter-
ritórios. Mais que isso, tais diretrizes devem se alinhar ao ideal de justiça
social, impondo que sejam empregados maiores esforços e investimentos
às pessoas que mais necessitam.

2 SOBRE O SUB-REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO


Na política de promoção do RCN e do acesso à documentação básica,
tão importante quanto dar conta dos passivos históricos, é, em igual medi-
da, garantir o investimento contínuo e ininterrupto de esforços e recursos.
Caso contrário, os resultados alcançados, mesmo que significativos, po-
dem não ter efeito duradouro.
Ao tratar do fenômeno do sub-registro civil de nascimento, gestores
das políticas de promoção do RCN e de garantia do acesso à documentação
básica defrontam-se com amplo espectro de entraves à execução das ações,
sistematicamente influenciados por alterações no contexto institucional,
político e socioeconômico do país. O resultado das ações, sob tais influên-
cias, pode ser traduzido, em larga medida, na variação das taxas de sub-re-
gistro de nascimento ao longo dos anos, conforme explicitado no Gráfico 1:

Gráfico 1 - Taxas de sub-registro de nascimento - Brasil - 1991-2003. (%)

Fonte: BRASIL, 2009b.

138
Do direito de identificação ao direito à identidade

No Gráfico 1, que retrata as taxas no período de 1991 até 2003, é


possível verificar picos sequenciais e alternados de quedas (em vermelho) e
elevações (em azul) dos índices. Na avaliação de políticas públicas em geral
– e da promoção do RCN em particular, especialmente no que concerne ao
enfrentamento do sub-registro de nascimento –, tais evidências são, comu-
mente, a expressão típica da ênfase descontínua no desenvolvimento das
ações, que pode ter ocorrido tanto pela fragilidade no seu planejamento
quanto pela limitação de recursos para sua execução.
Entretanto, os recursos financeiros, ainda que fundamentais, não se
constituem elemento único necessário ao planejamento de ações. As es-
tatísticas vitais, fundamentadas em metodologias e informações precisas,
são elementos imprescindíveis à efetiva execução da política de RCN. Isso
porque propiciam o conhecimento adequado do tamanho e das caracterís-
ticas da população de um país sendo, portanto, essenciais para o planeja-
mento socioeconômico e do desenvolvimento humano.
Considerando que a população aumenta por nascimentos vivos e di-
minui por mortes, informações sobre o número de nascidos vivos e óbitos,
produzido em uma população, é de importância decisiva no cálculo do
aumento (ou diminuição) natural e da variação anual do tamanho e da es-
trutura da população do país (NACIONES UNIDAS, 2003). As estatísticas
vitais contribuem para o aprimoramento dos programas governamentais
nos campos escolar, previdenciário, econômico, social, da saúde pública,
dentre tantos outros, e permitem enxergar e definir, com maior clareza, os
objetivos e alvos prioritários. Para a promoção do registro civil e do acesso
à documentação, em função da possibilidade de evidenciar características
particulares da dinâmica populacional em determinados grupos e territó-
rios, as estatísticas revelam-se indispensáveis.
A principal fonte de estatísticas vitais é o registro civil, que envolve
a coleta contínua de informações sobre todos os eventos de vida relevantes
que ocorrem nas fronteiras de um país. Para calcular as taxas demográ-
ficas, os dados do registro civil, geralmente, são complementados com a
informação proveniente dos censos, também de âmbito nacional. Fontes
complementares de dados são, igualmente, usadas para enriquecer e ava-
liar as do registro civil ou para coletar informações sobre processos demo-
gráficos ou epidemiológicos, a fim de enriquecer a informação obtida por
meio do registro civil (NACIONES UNIDAS, 2003).

139
Sílvio Silva Brasil

Desde 1974 a coleta dos registros de nascimentos ocorridos no país


é realizada pelo IBGE, quando lhe foi delegada a função de coletar, além
destes, os registros de óbitos, óbitos fetais e casamentos em âmbito nacio-
nal. Ao longo das últimas décadas, segundo o IBGE, o Brasil reduziu os
elevados percentuais de subnotificação – quase 30% no início da década
de 1990 –, chegando ao auspicioso percentual de 1% alcançado em 2014
(BRASIL, 2015).

Gráfico 2 - Taxas de sub-registro de nascimento - Brasil - 2003-2014. (%)

Fonte: BRASIL, 2009b.

Vê-se, no Gráfico 2, que a partir de 2007 a curva é continuamente


decrescente, atingindo o porcentual de 1% em 2014. Esse resultado aten-
de amplamente o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-regis-
tro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica
(BRASIL, 2007b), cujo principal objetivo era erradicar, em três anos, o sub-
-registro de nascidos vivos – ou seja, garantir que o percentual de pessoas
que nasceram, mas não foram registradas no primeiro ano de vida, alcan-
çasse um patamar igual ou inferior a 5% em todo o país.
Ainda que se careça de maiores aportes de estudos e estatísticas –
dadas as limitações metodológicas e de escopo das pesquisas oficiais sobre
grupos populacionais específicos –, é empiricamente notável que, para de-
terminados grupos, suas especificidades lhes associam a índices elevados

140
Do direito de identificação ao direito à identidade

de sub-registro de nascimento. Desse modo, ainda que o percentual de


sub-registro no Brasil revele-se, em termos estatísticos, de pequena gran-
deza – tendo melhorado significativamente na última década –, persistem
elevados os índices junto às populações historicamente excluídas e territo-
rialmente concentradas nas regiões mais carentes.
A análise superficial da evolução dos números relativos ao RCN no
país pode até satisfazer leituras apressadas, mas não consegue desvelar to-
das as variáveis presentes na perpetuação do fenômeno do sub-registro.
Mais que isso, se desprovidos de análise acurada, os dados estatísticos per
se ajudam a ocultar as razões da permanência de nichos de sub-registro
em determinados grupos populacionais, perenizar injustiças e dificultar a
superação do problema.
Segundo o IBGE (2015), a análise do sub-registro de nascimentos
deve considerar que pode haver variações nos pressupostos implícitos na
estimação dos nascimentos para um ano. Portanto, para fins de avaliação
da qualidade da cobertura dos registros de nascimentos, são definidas
três faixas:
•  a primeira, com sub-registro maior que 10,0%, considerada
deficitária para o cálculo direto de indicadores demográficos
e de baixa cobertura sob a ótica da cidadania;
•  a segunda, com percentuais de sub-registro entre 10,0% e
5,1%, cujos dados são utilizados para o cálculo direto de indi-
cadores demográficos, mas sem a cobertura ideal em termos
de registro; e
•  a terceira, com sub-registro de até 5,0%, considerada de boa
qualidade estatística, tanto para fins demográficos quanto so-
ciais, ainda que possam ser observados, em anos posteriores,
alguns registros extemporâneos (BRASIL, 2015, p. 16).

Nota-se que, segundo aqueles parâmetros, o percentual de sub-regis-


tro alcançado no país (o auspicioso 1%) mostra-se adequado e de boa qua-
lidade, tanto para fins demográficos quanto sociais. Sob essa perspectiva, e
tomando como referência estritamente o que preconiza o órgão gestor bra-
sileiro de estatísticas, seria possível dizer que os números são satisfatórios.
Entretanto, é forçoso reconhecer que para determinadas populações, não
alcançadas inclusive pelas pesquisas estatísticas oficiais, visto a necessida-
de de estudos ad hoc para mensurá-las – como povos ciganos, população
quilombola ou pessoas em situação de rua, que demandam metodologias

141
Sílvio Silva Brasil

próprias, dadas suas peculiaridades –, as estatísticas reforçam a invisibili-


dade desses grupos e se mostram incapazes de oferecer, atualmente, infor-
mações necessárias ao planejamento de políticas públicas que contemplem
suas necessidades.
Reconhecidamente, a percepção dos avanços e dos caminhos a seguir
não vem desacompanhada da identificação de dificuldades. Entre elas des-
taca-se a carência de informações, de dados estatísticos e, por conseguinte,
de indicadores que permitam efetuar um acompanhamento eficaz dos pro-
gressos e/ou retrocessos ocorridos, a fim de apoiar a tomada de decisões, de
auxiliar na correção de rumos, enfim, de definir métodos e metas.
Para lidar com a carência de informações e dados é necessário maior
aporte de recursos humanos e materiais, de modo a garantir o desenvolvi-
mento de novos instrumentos de pesquisas e meios de divulgação que sub-
sidiem e qualifiquem a ação estatal, em benefício do conjunto da sociedade
e, em particular, de determinados grupos e populações para os quais a ci-
dadania e o reconhecimento de suas necessidades ainda tardam a chegar.
A valorização das instituições de pesquisa e dos seus pesquisadores é
imprescindível para o fortalecimento da capacidade dos sistemas nacionais
de estatística e demanda. Segundo Oliveira (2017) devem ser adotadas, en-
tre outras medidas, a unificação dos sistemas de estatísticas vitais do país,
a integração das bases de dados e protocolos que combinem a busca ativa
com a efetivação dos registros.
De outro modo, ainda que a oferta de informações e dados estatísti-
cos evolua para um patamar satisfatório, é fato que não é possível construir
política pública sem participação social. Apresenta-se, portanto, como ta-
refa primordial a incorporação dos sujeitos históricos, individuais e coleti-
vos, na formulação, na execução, no monitoramento e na avaliação da polí-
tica de promoção do RCN e acesso à documentação básica. A incorporação
dos olhares e saberes dos representantes dos povos e grupos populacionais
prioritários permite a ampliação dos mecanismos de controle social sobre
a política, bem como propicia o desenvolvimento de mecanismos de par-
ticipação social acessíveis a esses grupos sociais, historicamente excluídos.

142
Do direito de identificação ao direito à identidade

3 AÇÕES DE PROMOÇÃO DO RCN E DA DOCUMENTA-


ÇÃO BÁSICA PARA GRUPOS PRIORITÁRIOS
A gestão das ações de promoção do RCN, no âmbito do Ministério
dos Direitos Humanos, está sob a responsabilidade da Coordenação-Geral
de Promoção do Registro Civil de Nascimento (CGPRCN), que tem entre
seus objetivos estratégicos a tarefa de promover e fomentar ações para a
erradicação do sub-registro civil de nascimento e o acesso à documentação
básica em municípios com percentuais de sub-registro elevados, frente ao
montante de sua população, bem como àqueles que apresentam maiores
números absolutos de crianças de 0 a 10 anos sem registro civil de nascimento.
Ademais, foram definidos alguns povos e grupos populacionais para
os quais se priorizaria o desenvolvimento de ações de promoção do RCN e
do aceso à documentação básica, a partir do reconhecimento de suas lutas
históricas contra a exclusão social, pelo direito à identidade e à cidadania
plena: população em situação de rua, população em situação de privação
de liberdade e população LGBT e também, no caso de vários deles, aos seus
modos de vida tradicionais – povos indígenas, comunidades quilombolas,
povos ciganos, povos e comunidades tradicionais de matriz africana (po-
vos de terreiro), ribeirinhos, extrativistas e trabalhadoras rurais.
A ênfase atual da política de promoção do RCN lastreia-se na com-
preensão do procedimento de identificação civil e acesso à documentação
básica sob uma perspectiva ampliada de direito. À luz desse entendimento,
tal processo pode ser traduzido como a passagem do “direito de identifica-
ção ao direito à identidade”.
A reflexão que subjaz à frase título deste artigo enseja uma impor-
tante diretiva: a obrigação de o Estado promover, para além do acesso ao
registro civil e à documentação, o direito – aos povos e às comunidades
tradicionais, bem como a grupos populacionais específicos –, de terem ga-
rantidos, nos processos e meios de identificação, o reconhecimento de suas
raízes, ancestralidades, tradições e identidades. Sob esse entendimento,
afirma-se a percepção do direito à identificação como elemento precursor
de demais direitos. Um exemplo dessas especificidades pode ser encontra-
do na demanda histórica das pessoas trans, que só recentemente – a partir
do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 –, pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) tiveram reconhecido o direito de poder

143
Sílvio Silva Brasil

alterar seu nome e seu sexo no registro civil, sem a necessidade de laudos
ou quaisquer outros empecilhos se não a sua própria afirmação identitária
de gênero.
Longe de ser uma mera troca de palavras, essa nova perspectiva bus-
ca afirmar a garantia ao registro civil e à documentação como um direito
civil importantíssimo, posto que, precursor da cidadania é, acima de tudo
um direito humano, vinculado às lutas por afirmação de identidade, valo-
res, costumes e ancestralidades.
Não é à toa, portanto, que o ano de lançamento do Compromisso
Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Am-
pliação do Acesso à Documentação Básica coincide com a instituição da
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comuni-
dades Tradicionais7, que apresenta entre seus princípios norteadores: “o
reconhecimento e a consolidação dos direitos dos povos e comunidades
tradicionais”, por meio (dentre outros princípios) da “articulação com as
demais políticas públicas relacionadas aos direitos dos povos e comunida-
des tradicionais nas diferentes esferas de governo”. Com a referida política
almeja-se:
[...] a contribuição para a formação de uma sensibilização
coletiva por parte dos órgãos públicos sobre a importância
dos direitos humanos,  econômicos, sociais, culturais, am-
bientais e do controle social para a garantia dos direitos dos
povos e comunidades tradicionais (BRASIL, 2007a).

