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ISBN: 978-85-5544-201-8
Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos publicados na obra. Ne-
nhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia auto-
rização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido
pelo art. 184 do Código Penal.
Organizadores
REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
LUCAS MACHADO FAGUNDES
RODRIGO GOLDSCHMIDT
ESTADO,
POLÍTICA
E DIREITO
DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Volume VIII
EDITORA ÍTHALA
CURITIBA – 2020
APRESENTAÇÃO
Esta obra, que ora apresentamos, Estado, Política e Direito, faz parte de uma coletâ-
nea que chega ao seu oitavo volume e compreende o resultado das pesquisas desenvolvidas
no ano de 2019 por docentes e discentes integrantes dos grupos de pesquisa da Universi-
dade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), com destaque ao Núcleo de Estudos em Estado,
Política e Direito (Nuped/Unesc) – que completou, em 2020, 15 anos de existência. Também
com contribuições do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania (Nupec/Unesc)
e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (LADSSC/Unesc).
Os artigos desta coletânea estão em consonância e possuem alinhamento teórico
com as pesquisas realizadas pelos dois Programas de Pós-Graduação na área de Ciências
Sociais Aplicadas da Unesc. O primeiro e, mais antigo, é o Programa de Programa de Pós-
-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico (PPGDS/Unesc) – mestrado e doutorado,
cuja área de concentração é “desenvolvimento socioeconômico” e com linhas de pesquisa
em “trabalho e organizações” e “desenvolvimento e gestão social”. Já o Programa de Pós-
-Graduação em Direito (PPGD/Unesc), aprovado e recomendado pela Capes no ano de 2017,
possui como área de concentração “direitos humanos e sociedade” e com duas linhas de
pesquisa que dialogam diretamente com a temática desta obra, são elas “direitos humanos,
cidadania e novos direitos” e “Direito, Estado e Sociedade”.
Cabe destacar que esta edição traz a contribuição significativa de pesquisadores(as)
das seguintes instituições de ensino: Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas); do Programa de Pós-Gra-
duação em Dieito da Unochapecó; Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC); Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
de Santa Cruz do Sul (Unisc); e Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Vale do Itajaí (UFSC). A obra é constituída de 18 capítulos e foi organizada em três partes,
conforme os eixos teóricos centrais dos estudos apresentados.
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 5
tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado.
Nele as autoras analisam a conexão entre a divisão sexual do trabalho e o tempo de trabalho
das mulheres em uma perspectiva sistêmica, como forma de compreensão da dinâmica
social, a partir dos espaços privados.
O professor doutor Rodrigo Goldschmidt, docente permanente do PPGD/Unesc, e o
professor Cristiano de Souza Selig discutem a vulnerabilidade do trabalhador da relação de
trabalho, no capítulo intitulado: O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a
questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Ismael de Córdova, professor mestre e Gladys Lenuzia Kestering, bacharela em Ad-
ministração, abordam o tema do Financiamento da política de assistência social em tempos
de austeridade fiscal: uma análise da emenda constitucional n. 95 e seus reflexos no BPC.
A proposta dos autores perpassa um estudo audacioso sobre as possibilidades de redução
das ações do Estado brasileiro em virtude do regime fiscal imposto, por meio da Emenda
Constitucional (EC) n. 95.
O professor mestre pelo PPGD da Unesc, Lucas de Costa Alberton, e a bacharela
em Direito, Patricia Rodrigues Oenning, apresentam o capítulo com o título Perspectivas da
transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Re-
gime Geral de Previdência Social (RGPS), no qual debatem sobre a concessão de benefícios
previdenciários aos transexuais no RGPS, uma vez que no Direito Previdenciário não existe
norma clara a respeito desse tema.
Com o tema A desjudicialização dos conflitos familiares, a partir da mediação como
metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo, a professora doutora, Silvia
Ozelame Rigo Moschetta, e a bacharela em Direito, Bárbara Maria Eidt, analisam se a media-
ção familiar encampada como metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo
propicia a desjudicialização dos conflitos familiares. A pesquisa observa os conflitos fami-
liares atendidos pelo Serviço de Mediação Familiar Extrajudicial – SMF/Unochapecó, com o
foco em compreender se a cultura da sentença está cedendo espaço para a desjudicialização
no âmbito dos conflitos familiares, traduzindo-se em prestação da tutela almejada pelos
mediados e garantindo segurança jurídica.
O sexto e último capítulo da segunda parte, de autoria do Prof. Dr. Clovis Demarchi
e da acadêmica de Direito, Elaine Cristina Maieski, intitula-se Estatuto da pessoa com defi-
ciência e alterações legislativas: garantia da dignidade humana. O referido capítulo aborda o
Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) e as consequentes alterações na
legislação brasileira, em especial no Código Civil e se propõe a verificar as consequências
dessas alterações para a efetivação ou não da Dignidade Humana.
Finalmente, a terceira parte desta obra apresenta cinco capítulos delineados na área
de pesquisa em Estado e Políticas Públicas para a Criança e o Adolescente, encerrando o
10 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
eixo de trabalhos. O primeiro capítulo dessa terceira parte da obra propõe-se a analisar a
atuação dos poderes legislativo e judiciário, em relação ao suporte e garantia da efetivação
de direitos às crianças transexuais. Como elementos que balizam a referida análise dos
direitos às crianças e adolescentes transexuais, estão os direitos fundamentais garantidos a
eles, tais como liberdade, respeito e dignidade garantidos, por meio da Constituição Federal
de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. A referida pesquisa é de autoria
do Prof. Dr. em Direito, Ismael Francisco de Souza, docente do PPGD da Unesc, e do mes-
trando Pedro Henrique Cardoso Hilário, intitulada Transexualidade na infância: a omissão do
legislador brasileiro e a invisibilidade das crianças trans.
O Prof. Dr. em Direito, André Viana Custódio e a mestranda Fernanda Martins Ramos,
no segundo capítulo, desta última parte do livro, intitula-se O trabalho infantil doméstico no
Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adoles-
centes. Em seu texto abordam o trabalho infantil doméstico e analisam suas causas a partir
da teoria da proteção integral, discorrendo sobre o contexto do trabalho infantil doméstico,
analisam a proteção jurídica nacional e internacional contra o trabalho infantil e demonstram
as causas do trabalho infantil doméstico no Brasil.
Como terceiro capítulo, tem-se o texto que aborda a adoção internacional de crianças
brasileiras, por meio da atuação de organizações internacionais não governamentais, de
autoria da Prof. e doutoranda em Direito, Luciana Rocha Leme, e da Bacharel em Relações
Internacionais, Betani Hilgert. Convencionada no âmbito do direito internacional, a adoção
por estrangeiros é assunto de competência dos Estados, que podem executá-la a partir de
seu direito interno. Frente à ausência de harmonização dos procedimentos de adoção inter-
nacional, mesmo entre os Estados contratantes de convenções sobre o tema, a relação da
adoção ocorre com a participação de organizações internacionais não governamentais, que
trabalham de forma a viabilizar essa modalidade de adoção.
A mestranda do PPGD/Unesc, Gláucia Borges, apresenta o seu capítulo o tema Aco-
lhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade do servi-
ço. A pesquisa aborda o debate sobre o acolhimento de crianças e adolescentes afastados
do convívio familiar em serviços de família acolhedora e a função da sociedade civil nesse
contexto. A mestranda, a partir deste trabalho, objetiva demonstrar o protagonismo da so-
ciedade nos serviços de acolhimento familiar, visando exprimir o quanto o Estado necessita
desse auxílio, a fim de salvaguardar, entre outros, o Direito à Convivência Familiar e Comuni-
tária das crianças e adolescentes. Trata-se de uma pesquisa que verifica a disparidade entre
as responsabilidades da sociedade e do Estado, com relação às atribuições na garantia dos
direitos das crianças e adolescentes acolhidas.
Por fim, a mestranda em Direito do PPGDS/Unesc, Silvia Cardoso Rocha, apresenta
o último capítulo, da parte final desta renomada obra, com o título: Educação e sistema de
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 11
justiça: reflexões acerca das violências na infância. Nesse capítulo, a pesquisadora apresen-
ta uma reflexão sobre violências, infâncias e os movimentos presentes na elaboração das
políticas públicas para a temática. De maneira específica, a mestranda visa compreender, por
meio do Protocolo Apoia Online e seu fluxo dentro do Programa de Enfrentamento à Evasão
Escolar vinculado ao Ministério Público de Santa Catarina, como são construídas as aproxi-
mações entre Educação e o Sistema de Justiça.
A obra Estado, Política e Direito: direitos fundamentais, democracia e políticas pú-
blicas – Volume VIII certamente será de grande contribuição aos pesquisadores na área das
Ciências Jurídicas e correlatas, bem como aos operadores das diversas carreiras jurídicas.
Uma concretização do princípio da indissociabilidade e da tridimensionalidade do fazer uni-
versitário, à luz dos pressupostos freirianos e constitucionais.
Criciúma, 27 de abril de 2020.
PARTE I
ESTADO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA
CAPÍTULO I - DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL:
DE HOBBES A RAWLS.....................................................................................................16
Josué Mastrodi
PARTE II
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS SOCIAIS
CAPÍTULO VII - O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU:
UM OLHAR SOBRE AS POSSIBILIDADES DO COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA
NO MUNDO DO TRABALHO........................................................................................... 108
Isadora Kauana Lazaretti | Giovanni Olsson
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 13
PARTE III
ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE
CAPÍTULO XIV - TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA: A OMISSÃO DO LEGISLADOR
BRASILEIRO E A INVISIBILIDADE DAS CRIANÇAS TRANS............................................ 208
Ismael Francisco de Souza | Pedro Henrique Cardoso Hilário
JOSUÉ MASTRODI 1
Introdução
No âmbito do recém-criado programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), em especial nos estudos da disciplina
“Direito ao desenvolvimento nas ordens internacional e interna”, ficou evidente a necessi-
dade de retomar certos conceitos fundamentais da teoria do Estado e de todo o arcabouço
liberal que, a partir das concepções de pacto e de contrato social, têm estruturado a socie-
dade civil ocidental. Em que pese a pesquisa, em nosso programa de mestrado, se referir a
Direito e Desenvolvimento, sentimos necessidade de dar um passo atrás e consolidar alguns
fundamentos, que ora são apresentados na forma deste artigo.
A Teoria Geral do Estado, disciplina que passou a contar com certa autonomia desde
a publicação de obra homônima de Georg Jellinek (2000)2, tem por objeto de estudo os
pressupostos jurídicos da instituição e do desenvolvimento do Estado e, é claro, o conceito
e a dinâmica do que vem a ser (bem como do que deve ser) o Estado.
Não foi, certamente, a intenção de Jellinek separar sua disciplina, de modo absoluto,
do estudo de questões histórico-sociais que, em cada tempo e lugar, contribuíram para o
embasamento teórico da concepção ocidental do Estado.3 No sentido da teoria jurídica alemã
1
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUC-Campinas); no Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; e no Programa de
Pós-Graduação em Direito. E-mail: mastrodi@puc-campinas.edu.br.
2
Allgemeine Staatslehre. Heildelberg, 1900. Para preparo deste artigo, utilizou-se a versão espanhola de Fernando
de los Ríos, tradução desenvolvida a partir da segunda edição da obra de Jellinek, de 1911.