O direcionamento das ações de promoção do RCN e documentação


básica, para públicos doravante definidos como prioritários das ações, bus-
ca ser coerente com o reconhecimento de que, para determinados grupos
populacionais, a ação do Estado permanece insuficiente e incapaz de alte-
rar o déficit histórico, apesar dos avanços relativos ao reconhecimento e à
identificação desses grupos e populações no país. Tal situação, é plausível
inferir, pode ser a expressão inequívoca de laivos de racismo institucional
e preconceito que precisam ser desvelados e superados, utilizando-se da
política pública como vetor de transformação social.

7 Lançada sob o Decreto n. 6.040 de 7 de fevereiro de 2007. (BRASIL, 2007a).

144
Do direito de identificação ao direito à identidade

O tema da promoção do RCN como política pública prioritária inse-


re-se no bojo das ações presentes na iniciativa denominada Agenda Social.
Iniciativa lançada pela Presidência da República em 2007, que organiza
ações prioritárias visando ampliar a promoção da inclusão social com ci-
dadania8. Sob essa lógica, as ações voltadas à erradicação do sub-registro e
ao acesso à documentação básica constituíram uma agenda própria, fun-
dada no comprometimento e engajamento de órgãos de governo e da socie-
dade civil em torno desse propósito comum.
A partir da análise da articulação interinstitucional das três esferas
de governo, que sustenta o “compromisso”, percebe-se que, nas ações dele
derivadas, a preocupação de focar em populações, grupos e territórios es-
pecíficos já se via expressa. No Balanço da Agenda Social Registro Civil do
Nascimento9 (BRASIL, 2010b) vê-se que dentre as ações de mobilização,
ocorridas naquele ano e no ano anterior, parte delas tinham como alvo
populações específicas (indígenas quilombolas, comunidades e populações
tradicionais) às quais se destinaram mutirões locais e ações intensivas para
alcançá-las. Ao mesmo tempo, a priorização da região Nordeste e da Ama-
zônia Legal visou alcançar um público habitualmente negligenciado.
Se, em períodos anteriores, buscou-se dar cabo do volumoso déficit
de registros de nascimento, para o qual os esforços de grandes mutirões e
campanhas nacionais de divulgação apresentavam-se como ações necessá-
rias e adequadas àquela conjuntura – dentre as quais se destacam o próprio
Compromisso Nacional para a Erradicação do Sub-registro e eventos de
grande visibilidade, como a Semana Nacional de Mobilização para o Re-

8 Integram a Agenda Social iniciativas para redução das desigualdades, como ampliação dos bene-
fícios do Programa Bolsa Família, geração de oportunidades às famílias pobres e ações para supera-
ção da pobreza rural. A agenda igualmente prioriza ações de inclusão social nas áreas de educação,
cultura, saúde e segurança pública, com iniciativas voltadas para juventude e para promoção dos
direitos da cidadania. (BRASIL, 2009a).

9 Lançada em dezembro de 2007, na ilha do Marajó (PA), essa agenda tinha como objetivo erradicar
o sub-registro civil de nascimento para garantir a todo cidadão brasileiro nome e sobrenome, além
de toda a documentação necessária para o pleno exercício da cidadania. Os esforços dessa agenda
foram intensificados nas regiões do Nordeste e da Amazônia Legal em 2009, quando foram lança-
dos, no Nordeste e na Amazônia Legal, os Compromissos “Mais Nordeste Pela Cidadania” e “Mais
Amazônia Pela Cidadania”, respectivamente, com o objetivo de reduzir as desigualdades regionais
no Brasil. (BRASIL, 2010b).

145
Sílvio Silva Brasil

gistro Civil de Nascimento e a Documentação Básica10, os resultados dessas


ações pretéritas, ainda que permeadas de grande sucesso, fez com que fosse
necessário alterar a visada de análise sobre o fenômeno da subnotificação
do registro civil.
Não cabe mencionar exclusividade das ações, mas reconhecendo a
precedência e justeza daquelas ações, hoje se busca afirmar uma estratégia
que enfatiza a priorização de ações para determinados povos e grupos po-
pulacionais e territórios, dadas suas peculiaridades.
A assunção de um novo olhar que passa a permear a ação do Estado
e se volta aos grupos e às populações tradicionais e específicas se, por um
lado expressa novo paradigma, por outro não permite deixar de reconhe-
cer que isso resulta em muito da luta por afirmação de identidades, valores
e especificidades, decorrente da ação coletiva desses atores sociais e de suas
representações, que se impõe e se afirmam perante o Estado e dele exigem a
satisfação de suas demandas. Incorporar o olhar e a fala das representações
dessas populações é o passo a ser dado.
De maneira geral, as estatísticas oficiais não contemplam informa-
ções sobre o universo dos variados grupos populacionais em suas especi-
ficidades e demandas. Assim, ainda que os números coletados pelo IBGE
apontem a evolução do processo de identificação no Brasil, mostrando que
o percentual de subnotificação alcançou 1% no ano de 2014, não é possível
obter, de maneira precisa, os percentuais referentes a cada população inclu-
ída como prioritária pela política de promoção do RCN.
Face à carência de informações é necessário ressaltar que o sucesso
das ações do Estado depende do aprimoramento das estatísticas oficiais.
Ao serem observados os elevados índices de sub-registro relativos à po-
pulação indígena – única dentre aquelas destacadas como prioritárias que
possui informações estatísticas razoavelmente precisas, a partir do Censo
Demográfico 2010 (BRASIL, 2012) –, reforça-se a percepção de que nas de-
mais populações esses números também são expressivos. A título de exem-
plo, segundo os dados do referido Censo (BRASIL, 2012), existem no Brasil
aproximadamente 900 mil indígenas. Desse total, cerca de 600 mil vivem

10 Ambas as inciativas foram estabelecidas pelo Decreto n. 6.289, de 6 de dezembro de 2007 (BRA-
SIL, 2007b).

146
Do direito de identificação ao direito à identidade

em terras indígenas. Em 2010, apenas 65% das crianças de 0 a 10 anos per-


tencentes a essa população estava registrada11.
De outro modo, entre os demais povos e grupos populacionais espe-
cíficos, os dados existentes ainda são incipientes. A baixa capacidade das
instituições que produzem estatísticas vitais de desenvolver instrumentos e
de gerar informações, que evidenciem as especificidades de grupos sociais
historicamente invisibilizados, coloca-se como um entrave também para
as demais políticas públicas, pois, na medida em que avançam as ações
e se colhem os resultados, o universo demandante aos tradicionalmente
excluídos restringe-se. Com isso, paradoxalmente, aumenta a dificuldade
para alcançá-los, dada a carência de informações oficiais estruturadas so-
bre esses nichos populacionais.

4 CONCLUSÃO
Frente aos imensos desafios da gestão da política de promoção do
RCN e do acesso à documentação básica, ainda que o foco esteja razoa-
velmente delineado, afirma-se a necessidade de maior articulação com os
demais atores governamentais e da sociedade civil para a consecução das
ações que visam à erradicação do sub-registro e à universalização do aces-
so à documentação básica.
Dentre as ações que a CGPRCN ora desenvolve, uma medida que
busca transpor as dificuldades de localização e identificação do público
prioritário é a iniciativa de diálogo interinstitucional, que explora as pos-
sibilidades de cruzamento das informações oriundas das bases de dados
oficiais relativas aos municípios que apresentam elevados índices de sub-
-registro civil de nascimento, tanto em números proporcionais quanto ab-
solutos e às populações definidas como prioritárias, visando subsidiar as
ações de diferentes órgãos e instituições de governo e da sociedade. Bus-
ca-se, dessa maneira, responder à pergunta- chave para a consecução de
ações efetivas e eficazes: “quem são e onde estão os destinatários da política
de RCN e acesso à documentação básica?”.

11 Essa porcentagem varia notavelmente por região. Segundo dados do Censo Demográfico 2010,
a região Centro-Oeste era a que apresentava a menor proporção de população registrada (41%),
seguida pelas regiões Norte e Sul (63% em ambas). Finalmente, as regiões Sudeste e Nordeste apre-
sentavam taxas de registro de 89% e 92% respectivamente (BRASIL, 2012).

147
Sílvio Silva Brasil

A rigor, o público ora priorizado na referida política não difere do


público merecedor de maior atenção nas demais políticas sociais no país.
O déficit histórico, que se traduz em altos índices de vulnerabilidade social,
faz desse publico prioritário para quaisquer políticas, porquanto é formado
por pessoas que, historicamente, são inalcançadas e/ou excluídas das ações
do Estado. Alcançá-las e incluí-las envolve compromisso e disposição de
modificar o projeto de iniquidade e negligência, ainda vigente.
As informações extraídas de cadastros sociais, que alcançam em
grande medida o público ora priorizado pela política de RCN, permitirá
uma maior e melhor apropriação de informações valiosas, tais como: as
características da população não registrada e indocumentada e a localiza-
ção dos nichos de sub-registro. Essa aproximação da realidade auxiliará no
direcionamento de investimentos e esforços – destaca-se a iniciativa, em
andamento, da construção de diretrizes de atendimento para cada grupo
populacional, segundo suas especificidades.
A participação social há muito se afirma como pré-requisito para o
desenho de quaisquer políticas públicas. Diante da constatação de que os
maiores índices relativos de sub-registro civil de nascimento no país inci-
dem sobre determinadas populações, sobressai como necessária e desejável
a maior participação dos grupos e das populações prioritárias, diretamente
ou por suas representações, nas ações futuras de promoção do RCN e aces-
so à documentação básica.
O caminho de incentivo à participação social, por meio do diálogo
e em busca da atuação conjunta entre a administração pública federal e
a sociedade civil, que se busca hoje incorporar às ações de promoção do
RCN e ao acesso à documentação básica, deve também ser trilhado pelas
diferentes esferas de governo, seus órgãos e suas instituições. Outrossim, a
sociedade civil, e em particular os representantes das populações prioritá-
rias e suas organizações, precisam assumir seu protagonismo em face da
dimensão dos desafios que o combate às assimetrias sociais geradas pela
exclusão histórica comporta.
Ao enunciar o imperativo “temos o direito a ser iguais, sempre que
a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a
igualdade nos descaracteriza”, Santos (2006, p. 316) avalia que os possí-
veis avanços frente ao Estado –responsável em última análise pela gestão
controlada das desigualdades e da exclusão –, só se darão mediante lutas

148
Do direito de identificação ao direito à identidade

sociais (dentro e fora dos marcos do Estado) que afirmem a necessidade de


políticas de igualdade, articuladas com políticas de identidade. Nesse sen-
tido, conclui-se que os atores sociais devem estar cientes de que tal tarefa
não está dissociada da necessidade de reinvenção do próprio Estado.
Como argumentam Bárcena e Prado (2010), as novas identidades de
pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas vêm sendo
determinadas historicamente na própria dinâmica da luta política. São
identidades pertencentes à base política, definida por novos movimentos
sociais, ou pelo fortalecimento de alguns, tais como os movimentos femi-
nista, LGBT, negro e indígena, ou aqueles mais especificamente remanes-
centes de quilombos, sem terras, atingidos por barragens, mulheres agri-
cultoras, negras, extrativistas, pescadores artesanais, sem teto, meninos e
meninas de rua, bairros e favelas, praticantes de religiões diversas, entre
outros (GALVÃO et. al, 2010). Segundo os autores, alinhados com Santos
(2006), são identidades forjadas para a resistência e sobrevivência, mas, so-
bretudo, para redefinir uma nova posição na sociedade e buscar a transfor-
mação de toda a estrutura social.
Tanto quanto se privilegia o olhar sobre as pessoas, em igual me-
dida afirma-se a importância e a necessidade de se contemplar a variável
“território” no planejamento das ações de promoção do RCN e acesso à
documentação básica, em face da constatação de que o tipo de organização
socioespacial de um país reflete-se nas condições de vida de sua população.
Em recente estudo da Comissão Econômica para a América Latina e
o Caribe (Cepal), à luz das reflexões oportunizadas pela Agenda 2030 e dos
desafios à implementação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
(ODS), ao analisar o panorama do desenvolvimento regional, são ressal-
tadas as elevadas brechas nas condições gerais de vida da população entre
territórios. Dentre os exemplos apontados pelo estudo, quanto às dispari-
dades internas dos países da região, que expressam de maneira eloquente
as desigualdades regionais, estão o Nordeste brasileiro, o Sudeste mexica-
no, as áreas andinas da Bolívia e do Peru, o Norte Grande Argentino e o
Sul do Chile (BÁRCENA; PRADO, 2016).
Assim, dada a importância do local de nascimento de uma pessoa
sobre suas perspectivas de desenvolvimento, exorta-se que a dimensão ter-
ritorial seja incorporada nas agendas ou estratégias nacionais de desenvol-
vimento socioeconômico e, por conseguinte, nas políticas públicas que vi-

149
Sílvio Silva Brasil

sam dar consequência ao propósito do desenvolvimento com justiça social,


tal como se busca por meio da política de promoção do RCN e do acesso à
documentação básica.
Portanto, frente ao desafio da erradicação do sub-registro, inúmeras
dificuldades ainda se interpõem. De todo modo, a observação acurada per-
mite concluir que os avanços e sucessos das políticas públicas, por menores
que sejam, deixam entrever sobre quem e para onde devem ser direcio-
nados os maiores esforços. Por esse ângulo, quando as ações conseguem
alcançar de maneira abrangente um grande contingente da população,
constata-se que o déficit de registro, comumente, concentra-se em grupos
populacionais e territórios historicamente negligenciados.
Afinal, sucedidos dez anos, os frutos do “compromisso” continuam
sendo colhidos, com a percepção de avanços significativos, particularmen-
te quanto à diminuição dos índices de subnotificação do RCN na popula-
ção em geral. Não obstante, também é necessário reconhecer que muitos
permanecem invisibilizados e, portanto, impossibilitados da plena fruição
de seus direitos. Fundamental, então, manter o engajamento e o senso de
justiça social que fundaram esse empenho coletivo, visando maior e me-
lhor oferta de serviços e ações para a população em geral, mas, em particu-
lar, às pessoas que mais necessitam.