3
Contudo, isso acabou acontecendo, e acreditamos que tenha sido por conta do acatamento quase universal
da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Por força de tal teoria que isola a compreensão do Direito ao restrito
conceito de jurídico das demais ciências sociais, e que torna os conceitos de Direito e de Estado como indisso-
ciáveis entre si. Cf.: Kelsen (1998).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 17
do final do século XIX, Jellinek desenvolveu sua teoria buscando mais a conceituação teórica
dos poderes e deveres da Administração Pública que a limitação de tais poderes. O Estado,
assim, foi desenvolvido muito mais no plano do Direito Administrativo que no sentido fran-
cês ou norte-americano de limitação do Estado para o fim de preservar direitos e garantias
fundamentais (as chamadas liberdades públicas dos cidadãos).
Eis, portanto, a importância da teoria jurídica alemã para a categorização do que é
(ou do que deve ser) o Estado: em vez de desenvolver o Estado a partir de um espaço negati-
vo, conforme o modelo liberal, optou por bem descrever, conceituar e definir o Estado alemão
pelo preenchimento de um espaço positivo. Nesse aspecto, tal abordagem o aproxima de
Hobbes, o primeiro idealizador do Estado moderno, e o distancia de Locke (2003) ou mesmo
de Rousseau, autores muito mais interessados na liberdade dos indivíduos que nos deveres
decorrentes da associação sob a égide de um Estado.
Na França ou nos Estados Unidos, em que a matriz liberal foi marcante em todos
os ambientes sociais, o Estado foi sendo definido a partir dos espaços deixados em branco
pelas liberdades públicas. Não houve, naqueles dois modelos, a preocupação de definir o
que o Estado deveria ser ou fazer, ao contrário, importava determinar o que o Estado não
deveria ser e o que estava proibido de fazer. De igual modo, não houve por Jellinek qualquer
preocupação quanto à definição de quais seriam os direitos dos alemães perante o Estado,
desenhados de modo negativo, à sombra das prerrogativas estatais. O desenvolvimento de
uma Teoria dos Direitos Fundamentais só veio a ocorrer na Alemanha quatro ou cinco déca-
das mais tarde, após o término da Segunda Guerra Mundial.
Com o decorrer do tempo e de tantos conflitos de ordem dialética, esses dois pontos
de vista, de início tão antagônicos entre si, passam a ser complementares para pensar um
modelo de Estado adequado ao cumprimento de certas funções entendidas como essen-
ciais. Acreditamos que isso tudo seja verdadeiro ao menos no desenvolvimento, dentro da
cultura ocidental, do que se convencionou denominar Estado de Direito. Este, aliás, é um dos
recortes epistemológicos do presente trabalho.
Trataremos, enfim, da evolução das sociedades ocidentais a partir da correlata evo-
lução de seus modelos de Estado, desde o formulado por Hobbes até o imaginado por
Rawls. Ou seja, do Estado aplicado a sociedades de regime monárquico absolutista até o
Estado Democrático de Direito do liberalismo político, em que o pluralismo das decisões
democráticas confere ao Estado a necessidade de que um sentido seja sempre escolhido
em vez de determinado.
Os (talvez) principais comentadores da atualidade, David Boucher e Paul Kelly, ex-
põem que a teoria do contrato social, que nunca foi efetivamente deixada de lado na com-
preensão da sociedade ocidental, foi retomada com muito mais interesse pela comunidade
acadêmica após a publicação, por Rawls, de sua teoria da justiça. Concordamos com eles de
que não se pode considerar a existência de uma tradição monolítica, de que o contrato social
18 | JOSUÉ MASTRODI
seria algo único. Na verdade, o contrato social possui, dentro de várias tradições, caracterís-
ticas distintas e serve a finalidades específicas (BOUCHER; KELLY, 1994).
A conceituação hobbesiana ou jellinekiana de Estado ou de Administração Pública
é necessária para descrever os poderes e os deveres do ente estatal, assim como a defi-
nição do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais é igualmente necessária para
dar sentido a tais poderes e deveres. Se o Estado pode, efetivamente, ser compreendido
como uma entidade ou um instituto, segundo um aspecto eminentemente jurídico, de certa
forma isolado de valores apreendidos a partir de outras ciências sociais que não o Direito,
consideramos que tal compreensão somente seria válida se, em tal entendimento, estivesse
clara a noção da importância dos direitos fundamentais como o verdadeiro parâmetro para
a construção teórica do Estado.
A definição precisa de tais direitos fundamentais não é e nem pode ser jurídica. Não
obstante, por se tratar de direitos, a compreensão jurídica de Estado não pode deixar de
levá-los em conta, especialmente porque o estatuto de organização das funções do Estado
é o instrumento que confere juridicidade aos direitos fundamentais. Trata-se, sem dúvida
alguma, da Constituição.
Fosse o Estado um leviatã estático obediente à paralisia dos mandamentos consti-
tucionais relativos à organização sistemática de suas funções burocráticas, a Constituição
não seria mais que um mero estatuto. Não é difícil lembrar tempos, até mesmo na história
recente do Brasil, em que a Constituição não era efetivada, um estatuto sem força normativa.
A exemplo do modelo francês, as leis ordinárias eram válidas mesmo se dispostas em sen-
tido contrário a princípios constitucionais garantidores de direitos.
Por força do desenvolvimento da Teoria dos Direitos Fundamentais, tanto a Teoria
do Direito como a Teoria do Estado passaram a ser pautadas por bases diferentes daquelas
que conferiam à Constituição um caráter estatutário: as funções do Estado passam a ter um
sentido dinâmico, que envolve constante mudança: a proteção dos direitos fundamentais
dos cidadãos.
Se antes a Administração Pública podia ser lenta por conta do dever de cuidar da coi-
sa pública de modo minucioso, a velocidade aumenta para fazer frente às demandas sociais
cujas soluções passam a ser, obrigatoriamente, dever do Estado. A noção de coisa pública
(objeto da tutela estatal, geralmente definido em lei) é ampliada para abarcar a satisfação de
interesses sociais constitucionalmente assegurados.
Como já mencionado, os direitos fundamentais estão contidos na Constituição, mas
seu conteúdo não é passível de compreensão imediata. A descoberta da efetiva extensão de
um direito fundamental decorre da interpretação, em determinado tempo e lugar, do que a
sociedade como um todo considera que efetivamente deve ser aquele direito constitucional-
mente declarado como fundamental.
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 19
[...] os homens não tiram prazer algum da companhia dos outros – e, sim, até, um
enorme desprazer –, quando não existe um poder capaz de manter a todos em respei-
to, pois cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se
atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação,
naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva –o que, entre os que não
têm um poder comum capaz de submeter a todos, vai suficientemente longe para
levá-los a destruir-se uns aos outros–, por arrancar de seus contendores a atribuição
de maior valor, causando-lhes dano e, por exemplo, expandindo o dano aos demais.
Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder
comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condi-
ção a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os
homens. [...]
Tudo aquilo, portanto, que é válido para um tempo de guerra em que todo homem é
inimigo de todo homem, também é válido para o tempo durante o qual os homens
vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força
e própria invenção. Em tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é
incerto. Seguramente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das merca-
dorias que podem ser importadas pelo mar. Não há construções confortáveis, nem
instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força. Não há
conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras. Não
há sociedade. E o que é pior de tudo, há um constante temor e perigo de morte violen-
ta. A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. [...]
Pensa-se obviamente que nunca existiu tal tempo, nem uma condição de guerra como
esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente bem assim, no mundo inteiro (HOB-
BES, 2003, p. 97-99).
A liberdade que, para Hobbes, se trata de um direito natural dos homens4 é o que
permite a estes pactuarem a saída do Estado de Natureza e sua passagem para o Estado
Civil (para a convivência em sociedade). Os homens racionalmente concluiriam que essa
pactuação, em que pese a perda das liberdades, se dá em prol de outros bens considerados
mais valiosos, como a paz e a possibilidade de fazer planos ao longo de uma vida segura. O
contrato social é, assim, um pacto, cuja realização se dá pela necessidade de sobrevivência.
Dessa lei fundamental que ordena a todos os homens que procurem a paz deriva esta
segunda lei: que um homem concorde, conjuntamente com os outros, e na medida em que
tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito
a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade
que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Pois enquanto cada homem detiver
seu direito de fazer tudo quanto queira, a condição de guerra será constante para todos
(HOBBES, 2003).
Do pacto decorre, segundo Hobbes, a transferência de praticamente todas as liber-
dades à pessoa ou ao corpo daqueles a quem compete o exercício da soberania do Estado.
A única liberdade mantida pelos pactuantes, que ora ingressam na vida em sociedade, seria
4
O direito natural seria “um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão” (HOBBES, 2003, p. 101).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 21
aquela relativa a seu direito de defesa, “dado que é impossível admitir que através disso vise
a algum benefício próprio” (HOBBES, 2003, p. 103).5
Hobbes vem a definir seu Estado no capítulo XVII do Leviatã, uma nova pessoa sur-
gida “por intermédio de um pacto, isto é, artificialmente” (2003, p. 130), e é nessa parte
de sua obra que determina, até como consequência lógica de seus argumentos, que todo
o poder político dos indivíduos é, pelo pacto social, transferido para o Estado, especial e
principalmente para garantir a paz duradoura e evitar, assim, que se regresse ao anterior
(anterioridade que é lógica, e não histórica) Estado de Natureza:
Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes –com toda a reverência– daquele
deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.
Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe atribuído o uso
de gigantesco poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar
as vontades de todos eles, no domínio da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua
contra os inimigos estrangeiros.
É nele que consiste a essência do Estado, que pode ser assim definida: ‘Uma grande
multidão instituiu a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para
em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da
maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.’
5
Esse tema é tratado com mais detalhes no capítulo XXI, Sobre a Liberdade dos Súditos. Cf.: Hobbes (2003,
p. 163).
22 | JOSUÉ MASTRODI
Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que o possui poder abso-
luto. Todos os outros são súditos (HOBBES, 2003, p. 130 e 131).
[...] não podendo ser considerada uma forma de governo civil, uma vez que o objetivo
da sociedade civil consiste em evitar e contornar os inconvenientes do estado de
natureza, frutos inevitáveis do fato de poder cada um ser juiz e executor em causa
própria, estabelecendo-se para tal uma autoridade reconhecida para a qual todos os
membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano sofrido ou controvérsia
que possa surgir, e à qual todos os membros têm de se submeter. Onde quer que as
pessoas não disponham de semelhante autoridade a que recorrerem para arbitrar nas
disputas entre elas, estarão elas no estado de natureza; e é essa condição em que
se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio
(LOCKE, 2003, p. 71).
De fato, quer nas monarquias absolutas como em outros tipos de governo, os súditos
têm o direito de apelar para a lei e para os juízes, a fim de resolver as controvérsias
e restringir a violência que venha a ser praticada contra eles. [...] Entre um súdito e
outro, concederão, haverá medidas, leis e juízes que lhes garantam uma certa paz
e segurança; mas, quanto ao soberano, este deve ser absoluto e acima de todas as
circunstâncias, uma vez que têm poder para causar dano ou malefício, e têm razão
para praticá-los. Perguntar como poderia um súdito garantir-se contra o dano por
6
O termo government, da língua inglesa, poderia ter sido traduzido, cremos que mais adequadamente, nesse
contexto como Estado em vez de Governo (Segundo Tratado Civil sobre o Estado).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 23
parte daquele que tem condições de fazê-lo constitui, na prática, facção ou rebelião;
seria como se os homens que deixam o estado de natureza e entram em sociedade
concordassem em que todos eles, menos um, ficassem submissos à lei, mantendo-
-se aquele, contudo, toda a liberdade própria do estado de natureza, aumentada pelo
poder e tornada licenciosa pela impunidade (LOCKE, 2003, p. 73).
7
Sobre estamentos e o trocadilho com “pacto estamental”, cabe transcrever a seguinte passagem, datada do
início do século XI: “A ordem eclesiástica compõe apenas um só corpo, mas a sociedade inteira está dividida
em três ordens. A par do já citado corpo, a lei reconhece outras duas condições (sociais): o nobre e o servo
não se regem pela mesma lei. Os nobres são os guerreiros, os protetores das igrejas. Defendem todo o povo,
assim os grandes como os pequenos, além de se protegerem a si próprios. A outra classe é a dos servos. Esta
raça de desgraçados nada possui sem sofrimento. A todos, fornecem eles provisões e vestuário, sem os quais
os homens livres pouco valem. Assim, pois, a cidade de Deus, tida como uma, é na verdade tríplice. Uns rezam,
outros lutam e outros trabalham. As três ordens vivem juntas e não sofreriam uma separação. Os serviços de
cada uma dessa ordens tornam possíveis atividades das duas outras. E cada qual, por sua vez, presta apoio às
demais. Enquanto esta lei esteve em vigor, o mundo teve paz. Mas, agora, as leis se debilitam e toda paz desa-
parece. Mudam os costumes dos homens e muda também a divisão da sociedade” (ADÁLBERO, 1978, apud
COMPARATO, 1999, p. 59-60).
24 | JOSUÉ MASTRODI
material, nos referir também a John Rawls8, considerado o último dos contratualistas da
modernidade). Parece-nos, no entanto, que os pontos mais relevantes sobre o pacto social,
bem como as duas conclusões supraindicadas a partir da lógica interna do contrato social,
serão suficientes para os fins deste artigo.
2 Estado e sociedade
A vida em sociedade, assim, pressupõe a preservação de certas liberdades. A de-
finição dessas liberdades, ao longo dos últimos trezentos anos, tem sido objeto de estudo
de inúmeras disciplinas. No âmbito do Direito, da Filosofia do Direito e da Teoria do Estado,
tais liberdades foram entendidas, principalmente, a partir de um modelo (não por acaso, o
modelo liberal) que elevou a privacidade e o direito de não interferência do Estado na esfera
individual a um plano quase que sagrado: o espaço privado passou a ser respeitado tanto
pelos indivíduos quanto pelo Estado.
Tais conclusões decorreram, racionalmente, do discurso advindo de pensadores
cujo interesse era, justamente, impedir o avanço do poder do soberano (à época, identi-
ficado na pessoa de um monarca absolutista) sobre a vida e o patrimônio dos demais. Ao
fim e ao cabo, aqueles que detinham certa capacidade de indústria e comércio sentiam-se
prejudicados pela possibilidade de confisco, o que impedia sua capacidade de produção e
de crescimento.9
Se, no Estado antigo, seja na civitas romana ou na polis grega, a liberdade se referia
à liberdade do Estado e não a dos indivíduos que dele eram membros, no Estado moderno
ocorre verdadeira inversão de sentido: a liberdade passa a ser dos membros do Estado. O
Estado passa a contar com cada vez mais limitações a seu poder, antes absoluto, agora
cada vez mais contido. À guisa de exemplo, cabem duas transcrições da obra de Benjamin
Constant (1985), escrita no início do século XIX:
8
Segundo Grcic (2007), o próprio Rawls se considerava dentro da tradição de Locke, Rousseau e Kant, mas
preferia não se pautar em Hobbes, porquanto isso levantaria problemas (entretanto, ele nunca especificou que
problemas seriam esses). Esse comentador considera que alguns desses problemas seriam a consideração
hobbesiana de indivisibilidade da soberania, sendo impossível a tripartição de poderes porquanto deveria sem-
pre, ao final, haver um soberano a decidir qualquer conflito; e que não haveria injustiça no exercício da soberania,
já que a definição de justiça estaria no próprio pacto social (GRCIC, 2007).
9
Cabe aqui uma consideração, ao menos para nós, curiosa: o desenvolvimento e a afirmação histórica dos di-
reitos fundamentais e das restrições ao poder do soberano não se iniciaram por razões humanitárias tampouco
sobre a prática ou a teoria do direito penal, ao menos não exclusivamente: os direitos fundamentais têm sua
origem, também, no direito tributário... no taxation without representation, ou, em português, que não deve haver
tributação sem que os contribuintes consintam por meio de seus representantes. A esse respeito, confira as
cláusulas 12 e 14 da Magna Carta de 1215 (excertos desse documento encontram-se em COMPARATO, 1999,
p. 69).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 25
[...]
Pois bem, Senhores, não somos nem persas, submissos a um déspota, nem egípcios,
subjugados por sacerdotes, nem gauleses, que podem ser sacrificados por druidas,
nem enfim gregos ou romanos, cuja participação na autoridade social consolava da
privada. Somos modernos que queremos desfrutar, cada qual, de nossos direitos; de-
senvolver nossas faculdades como bem entendermos, sem prejudicar a ninguém; vi-
giar o desenvolvimento dessas faculdades nas crianças que a natureza confia à nossa
afeição, tão esclarecida quanto forte, não necessitando da autoridade a não ser para
obter dela os meios gerais de instrução que pode reunir; como os viajantes aceitam
dela os longos caminhos, sem serem dirigidos na estrada que desejam seguir. [...]
grifos nossos): “é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em
que criamos um Estado”10.
Especialmente na França pós-1789 e nos Estados Unidos pós-Independência, as
condições históricas, culturais e econômicas conferiram o substrato social necessário para
a afirmação (ou melhor, a declaração) de certos direitos subjetivos (ou de certas liberdades)
contra os quais o Estado (ou o soberano, num regime não democrático) não teria poder de
ingerência. Nesse sentido, os direitos que tais autores consideraram transferidos no momen-
to da instituição do Estado têm sido cada vez menos amplos.
Em que pesem as declarações históricas afirmarem certos direitos subjetivos, a
primeira daquelas duas decorrências lógicas da instituição do Estado por pacto social11 (que
todos são iguais) não tem sido efetivamente aplicada. Embora todos sejam iguais, e embora
o poder político emane do povo12, esse poder político não tem sido exercido em benefício
de todos.
Aliás, há um terceiro pressuposto que, a exemplo dos dois anteriores, decorre logi-
camente do sistema político, e que, também a exemplo daqueles, tem sua aplicação prática
reiteradamente ignorada: (3) os atos estatais devem ser revertidos, democraticamente, em
favor de todos.13
10
A citação completa é: “Quanto à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, das coisas que, embora ordenadas
pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direi-
tos que transferimos no momento em que criamos um Estado. Em outras palavras, qual a liberdade que a nós
mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações sem exceção do homem ou assembleia de quem fazemos
nosso soberano”. Os grifos não estão no original.
11
Trata-se do primeiro pressuposto, indicado ao final item 2 deste artigo, pelo qual todos são iguais, pois é por
meio do reconhecimento da igualdade que se permite a convivência em vez da subjugação.
12
Segundo pressuposto, pelo qual todo poder estatal emana do povo.
13
Para nos concentrarmos especificamente nesse tema, deixaremos de considerar quaisquer regimes políticos
que não os democráticos para eleição dos representantes políticos e dos administradores públicos.
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 27
poder judiciário e não mais pelo poder legislativo. Desse modo, os atos dos representantes
políticos passam a ser julgados com base na relação de adequação entre tais atos e os
direitos fundamentais dos representados.
14
Sobre a distinção entre direitos de defesa e direitos a prestações, cf.: Mastrodi (2008).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 29
Com a publicação dessa nova obra, Rawls desconsiderou praticamente toda a ter-
ceira parte da Teoria da Justiça (2000a), substituída em suas funções pelo novo livro. Não
só isso, Rawls relativizou a abrangência da Teoria da Justiça e deixou de considerá-la como
algo universal, e passou a tratá-la como um discurso de construção de realidade conforme
a matriz de pensamento da modernidade. Assim, sua Justiça como Equidade passa a ser
apresentada como uma das formas do liberalismo político (2000a). A Teoria da Justiça, an-
tes de caráter eminentemente moral, passa a ter uma concepção mais voltada à concepção
de uma teoria política de justiça (ressaltando que uma teoria política sempre será uma teoria
moral, mas que sem dúvida esse é um novo aspecto da justiça como equidade). Desse
modo, a teoria de Rawls passa a ser aplicada não só conforme a razão pura, mas também
– e principalmente – segundo os critérios da razão prática. Houve uma leve reformulação
dos princípios de justiça (2000a), mas que, a nosso ver, não modificou o sentido de garantir
prioridade à liberdade e de conferir-lhe a mesma concepção igualitária de justiça. Tampouco
os pressupostos dos princípios da justiça mudaram. Eles servem para organizar a estrutura
básica de sociedades democráticas bem-ordenadas, sociedades que devem ser entendidas
como um sistema equitativo de cooperação.
Rawls desenvolveu a noção de overlapping consensus (consenso sobreposto), i.e.,
a exploração racional de alternativas plausíveis visando a criar a possibilidade de consenso.
Como obrigar ao cumprimento da Constituição, se todos podem divergir numa sociedade
pluralista? Não é possível determinar a obediência apenas pelo critério da maioria; dessa
problemática surge a concepção do consenso sobreposto, que é o acordo baseado não em
doutrinas abrangentes, mas num acordo político pelo qual, a partir do mínimo aceitável pela
sociedade, descobrem-se racionalmente outras posições a partir desse mínimo aceitável.
Por meio do desdobramento lógico desse mínimo, chega-se a resultados mais abrangentes:
Para se chegar a uma razão compartilhada, a concepção de justiça deve ser, tan-
to quanto possível, independente das doutrinas filosóficas e religiosas conflitantes e
opostas que os cidadãos professam. Ao formular tal concepção, o liberalismo político
aplica o princípio da tolerância à filosofia… Um objetivo, como disse, é especificar
a esfera política e sua concepção de justiça de tal forma que as instituições possam
conquistar o apoio de um consenso sobreposto. Nesse caso, os próprios cidadãos,
no exercício de suas liberdades de pensamento e consciência, e considerando suas
doutrinas abrangentes, vêem (sic) a concepção política como derivada de –ou con-
gruente com– outros valores seus, ou pelo menos não em conflito com eles (RAWLS,
2000a, p. 52 e 53).15
15
Ainda sobre overlapping consensus, cf. Rawls (2000a, p. 83, 190 e ss, 212 e 215).
30 | JOSUÉ MASTRODI
vamente racional, agora se torna um artifício de representação utilizado pelas partes para
almejar um acordo não só racional, mas também razoável: “O razoável, ou a capacidade
das pessoas de ter um senso de justiça, que aqui é sua capacidade de respeitar termos
equitativos de cooperação social, é representado pelas várias restrições às quais as partes
estão sujeitas na posição original, e pelas condições impostas à sua deliberação” (RAWLS,
2000a, p. 360).
A Teoria do Contrato Social, antes a-histórica e baseada em hipóteses lógicas, se
torna, no âmbito do Liberalismo Político de Rawls, a representação racional do jogo polí-
tico. O termo representação, aqui, não deve ser confundido com o sentido de democracia
representativa, embora ambos sejam, em verdade, complementares. Seria por meio desse
artifício de representação racional que os representantes políticos travariam suas discussões
até a obtenção do consenso.
Embora racional, o consenso sobreposto não é atingido por meio de raciocínio ló-
gico-formal no qual o resultado seria sempre o mesmo. Como o próprio Rawls (2000b)
concluíra em sua Uma Teoria da Justiça, ele deixa de ser visto como verdade para se tornar
apenas uma entre tantas possibilidades, tudo dependendo da força dos argumentos e da
relação destes com a promoção aos direitos fundamentais.