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151
Sílvio Silva Brasil

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152
7
PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA CONTRA
AS MULHERES: UMA REVISÃO DAS
PRÁTICAS INTERNACIONAIS E A
URGÊNCIA DA ATUAÇÃO NO BRASIL
ROBERTA GREGOLI
Doutora em Comunicação Social pela Universidade de Oxford, mestra
(com louvor) pelo Programa Erasmus Mundus Crossways in Humanities
da União Europeia. Formada em Letras pela Universidade Estadual
de Campinas. Atuou na área de Direitos Humanos e enfrentamento à
violência contra as mulheres no Executivo federal, no Executivo distrital,
no Legislativo e em organismos internacionais. Atualmente é consultora
na área de políticas de gênero e violência contra as mulheres.

SOPE OTULANA
Consultora sênior na área de gênero, igualdade e desenvolvimento social
na Oxford Policy Management, onde lidera pesquisas qualitativas sobre
os impactos sociais e de gênero nas políticas de transferência de renda,
proteção de crianças e desinstitucionalização de crianças vulneráveis,
violência sexual e de gênero em contextos humanitários e pesquisa de
políticas globais de enfrentamento à violência contra mulheres e meninas.

RESUMO
Nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 2000, as políticas de en-
frentamento à violência contra as mulheres desenvolveram-se de maneira
exponencial. Essas políticas, entretanto, tiveram como foco a resposta à
violência, depois de sua ocorrência. Entendendo o enfrentamento à vio-
lência como um conjunto de ações envolvendo não somente a resposta,
mas também a prevenção, este artigo apresenta argumentos a favor da
prevenção como um eixo de atuação prioritário e urgente. A revisão de
intervenções internacionais na área de prevenção à violência contra mu-
lheres e meninas demonstra que abordagens participativas, que promovem
o questionamento e a mudança das normas sociais que geram a violência,
são consideradas as mais avançadas.

Palavras-chave
Mulheres. Gênero. Violência. Prevenção. Boas práticas. Lei Maria da Penha.

153
ABSTRACT
In the last decades, particularly since the 2000s, policies to eliminate vio-
lence against women have developed exponentially. These policies, howe-
ver, focused on response, i.e. actions after its occurrence. Understanding
that the elimination of violence involves a set of actions which involve not
only response but also prevention, this article argues in favour of preven-
tion as a priority matter. The review of international interventions in the
field of prevention of violence against women and girls demonstrates that
the most advanced approaches are participatory and challenge social nor-
ms that enable violence in order to promote change.

Keywords
Women. Gender. Violence. Prevention. Best practices. Maria da Penha Law.

154
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

1 INTRODUÇÃO
A partir dos anos 2000, as políticas de enfrentamento à violência
contra as mulheres desenvolveram-se de maneira exponencial. Entenden-
do-se o enfrentamento à violência como uma gama de ações envolvendo
a resposta à violência depois de ocorrido e a prevenção para evitar que ela
ocorra, este artigo argumenta em favor de uma priorização do eixo de pre-
venção como meio para uma transformação social profunda e duradoura.
Primeiramente, o artigo traz uma breve descrição dos ganhos no Brasil nas
últimas décadas e apresenta uma estrutura holística para o enfrentamento
à violência contra as mulheres. Em seguida, são realizados uma revisão da
bibliografia internacional e um levantamento de iniciativas internacionais
para demonstrar que as abordagens participativas que promovem o ques-
tionamento e a mudança das normas sociais causadoras da violência são
consideradas as mais avançadas.

2 OS AVANÇOS NO BRASIL
Nas últimas décadas, os avanços relacionados ao enfrentamento à
violência contra as mulheres no Brasil foram significativos, tanto em ter-
mos legislativos quanto de políticas e serviços. A Lei n. 11.340/2006, Lei
Maria da Penha, doravante LMP (BRASIL, 2006), por exemplo, é referên-
cia mundial como legislação de enfrentamento à violência contra as mu-
lheres. Para além do pioneirismo, uma das maiores qualidades da LMP é
sua popularidade: é conhecida por 100% das brasileiras, um êxito surpre-
endente para qualquer lei.
A Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), criada em 2003, fo-
mentou a criação de órgãos locais de políticas para mulheres, os chamados
Organismos de Políticas para Mulheres (OPMs). A descentralização da po-
lítica, essencial para um país diverso e de proporções continentais como o
Brasil, foi uma inovação em termos de políticas na área no mundo.1
O Brasil conta também com uma série de marcos normativos impor-
tantes para guiar e executar ações e serviços de enfrentamento à violência
contra as mulheres, nomeadamente os planos nacionais de políticas para
mulheres, frutos de processo de participação popular nas conferências na-

1Em levantamento de 2014, a SPM identificou 680 OPMs, sendo 24 estaduais e 656 municipais (co-
brindo 11,8% do total de municípios brasileiros). Mais informações em Brasil (2015).

155
Roberta Gregoli - Sope Otulana

cionais de políticas para mulheres; na Política Nacional de Enfrentamento


à Violência contra as Mulheres de 2007 (BRASIL, 2011b); e no Programa
Mulher Viver sem Violência de 2013 (BRASIL, 2014).2
Diversos serviços especializados foram instituídos e consolidados
pelos OPMs e no âmbito da segurança pública e da justiça, entre eles: as
delegacias especializadas de atendimento às mulheres (Deams), os núcleos
ou postos de atendimento especializados em delegacias comuns, os cen-
tros especializados de atendimento às mulheres (Ceams), as casas-abrigo,
as unidades móveis de atendimento às mulheres do campo e da floresta,
as defensorias da mulher e os juizados de violência doméstica e familiar
contra as mulheres (BRASIL, 2011a, p. 27-29).
Apesar de tantos avanços, de acordo com pesquisa do DataSenado
sobre violência doméstica, de 2015 para 2017, o índice de mulheres que
relataram sofrer violência passou de 18% para 29%. A pesquisa, realiza-
da bianualmente desde 2005, sempre apontou resultados entre 15% e 19%
(BRASIL, 2017, p. 2). Esse aumento pode indicar maior conscientização
acerca da violência contra as mulheres e, consequentemente, da violência
sofrida. No entanto, sobretudo quando associada a outros índices que co-
locam o Brasil entre os países mais violentos para as mulheres, esse dado
indica que uma transformação duradoura deve passar necessariamente
pela prevenção através da mudança de normas, atitudes e comportamentos
que naturalizam e permitem que esse tipo de violência continue a ocorrer.

3 A URGÊNCIA DA PREVENÇÃO
Mesmo com a popularidade da LMP, a maioria das pessoas a conhe-
ce apenas superficialmente,3 o que pode gerar a impressão que se trata de
uma lei de cunho exclusivamente punitivo. Porém, o primeiro capítulo é
inteiramente voltado às “medidas integradas de prevenção”, com o objetivo
de “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher [...] por meio
de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios e de ações não governamentais”. Para além da

2 Vale também citar o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, lançado
em 2007 (BRASIL, 2011b), o qual definiu as esferas e responsabilidades dos governos nos três níveis
para a implementação do plano nacional.

3 De acordo com pesquisa do DataSenado, 100% das pessoas “já ouviram falar” da LMP, porém 81%
declaram saber pouco ou nada sobre ela (BRASIL, 2017, p. 10).

156
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

integração operacional da justiça com o executivo (inciso I), esse capítulo


prevê a produção de dados (inciso II), o atendimento policial especializado
(inciso IV) e a capacitação das polícias (inciso VII).
A LMP prevê, ainda, ações visando a mudanças atitudinais e com-
portamentais, incluindo a atuação da comunicação social para coibir pa-
péis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e
familiar (inciso III) e a realização de campanhas educativas (inciso V).
Mais especificamente voltados para a área de educação, vale citar os
incisos VI, VIII e IX que dispõem sobre:
VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou
outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos
governamentais ou entre estes e entidades não-governamen-
tais, tendo por objetivo a implementação de programas de er-
radicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;
[...]
VIII - a promoção de programas educacionais que dissemi-
nem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pes-
soa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;
IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis
de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos,
à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da vio-
lência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL, 2006).

Assim, verifica-se que a LMP, há mais de uma década, posicionou a


prevenção por meio da mudança de normas sociais e atitudes fundamen-
tais para a eliminação da violência doméstica.
As normativas internacionais também entendem a prevenção como
eixo de atuação essencial para o enfrentamento à violência contra as mu-
lheres. A publicação “A framework to underpin action to prevent violence
against women”, de 2015 (UNITED NATIONS WOMEN, 2015), da ONU
Mulheres, constrói uma matriz para a eliminação da violência contra as
mulheres, por meio de uma “abordagem holística de sistemas”,4 envolven-
do três eixos principais: prevenção, intervenção precoce e resposta, confor-
me detalhado no Quadro 1 a seguir.

4 Tradução livre de “comprehensive systems approach”.

157
Roberta Gregoli - Sope Otulana

Quadro 1: Estrutura de enfrentamento à violência contra mulheres e meninas.

Prevenção Intervenção precoce Resposta

Tem como foco a população Tem como foco os indivíduos e Tem como foco os grupos
como um todo e os ambientes grupos com alto risco de serem afetados pela violência na
em que as relações de gênero e vítimas ou perpetradores da construção de capacidade
comportamentos violentos são violência contra mulheres e os sistêmica, organizacional e da
moldadas, para abordar fatores fatores que contribuem para comunidade para responder a
que levam a ou protegem contra tal risco. esses fatores.
a violência às mulheres.

Prevenção da violência Construção de estruturas Mitigação do impacto de Contribuição para a construção de


antes que ela ocorra sociais, normas e práticas para a exposição prévia a fatores de normas sociais contra a violência
proteção e para a diminuição do risco e construção de fatores de contra as mulheres por meio da
risco de ocorrência. proteção. responsabilização de agressores
e da efetivação do direito das
vítimas a reparação e apoio.

Prevenção da Construção de estruturas Reparação e apoio a mulheres


violência recorrente sociais, normas e práticas de afetadas pela violência e
proteção contra a violência e/ou responsabilização individual dos
redução do risco de exposição/ homens que a utilizam. Ao se
perpetração recorrentes. demonstrar isso, normas sociais
contra a violência às mulheres
são reforçadas.

Prevenção de dano em Construção de estruturas Apoio a indivíduos para prevenir


longo prazo sociais, normas e práticas que os impactos negativos da violência,
decorrente da violência maximizem os prospectos de promover a reconstrução e a
se reconstruir a vida depois redução da chance de recorrência
da violência e minimizem em longo prazo.
os impactos e as chances de
recorrência em longo prazo.

Exemplos Construção da autonomia Um programa psicossocial para Um local de trabalho que


econômica das mulheres, com crianças expostas à violência promova políticas para apoiar
trabalho combinado entre doméstica para tratar as mulheres em situação de violência
mulheres e homens para promover consequências dessa exposição doméstica (por exemplo, licença
relações igualitárias e respeitosas. como fator de risco para futura remunerada, treinamento de
perpetração ou vitimização. colegas para sensibilização, etc).
Mudanças de normas acerca de
relações de gênero e violência Reformas legislativas e
contra as mulheres por meio do procedimentais para fortalecer
fortalecimento de educação em o acesso à justiça por vítimas de
grupo, mobilização comunitária e violência sexual.
atividades de mídia.

Fonte: UNITED NATIONS – WOMEN, p. 15, 2015, tradução nossa.