De igual modo, se tais procedimentos são úteis para renovar, a cada nova discussão,
a posição original no sentido de reacomodar as forças sociais em constante correlação
dialética, são também úteis para reconhecer e declarar quais são os valores que, em cada
tempo e lugar, dão conteúdo normativo aos direitos fundamentais. A partir desse reconheci-
mento é que Estado e sociedade são organizados.
5 Constituição material
Rawls, assim, se apresenta como o último contratualista da modernidade, a nosso
ver, o único que efetivamente correlaciona o conceito de pacto social com o de Constituição.
Julgamos que acertadamente, haja vista que ambos, seja o pacto social na Teoria do Estado,
seja a Constituição na Teoria Política ou mesmo no Direito, são marcos institucionais, o início
lógico e jurídico do Estado Moderno.
Evoluindo de sua posição original para a ideia de consenso sobreposto, Rawls vai
além: a partir de sua consideração segundo a qual o consenso se renova constantemente,
de modo dinâmico, para fundamentar o atual estágio em que a sociedade se encontra, Rawls
permite a correlação de sua posição original com a constituição material, conceito segundo
o qual a consciência jurídica de um povo se altera ao longo do tempo conforme os valores
sociais captados da sociedade.
A constante análise das condições sociais é o que, a nosso ver, permite verificar se
as atividades estatais são realizadas em consonância com o que os mandantes do poder
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 31
político esperam delas. Nesse sentido, a definição do conteúdo dos direitos fundamentais
se torna um modo racional, por artifício de representação, de restabelecer a democracia
e a igualdade havida na instituição do Estado, igualdade seja política para a instituição do
primeiro consenso, seja jurídica para satisfação de seus direitos fundamentais. Aliás, é jus-
tamente a compreensão de constituição material que permite ao Poder Judiciário, no sistema
de checks and ballances, a correção de funções dos outros dois poderes, quando estes,
democraticamente eleitos, deixam de realizar suas funções segundo os pressupostos pelos
quais seu poder deriva do corpo social e que em nome deste e para satisfação dos interesses
deste é que devem exercer tal poder político.
Conclusão
Parece-nos, assim, no âmbito do liberalismo político, que o pacto social, objeto da
teoria contratualista de formação do Estado, pode ser mais propriamente compreendido se
representado pela Constituição. Mais ainda, se representado pela constituição material, o que
permite desenvolver uma dinâmica mais adequada para conformar as funções do Estado
à prática do que realmente interessa ser realizado: promover e tutelar os direitos funda-
mentais constantemente descobertos e declarados, no âmbito da constituição material, ora
pela sociedade pluralista, ora pelos representantes políticos, ora pelo processo de jurisdição
constitucional.
Nesse interminável retorno à posição inicial, em que a cada retorno uma nova con-
clusão é obtida por conta da mudança do substrato histórico e valorativo, a Constituição e os
direitos dela decorrentes evoluem no mesmo compasso de desenvolvimento da sociedade e
do Estado democrático de Direito. Acreditamos que a correlação entre Direito e democracia
sempre estará presente, mitigando o déficit de legitimidade, se as premissas de igualdade
não forem esquecidas em cada check-list na renovação do pacto social/constituição ma-
terial, mantendo que: (1) todos são iguais (caso contrário, não poderiam pactuar entre si);
(2) todo poder estatal emana, democraticamente, do povo; e (3) os atos estatais devem ser
revertidos, democraticamente, em favor de todos.
Referências
BOUCHER, David; KELLY, Paul. The social contract and its critics: an overview. In: BOUCHER, David;
KELLY, Paul (ed.). The Social Contract From Hobbes to Rawls. Routledge: Londres e Nova York,
p. 12-34, 1994.
COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.
CONSTANT, Henri-Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos. Filosofia Política
2. Porto Alegre: L&PM Editores, UNICAMP/UFGRS, p. 9-25, 1985.
32 | JOSUÉ MASTRODI
GRCIC, Joseph. Hobbes and Rawls on Political Power. Ethics & Politics, v. 9, n. 2, p. 371-392, 2007.
HOBBES, Thomas. Leviatã: ou Matéria, forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de
Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003.
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Tradução de Fernando de Los Ríos. FCE: Cidade do
México, 2000.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
LOCKE, John. Segundo Tratado Civil sobre o Governo: Ensaio Relativo à Verdadeira Origem, Extensão
e Objetivo do Governo Civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003.
MASTRODI, Josué. Direitos Sociais Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
RAWLS, John. O Liberalismo Político. 2. ed. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática,
2000a.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2000b.
SAMPAIO, José Adercio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2002.
CAPÍTULO II
DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E
PARTICIPAÇÃO: ANÁLISE DO ORÇAMENTO
PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE
Introdução
Democracia é o regime político em que a soberania é exercida pelo povo. A palavra
democracia tem origem no grego demokratía que é composta por demos (que significa
povo) e kratos (que significa poder). Nesse sistema político, o poder é exercido pelo povo por
meio do sufrágio universal. É um regime de governo em que todas as importantes decisões
políticas estão com o povo, que elege seus representantes por meio do voto. É um regime de
governo que pode existir no sistema presidencialista, no qual o presidente é o maior repre-
sentante do povo, ou no sistema parlamentarista, em que existe o presidente eleito pelo povo
e é o primeiro ministro quem toma as principais decisões políticas.
Democracia é um regime de governo que pode existir também, no sistema republi-
cano, ou no sistema monárquico, em que há a indicação do primeiro ministro que realmente
1
Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD-Unesc). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Formada em
Ciências Econômicas pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e em Direito pela Universidade do Sul
de Santa Catarina (Unisul). Pós-graduanda em Direito do Trabalho pela Unesc. Pós-graduada em Direito Consti-
tucional pela Universidade Damásio de Jesus. Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Urubici/SC. E-mail:
bethkonder@yahoo.com.
2
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD-Unesc). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Especialista em
Direito Processual Civil pelo LFG. Especialista em Direito Público pela FURB. Especialista em Prática Jurídica
pela Universidade Regional de Blumenau (Furb). Especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade
Anhanguera (Uniderp). Tabelião Titular no Tabelionato de Notas e Protesto de Títulos da Comarca de Urubici/SC.
E-mail: guilhermewensing@yahoo.com.br.
34 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING
O presente artigo analisará esse novo olhar para Democracia com a diversidade de
atitudes democráticas, resultado do fenômeno chamado demodiversidade. Para tanto, num
primeiro momento será apresentado o conceito clássico de Democracia. Em seguida, pre-
tende-se estudar a democracia representativa. Por fim, buscar-se-á conceituar democracia
participativa e verificar o exemplo adotado no município de Porto Alegre.
1 Democracia
De acordo com o grau de respeito à vontade do povo nas decisões estatais, os
regimes políticos podem ser classificados como democráticos e não democráticos. Demo-
cracia, palavra de origem grega que significa governo do povo, é o regime político em que
todo poder emana da vontade popular. Na definição clássica é o governo do povo, pelo povo
e para o povo.
O regime democrático pode ser exercido de forma direta, por representantes, com-
binando ambos os critérios. Na democracia direta as decisões são tomadas pelo próprio
povo em assembleias, na antigas cidades gregas os cidadãos julgavam e tomavam decisões
políticas importantes. Em alguns cantões suíços esse sistema de democracia direta ainda
sobrevive. Na democracia representativa ou indireta as decisões são tomadas por represen-
tantes livremente escolhidos pelo povo. Na democracia semidireta combinam-se ambas as
formas de democracia, é a democracia representativa, com alguns instrumentos de partici-
pação direta do povo na formação da vontade nacional.
O regime político adotado pela Constituição brasileira de 1988 é o de uma demo-
cracia semidireta e isso pode ser notado no art. 1º, parágrafo único: “Todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição”.
A Carta Magna apresenta como formas de participação direta o plebiscito, o refe-
rendo e a iniciativa popular. Em regimes não democráticos a característica comum é a não
prevalência da vontade popular na formação do governo. Vários são os conceitos de demo-
cracia encontrados na doutrina. O presente trabalho busca o estudo de uma visão ampla de
participação popular. Vejamos alguns conceitos de renomados doutrinadores.
Charles Tilly define: “democracia como um bem em si mesmo, na medida em que
em alguma extensão ela oferece à população de determinado regime o poder de determinar
seu próprio destino” (TILLY, 2013, p. 43). Já Norberto Bobbio defende que: “a democracia se
constitui de um conjunto de regras para a formação de maiorias, entre as quais valeria a pena
destacar o peso igual de votos e a ausência de distinções econômicas, sociais, religiosas e
étnicas na constituição do eleitorado” (BOBBIO, 1986, p. 50).
Ainda na visão de Bobbio:
36 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING
[...] por democracia entende-se uma das várias formas de governo, em particular
aquelas em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mas de todos,
ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a
monarquia e oligarquia (BOBBIO, 1988, p. 52).
A Constituição de 1988 abriu espaço, por meio da legislação específica, para prá-
ticas participativas nas áreas de políticas públicas, em particular na saúde, na assistência
social, nas políticas urbanas e no meio ambiente. O próprio processo constituinte se tornou
a origem de um conjunto de instituições participativas que foram normatizadas nos anos
1990, tais como os conselhos de política e conselhos tutelares ou as formas de participação
em nível local.
As instituições que realmente influenciaram as políticas públicas no Brasil demo-
crático com participação do povo foram os conselhos de políticas e os orçamentos parti-
cipativos. Os conselhos de política são resultado das legislações, específicas ou infracons-
titucionais, que regularizam os artigos da constituição de 1988 sobre saúde, assistência
social, temas a respeito de crianças e adolescentes e políticas urbanas. Cada uma dessas
legislações estabeleceu a participação de maneira diferente, mas a partir dos anos 1990
todas essas formas de participação ficaram conhecidas como conselhos.
Os primeiros conselhos da época republicana foram: Patrimônio histórico (1937),
Conselho Nacional de Pesquisa, cuja sigla é CNPq (1950). Já haviam conselhos nos perío-
dos colonial e imperial. Em 1981 foi criado o Conselho Nacional do Meio Ambiente (1981).
Boaventura de Souza Santos (2002) entende que podemos definir conselhos como
instituições híbridas nas quais têm participação atores do executivo e atores da sociedade
civil relacionados com a área temática na qual o conselho atua. O formato institucional dos
conselhos em todas as áreas mencionadas é definido por uma legislação local, ainda que
os parâmetros para a elaboração dessa legislação sejam dados pela legislação federal. Os
conselhos podem ter um funcionamento exitoso em algumas cidades ou no caso do papel
desempenhado por alguns conselhos nacionais, como os da saúde e assistência social.
Nesse momento, vale citar o Orçamento Participativo (OP), que é uma forma de
balancear a articulação entre representação e participação ampla da população por meio da
cessão da soberania por aqueles que a detêm enquanto resultado de um processo eleitoral.
Sua criação não é decorrência direta da Constituição de 1988. Nota-se que essa forma de
democracia com a combinação entre representação e participação aconteceu em Porto Ale-
gre. A principal experiência de OP até o momento ocorreu a partir de 1990, e foi no estado do
Rio Grande do Sul que até 2004 estavam concentrados os casos mais fortes de OP.
proteção de direitos humanos àqueles excluídos socialmente. Nesse sentido nasce um es-
paço para a participação democrática. Essas iniciativas são pouco conhecidas, entretanto,
devem ser discutidas.
O orçamento participativo é um exemplo de ação democrática que se vale de uma
iniciativa urbana, visando a redistribuição dos recursos da cidade a favor dos grupos sociais
mais vulneráveis, que tem seus direitos humanos desrespeitados. O Orçamento Participativo
de Porto Alegre foi adotado em 1989.