158
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

À luz do Quadro 1, percebe-se que as políticas brasileiras de enfren-


tamento à violência estão mais alinhadas com o eixo de resposta: a cons-
trução de normas sociais formais (LMP), a responsabilização de agresso-
res (LMP, Deams, defensorias, varas e juizados especializados) e serviços
de apoio a vítimas (Ceams, unidades móveis, Casa da Mulher Brasileira
e casas-abrigo). Como demonstrado, a responsabilização de agressores e
informação sobre legislação e direitos também têm uma dimensão preven-
tiva, ainda que secundária. Diretamente ligadas à prevenção, observa-se
a predominância de campanhas e ações pontuais de curto prazo, sem a
robustez de uma política de Estado estruturada. Isso não significa uma crí-
tica destrutiva à política existente. É compreensível que ações de resposta
sejam tidas como prioritárias, uma vez que o atendimento a mulheres em
situação de violência – e, muitas vezes, em risco de morte – é emergencial
e mobilizador. Porém, após mais de uma década de políticas com foco em
resposta, existe a demanda, e mesmo a urgência, pelo desenvolvimento de
ações especificamente voltadas para a causa-raiz da violência.
A violência contra as mulheres enquanto fenômeno social epidêmico
envolve diversas dimensões (individuais, relacionais, comunitárias e orga-
nizacionais), porém tem como causa-raiz as normas, práticas e estrutura
sociais, conforme demonstra a Figura 1.
Figura 1: Compreendendo a violência contra as mulheres.

Fonte: UNITED NATIONS – WOMEN, p. 15, 2015, tradução nossa.

159
Roberta Gregoli - Sope Otulana

De acordo com Flood e Pease (2009), a influência das normas sociais


relacionadas à violência contra as mulheres pode ser observada em três
campos: (a) na perpetração da violência, com uma relação causal entre vio-
lência contra mulheres e meninas e atitudes de papéis de gênero misóginas
ou ideologias que relacionam masculinidade e agressividade sexual; (b) nas
normas “tradicionais” que estigmatizam as vítimas e, portanto, influen-
ciam as ações de mulheres e meninas que vivenciam a violência, o que é
refletido nos casos de altos índices de naturalização da violência e baixos
índices de denúncia; (c) nas normas sociais moldam as respostas da comu-
nidade e das instituições à violência contra as mulheres, com atitudes que
toleram a violência resultando em respostas que culpabilizam as mulheres
e dificultando o acesso à saúde, à justiça e ao apoio psicossocial.
O Quadro 2 traz um levantamento de programas internacionais de
prevenção à violência. A análise dessas iniciativas revela a premissa, con-
forme a Figura 1, de que a violência é causada por normas sociais nocivas
e, consequentemente, é necessário empreender esforços para a mudança
dessas normas.
Quadro 2: Levantamento de iniciativas internacionais de prevenção à violência contra mulheres.
Nome do programa

I care about her (Oxfam, 2012-presente)

Local Zâmbia

Resumo Trabalho para a eliminação da violência contra mulheres e meninas por meio da trans-
formação de atitudes e crenças, e da mobilização de homens e meninos para a promo-
ção da não violência.

Mecanismos/ Trabalho com homens, mudando normas, atitudes e crenças.


foco primário
Abordagens para Promoção de aprimoramento de leis e políticas de igualdade de gênero mais amplamente
engajamento (exemplo: garantindo que tribunais locais protejam sobreviventes de violência).

Aumento de índices de responsabilização de denúncias de violência contra as mulheres.

Abordagens para “Construção de um movimento” por meio de campanhas de mídia, marchas, etc. liga-
engajamento das a eventos internacionais (Dia Internacional das Mulheres, 16 dias de ativismo).

Treinamento de homens como defensores para o fim da violência contra as mulheres.

Desenvolvimento de 17 cards de educação comunitária com guias de discussão para


homens utilizarem com outros homens, contendo definições sobre violência contra as
mulheres, direitos das mulheres e leis.

Grupos de discussão de mulheres.

Grupos de discussão em escolas.

Treinamento de policiais como defensores.


(continua)

160
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

Parcerias YWCA

Zambia National Women’s Lobby

Women in Law in Southern Africa (WLSA)

Forum for African Women Educationalists

Panos Institute Southern Africa (mídia)

Evidências 2.500 homens participaram da marcha de homens contra a violência às mulheres em


2013.

Redução da taxa de mulheres assassinadas por parceiros em algumas comunidades-al-


vo (de 4/mês para 1/mês no primeiro ano do programa).

Aumento no número de denúncias formais de violência contra as mulheres.

Nome do programa

Indashyikirwa (DFID, 2015-2019)

Local Ruanda

Resumo Programa de prevenção à violência contra as mulheres nas comunidades, em imple-


mentação em 70 setores em 7 distritos de Ruanda, com foco em violência doméstica.
As sessões são co-facilitadas por um homem e uma mulher.

Mecanismos/ Combinação de abordagem educacional, baseada em currículo com empoderamento


foco primário econômico das mulheres.
Abordagens para
engajamento Abordagem participativa em grupo para apoiar indivíduos a identificar os fatores de
risco e as consequências da violência doméstica.

Foco nas vulnerabilidades específicas de mulheres que dependem financeiramente do


parceiro.

Mudança de normas sociais e comportamentos que perpetuam a desigualdade de gênero


e a violência contra as mulheres, trabalhando com indivíduos, família e comunidades

Abordagens para Diálogo e sensibilização sobre violência contra as mulheres com membros da
engajamento Associação de Poupança e Crédito na Aldeia (Village Savings and Loans Association)
através de ‘educadores-pares’ eleitos dentro da Associação.

Implementação de 20 sessões de um currículo transformativo de gênero intitulado


“Jornadas de Transformação+” com casais e mobilização de outros casais e família por
meio da criação de “clubes de gênero” (incluindo lições de casa e guias de reflexão).

Treinamento de ativistas comunitários utilizando a metodologia SASA! desenvolvida


na Uganda, que tem como objetivo causar mudanças mais amplas no nível da
comunidade.

O currículo aborda extensivamente tipos e usos, positivos e negativos, de poder e


como eles podem aplicados no relacionamento dos casais.

(continua)

161
Roberta Gregoli - Sope Otulana

Parcerias Care International

Rwandan Men’s Resource Centre

Rede de Mulheres de Ruanda

Evidências Alto índice de adesão, baixo índice de ausência nas sessões.

O currículo utiliza conceitos alinhados e culturalmente relevantes para a comunidade.

Encaminhamento a espaços seguros para atendimento de saúde, jurídico e social.

Nome do programa

Journeys of Transformation+ (Care, 2011-2012)

Local Ruanda

Resumo Educação não formal e advocacy comunitário para encorajar homens e casais a refletir
de maneira crítica sobre compartilhamento de decisões e dinâmicas de poder em seus
relacionamentos, com o objetivo de aumentar o impacto de programas de microcrédito
e transferência de renda sensíveis a gênero.

Mecanismos/ Mudança de normas sociais.


foco primário
Abordagens para Engajamento comunitário na prevenção de violência contra as mulheres e comporta-
engajamento mentos que promovem a igualdade de gênero.

Abordagens para 17 atividades de grupo para homens, cujas parceiras participam do programa de
engajamento empoderamento econômico.

Foco em empreendedorismo e habilidades de negociação, processos de decisão entre


casais, saúde e bem-estar individual, e leis e políticas relacionadas à violência contra as
mulheres.

Discussões na comunidade para promover mudanças nas normas relacionadas a gênero.

Parcerias Care Ruanda

Promundo

Evidências Os achados demonstram que o envolvimento entre homens e suas parceiras nessas ati-
vidades comunitárias resultou em aumento de renda e na participação de homens nos
trabalhos de cuidado com os filhos, bem como na redução de conflitos entre os casais.

Nome do programa

Fortalecimento da resposta da África do Sul à violência de gênero por meio da prevenção


(DFID, 2012-2015)

Local África do Sul

(continua)

162
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

Resumo O resultado esperado deste programa é o fortalecimento da resposta nacional á preven-


ção de violência contra mulheres e crianças na África do Sul.

Mecanismos/ Fortalecimento da resposta nacional à prevenção de violência contra mulheres e crian-


foco primário ças na África do Sul.
Abordagens para
engajamento Fortalecimento de instituições de Estado nacionais e de estratégias para prevenir a vio-
lência contra mulheres e crianças.

Fortalecimento da prevenção e medidas de proteção para crianças e jovens dentro e


fora das escolas.

Mudança social mobilizada no Cabo Oriental e províncias do Estado Livre para atuar
na violência contra mulheres e crianças.

Fortalecimento de sistemas de vigilância, monitoramento e avaliação para prevenção


de violência contra mulheres e crianças baseada em evidências.
Abordagens para Recuperar e dar suporte a mecanismos de coordenação de governo ligados à prevenção
engajamento de violência contra mulheres e crianças (incluindo o desenvolvimento de estratégias,
de uma estrutura nacional de mobilização de prevenção à violência, aprimoramento
da resposta do judiciário a casos de violência contra mulheres e crianças, e desenvolvi-
mento de políticas e estruturas legislativas).

Capacitação de treinadores e treinadoras para educação nos distritos sobre a estrutura


nacional de segurança nas escolas.

Engajamento de crianças e jovens em atividades participativas de treinamento de habi-


lidades para o dia a dia, sensibilização sobre questões de violência de gênero e informa-
ções sobre acesso a serviços.

Diálogo com homens e meninos da comunidade, promovendo o desenvolvimento de


planos de ação da comunidade para a prevenção da violência contra mulheres.

Apoio a organizações comunitárias para o desenvolvimento da ferramenta “Um Ho-


mem Pode” (“One Man Can”).

Programas de rádio.

Criação de sistemas de gestão de informação sobre violência contra mulheres.

Parcerias UNICEF

UNFPA

Save the Children

Organismos de governo locais.

Evidências Programa de Ação Integrado sobre a Violência contra Mulheres e Crianças e Plano
Estratégico Nacional para a Eliminação da Violência contra Mulheres e Crianças pac-
tuados, adotados e em fase de implementação.

Desenvolvimento, revisão e aprimoramento de estruturas legislativas e de políticas re-


lacionadas à prevenção à violência contra mulheres e crianças.

(continua)

163
Roberta Gregoli - Sope Otulana

Nome do programa

Programa H (Promundo, 2002)

Local Lançado no Brasil

Resumo Ferramenta adaptável a outros países, tendo como público-alvo homens de 15 a 24


anos, para encorajar a reflexão crítica a respeito de normas rígidas relacionadas à
masculinidade.

Mecanismos/ Foco na mudança de normas sociais, particularmente as relacionadas à masculinidade.


foco primário
Abordagens para
engajamento

Abordagens para Campanhas lideradas por jovens encorajando grupos de apoio entre pares, o
engajamento engajamento de jovens e reforço de mudanças de normas sociais na comunidade.

Sessões de educação não formal com campanhas e ativismo lideradas por jovens para
transformar papeis estereotipados de gênero (ex. uso de contraceptivos e divisão de
tarefas domésticas).

70 atividades validadas do Programa H.

Parcerias Organismos de governo locais.

Evidências Mudanças nos índices da Escala Gender Equitable Male (GEM), que mede as mudanças
em atitudes relacionadas a gênero, violência, sexualidade, masculinidade e saúde
reprodutiva.

Nome do programa

MenCare (originalmente lançada como campanha em 2011)


MenCare+ (Promundo)
Local Currículo internacionalmente adaptado (Brasil, Indonésia, Ruanda e África do Sul)

Resumo MenCare é uma campanha mundial com foco na paternidade, ativa em mais de 45 pa-
íses em 4 continentes. Sua missão é promover o envolvimento igualitários dos homens
como pais e cuidadores não violentos para fomentar o bem-estar da família, a igualda-
de de gênero e melhores condições de saúde para mães, pais e crianças.

Mecanismos/ Mudança de normas relacionadas à masculinidade.


foco primário
Abordagens para Encorajamento de agentes da saúde a apoiar homens que querem ser mais envolvidos
engajamento com os filhos e com decisões de saúde.

Abordagens para Campanhas de mídia.


engajamento
Currículo para homens/pais.

Currículo para casais.

Treinamento de agentes da saúde.

(continua)

164
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

Parcerias Rutgers International

Save the Children

Aliança MenEngage

Nome do programa

Stamping Out and Preventing Gender Based Violence


(STOP-GBV) / (DFID & USAID, 2014-2019)

Local Zâmbia

Mecanismos/ Aumento na disponibilidade de serviços de qualidade para sobreviventes de violência


foco primário de gênero.
Abordagens para
engajamento Apoio para sobreviventes de violência de gênero no acesso à justiça e fortalecimento da
capacidade da política e sistema de justiça.

Prevenção e advocacy para mudança de normas, atitudes e comportamentos.

Abordagens para Centros de atendimento integrados fornecem uma gama de serviços de saúde, apoio
engajamento psicossocial, informações sobre HIV e teste, fornecimento de kits de profilaxia pós-
exposição e contraceptivo de emergência, atendimento jurídico a adultos e crianças;
treinamento da equipe do centro de atendimento integrado e agentes de serviços;
encaminhamento e trabalho em rede com os demais serviços (exemplo: saúde,
abrigamento, assistência financeira); atendimento móvel a comunidades rurais para
a promoção de sensibilização e serviços; avaliações organizacionais dos parceiros do
projeto e fortalecimento de capacidades.