O Brasil é uma sociedade com uma longa tradição de política autoritária. A predomi-
nância de um modelo de dominação oligárquico e patrimonialista resultou em uma formação
de Estado, um sistema político e uma cultura caraterizados pela marginalização política e so-
cial de algumas populações. Nesse sentido, a ideologia liberal, fingindo a existência de uma
democracia, fez nascer um país com vários olhares para os anseios da sociedade deixando
de lado os direitos humanos daqueles que não pertencem ao grupo hegemônico.
Essa desigualdade aumentou com a crise do Estado e problemas na economia e
com elas a população encontrou espaço para participação popular em governos municipais.
Tal participação foi possível em razão das forças políticas municipais estarem intimamente
relacionadas com a sociedade, elas vivenciam a realidade de fato.
Nesse contexto, surgem ações de participação popular no governo municipal, e a
experiência vivida em Porto Alegre foi muito bem-sucedida. É uma gestão eficaz e extrema-
mente democrática dos recursos urbanos. Foi escolhida pelas Nações Unidas como uma
das quarenta ações urbanas de todo o mundo, para ser apresentada na Conferência Mundial
sobre assentamentos humanos.
Em 1989, Porto Alegre estabeleceu uma nova modalidade de administração muni-
cipal que visava garantir a participação popular na preparação e execução do orçamento
municipal, e, portanto, na distribuição dos recursos e na definição das prioridades de inves-
timento. Porto Alegre é uma cidade com tradição democrática, uma sociedade civil forte e
organizada.
O orçamento de um município tem extrema importância no contrato político. Ao
definir os fundos públicos, mediante a fixação de impostos e outros meios, o orçamento
torna-se o mecanismo central de controle sobre o Estado. As decisões orçamentárias são
importantíssimas, entretanto, em uma sociedade comandada por uma visão patrimonialista
o orçamento não consegue expressar essa relação de contrato político.
O orçamento participativo é uma forma de administração pública que procura romper
com a tradição patrimonialista recorrendo à participação direta da população em diferentes
fases da preparação até a implementação orçamentária, com uma preocupação pela defini-
ção de prioridades para a distribuição dos recursos de investimento.
42 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING
3 Demodiversidade
Por demodiversidade Boaventura de Souza Santos (2002) entende a coexistência pa-
cífica ou conflituosa de diferentes modelos e práticas democráticas. Nos anos 1960 parecia
existir apenas um modelo de democracia e a existência de um modelo único significa a perda
da demodiversidade. A Democracia tem um valor intrínseco e não pode ser considerado
mera utilidade instrumental de voto, faz-se necessária a ampliação do cânone democráti-
co. Para tanto o cidadão deverá transitar livremente entre as democracias participativa e
representativa. Para o exercício democrático real, devemos considerar que a complementa-
ridade dos dois modelos resulta em articulações sociais que fortalecem práticas locais por
se transformarem em elos de redes e movimentos mais amplos e com maior capacidade
transformadora.
DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO | 43
Esse modelo de articulações sociais pode ser visto no modelo participativo de Porto
Alegre. Naquele momento restou clara a demodiversidade, pois o cidadão votou, escolheu
seus representantes, os representantes elencaram setores que seriam abarcados por polí-
ticas públicas e a população diretamente atingida definiu suas prioridades para que estas
fossem colocadas na agenda do governo. O resultado de toda essa interação não poderia
ser diferente senão um cidadão satisfeito com o alcance de seus anseios e um representante
certo de estar trabalhando em prol de seus eleitores.
É necessário pontuarmos que essa ampliação e aprofundamento da democracia
depende do interesse de envolvimento de cada população. O exercício conjunto das demo-
cracias participativa e representativa deverá ser perseguido. A experiência do orçamento par-
ticipativo mostra possível sua coexistência e complementariedade. Essa coexistência implica
uma convivência das diferentes formas de procedimento: uma democracia representativa em
nível nacional, em que todos votam e escolhem seus representantes juntos, e concomitante-
mente acontece a democracia participativa, em nível local com ações diárias.
Por fim, restando demonstrado a importância da coexistência da participação e da
representação, essas novas democracias devem se transformar em movimentos sociais
para o alcance de direitos.
Conclusão
Apresentado o conceito de democracia representativa e participativa verifica-se que
o Orçamento Participativo de Porto Alegre resultou em ações que atingiram direitos da popu-
lação até então deixados à margem. Os processos estão cada vez mais intensos aumentando
a exclusão social de grande parcela da população. Há cada vez mais a marginalização de
pessoas que têm seus direitos violados. Essas pessoas não vislumbravam possibilidades
para serem ouvidas e com o surgimento dos movimentos sociais populares abriu-se espaço
para democracia participativa.
No município de Porto Alegre, uma sociedade organizada adotou uma estrutura e um
processo de participação comunitária baseado no princípio de que todos os cidadãos têm o
direito de participar das decisões que os atingem. Assim, surge o Orçamento Participativo,
uma estrutura em que os recursos de investimento são distribuídos de acordo com métodos
objetivos em que se verificam as demandas das comunidades locais.
Finalizado cada ano desse processo, pode-se notar o sucesso, por exemplo, de
ações efetivas para solucionar o problema da saúde no bairro de Humaitá, até então esqueci-
da. Com isso a conclusão a que se chega é de que a efetividade dos direitos está diretamen-
te relacionada com as práticas de democracia participativa e representativa, ou seja, com
o exercício da demodiversidade. Essa diversidade democrática fez com que o Orçamento
44 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING
Participativo de Porto Alegre tenha sido capaz de definir um plano estratégico eficaz, com
critérios objetivos que conseguiram alcançar as demandas da população carente.
Por fim, constata-se que é preciso um novo olhar para democracia, razão pela qual
se invoca a importância da demodiversidade. A partir das contribuições de teóricos como
David Sánchez Rubio (2014) e Boaventura de Souza Santos (2002), nota-se a necessidade
de se criar ações sociais. É preciso fomentar uma nova racionalidade, mais atenta às reais
necessidades humanas e aberta à atuação dos movimentos populares.
Por isso, a importância de uma perspectiva democrática plural que permita o acesso
aos meios e instrumentos indispensáveis à construção das condições materiais e imateriais
necessárias à vida deve ser considerada.
Referências
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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986.
HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova: Revista de Cultura e Políti-
ca, São Paulo, n. 36, p. 39-53, 1995.
RUBIO, David Sánchez. Encantos e desencantos dos direitos humanos: de emancipações, libertações
e dominações. Tradução Ivone Fernandes Morcilho Lixa, Helena Henkin. Porto Alegre: Livraria do Ad-
vogado, 2014.
SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS,
Boaventura de Souza (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova: Revista de Cultura e
Política, São Paulo, n. 67, p. 139-190, 2006.
CAPÍTULO III
Introdução
Segundo Benjamin (2016), a história é um anjo de asas abertas que vê de cima as
ruínas da civilização e nada pode fazer senão observá-la, pois suas asas estão abertas e
um vento inexorável chamado progresso o impele à frente permanentemente. Esse exemplo
benjaminiano constitui o cerne da crítica a noção de progresso e história, como se o devir
histórico necessariamente possuísse um valor positivo capaz de hierarquizar as culturas e
os tempos.
Somando-se as contribuições de Benjamin, Foucault resgata Nietzsche ao propor
uma análise não linear da história, não necessariamente casuísticas ou com origens re-
montáveis a um ponto zero, mas sim, que assume o devir histórico como uma sucessão
de rupturas e continuidades, dando densidade à história e substitui a origem pela invenção
(FOUCAULT, 2015).
1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESC, membro do Grupo Andradiano de
Criminologia Crítica. E-mail: Fritz.loewenthal@gmail.com.
2
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESC, membro do Grupo Andradiano de Criminologia
Crítica e do Grupo de Estudos Avançados em Economia Política da Pena vinculado ao Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais. E-mail: alexdarosa@hotmail.com.br.
3
Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo-Sul Catarinense
(PPGD-UNESC), Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor de Crimi-
nologia (UNESC), coordenador do Grupo Criminologia Critica Latino-americana (UNESC), e co-líder do Grupo
Pensamento Jurídico Critico Latino-Americano (UNESC), membro da rede de pesquisa Grupo Brasileiro de Cri-
minologia Critica; desenvolve pesquisas e projetos tanto em nível de graduação quanto pós-graduação acerca
da questão criminal com foco na realidade latino-americana transitando por áreas como Direitos Humanos na
interface com a questão Criminal. E-mail: jacksonsilvaleal@gmail.com.
46 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL
Trabalhando sob esse prisma, a presente pesquisa versará sobre a democracia libe-
ral representativa contemporânea e sua máscara de paz sobre o rosto bélico. Não remontar
sua origem, mas entendê-la enquanto invenção que elide a guerra externa própria à consti-
tuição dos Estados numa guerra interna nomeada de democracia. Não obstante os conflitos
internos protagonizados pela atividade policial em decorrência dos conflitos com o crime, a
noção de guerra interna será aqui abordada a partir da democracia e o seu sistema repre-
sentativo enquanto método de conflito, dominação e disputa, apenas com outra roupagem.
Para isso, será feita uma análise dos resultados das eleições para câmara federal dos
deputados em três eixos: gênero, raça e classe, com fito de demonstrar que a desigualdade
não é acaso, mas sim disputa, guerra, luta dentro da sociedade entre setores e grupos so-
ciais que dão continuidade pela democracia e internalizam a guerra histórica.
fim, vale refletir por meio de Foucault se não se trata do encobrimento da dominação e da
guerra por meio de uma suposta ordem e paz inscrita em um discurso jurídico legitimador
que sustenta uma democracia representativa, na qual a maioria dos cidadãos, enquanto
classe, raça e gênero, não se encontra ocupando espaço mesmo dentro dessa concepção
limitada da cidadania.
A apresentação de dados relativos a última eleição que compôs a Câmara dos De-
putados servirá como parâmetro para verificar as desigualdades referentes a esses três
pontos. A relação (des)proporcional entre o número de mulheres e homens, brancos(as) e
negros(as), assim como a renda dos deputados face ao salário mínimo, busca demonstrar
essa tríplice sustentação.
Esses três elementos, longe de serem as únicas formas de dominação e opressão,
funcionam enquanto mecanismos que articulam circuitos maiores e colocam em funciona-
mento práticas e discursos, a ponto de constituírem grupos que, de maneira mais ou menos
insidiosa, investem sobre as instituições no sentido de tomá-la desse espaço privilegiado,
continuando a reproduzir desigualdades.
Como primeiro ponto, tem-se o elemento (1) raça. Considerando as contribuições
de Quijano naquilo que constrói enquanto colonialidade do poder, sobre como a imposição
violenta de uma ideia de raça instrumentalizou a formação dos Estados-nações, sobre como
a divisão racializada do trabalho – a própria criação do conceito de raça – permitiu não só
discurso, mas uma prática real de dominação de corpos (QUIJANO, 2005).
Preliminarmente, é necessário distinguir o racismo do preconceito racial e da dis-
criminação racial. Embora possuam forte relação entre si, não significam a mesma coisa,
enquanto os dois primeiros elementos situam-se no campo das ideias, ou a nível ético de
consciência, o último envolve a ação, a prática concreta daqueles (LIMA, 2016).
A ideia de raça serviu como reveste de legitimidade as relações de dominação im-
postas pela conquista colonial. A elaboração teórica construída sobre a raça implicava numa
divisão natural de superioridade/inferioridade entre os povos dominantes/dominados, o que
ensejava uma nova classificação social universal da população mundial (QUIJANO, 2005).
Assim também Foucault aponta para uma mutação no conceito de raça, de um sig-
nificado primário que representava a distinção entre povos europeus, contendo certa noção
de localidade geográfica e também a cultura de determinado povo, para um conceito que
passa a cindir o homem nele mesmo, assumindo um significado biológico, de hierarquização
(FOUCAULT, 2005). O racismo passa a ser uma classificação hierárquica entre os povos de
sustentação científica biológica. Essa divisão insere um recorte naquilo que deve viver e
morrer, não só em conflitos diretos, mas principalmente para legitimar as exclusões a partir
de um discurso vinculado a um darwinismo social eugenista.
Todavia, os avanços na área da ciência fizeram cair por terra a noção de racismo
baseado na biologia e passaram a expandir a significação do termo a mera desigualdade ou
injustiça, movimento que é inclusive perigoso ao relativizar a causa (MUNANGA, 2003). No
Brasil, com a tardia abolição (meramente formal) da escravidão, a hierarquia de raças esca-
moteou-se para um discurso de igualdade. Embora ainda não completamente desvinculada
de elementos biológicos, a alegação da desigualdade social dava-se a partir da “igualdade”
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 51
Não obstante, o que é uma democracia racial? A ausência de tensões abertas e confli-
tos permanentes, é, em si mesma, índice de “boa” organização das relações sociais?
Do outro lado, o que é mais importante para o “negro” e o “mestiço”: uma considera-
ção ambígua e disfarçada ou uma condição real de ser humano econômica, social e
culturalmente igual aos brancos? (FERNANDES, 1972, p. 21-22)
O mito da democracia racial seria sustentado por essa pacificidade das relações,
numa perspectiva de que a miscigenação das raças teria democratizado o acesso a opor-
tunidades na sociedade. Muito pelo contrário, Fernandes aponta que a miscigenação só
serviu para aumentar a massa dos considerados “de cor” e consequentemente a exclusão
operada sobre estes (FERNANDES, 1972, p. 28). A universalização do trabalho, a abertura ao
campo democrático, na prática, só significou a distribuição das melhores oportunidades de
emprego para os grupos melhor localizados, ou seja, uma concentração de renda e de poder
voltada às classes brancas (FERNANDES 1972, p. 29).
Além da desigualdade econômica herdada pela escravidão, o baixo número de le-
gisladores negros remete não só a aspectos financeiros promoção de campanhas e divul-
52 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL
gações, mas também ao racismo velado, não dito, cotidiano, que embora discursivamente
seja condenado na sua maneira explicita, permanece encoberto, dissimulado, a ponto de
construir o paradoxo “do preconceito de ter preconceito”, ou seja, da impossibilidade de
assumir a existência de um racismo (FERNANDES, 1972, p. 23).
Outro elemento que fundamenta a desigualdade democrática e que também enfrenta
uma discriminação real face a uma igualdade discursiva é a (2) questão de gênero e a re-
presentação das mulheres no congresso. Primeiramente, sobre o conceito:
Minha definição de gênero tem duas partes e diversas subconjuntos, que estão in-
terrelacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo da definição
repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento
constitutivo de relaçoes sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e
(2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.
nos partidos –, pouco progresso ocorreu, considerando toda uma tática dos partidos de
candidaturas fantasmas à boicote financeiro nas campanhas femininas (MARQUES, 2019).
O resultado das eleições de 2018 apontam quase três vezes menos representantes
mulheres na Câmara em comparação com a população. No Brasil, mulheres consistem em
51% da população, na Câmara dos Deputados representam 15% dos assentos. Há de se
apontar um significativo crescimento frente à última eleição, embora ainda extremamente
desigual e desproporcional: em torno de 5% mais mulheres foram eleitas e empossadas ao
cargo de Deputadas Federais (UOL, 2018; ZANLORENSSI; ALMEIDA, 2018).
Outro dado igualmente nefasto é o de que entre os partidos que lançaram candi-
daturas, nenhum dos trinta e seis teve mais de 40% de candidaturas femininas, situam-se
majoritariamente entre 30% e 35% (ZANLORENSSI; ALMEIDA, 2018).
Completando o tripé e entendendo a incidência de um elemento sobre o outro, con-
forme ensina Angela Davis (2016), o aspecto (3) classe será abordado a partir de um com-
parativo entre a renda média dos brasileiros, suas intersecções, e o patrimônio declarado
pelos legisladores da Câmara dos Deputados.
Segundo última pesquisa do IBGE em 2017, transcrita pela Agência Lupa (2017), a
renda média do brasileiro foi de R$ 2.112,00, diminuindo R$12 em relação ao ano anterior.
Não obstante, quando analisados a fundo, os dados apresentam grande variação como uma
diferença média de R$800,00 em relação às regiões Norte e Nordeste em comparação às
demais. Mais desproporcional ainda é a diferença salarial entre negros e brancos, cenário
em que negros ganham em média R$ 1.244,00 a menos do que os brancos, enquanto estes
ganham em média 29,2% a mais do que a média da população brasileira. Em desfavor às
mulheres a diferença é de em média R$542,00 em relação aos homens, ou seja, costumam
receber o equivalente à 77,5% do salário dos homens, comportando também variações por
região até 73% no Norte e Nordeste (LUPA, 2017).
Visualiza-se claramente a intersecção entre os elementos gênero, raça e classe, na
medida em que as opressões sistemáticas estruturam-se não só nos aparelhos estatais,
como também se comunicam com esses espaços e infiltram-se nas demais instituições.
Não só em espaços informais, elas vêm de maneira ascendente construindo desigualdades
e posicionando de maneira diferente nas malhas do poder os indivíduos segundo suas ca-
racterísticas.
Em contrapartida os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) referentes à última
eleição apontam que 47% dos deputados eleitos declararam patrimônio superior a um milhão
de reais. Hoje com 241 milionários, a Câmara vem num crescente – ligeiramente aplacada
em 2018 – desde 2002 com 116 milionários, em 2006 com 165, em 2010 contava-se 194
milionários e em 2014, 248 (REIS; OLIVEIRA, 2018).
54 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL
3 Guerra é Paz
Já nas primeiras páginas da obra 1984, de George Orwell (2016) encontra-se o
slogan do governo: “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”. Esse livro,
escrito em 1949, narra um conflito entre três grandes nações, conflito esse que remonta a
tempos imemoráveis e no qual jamais houve qualquer tipo de vencedor, embora recursos e
indivíduos sejam continuamente direcionados a tal impasse. A partir disso o autor realiza
uma reflexão que vai desembocar na primeira afirmação do slogan do governo, sobre a
utilidade da guerra.
A guerra, portanto, se julgada pelos parâmetros das guerras anteriores, não passa
de impostura. É como as lutas entre certos animais ruminantes cujos chifres estão
implantados num ângulo que impossibilita que um fira o outro. Ser irreal, porém, não
significa que ela não tenha significado. A guerra devora o excedente de bens e contri-
bui para preservar a atmosfera mental que convém a uma sociedade hierárquica. Hoje
a guerra é apenas, como veremos, um assunto propriamente interno. No passado,
os grupos dominantes de todos os países, mesmo reconhecendo seus interesses
comuns e com isso limitando a força destruidora da guerra de fato lutavam uns contra
os outros, e o vencedor sempre saqueava o vencido. Hoje eles não lutam entre si.
Absolutamente. A guerra se trava entre cada grupo dominante e seus próprios
súditos, o objetivo dela não é obter ou evitar conquistas de território, mas manter
inata a estrutura social. A própria palavra “guerra”, portanto, tornou-se ambígua.
[...] Uma paz que fosse de fato permanente seria idêntica a uma guerra permanente.
Esse – embora a imensa maioria dos membros do partido só compreenda de forma
superficial - é o significado profundo do lema do partido Guerra é Paz (ORWELL,
2016, p. 235-236, grifo nosso).
por outro lado, vê-se o apagamento no corpo social das eternas relações guerreiras que
perpassavam a sociedade medieval. Assim, as práticas e instituições de guerra se mantêm
somente nas fronteiras, nos limites exteriores dos Estados em seus enfrentamentos com os
demais Estados.
O paradoxo aludido surge no mesmo período, ou logo depois desse monopólio es-
tatal da guerra, em que emerge um novo discurso, o histórico-político sobre a sociedade,
datado do século XVI. Nele se vê a guerra como fundamento das relações sociais e das
instituições de poder. Ele é novo porque se contrapõe à milenar estrutura do discurso fi-
losófico-jurídico que regeu por muito tempo a própria constituição ritualizada da história,
funcionalizada em torno da legitimidade e do reforço político da autoridade, sustentando em
geral que o poder político começa quando cessa a guerra, que as instituições, o direito e a
ordem são a pacificação que elidem a guerra.
No entanto, para o novo discurso:
[...] A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no
interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é
que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens,
faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz.
Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a
sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca
cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente
adversários de alguém (FOUCAULT, 2005, p. 59).
Seria possível objetar que na verdade se tratariam de relações de força e não de guer-
ra, entretanto, as relações de força podem passar em seu caso extremo pelo ponto de tensão
máxima, pelo momento da nudez das relações de força. De um lado, é possível encontrar
no fundo da paz e da ordem supostamente igualitárias da democracia representativa liberal
hegemônica que solapa as participações populares diretas, bem como não representa os
grupos que a compõe. De outro lado, é possível vislumbrar a guerra em sua nudez também
no local em que pode aparecer de forma mais exacerbada: diante do poder punitivo.
Nesse que foi o instrumento fundamental para a centralização que confiscou o exer-
cício dos poderes locais que atravessavam o modelo feudal, a pratica punitiva e o confisco
do conflito das partes foi um dos aparelhos mais importantes para substituição dos exer-
cícios de justiça e poderes locais (ANITUA, 2008). A interiorização da guerra encoberta
pelo discurso jurídico legitimador talvez se faça mais clara nesse aspecto, em que se vê
claramente a sua continuidade pelo exercício da repressão, vigilância, encarceramento e
eliminação propriamente dita de grupos histórico e politicamente subjulgados e condenados
a uma posição de subalternidade social.
Nesse sentido é sintomático que no século XX, conforme estimativa mediana en-
tre os dados de Wayne Morrison e Rudolph J. Rummel referida por Zaffaroni (2013), os
Estados produzam mais cadáveres por meio do poder punitivo e seus massacres do que
por intermédio de guerras (em termos oficiais e declarados somados). No caso brasileiro,
o Estado é o que mais mata no mundo, por intermédio das forças policiais, contando com
os instrumentos jurídicos que autorizam tais execuções sob o véu da legitima defesa e da
resistência (autos de resistência). Entretanto, Orlando Zaccone D’elia Filho (2015), em pes-
quisa doutoral, investiga e expõe que o risco de vida do agente ou a resistência propriamente
dita não são os elementos fundamentais para o encerramento da investigação; o elemento
central tem sido a identificação enquanto traficante, o que se dá eminentemente mediante o
estereótipo constituído pela juventude negra e pobre das periferias e bairros marginalizados.
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 57
É pela produção política interna dos Estados que, por exemplo, se operará a interio-
rização da guerra, a transposição do conflito externo para a criação de um inimigo social por
meio da constituição de um bode expiatório que se alimenta das características dos grupos
econômico-socialmente marginalizados (ZAFFARONI, 2013).
A criação de um inimigo social interno, como o terrorista ou o traficante, é chave que
permite ver que a paz só se sustenta pela guerra, e que revela um conflito de grupos sobre
outros, que perpassa todas as camadas da sociedade. Mesmo em seu aspecto mais visível,
qual seja, a morte, a guerra é reconstituída em seu nível político.