Treinamento de assistentes jurídicos para apoiar sobreviventes; sensibilização da


polícia fortalecimento da capacidade de investigação, processo e proteção; treinamento
de advogados, juízes e magistrados; sensibilização de líderes tradicionais sobre
violência contra as mulheres, leis e encaminhamentos; treinamento de agentes de
saúde e assistentes sociais para encaminhamento de sobreviventes; e aumento na
sensibilização da comunidade sobre os aspectos legais da violência contra as mulheres
através de unidades móveis.

Abordagem dos fatores de risco da violência contra as mulheres e mobilização das co-
munidades por meio de um programa holístico de comunicação.

Sensibilização de líderes tradicionais, comunitários e religiosos sobre violência contra


as mulheres e casamento infantil.

Treinamento de homens como promotores ou “agentes de mudança” para engajamento


com outros homens sobre violência contra as mulheres.

Utilização de diálogos, encenações e programas de rádio para aumentar a


sensibilização da comunidade à violência contra as mulheres; criação de um número
telefônico para apoio a sobreviventes de violência agressores; trabalho com estruturas
tradicionais e comunitárias para mudar normais sociais negativas para a erradicação
do casamento infantil.
(continua)

165
Roberta Gregoli - Sope Otulana

Parcerias World Vision Zambia

WLSA

Zambia Centre for Communication Programes (ZCCP)

Evidências A avaliação da Teoria de Mudança mostrou que o programa provê um percurso claro
para a prestação de serviços e prevenção da violência contra as mulheres e casamento
infantil.

Aumento nas denúncias de violência contra as mulheres e crianças.

Fortalecimento da coordenação entre os governos locais.

Nome do programa

Prevention+ (Promundo)

Local Indonésia, Paquistão, Ruanda, Uganda, Oriente Médio e Norte da África

Resumo O objetivo final do programa Prevention+ é contribuir para a adoção e implementação,


em nível nacional, de políticas e sistemas de prevenção à violência que sejam sustentá-
veis para além dos 5 anos do programa. O programa aborda as causas-raiz da violência
de gênero: contextos sociais, culturais, econômicos e religiosos que geram as atitudes e
comportamento que levam à violência.

Abordagens para O programa promove ativamente o engajamento de homens jovens e adultos como
engajamento parceiros – junto com mulheres jovens e adultas – para desafiar e transformar normas
e práticas de gênero nocivas. Os grupos participam de programas extensivos de pre-
venção à violência contra mulheres e iniciativas de empoderamento econômico (infor-
madas em parte pelas abordagens e currículos dos programas MenCare+ e Journeys of
Transformation), oferecidas em parceria com serviços da comunidade.

Esforços de advocacy com foco no encorajamento de governos nacionais para introdu-


zir e cumprir novas legislações para prevenção e eliminação da violência contra mulhe-
res, e para fortalecer as políticas ou legislações existentes.

Treinamento de equipes institucionais de ministérios, representantes de governo,


agentes de serviço e sociedade civil para a integração de abordagens transformadoras
de gênero no trabalho cotidiano. Isso inclui prover as equipes com as ferramentas e
know-how necessários para interagir com jovens e adultos, mulheres e homens sem
discriminação e preconceitos.

Parcerias Rutgers International

Sonke Gender Justice

Aliança MenEngage

Fonte: Quadro elaborado a partir de informações contidas em Channon e Ngulube


(2015), Development Tracker (2017), Institute for Reproductive Health (2011), Institute
for Reproductive Health (2018), Men Care (2018), Menon et al. (2015), Pawlak, Slegh
e Barker (2012), Promundo (2018a), Promundo (2018b), Rutgers; Promundo; Sonke
Gender Justice (2017), Samuels et al. (2015) e What works to prevent violence (2018).

166
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

4 A PREVENÇÃO POR MEIO DE ABORDAGENS


PARTICIPATIVAS DE QUESTIONAMENTO E REFLEXÃO
A observação de campo em alguns municípios brasileiros sugere que
iniciativas de prevenção normalmente são concebidas através de uma abor-
dagem informativa e unilateral – nos moldes de palestra, na qual o ou a
palestrante provê informações acerca de definições de gênero e violência,
os tipos de violência, a LMP, etc. Ainda que algumas ações sejam intitula-
das “rodas de conversa”, sugerindo uma abordagem mais participativa, a
metodologia é quase invariavelmente uma palestra e as participantes são
vistas como recipientes passivas de informação. Os ministérios públicos
de alguns estados promovem uma ação intitulada Maria da Penha Vai à
Escola5, porém a iniciativa tem como base, como o próprio nome descreve,
informações sobre violência e a LMP.
A literatura internacional indica que ações bem-sucedidas de pre-
venção trazem, para além de informações, uma dimensão de questiona-
mento. Intervenções internacionais baseadas em currículos educacionais
geralmente não começam com discussões diretas sobre violência contra as
mulheres ou violência doméstica (vide Quadro 2 - Indashyikirwa in Rwa-
nda), mas antes fornecem uma definição de termos-chave, como por exem-
plo, gênero, poder, etc. Assim, estabelecem as regras gerais sobre como as
sessões serão conduzidas (um espaço seguro para se falar livremente, como
fazer as lições de casa, etc.) e permitem que os e as participantes falem
sobre suas expectativas. Esse processo é, então, seguido por uma série de
sessões que auxiliam o grupo a chegar a uma definição clara da violência.
Nesse sentido, deve-se começar com a construção de uma base co-
mum entre as e os participantes, visando à reflexão sobre desigualdades
de gênero. Programas bem-sucedidos, normalmente, são desenhados para
fazer com que instituições e interações na comunidade sejam mais igua-
litárias, por exemplo, defendendo que homens sejam cuidadores e mulhe-
res participem da vida pública, dos processos de decisão e da vida política
(HASSINK et al., 2015).
Além disso, enquanto grande parte das ações no Brasil tem como pú-
blico-alvo mulheres – em sua maioria, usuárias dos serviços governamentais

5 DF, PA, PE, PI, para citar alguns. Sobre o programa do DF ”Maria da Penha vai à Escola” (DIS-
TRITO FEDERAL, 2015).

167
Roberta Gregoli - Sope Otulana

em situação de violência, ou seja, sobreviventes ou que vivem em situação de


violência – para que uma mudança estrutural e duradoura aconteça, é ne-
cessário alcançar mais mulheres e também os homens – agressores ou não.
A participação dos homens é de extrema importância, afinal não se
pode mudar uma sociedade sem o envolvimento de metade dela. A parti-
cipação de homens em políticas de enfrentamento à violência contra mu-
lheres no Brasil tem sido controversa e, talvez por isso, quase inexistente.
É claro que espaços seguros, com participação exclusiva de mulheres, são
importantes para prover apoio e contribuir para a superação da violência
por quem a vivencia. Entretanto, essa deve ser apenas uma dentre as várias
estratégias de enfrentamento. Para desafiar as normas de gênero que levam
à perpetuação da violência contra as mulheres é preciso promover o con-
frontamento generalizado das noções sociais sobre a maneira “correta” de
ser homem ou mulher, ou seja, sobre papeis e estereótipos de gênero.
Existem intervenções que dialogam especificamente com a disposição
de atores-chave no processo de questionamento das normas tradicionais.
Exemplos incluem chefes de família que lavam roupas; treinadores de es-
porte que demonstram aos meninos modos diferentes de tratar; mulheres
e políticos que falam publicamente sobre igualdade de gênero. Essas abor-
dagens são particularmente eficientes no trabalho com homens e meninos.
Uma revisão, realizada pela Organização Mundial da Saúde e pela
London School of Hygiene and Tropical Medicine (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2010) indica que os programas curriculares mais bem-
sucedidos na prevenção à violência doméstica dão grande importância ao
entendimento dos e das participantes sobre as normas de gênero e sobre
dinâmicas desiguais de poder entre homens e mulheres. Essa abordagem
de sensibilização/educação é mais eficaz quando acompanhada de módulos
que habilitam os e as participantes a tomarem decisões saudáveis (não
violentas) e a aprimorarem suas habilidades de resolução de conflitos. É
recomendado que os programas sejam implementados por um período
mínimo de seis meses.
Em todos os contextos a literatura também aponta a necessidade de
preparação de currículos e a capacitação de facilitadoras e facilitadores
para engajarem os e as participantes com o material. Nota-se que, no início
de programas com abordagem participativa, particularmente naqueles que
utilizam currículos que capacitam homens e mulheres juntos, os homens

168
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

normalmente dominam as discussões. Isso tende a melhorar com o tempo,


assim como melhora a habilidade dos e das participantes de se engajarem
com tópicos de discussão sensíveis ou delicados. Ênfase é dada à qualifi-
cação das facilitadoras e dos facilitadores e à necessidade de terem uma
compreensão profunda das questões implicadas nas dinâmicas de violên-
cia contra as mulheres.
A literatura sugere que abordagens integradas – abordagens multis-
setoriais implementadas em diversos níveis da sociedade (BOTT; MORRI-
SON; ELLSBERG, 2005), por meio do engajamento com indivíduos, orga-
nizações, comunidade e fatores sociais, como a mídia e movimentos sociais
(FLOOD; PEASE, 2009) – são mais efetivas. É necessário, portanto, com-
binar ações para mudar atitudes individuais com “políticas institucionais
que moldam atitudes culturais”, a fim de sustentar a igualdade de gênero,
nas esferas pública e privada, com abordagens que dialogam com proces-
sos e tendências sociais, econômicas e políticas, nacionais e internacionais,
mais amplas (HASSINK et al., 2015). Isso enfatiza a natureza complexa
e bidirecional da relação entre atitudes e comportamentos, reforçando a
necessidade de não somente mudar atitudes, mas também reforçar fatores
institucionais e estruturais que contribuem para a violência contra as mu-
lheres (FLOOD, 2015).
Abordagens integradas combinam múltiplos níveis como educação,
mobilização comunitária e serviços. A revisão da OMS, sobre intervenções
em mudanças de normas sociais (BARKER; RICARDO; NASCIMENTO,
2007), revelou que 62% das intervenções integradas foram mais efetivas
em mudanças comportamentais do que as baseadas somente em educação.
Programas que combinam educação em grupo com mobilização comuni-
tária e campanhas de mídia são particularmente efetivos (WORLD HEAL-
TH ORGANIZATION, 2010).
A associação entre a abordagem e o contexto específico da comuni-
dade é particularmente importante. Como os contextos culturais podem
variar consideravelmente, existem conceitos delicados para determinados
grupos e, portanto, é necessário cuidado no desenvolvimento ou na tradu-
ção dos currículos. Nesse sentido, é importante garantir que os materiais es-
tejam em consonância com a realidade do grupo, incluindo, por exemplo, as
maneiras de se abordar a distinção entre gênero e sexo ou o modo como as
comunidades e as famílias podem dar apoio às sobreviventes de violência.

169
Roberta Gregoli - Sope Otulana

Abordagens que têm como público-alvo a juventude são reconheci-


damente mais efetivas, pois os jovens são mais propensos a aceitarem mu-
danças na visão de naturalização da violência do que adultos mais velhos
(BOTT; MORRISON; ELLSBERG, 2005). Por isso, programas que visam
mudanças atitudinais e comportamentais de jovens, normalmente, têm
esse componente facilitador.
A revisão da literatura sobre a abordagem participativa traz, por
exemplo, módulos que permitam aos homens refletirem com outros ho-
mens e eventos nos quais homens promovam comportamentos e atitudes
saudáveis. Assim, programas de enfrentamento à violência contra as mu-
lheres não somente remetem à desigualdade de gênero, mas também per-
mitem que os e as participantes reflitam sobre o seu entendimento indivi-
dual acerca da violência contra as mulheres na sociedade.
A revisão bibliográfica também trouxe recomendações úteis de in-
tervenções às instituições do setor público, como, por exemplo, o progra-
ma do DFID África do Sul, descrito no Quadro 2. A intervenção aponta a
importância do desenvolvimento de uma teoria da mudança que reflita a
complexidade do contexto institucional e organizacional em questão, bem
como as políticas existentes, a fim de que se estabeleça um marco lógico
ou outras maneiras de monitoramento do progresso que levem em conta
adequadamente os tipos de atividades e abordagens utilizadas.