O poder político então não começa quando cessa a guerra no seu sentido real de luta
armada, de sangue e das batalhas. Por certo, a guerra constitui o nascimento do Estado,
do Direito, das leis, da estrutura jurídico-política do poder, mas esses não significam o en-
cerramento definitivo da guerra, ela constituiu ainda o motor das instituições e das relações
sociais, ela permanece no interior dessa “paz civil”, a guerra ainda reinsere nas instituições
e nas desigualdades sociais e econômicas o desequilíbrio de forças.
Se por um lado as posições de privilégio são ocupadas por um grupo que secular-
mente tem sido composto pelo homem branco proprietário-burguês, se beneficiando dos
bens positivos (patrimônio, posições de comando e de poder político jurídico), por outro,
a distribuição dos bens negativos também é seletiva e dirigida aos grupos constantemente
subjulgados, (criminalização, estereotipia, repressão e eliminação). Ambos podem ser vistos
como sintoma de uma guerra contínua e permanente que não cessa de produzir efeitos nas
instituições jurídico-políticas.
Por um lado, a repressão, segregação, eliminação seletiva dos grupos historicamen-
te subjugados; de outro, uma democracia representativa liberal em ligação com um monismo
jurídico que restringe e confisca a participação direta da sociedade na produção normativa
reguladora, impondo um sistema político no qual, além da representação que em si mesma é
a continuidade da dominação de um grupo social, apresenta como sintoma das relações de
dominação uma severa desproporção entre os grupos representantes e os grupos represen-
tados como se buscou demonstrar.
Nesse sentido a análise em termos de guerra instiga o desvelamento das domina-
ções que se encontram encobertas sobre o discurso de legitimação permitido pelo direito e
pelas instituições que se arrogam na posição de neutralidade e imparcialidade, universalida-
de, consenso, mas que em sua operacionalidade não conseguem esconder o posicionamen-
to político, sobretudo em momentos de crise e de nudez da guerra. Ainda, se não há posição
imparcial ou neutra, incentiva-se então o posicionamento nessa guerra permanente.
58 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL
Conclusão
Procurou-se analisar a democracia representativa contemporânea como sintoma de
uma permanente e secular guerra entre grupos sociais. A guerra como matriz de análise do
Estado, da lei, das instituições e, de maneira geral, das relações sociais permite o desve-
lamento da constituição de discursos, saberes, e dinâmicas que até a contemporaneidade
mantém as relações de guerra encobertas sob um discurso filosófico-jurídico que serviu e
serve aos interesses burgueses.
A reconstituição da formação do Estado e a centralização jurídico-política em torno
deste por meio do monismo jurídico, bem como a separação entre sociedade civil e política
com a limitação desta nos moldes determinados pela democracia liberal representativa apre-
sentam uma correspondente funcionalidade para a constituição e sedimentação da ordem
burguesa. Sendo sempre uma preocupação da classe e seus intelectuais liberais a restrição
da democracia e da cidadania com os perigos que representa o poder político nas mãos das
classes populares para a manutenção das relações socioeconômicas de desigualdade que
beneficiam os primeiros.
Buscou-se demonstrar que a cidadania antiga das sociedades grega e romana, em
seus períodos republicano-democrático, se exercia de modo direto, no entanto apenas um
delimitado grupo tinha acesso a tal exercício, a modernidade burguesa na constituição do
Estado liberal expande-a em termos quantitativos (em sua maioria por pressões populares),
mas reduz drasticamente o seu exercício que fica de modo geral limitado à representação e
assim ao voto periódico.
O resgate de um tempo em que somente os homens brancos proprietários tinham
assento nos cargos legislativos em comparação com a composição recente da câmara fe-
deral demonstra que não se está muito longe da tal realidade, o que foi abordado então como
sintoma de uma guerra entre grupos sociais. Nessa disputa os subjulgados não encontram
espaço nem mesmo dentro do marco representativo em comparação com a população geral
de mulheres, negros e proletários ou de classe baixa em termos econômicos.
Por fim a projeção dos elementos discursivos de uma abordagem resgatada por Fou-
cault permite lançar luz sobre a dominação e a guerra encoberta sobre os discursos jurídicos
legitimadores que tem mantido nas sombras o conflito silencioso que se mantém sob um su-
posto cenário de ordem, paz e consenso, submetendo os grupos historicamente dominados
em uma posição subalterna. Com isso, instiga-se o resgate da visualização dessa guerra e
o afastamento dos discursos e saberes que se prestam à manutenção da dominação sob o
véu da imparcialidade e da universalidade, impulsionando as insurgências.
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 59
Referências
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-cor-os-candidatos-a-deputado-por-partido. Acesso em: 31 jan. 2019.
CAPÍTULO IV
Introdução
A crise humanitária que atinge a Venezuela já fez aproximadamente 4 milhões de
pessoas a se deslocarem forçadamente do território venezuelano em busca de uma vida
digna, ou aqueles que migraram diante da possibilidade de amparar e assistir aos familiares
e amigos que não puderam deixar a Venezuela e que, portanto, permanecem expostos a uma
situação de grave crise política e econômica do país. Tal crise se reflete na dificuldade para
aquisição de alimentos, assistência médica adequada, falta de medicamentos para trata-
mento, fome, ameaças, violências, dentre outras questões violadoras dos direitos humanos
(UNHCR, 2019b; SARTA, 2019).
Os migrantes e refugiados venezuelanos têm procurado amparo ao redor do mundo,
principalmente nos países latino-americanos e caribenhos, especialmente nos da América
1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/UNESC). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/UNESC). Possui in-
teresse nas áreas de Direito Constitucional, colisão de princípios, crise institucional e neoconstitucionalismo.
Assessor em gabinete da 1ª Vara Cível de Criciúma, no Poder Judiciário de Santa Catarina. E-mail: hugocoan@
hotmail.com.
2
Doutoranda no Programa da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com
bolsa Prosuc Capes Modalidade I. Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universi-
dade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/UNESC). Especialista em Direito Civil e em Direito Processual Civil pela
Universidade Anhanguera – UNIDERP. Especialista em Direito da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas
pela UNESC. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do
Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado
e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: jcabral@mx2.unisc.br.
62 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL
do Sul, como Colômbia, Peru, Chile, Equador, Argentina e Brasil (UNHCR, 2019b; EGAS,
2018). “Todos os dias, cerca de 5 mil pessoas deixam a Venezuela – o que configura o
maior movimento populacional da história recente da América Latina” (EGAS, 2018, p. 32).
No Brasil, o ingresso se dá pelos estados da região Norte, notadamente pelas cidades de
Pacaraima e Boa Vista (Roraima), as quais, em razão da proximidade fronteiriça, tornam-se
local de destino ou passagem para milhares de migrantes venezuelanos.
A diáspora venezuelana em direção ao Brasil impactou fortemente as cidades do
norte do país, as quais, no afã de conter o fluxo migratório na região, buscaram, na justiça,
uma tentativa de bloqueio das fronteiras do Brasil com a Venezuela, bem como de obtenção
de recursos junto à União. A Ação Civil Originária (ACO 3121/RR - STF), ajuizada pelo go-
verno de Roraima em 13 de abril de 2018, é reflexo do impacto desses deslocamentos na
sociedade brasileira (BRASIL, 2018e).
O presente artigo pretende, portanto, analisar a atuação do governo brasileiro na
gestão do fluxo migratório venezuelano, abarcando especialmente os movimentos do Estado
brasileiro relativos ao compartilhamento de responsabilidades, tanto a nível internacional
(com os demais Estados) quanto interno (entre os entes da federação). Objetiva, também,
aprofundar a temática sob o viés do federalismo brasileiro, tentando enxergar a gestão da
migração sob a ótica local, do equilíbrio de forças entre a União e os estados, materializada
com a Ação Civil Originária (ACO 3.121/RR-STF).
Por fim, abordará a intervenção federal no Estado de Roraima, decretada em dezem-
bro de 2018, sob justificativa de pôr termo a um grave comprometimento da ordem pública.
Trata-se de uma reflexão sobre a crise venezuelana, a proteção da pessoa humana e os
conceitos de soberania, federalismo e intervenção federal.
2020). A situação do país vizinho reclama, portanto, um olhar apurado para os deslocamen-
tos forçados da atualidade e para as causas estruturais desses deslocamentos, principal-
mente porque crises políticas e econômicas têm sido a tônica não só na Venezuela, como
também em outras nações do mundo, reveladoras, na verdade, de uma crise mais profunda,
que é a crise do capital.
Antes de analisar o contexto da migração venezuelana para o Brasil, importa demar-
car os aspectos gerais da situação da Venezuela, especialmente em termos políticos e eco-
nômicos. Isso porque as questões econômicas intensificaram os desentendimentos políticos
no país e, de igual modo, as questões políticas afetam o campo econômico.
A Venezuela encontra-se imersa em um acalorado conflito político. O presidente, Ni-
colás Maduro, eleito em 2013 e mantenedor do projeto político do presidente anterior, Hugo
Chávez (o qual falecera naquele ano, vítima de câncer), assume o governo em uma situação
econômica já desfavorável. Com a crescente piora da economia, Maduro passou a enfrentar
uma forte oposição, liderada por Juan Guaidó.
A dissensão política na Venezuela não é situação exclusiva do governo de Maduro.
Os atritos remontam à década de 1990, quando o presidente Carlos Andrés Perez, no seu se-
gundo governo, foi duramente criticado por militares (dentre eles, Hugo Chávez) em razão da
adoção de um plano de austeridade fiscal para a Venezuela, bem como por uma acusação de
corrupção. Perez sofreu impeachment em 1993 e, nesse tempo, Hugo Chávez estabelecia-se
no cenário político até chegar à presidência do país no ano de 1998, com uma proposta de
redistribuição de renda e ampliação dos direitos da população. Contudo, Chávez também
sofrera um golpe de Estado (em 2002), retomando o poder dois dias depois, fato que marca
o início da dissensão entre chavistas e opositores.
Essa dissensão se intensifica nos últimos anos, colocando em cheque o governo do
atual presidente Nicolás Maduro. A evidência maior da instabilidade política de Maduro está
na propositura, por Juan Guaidó, seu opositor, da antecipação da eleição presidencial no
país, claramente resistida pelo atual presidente (GOODMAN, 2019b).
Economicamente, a Venezuela dispõe das maiores reservas petrolíferas do mun-
do, cabendo destacar que, de acordo com o Banco Mundial, quando o ex-presidente Hugo
Chávez ingressou no poder, em 1998, o barril do petróleo custava US$ 13, valor este que
aumentou em 2008 (custando US$ 96,00), até chegar nos US$ 104,00, em 2014, o que
trouxe, para o país, a melhoria nos índices relativos à saúde e educação (FIGUEIRA, 2017;
SILVA, 2018).
No entanto, Silva (2018) alerta que: a vantagem da Venezuela é, ao mesmo tempo,
sua limitação, pois implica um perigoso desestímulo na estruturação de outras iniciativas
econômicas, fazendo com que a estabilidade econômica do país esteja atrelada aos preços
das commodities. A autora aduz, por exemplo, que a Venezuela produz apenas 60% dos
alimentos que consome. Ou seja, 40% da necessidade alimentar fica a cargo da importação
(SILVA, 2018).
64 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL
temporária pelo prazo de até dois anos. A resolução foi considerada de baixa efetividade, pois
teve pouca divulgação, além de fazer restrição ao considerar a medida apenas para os que
ingressavam no Brasil por via terrestre, excluindo, assim, os migrantes que chegavam pelas
vias aéreas, fluvial ou mesmo marítima (SILVA, 2018).