5 INICIATIVAS NÃO GOVERNAMENTAIS DE


PREVENÇÃO NO BRASIL
Além as iniciativas internacionais, incluídas no Quadro 2, foram le-
vantados ações e programas em vigência no Brasil no momento. Atual-
mente, podem ser identificadas quatro iniciativas próximas da abordagem
aqui descrita. São intervenções participativas com o objetivo de promover
mudanças de normas sociais por meio da educação não formal.
“Uma vitória leva à outra” é um programa de empoderamento de
meninas por meio do esporte. As participantes fazem, duas vezes por se-
mana, uma hora de atividade física e uma hora de oficina temática sobre
autoestima e liderança; saúde e direitos sexuais e reprodutivos; empodera-
mento e eliminação da violência contra as mulheres e meninas; educação
financeira. O programa dura cerca de seis meses e está atualmente em fase

170
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

de implementação na cidade do Rio de Janeiro (ORGANIZAÇÃO DAS


NAÇÕES UNIDAS - MULHERES, 2016).
A iniciativa “O valente não é violento” propõe que profissionais da
educação repensem e transformem ideias pré-concebidas sobre o que é ‘ser
homem’ e o que é ‘ser mulher’. O currículo promove a reflexão sobre a violên-
cia contra as mulheres e sua superação. O projeto é composto por seis planos
de aulas sobre os seguintes temas: sexo, gênero e poder; violências e suas in-
terfaces; estereótipos de gênero e esportes; estereótipos de gênero, raça/etnia
e mídia; estereótipos de gênero, carreiras e profissões: diferenças e desigual-
dades; e vulnerabilidades e prevenção (ARRUDA; NASCIMENTO, 2016). O
programa está atualmente em fase de avaliação pela ONU Mulheres.
O “Vozes contra a violência” é um currículo de educação não for-
mal, voltado a meninas e a mulheres escoteiras e guias, a fim de que pos-
sam atuar na prevenção da violência de gênero. Aplicado em outros 35 paí-
ses, o currículo trata das diversas formas de violência contra as mulheres e
desenvolve a liderança e a autoestima de mulheres e meninas. O currículo
está atualmente em fase de tradução do original em inglês pelo escritório
da ONU Mulheres no Brasil (UNITED NATIONS – WOMEN, 2013).
Outra iniciativa de relevância é a adaptação da metodologia SASA!
da Organização Raising Voices por meio do projeto idealizado pelo Ban-
co Mundial e implementado pela empresa de consultoria em desenvolvi-
mento Oxford Policy Management6 (OXFORD POLICY MANAGEMENT,
2018). Originalmente elaborado para a Uganda, a ferramenta está em fase
de adaptação7 para o contexto brasileiro, mais especificamente do Piauí,
com o título provisório “Agora! Pelo fim da violência contra as mulheres”.
Trata-se de uma metodologia participativa, que convida os e as participan-
tes a refletirem sobre as dinâmicas de poder, os papéis e os estereótipos de
gênero que são as causas-raiz da violência contra as mulheres. O projeto
está em andamento e deve ser finalizado em 2019.

6 Projeto intitulado Strengthening Sub-national Government Capacity to Promote Economic Empower-


ment and Prevent Violence Against Women. Em tradução livre: fortalecendo capacidades de governo
subnacional para promover o empoderamento econômico e prevenir a violência contra as mulheres.

7 Adaptação levando em consideração as dimensões linguística (tradução), cultural e socioinstitu-


cional. Mais informações, em inglês, disponíveis em Oxford Policy Management (2018).

171
Roberta Gregoli - Sope Otulana

6 DESAFIOS MAPEADOS
A mudança de práticas, comportamentos e atitudes é algo complexo
e que leva tempo, pois normas tradicionais sobre a violência contra mulhe-
res e meninas são formadas por uma vasta gama de processos sociais em
múltiplos níveis da ordem social (FLOOD; PEASE, 2009). Enquanto há
evidências que normas nocivas de gênero podem mudar, os mecanismos
exatos para essa mudança permanecem apenas parcialmente compreendi-
dos e com escassas evidências. Ainda que os mecanismos que relacionem
mudanças de atitudes à redução de comportamentos violentos não sejam
claros, existem evidências que sustentam que atitudes mais igualitárias,
por parte dos homens, estão associadas à menor chance de perpetração de
violência doméstica (LEVTOV et al., 2014). 8
Diversas revisões bibliográficas, como as de Ricardo, Eads e Barker
(2011), relatam a necessidade de avaliações mais rigorosas e pesquisas padro-
nizadas sobre o que efetivamente funciona para mudar normas e comporta-
mentos relacionados à violência contra mulheres e meninas. Uma revisão da
OMS de 2007 sobre 58 intervenções concluiu que 33% das intervenções não
podiam ser avaliadas devido à falta de dados, ou à existência de dados não
padronizados (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2010). Além disso, a
maioria dos programas que possui dados disponíveis não fez distinção entre
mudanças em normas sociais e mudanças nas atitudes dos indivíduos, o
que torna difícil discernir de que maneira as intervenções estão atingindo
os impactos observados (ALEXANDER-SCOTT; BELL; HOLDEN, 2016).

8 Ainda que este artigo argumente pelo desenvolvimento de ações para mudanças de normas sociais
relativas à violência contra as mulheres, não há uma relação de causalidade direta e imediata entre as
mudanças de normas sociais e a redução da violência. Por exemplo, em programas que visam mu-
dar normas sociais sobre empoderamento das mulheres, a vulnerabilidade de mulheres e meninas à
violência pode, às vezes, aumentar no curto prazo (BOTT; MORRISON; ELLSBERG, 2005). Essa
complexidade acerca das mudanças em normas e atitudes pode ser observada nos dados globais
sobre comportamento de homens e uma aparente ambivalência sobre mudanças. Mesmo quando
os homens têm atitudes razoavelmente positivas relacionadas a gênero e não enxergam a igualdade
como perda de direitos, podem sentir que já se avançou o suficiente. Também é possível que homens
apoiem leis que punem a violência contra as mulheres, ao mesmo tempo em que continuam a sentir
que o privilégio patriarcal é a “ordem correta das coisas”. Tal ambivalência é especialmente prevalen-
te em países de baixa renda (LEVTOV et al., 2014). Isso remete a um desafio mais amplo sobre as
normas e os comportamentos violentos, sustentados por posicionamentos complexos, inter-relacio-
nados e, muitas vezes, contraditórios, sugerindo que apenas mudar atitudes individuais ou promover
a conscientização sobre a violência contra as mulheres é necessário, porém por si só é insuficiente.

172
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil

Alcançar impacto de maneira sustentável e em escala é outro grande


desafio. Mesmo quando os dados indicam que as intervenções podem mu-
dar as normas sociais, a literatura demonstra os desafios para que ocorra
um impacto generalizado que perdure, vez que a maioria das intervenções é
em pequena escala. Existem evidências que intervenções de mídia de massa
podem mudar atitudes e normas relacionadas à violência contra mulheres e
igualdade de gênero em populações de grande escala, ainda que essas fun-
cionem melhor quando combinadas com trabalho na ponta e com outros
setores (ALEXANDER-SCOTT; BELL; HOLDEN, 2016; HAIDER, 2017).

7 CONCLUSÃO
A partir do panorama traçado neste artigo, percebe-se que mudar
atitudes, práticas e comportamentos nocivos exige a elaboração de políticas
de prevenção que envolvam pesquisa, planejamento e expertise da realidade
local. Não se trata de uma tarefa simples. Porém, é necessário e urgente o
empenho no sentido de criar e implementar ações e políticas de prevenção
estruturadas, particularmente tendo como público homens jovens e adultos.
Assim, será possível, de fato, construir, no médio e longo prazo, uma trans-
formação profunda e duradoura nas normas sociais e atitudes e comporta-
mentos individuais em favor de uma sociedade mais igualitária em termos
de gênero e, por consequência, livre de violência contra mulheres e meninas.

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Roberta Gregoli - Sope Otulana

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178
8
OS DIREITOS DOS POVOS DE TERREIROS
NA ENCRUZILHADA: O USO DO
ATABAQUE E O MEIO AMBIENTE

ANDRÉA LETÍCIA DE CARVALHO GUIMARÃES


Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade
de Brasília (UnB). Advogada, professora de direitos humanos.
Membro do Calundu, grupo de estudos de religiões afro-brasileiras
da UnB, e do Centro Cultural Oré, em Uberlândia, MG.

RESUMO
O presente artigo pretende analisar as violências e discriminações sofridas
pelos povos de terreiro, em especial, o “Quebra de Xangô” movimento de
perseguição religiosa, ocorrido em 1912 na cidade de Maceió, em conjunto
com os recentes casos de racismo religioso que vêm sofrendo as comunida-
des em todo o Brasil, impedidas de utilizar seus atabaques nos seus cultos
pela alegação de perturbação do sossego ou poluição sonora. A perspectiva
desse trabalho é avaliar como o histórico de negação dessas práticas tradi-
cionais religiosas ainda continua em tempos democráticos e busca apre-
sentar algumas possibilidades para que essas casas não sejam silenciadas e
tenha os seus direitos protegidos.

Palavras-chave
Povos de terreiros. Quebra de Xangô. Racismo religioso. Recomendação n.
01/2018. Ministério Público.

179
ABSTRACT
The present article intends to analyze the violence and discrimination su-
ffered by the people of the terreiro, especially the “Quebra de Xangô” mo-
vement of religious persecution occurred in 1912 in the city of Maceió, to-
gether with the recent cases of religious racism that has been suffering the
communities throughout Brazil, who are being prevented from using their
atabaques in their services for the claim of disturbance of the quiet or noise
pollution. The perspective of this work is to evaluate how the historical ne-
gation of these traditional religious practices still continues in democratic
times and seeks to present some possibilities so that these houses are not
silenced and have their rights protected.

Keywords
Terreiros peoples. Xangô break; Religious racismo. Recommendation n.
01/2018. Public Prosecutor’s Office.

180
Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente

1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história brasileira, os direitos dos povos de terreiro en-
contram-se na encruzilhada: estão sempre sendo colocados em xeque pelas
concepções hegemônicas da sociedade, que tentam impor a sua compre-
ensão de mundo como a única verdade. Por isso, o que parece “diferente”
sofre retaliações e, mesmo na égide do Estado democrático de direito, essas
comunidades têm seus direitos cotidianamente violados, tendo que lutar
por reconhecimento e visibilidade para que os seus conhecimentos ances-
trais não desapareçam.
Essa situação de luta contínua aparece na diáspora africana e
reverbera até os dias atuais (HALL, 2003). Nesse trabalho, escolhe-se
o “Quebra de Xangô”, como um caso, modelo de perseguição religiosa,
para avaliar, principalmente, suas consequências para as comunidades de
Alagoas, pois em função desse episódio instituiu-se o que ficou chamado de
“xangô rezado baixo”. O termo significa que as casas, que ainda “ousavam”
a permanecer na região, rezavam sem o uso dos atabaques – elemento
fundamental do culto – e faziam seus rituais ao som de palmas para que
não fossem descobertas.
Infelizmente, esse silenciamento encontra respaldo nos dias atuais,
com outra roupagem legal, em que o Estado e a sociedade apontam que os
povos de terreiro, com seus atabaques, causam “perturbação do sossego”
e “poluição sonora”. Sob essa alegação, várias casas do Brasil estão sendo
fechadas, ora porque são multadas em valores altíssimos, ora porque são
exigidas adaptações das casas, impossíveis para essas comunidades, como,
por exemplo, isolamento acústico. Essa nova vertente de perseguição e dis-
criminação negativa dos povos de terreiro está associada ao que se tem
identificado como racismo religioso. Conforme defende o Professor Wan-
derson Flor do Nascimento (UnB):
O que se ataca é precisamente a origem negra africana destas
religiões. Por isso, vejo uma estratégia racista em demonizar
as ‘religiões’ de matrizes africanas, fazendo com que elas apa-
reçam como o grande inimigo a ser combatido, não apenas
com o proselitismo nas palavras, mas também com ataques
aos templos e, mesmo, à integridade física e à vida dos parti-
cipantes destas ‘religiões’. Portanto, isso que visualizamos sob
a forma da intolerância religiosa nada mais é que uma faceta
do pensamento e prática racistas que podemos chamar de ra-
cismo religioso (NASCIMENTO, 2016, p. 168).

181
Andréa Letícia Carvalho Guimarães

A cor de grande parte dos membros dos povos de terreiro e as suas


raízes africanas são parte da motivação do preconceito e das ações dis-
criminatórias. Além disso, esse preconceito pode estar ligado à formação
colonial, à divisão e à valoração racial negativa, influenciando na compre-
ensão desta religião. Assim, o conceito de racismo religioso surge da neces-
sidade de se evidenciar o racismo existente quando se analisa a intolerância
sofrida pelos povos de terreiro em função da cor da pele da vítima ou da
sua dimensão histórica e cultural, voltada à tradição afro-brasileira.
Este artigo, portanto, tem como objetivo analisar o histórico de vio-
lência em relação, particularmente, à questão do uso dos atabaques pelos
povos de terreiro e analisar o que tem sido feito para garantir não apenas
o direito à liberdade de culto, previsto no inciso VI, do art. 5º da Consti-
tuição Federal (CF), bem como a exigência prevista no §1º do art. 215, que
expressamente impõe a proteção das manifestações culturais afro-brasi-
leiras: “O Estado protegerá as manifestações das culturas indígenas e afro-
-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional”. Além disso, devem ser considerados os incisos I e II do art. 216,
pois ainda que não explicitamente, os terreiros são reconhecidos como es-
paços nos quais diversos grupos, formadores da sociedade nacional, têm
“modos próprios de expressão e de criar, fazer e viver”.

2 O “QUEBRA DE XANGÔ”
Historicamente, os povos e as comunidades tradicionais de matriz
africana sofreram várias formas de discriminação e de perseguição, inclu-
sive - e especialmente - do Estado. É importante observar o passado, no
qual tais povos eram ora silenciados, ora perseguidos, porquanto identifi-
cados com atraso e desvio dos modelos civilizatórios europeus. O olhar de
forma retrospectiva destaca o quanto se progrediu e também orienta para
o quanto ainda se deve avançar, pois os discursos da intolerância religiosa,
como mencionado, alastram-se até hoje, embora em novas roupagens, com
os mesmos efeitos destrutivos. Por isso, a importância de compreender a
complexidade do passado para, através dele, compreender os paradoxos do
presente (SANTOS, 2007).
O “Quebra de Xangô” foi um movimento de perseguição religiosa,
ocorrido em Maceió, em 1912, pela Liga dos Combatentes Republicanos, que
queriam destruir qualquer resquício de bruxaria e magia que existisse no

182
Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente

Estado, sob o argumento que a vinculação a tais cultos levavam a região ao


atraso e que, em tempos de República, o progresso deveria ser propugnado.
De acordo com Cavalcanti (2012), a razão política viabilizou e au-
torizou a ação radical e o preconceito, com a herança africana, funcionou
como uma espécie de elemento capaz de fornecer aos ‘militantes comba-
tentes’ a sensação de legitimidade civilizatória, amparado na premissa na-
cionalista de “nós” e “eles”, como se os ‘xangôs’ fossem eles e a sociedade
civilizada fossem o ‘nós’. Assim:
Embalados por motivações racistas, a Liga dos Republicanos
Combatentes liderou o ataque, o ‘rezado de Xangô foi
interrompido pela violência’ e era como se o açoite da
escravidão houvesse voltado. Líderes religiosos de cerca de
30 terreiros de Maceió foram espancados. Alguns fugiram
para nunca mais voltar. Na bagagem, uma única riqueza: a
cultura negra. (CAVALCANTI, 2012, p. 12)

O medo de novos ataques repercutiu na forma dos rituais e dos cul-


tos afro-brasileiros de Alagoas, pois devido ao movimento de perseguição,
as manifestações populares integradas por negros passaram a ser vistas
com certa desconfiança, principalmente os ‘Xangôs’, que continuaram a
ser cultuados pelos poucos remanescentes das antigas casas, que insistiram
em permanecer no local mantendo suas atividades religiosas.
Dessa forma, o ‘quebra-quebra’ resultou em uma nova modalida-
de de culto, mais discreta, reservada e sem a complexidade de outrora, e
a qual se convencionou chamar de “Xangô rezado baixo”, por Gonçalves
Fernandes (Rafael, 2004, p. 263), assim denominado por dispensar o uso de
tambores e zabumbas. Observam-se, também, evidências de violência sim-
bólica na transformação dos rituais da religiosidade afro-brasileira, pois
para os integrantes dos cultos afro-brasileiros, a relação com o seu univer-
so místico estava cercada de embaraços, haja vista a identificação primor-
dial com a Igreja Católica, por meio da associação com santos e símbolos,
conforme se verifica na entrevista realizada por Rafael (2004), com Laura
Maria da Silva, mais conhecida na cidade como Mãe Netinha, de 93 anos e
mãe de santo do Centro Africano Nossa Senhora do Carmo:
Você chegava numa casa que você sabia que lá, colocava um
búzio, uma carta, um negócio assim. Então, peji, não é peji
como nós temos hoje esse peji, temos esse salão. Então era
uma casa comum. Então num quartinho ali, então tinha,

183
Andréa Letícia Carvalho Guimarães

uma mesa de madeira, muito bem forrada com uma toalha


de linho, muito bem engomada, muito bem forrada, então
ali tinha, as estátuas. [...]. Então tinha aquelas imagens de
São Jorge, geralmente tinha São Jorge, Santa Bárbara, Nossa
Senhora da Conceição e, outros assim, como o Senhor do
Bomfim [...] Sempre tinha aquela mesa, tinha um quartinho
e tinha essas estatuetas. Que sempre tinha São Lázaro, São
Jorge, Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e o Senhor
do Bomfim. Então aquela toalha ali comprida, e embaixo
é que tinha as oferendas. Então geralmente tinha pipoca,
tinha um acarajé, um acaçá. Então se alguém chegasse ali
não percebia nada. Só tinha santo da Igreja Católica. Então
diziam: “Disseram que aqui tinha uma macumba”, que era o
nome realmente esse, né? “mas eu não tô vendo nada. O que
eu tô vendo aqui é o Senhor São Jorge. E os toques não eram
de atabaque, era de palmas” (RAFAEL, 2004, p. 41).

Diante disso, a ausência dos atabaques rompe com o sistema simbó-


lico do culto, vez que possuem importante representatividade nas religiões
afro-brasileiras, pois são elementos que constituem o sagrado, utilizados
em quase todos os rituais, tendo a função de comunicação com as divinda-
des. Como Geertz (1989) apresenta:
[...] os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos
de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu
estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo
– o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples
atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre ordem [...].
Os símbolos religiosos formulam uma congruência básica
entre um estilo de vida particular e uma metafísica especifica
(implícita, no mais das vezes) e, ao fazê-lo, sustentam cada
uma delas com a autoridade emprestada do outro (GEERTZ,
1989, p.67).

Assim, a interferência na identidade da crença de um grupo religioso,


como aconteceu com os ‘xangozeiros’, representa o não reconhecimento do
valor ou da identidade – substância moral dos indivíduos – incentivando
a negação de sua dignidade, podendo inviabilizar o seu tratamento como
seres humanos respeitáveis, igualmente merecedores de atenção, respeito
e consideração.

184
Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente

Esses aspectos sobre o processo de formação histórica do país con-


tribuíram para a construção das identidades dos povos de matriz africana
que, mesmo diante da repressão e da assimilação, souberam elaborar me-
canismos de diálogo e usar, estrategicamente, alianças com intelectuais e
políticos que possibilitaram a sua sobrevivência. A expansão da religião,
após o período de repressão, cresceu consideravelmente, chegando a conta-
bilizar cerca de três mil terreiros apenas em Salvador, fenômeno percebido
em todo o território nacional. Essa capacidade de negociação, que marcou
a resistência negra na diáspora, teve na luta das comunidades-terreiros, um
modelo paradigmático.
Embora resistindo e impondo sua matriz religiosa, esses povos conti-
nuaram a ser alvos de práticas racistas, ao tempo que viam a possibilidade
de proteção jurídica de sua religiosidade ser refutada, sob o fundamento de
que qualquer demanda de combate ao racismo e legitimação das alterida-
des africanas significava uma subversão ao modelo de democracia racial.
Assim, uma nova articulação do racismo, que mantinha as religiões exclu-
ídas da gramática dos direitos fundamentais, foi criada intencionalmente,
gerando “uma dicotomia entre o que está consagrado nas leis e no discur-
so político genérico de conteúdo isonômico e a realidade profundamente
desigual das relações sócio raciais, permitindo a construção do mito da
harmonia racial” (VIDA, 1999 apud ARAÚJO, 2007, p. 38).

3 A CONTINUIDADE DA VIOLÊNCIA E
DISCRIMINAÇÃO AOS POVOS DE TERREIRO
O episódio do “Quebra de Xangô” continua ocorrendo, com outras
roupagens, mesmo pós CF, e de inúmeros instrumentos normativos1 que
garantem a proteção dos povos de terreiro, como o Estatuto da Igualdade

1 O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) em seu objetivo estratégico VI “respeito às


diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado” propõe como ação progra-
mática a instituição de mecanismos que assegurem o livre exercício das diversas práticas religiosas e
recomenda-se aos estados e ao Distrito Federal a criação de Conselhos para a diversidade religiosa e
espaços de debate e convivência ecumênica para fomentar o diálogo entre estudiosos e praticantes de
diferentes religiões. O PNDH-3 enumera também entre seus objetivos estratégicos a “igualdade e pro-
teção dos direitos das populações negras, historicamente afetadas pela discriminação e outras formas
de intolerância”, com ações programáticas no sentido de “elaborar programas de combate ao racismo
institucional e estrutural, implementando normas administrativas e legislação nacional e internacio-
nal”, racismo este que também afeta as religiões de matriz africana e povos de terreiro (BRASIL, 2009).

185
Andréa Letícia Carvalho Guimarães

Racial (BRASIL, 2010) em seus arts. 24 a 26. Os dados contidos no Relató-


rio sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (Rivir), para o perí-
odo 2011 – 2015, indicam que o grupo dos adeptos das religiões de matriz
africana é o mais vitimizado por casos de intolerância religiosa, incluindo
situações de conflitos de vizinhança e de racismo institucional. A pesquisa
realizada para a produção do Rivir considerou 965 casos, sendo que desses
apenas 17% constavam nas fontes do Poder Judiciário. Portanto, somente
162 processos foram encontrados em 61 tribunais examinados, contra 41%
localizados nas ouvidorias, representando um total de 394 denúncias nas
ouvidorias de 113 órgãos e 5 delegacias pesquisadas. Do total, 42% foram
encontrados na impressa, o que representam as 399 notícias em 65 veículos
de comunicação consultados (BRASIL, 2016).
O Rivir também evidencia somente 13 notícias sobre o assunto das
violências e intolerâncias religiosas, associando-as a casos de racismo, tais
como: “quanto mais se nega a existência de racismo, mais ele se propaga,
diz ministra”; “Prefeitura de Olinda é acusada de racismo institucional”;
“negros e religiões africanas são os mais discriminados, mostra Disque
100”; “mãe de santo é alvo de racismo”. Em reportagem de 19 de julho de
2015, encontrada na pesquisa, o tema fica evidente na fala do coordenador
de Segurança, Cidadania e Direitos Humanos, da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos, Alexandre Brasil, que afirma: “a intolerância religiosa
pode ser entendida como a extrapolação de uma intolerância maior exis-
tente no país, relacionada ao racismo, à pobreza e à desigualdade social”
(BRASIL, 2016, p. 47).
Apesar da ínfima quantidade de notícias, relacionando o racismo
às incidências de violências e intolerâncias religiosas. Ao traçar o perfil
das vítimas que aparecem nas denúncias recebidas nas ouvidorias, o Rivir
aponta que 47% delas se autodeclaram pardas e 17% pretas. Portanto, têm-
-se um percentual de 64% de pretos e pardos contra 34% que se autodecla-
ram brancos e 2% indígenas.
Acrescentando os dados do Disque 100, no período de 2011 a 2014,
das denúncias identificadas com a religião atacada, “35% são denúncias
de discriminação contra religiões de matriz africana” (EBC, 2015). Entre
as 345 vítimas que declararam a cor, 210 são pretas ou pardas. O número
representa 35,2% do total de vítimas e 60,8% do total de vítimas que de-

186
Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente

clararam a cor de pele (EBC, 2015), evidenciando que a população negra é


mais vitimada.
Ainda na pesquisa do Rivir, a partir de informações das ouvidorias,
a maior parte das vítimas também pertence a religiões de matriz africana
(SDH-PR, 2016), destacando-se que, em segundo lugar, encontram-se víti-
mas de religião evangélica e, em seguida, uma quantidade similar de víti-
mas católicas e espíritas. Nos dados relativos ao Disque 100, em 2015, as
denúncias de discriminação religiosa computaram um aumento de 69,13%
em relação ao ano anterior. Candomblecistas e umbandistas são os mais
recorrentes alvos dos ataques, segundo o Disque 100 (BDF, 2017).
Além desses dados, ocorre um movimento de criminalização dos
terreiros pelo uso dos atabaques, com a alegação de perturbação do sos-
sego e poluição sonora. O grande problema verificado é que em muitos
dos casos não há a medição dos decibéis para comprovação das acusações
e a abordagem policial e dos agentes públicos ocorre de forma violenta,
simplesmente interrompendo os cultos e apreendendo os atabaques. Além
disso, há imposição de multas altíssimas, não permitindo que as casas se
defendam, e a adequação dos cultos a isolamento acústico.
Em Santa Catarina, o Fórum das Religiões de Matriz Africana de
Florianópolis denunciou à Defensoria Pública da União (DPU) uma série
de ataques perpetrados pelo Estado contra as atividades religiosas e con-
tra os templos afro-brasileiros, como os terreiros, as casas de candomblé,
os batuques e os centros espíritas de umbanda, situados em Florianópolis
(BRASIL, 2017a). O Poder Público Municipal, negando os templos como
espaços de culto religioso, os enquadra como ‘’comércio em geral’’, cobran-
do o cumprimento de uma série de exigências, que acabam por impedir a
livre manifestação religiosa das casas de matriz africana. Utiliza-se a Lei
Complementar Municipal n. 003/1999 (SANTA CATARINA, 1999) para
inviabilizar a realização das cerimônias, sendo lançados autos de infração
em razão do barulho, bem como da utilização de velas e incensos.
Os órgãos municipais e a Fundação do Meio Ambiente, não rara-
mente amparados pela Polícia Militar do Estado de Santa Catarina, apli-
cam multas, penalidades e fazem cessar as atividades religiosas/culturais,
agredindo a comunidade afro-brasileira. Há diversos templos interditados,
impedidos de realizar as cerimônias religiosas/culturais.

187
Andréa Letícia Carvalho Guimarães

Em razão dessa situação, a DPU ingressou com uma ação civil pú-
blica contra a União, o Estado de Santa Catarina, o Município de Floria-
nópolis, a Fundação do Meio Ambiente (Fatma), a Fundação Municipal
de Meio Ambiente de Florianópolis (Floram) e o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) com o intuito de salvaguardar as
casas violadas em seus direitos humanos fundamentais, pois há uma sé-
rie de exigências absurdas (BRASIL, 2017a). Quanto ao barulho (poluição
sonora), por exemplo, o isolamento acústico é totalmente impossível, pois
o som dos atabaques comunica-se com as entidades religiosas, impossibi-
litando o “abafamento do som”. Em outras palavras, isolar acusticamente
as casas é acabar com o próprio culto religioso, como também com o ritual
que faz parte da cultura e identidade nacional.
A referida ação pede, igualmente, a declaração de inconstitucionali-
dade da Lei Complementar n. 479/2013, a qual, de forma quase que surreal,
impõe limitação de horário de funcionamento aos ‘’[...] locais destinados
a manifestação da cultura religiosa afro-brasileira” (LEIS MUNICIPAIS,
2013). Por óbvio que o funcionamento dos templos religiosos não pode ser
limitado pelo legislador. Nos templos, há diversas atividades que não en-
volvem festividade e batuque, ocorrendo, às vezes, por dias ininterruptos e
que, por óbvio, não podem se sujeitar à regra municipal.
A interferência do Poder Público, principalmente da Polícia Militar
do Estado que, muitas vezes, atua para fazer cessar as cerimónias religio-
sas, é verdadeiro desrespeito ao direito fundamental de liberdade de cren-
ça. Como mencionado, o incorreto enquadramento dos templos como ‘’co-
mércio em geral” não permite que os cultos usufruam da especial previsão
do art. 8º, inc. VII, da Lei Complementar Municipal n. 003/1999 (SANTA
CATARINA, 1999), o qual prevê o volume de até 65 dB. A Floram admite
que lavra as multas sem medição dos decibéis, uma vez que os terreiros não
têm uma regulamentação acústica específica (DESACATO, 2018).
Entretanto, tal realidade não é exclusiva do município de Floria-
nópolis. Outro caso de repercussão nacional, conhecido como “Ilé Axé de
Xangô”, ocorreu há 13 anos, em Santa Luzia, município localizado em Mi-
nas Gerais. Um casal de vizinhos denunciou o terreiro, alegando “pertur-
bação do sossego”. Os reclamantes reuniram 53 assinaturas de moradores
da região e conseguiram a abertura de um inquérito civil, instaurado pelo
Ministério Público (MP), em 2015. Desde então, iniciou-se uma discussão

188
Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente

judicial contra as atividades do terreiro. À época, o sacerdote do terreiro,


Ailton Costa da Silva, 54 anos, comprometeu-se a fazer uma série de ade-
quações no imóvel, a partir da assinatura de um Termo de Ajuste de Con-
duta (TAC) proposto pela promotora Raquel Fernanda Couy. Apesar disso,
enquanto tentava cumprir as exigências do MP, Ailton resolveu denunciar
a ação arbitrária da promotoria. Segundo seu depoimento, em 8 de julho de
2015, no mesmo dia em que recebeu a notificação sobre a denúncia, ainda
sem provas relativas aos incômodos sonoros de seu terreiro, foi convencido
a assinar um TAC sem que tivesse um esclarecimento mais detalhado das
obrigações que estava assumindo com tal termo.
Diante dessa situação, o sacerdote ingressou com reclamação para
garantir a autoridade da Resolução CNMP n. 23/2007 (BRASIL, 2007),
com pedido de suspensão cautelar de atos praticados pelos membros do
MP de Minas Gerais / 6ª Promotoria de Justiça da Comarca de Santa Lu-
zia, oficiantes no Inquérito Civil n. 0245.15.000031-4 (BRASIL, 2017b),
com fulcro nas seguintes razões de fato e de direito: (a) inquérito civil em
tramitação há dois anos e meio para tutelar direito individual e investigar
fato autorizado por lei estadual e municipal (ofensa ao art. 1º, caput, da
Resolução n. 23/2007); (b) buscas domiciliares e diligências investigatórias
sem instauração de procedimento preparatório ou inquérito civil (viola-
ção do art. 6º, § 8º, da Resolução n. 23/2007 e inobservância dos requisitos
do art. 6º, § 10º); (c) compromisso de ajustamento de conduta que proíbe
simples reuniões e cerimônias silenciosas (violação do art. 14 da Resolução
n. 23/2007); (d) compromisso de ajustamento com exigências contrárias
à Constituição Estadual, leis e normativas estaduais (afronta ao art. 14 da
Resolução n. 23/2007).
Diante do caso, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça de Defesa Direitos Humanos do Ministério Público de Minas Ge-
rais elaborou a Nota Técnica n. 01/2016 (MINAS GERAIS, 2016), para criar
orientação na atuação dos órgãos de execução quando envolver questão de
limites sonoros e o exercício da liberdade religiosa dos povos de terreiro.
No mesmo sentido, foi emitida a Nota Técnica n. 02/2016, pelo Ministério
Público do Estado da Bahia “[...] aportes teóricos que contribuem para a
atuação dos órgãos de execução em demandas envolvendo o conflito entre
os direitos à igual liberdade religiosa e ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado” (BAHIA, 2016, p. 1).

189
Andréa Letícia Carvalho Guimarães

Seguindo esse entendimento, o MP do Paraná publicou a Recomen-


dação n. 01/2018, nos termos do art. 27, inciso II, da Lei Federal n. 8.625/93,
com o propósito de orientar a Secretaria de Segurança Pública, a Admi-
nistração Penitenciária do Estado do Paraná, o Comando-Geral da Polícia
Militar do Estado do Paraná, o Comando do Batalhão de Polícia Ambien-
tal (Força Verde) e o Instituto Ambiental do Paraná, determinando que:
a) nas situações de constatação de perturbação do sossego
ou poluição sonora (que exigem efetiva configuração dos
requisitos legais necessários para sua cauterização) em cultos
religiosos de matriz africana, sem prejuízo das diligências
proporcionais de apuração e da remoção imediata do ilícito,
não procedam à apreensão dos seus instrumentos musicais
em razão da especial proteção destes como patrimônio
cultural, sendo, portanto, excepcionalmente inaplicável o
disposto no art. 25, caput e §5º, da Lei Federal n. 9.605/98,
nessas hipóteses;
b) nas mesmas hipóteses de perturbação do sossego ou
poluição sonora em cultos religiosos de matriz africana,
sem prejuízo das diligências proporcionais de apuração e da
remoção imediata do ilícito, não impeçam a continuidade da
cerimônia religiosa;
c) nas abordagens e fiscalizações nos templos das religiões
de matriz africana, procedam sempre de modo a conferir
tratamento digno e respeitoso ao local e aos adeptos, não
gerando qualquer espécie de constrangimento, ultraje ou
discriminação (PARANÁ, 2018, p. 9).

Assim sendo, observa-se uma movimentação institucional de al-


guns ministérios públicos e defensorias públicas no sentido de proteger
e salvaguardar os povos de terreiro que, passados mais de cem anos do
“Quebra de Xangô”, ainda são alvo do racismo religioso perverso que im-
pede a essas comunidades usufruírem dos seus direitos de forma autêntica
e integral.

4 CONCLUSÃO
Diante do contexto exposto, é imprescindível que os direitos dos
povos de terreiro sejam protegidos. A orientação proposta pelas notas téc-
nicas e recomendações são relevantes para que as abordagens policiais e dos
agentes públicos nos terreiros ocorra de forma respeitosa e em observân-

190
Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente

cia aos direitos humanos. As leis não podem ser aplicadas sem considerar
as especificidades dessas comunidades. Como afirma Pereira (2207), a CF
reconhece a plurietnicidade do Estado Brasileiro e, portanto, os terreiros
devem ser reconhecidos como espaços da diferença, locus étnico e cultural
da formação e manutenção da ancestralidade africana no Brasil, devendo
suas práticas tradicionais serem consideradas e ponderadas na aplicação de
normas restritivas de direitos.
Em razão disso, há de se incentivar o reconhecimento e o respeito
mútuo entre as diversas culturas que coexistem em nossa sociedade. O di-
reito à própria identidade e ao acesso aos modos de viver, de se expressar e
de se portar diante do mundo, de acordo com essa identidade, devem con-
siderados pelo Estado, incumbido de zelar pela preservação das minorias e
de sua identidade cultural.
De acordo com a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultu-
ral Imaterial (BRASIL, 2006), os instrumentos e as expressões, assim como
as práticas, os objetos e os lugares a estes associados, integram o patrimô-
nio imaterial, o que demanda uma ação do Estado não apenas para prote-
gê-los, mas também para promover sua valorização e sua transmissão. As
minorias étnicas e religiosas têm o direito à preservação de sua herança
cultural, mediante a proteção de cada um dos aspectos que integram sua
identidade e sua memória ancestral.
A partir dessa perspectiva cabe, portanto, ao Estado brasileiro o de-
ver de preservar o patrimônio imaterial, inclusive em face de interferên-
cias, eventualmente, desmedidas. Além disso, a liberdade religiosa é um
“direito à busca da felicidade” ou um “direito à autoestima no mais alto
ponto da consciência humana”. É importante considerar o teor da declara-
ção sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação
fundadas na religião ou nas convicções (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1981), para observar que toda pessoa tem o direito de manifestar
sua religião por meio dos cultos e do uso de objetos litúrgicos, sendo que
qualquer discriminação entre as pessoas, por motivo religioso, constitui
violação aos direitos humanos e às garantias fundamentais. Nesse sentido,
é fundamental o reconhecimento do direito de preservação dessas mani-
festações religiosas e culturais, a partir da continuidade de suas tradições e
de acordo com as visões de mundo, herdadas há séculos. É o que se deno-
mina de herança cultural.

191
Andréa Letícia Carvalho Guimarães

Nessa linha de entendimento, o Estado não deve analisar a questão


utilizando “lentes” de determinada cultura ou religião predominante, mas
sob a ótica da pluralidade e do respeito pela diversidade. Desse entendi-
mento encontra-se a premissa de que toda intervenção nesse patrimônio
cultural deve integrar, em seu processo de decisão, o sentimento de perten-
cimento que emana do grupo humano, o qual sofrerá as consequências em
caso de intromissão.
O Estado Democrático exige que normas e atos administrativos não
sejam movidos por ideologias e preferências religiosas, que distribuem be-
nesses para uns e criam dificuldades burocráticas para outros. Isso porque
não é raro verificar a existência de atos que, a pretexto de tutelar a “ordem
pública” ou a “paz pública”, inviabilizam a prática de direitos das minorias
ou as empurram para guetos e rincões mais afastados. Normas penais em
branco ou com conceitos jurídicos indeterminados são perigosos instru-
mentos; verdadeiros campos férteis para a arbitrariedade.
Justiça, equidade e eficiência exigem decisões administrativas que
guardem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, assegu-
rando que grupos minoritários não sejam impedidos de manifestar suas
crenças religiosas e de ter acesso à sua própria cultura, fazendo uso de seus
objetos litúrgicos. A imposição de um padrão de vida, a partir de limita-
ções exacerbadas, sufocam o exercício de direitos fundamentais inerentes
à dignidade da pessoa humana.
Com isso, não se pretende que práticas clássicas estejam ou sejam
isentas à lei, mas que os julgamentos não se fundamentem em parâmetros
cartesianos, a fim de que valores e legados culturais não corram o risco de
serem dizimados de nossa sociedade. O Poder Público, por exemplo, pode
impor restrições ao exercício de determinado direito, mas desde que isso
não conduza ao patamar de anulá-lo ou descaracterizá-lo. Assim, diante
do caso concreto, é necessária a análise mais ampla e acurada dos impac-
tos envolvendo os rituais religiosos, a fim de que se verifique se há, ou não,
afronta à liberdade de culto. Do contrário, o sistema de justiça continuará
a adotar posturas reticentes e tímidas diante de situações complexas, que
afetam diretamente as religiões de matriz africana e suas práticas. É ne-
cessário que o “rezado baixo de Xangô” assuma outros contornos, que os
sons das palmas sejam somados aos sons dos atabaques e que os povos de
terreiro tenham a real visibilidade dos seus direitos.

192
Os direitos dos povos de terreiros na encruzilhada: o uso do atabaque e o meio ambiente

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