Em maio de 2017 é instituída a nova Lei de Migração, que modifica o paradigma da
política migratória brasileira, adotando uma perspectiva mais humana, que reconhece os
migrantes como sujeitos de direitos. A Lei n. 13.445/2017 estabeleceu os princípios e as
garantias da política migratória brasileira, elencando, dentre as hipóteses para a concessão
do visto temporário, a acolhida humanitária (BRASIL, 2017a).
A despeito da grande contribuição advinda da nova lei, a situação da migração vene-
zuelana no estado de Roraima somente se modifica a partir de 2018 quando, em fevereiro,
o presidente interino Michel Temer realiza uma reunião com a governadora de Roraima. A
partir desse encontro, ocorrido em Boa Vista, uma série de medidas e ações são tomadas
para a melhoria da gestão migratória na região. Dentre elas, destacam-se: a publicação do
Decreto n. 9.285, em 15 de fevereiro de 2018, o qual “reconhece a situação de vulnerabilida-
de decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária na República Bolivariana
da Venezuela” (BRASIL, 2018a); a Medida Provisória n. 820, também de fevereiro, conver-
tida posteriormente na Lei n. 13.684/2018, a qual “dispõe sobre medidas de assistência
emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo
migratório provocado por crise humanitária”; o Decreto n. 9.286, de 15 de fevereiro de 2018,
o qual “define a composição, as competências e as normas de funcionamento do Comitê
Federal de Assistência Emergencial [...]” (BRASIL, 2018b); a criação, em março de 2018,
do Subcomitê Federal para a interiorização dos imigrantes que se encontram no Estado de
Roraima (com destaque para o desenvolvimento da Operação Acolhida, no mesmo mês); a
organização de novos abrigos em Roraima; o repasse emergencial de verbas para Pacarai-
ma; a concessão de crédito extraordinário para o Ministério da Defesa, dentre outras medidas
(RUSEISHVILI; CARVALHO; NOGUEIRA, 2018).
Verifica-se que o governo brasileiro reconheceu a migração venezuelana como de-
corrente de crise humanitária, concedendo-lhes o acolhimento e a assistência emergencial
necessárias. A Lei n. 13.684/2018 dispõe, no artigo 5º, que as medidas de assistência
emergencial visam à ampliação das políticas públicas, como as de proteção social, saúde e
garantia dos direitos humanos. Além do mais, tais medidas requerem a articulação de ações
integradas pelos governos federal, estaduais, distrital e municipais, por meio de adesão a
instrumento de cooperação federativa, em que serão estabelecidas as responsabilidades dos
entes envolvidos (BRASIL, 2018d).
De maneira geral, a resolução de crises migratórias dessa magnitude requere a coo-
peração interna e internacional. A Organização das Nações Unidas (ONU) tem trabalhado
para melhorar, no âmbito global, a gestão das crises migratórias, chamando os Estados não
só ao compartilhamento de responsabilidades, como também à intensificação na implemen-
68 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL
tação das políticas migratórias em seus territórios. Nesse sentido, o Pacto Global para Migra-
ção Segura, Ordenada e Regular, bem como o Pacto Global sobre Refugiados são exemplos
da busca de obtenção de acordos internacionais para a ordenação adequada dos desloca-
mentos de migrantes e refugiados, visando não só a proteção dos migrantes e refugiados,
como também o auxílio aos países de origem, trânsito e destino. Embora os pactos não
possuam poder vinculativo, a abordagem cooperativa é reputada como essencial para uma
resposta mais forte e justa aos fluxos migratórios da atualidade (ONU, 2018a; ONU, 2018b).
Em que pese o esforço das Nações Unidas em amenizar a crise migratória a partir
de acordos globais de proteção, o Brasil anunciou, em janeiro de 2019, sua saída do Pacto
Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, retomando o discurso securitário que
embasara o revogado Estatuto do Estrangeiro. Em sua conta pessoal do Twitter, o ministro
das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou: “tem de haver critérios para garantir a se-
gurança tanto dos migrantes quanto dos cidadãos no país de destino” e que “[a] imigração
deve estar a serviço dos interesses nacionais”, em evidente retrocesso, diante dos princípios
e das diretrizes adotados pela Lei de Migração (MIGRAMUNDO, 2019).
[...] aqueles cidadãos estrangeiros que praticarem atos contrários aos princípios e
objetivos dispostos na Constituição Federal e Constituição do Estado de Roraima,
inclusive a violação de direitos fundamentais assegurados aos cidadãos brasileiros,
tais como direito à vida, à integridade física, à propriedade, dentre outros, estão su-
jeitos às normas legais cabíveis, devendo a autoridade policial responsável adotar as
providências necessárias para procedimentos de deportação ou expulsão, conforme
o caso (RORAIMA, 2018).
A Ministra Rosa Weber suspendeu a eficácia desse Decreto por razões processuais,
vislumbrando eventual interferência inadequada da legislação no estado de fato e no direito
em debate nos autos da ACO n. 3.121. Porém, nitidamente, há aqui uma das tensões mais
clássicas do federalismo: a repartição de competências.
Essa dialética entre a União e os Estados marcou a própria nação na qual o fede-
ralismo se formou: os Estados Unidos da América (EUA). Como explica Baggio (2006), a
constituição norte-americana consagrou, em um primeiro momento, o federalismo dual, cujo
alicerce era a distribuição de competências, com as atribuições legislativas e executivas da
União expressamente dispostas no texto constitucional, enquanto aos estados restariam as
competências residuais.
70 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL
3
“ASSISTÊNCIA SOCIAL – ESTRANGEIROS RESIDENTES NO PAÍS – ARTIGO 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL – ALCANCE. A assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal beneficia
brasileiros natos, naturalizados e estrangeiros residentes no País, atendidos os requisitos constitucionais e le-
gais” (BRASIL, 2017c).
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 71
possuem meios de prover a própria manutenção ou de ter o sustento provido por sua família,
cumpridos os demais requisitos legais (BRASIL, 2017b).
Existem outros julgados no sentido da extensão de garantias e direitos aos estrangei-
ros residentes ou não no Brasil, mas esses foram escolhidos pela sua representatividade e
por tratarem de direitos diversos, bem como para destacar que, dentro da sistemática de um
Estado Federado, o respeito às decisões da Corte Superior é de suma importância, servindo
até mesmo como equilíbrio federativo.
Zimmermann (2005) aduz que o controle judicial das normas é imprescindível em
um sistema político descentralizado, sobretudo para evitar o arbítrio do poder federal sobre
as unidades federadas. De outro norte, o Poder Judiciário também defende a Constituição
e a unidade nacional, possuindo grande capacidade moderadora dos conflitos federativos.
Em verdade, os aspectos discutidos na ACO n. 3.121 indicavam uma profunda crise e inca-
pacidade de lidar com ela, seja por parte do Estado de Roraima ou mesmo da União, mas a
análise dessa situação sob o viés federalista ainda ganharia um novo episódio, a ser tratado
no tópico seguinte.
conjugado com a axiologia democrática, servirá ao cidadão, o qual poderá exercitar seus
direitos de cidadania frente às várias esferas de poder político, sendo que o respaldo dessa
construção política surgiria de um pacto político materializado por uma Constituição.
Baggio (2006) sustenta que a Constituição Federal de 1988 possui traços do fede-
ralismo cooperativo, sobretudo em seu artigo 23, o qual dispõe sobre as ações administra-
tivas comuns entre os entes da federação, o que denota uma tentativa de harmonização das
relações federativas. Por sua vez, o artigo 24 do mesmo diploma legal enumera matérias
nas quais caberá à União a edição de normais gerais e aos Estados a prolação da legislação
suplementar.
Nesse contexto, além de a União ser responsável pela execução dos serviços de
polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras (artigo 21, inciso XXII, CF/88), muitos são
os dispositivos constitucionais que, sob o espírito do federalismo cooperativo, autorizariam
tanto um atendimento de partes dos pleitos da ACO n. 3.121, quanto uma ação política de
atendimento ao migrante, sendo o principal deles a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil e, como observa Silva (2006) ao abordar os fundamentos do Estado brasileiro, trata-
-se de um valor superior que condensa o sentido de todos os direitos fundamentais da pes-
soa humana, dele decorrendo certos comandos como a existência digna dentro da ordem
econômica, a realização da justiça na ordem social, a educação e o exercício de cidadania.
Para Rabenhorst (2001), sob ponto de vista filosófico, a ideia de dignidade da pes-
soa humana parte do pressuposto de que a humanidade compartilha da mesma origem
tendo, portanto, o mesmo valor, constituindo no mundo ocidental atual um patrimônio da
moralidade democrática, compondo uma ética civil indispensável a uma sociedade plural e
verdadeiramente igualitária. Outros dispositivos constitucionais justificariam uma ação coo-
perativa da União, tanto sob o aspecto das desigualdades regionais, quanto na responsabi-
lidade compartilhada da saúde, mas, em vez disso, o Poder Federal decidiu por se valer do
instituto da intervenção federal.
Lewandowski (2018) expõe que um Estado Federal repousa sobre um frágil equilíbrio
de forças, sendo a intervenção federal uma das técnicas constitucionais para a coesão da
federação, objetivando a preservação dos laços de União. A natureza jurídica deve obedecer
aos ditames constitucionais, com controle de legalidade do Judiciário e controle político
pelo Congresso, mas com ampla discricionariedade, pois é ato de governo. A intervenção
significa a invasão em competência alheia, por isso deve ser sempre limitada no intuito de
preservar a federação.
No mesmo sentido, Zimmermann (2008) aventa que a regra é de não haver inter-
venção de uma unidade política e que esta possui caráter eminentemente político, sendo
necessário para sua consecução que se especifique o interventor, a amplitude e os prazos
da intervenção. Assim, a decretação de intervenção federal no Estado de Roraima, em 08
de dezembro de 2018, por meio do Decreto n. 9.602/2018, se deu sob a alegação de se pôr
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 73
termo à grave comprometimento da ordem pública. Sabe-se que a regra em uma federação
é de que não haja intervenção de um ente político sobre outro, salvo em casos excepcionais,
tendo a decretação, nesse caso, pretenso fundamento no artigo 34, inciso III, da Constitui-
ção Federal de 1988 (BRASIL, 2018c).
Sobre o tema, Silva (2006) expõe que a intervenção federal só deve ser manejada em
situações críticas que ponham em risco o equilíbrio federativo, a segurança e as finanças do
Estado e a ordem constitucional. Zimmermann (2005) entende que, em se tratando do artigo
36, inciso III, da CF/88, o decreto de intervenção está sujeito somente à verificação dos mo-
tivos que lhe deram causa. Por seu turno, Lewandowski (2018) assevera que a perturbação
da ordem há de ser fora do comum, algo extraordinário e que independa de autorização pré-
via do Congresso Nacional. Contudo, a exorbitância dos poderes pode levar à caracterização
de crime de responsabilidade por parte do Presidente da República.
Assim, o Executivo Federal usou de uma medida excepcional dentro de um Estado
Federado, nomeando um interventor que não está sujeito às normas estaduais que confli-
tarem com as medidas necessárias à execução da intervenção (artigo 3º, § 1º, do Decreto
n. 9.602/2018) e afastando o governador em exercício. Curiosamente, o governador eleito
no pleito de 2018 e o interventor são a mesma pessoa: Antonio Oliverio Garcia de Almeida,
mais conhecido como Antonio Denarium – caracterizando uma antecipação de mandato.
Uma perspectiva democrática mostra o desencontro dessa medida, cuja efetividade
é altamente contestável até mesmo pelo curto espaço de tempo de duração (23 dias), ao
passo que, dentro da sistemática do federalismo cooperativo poderia haver: o apoio das
forças armadas, o incremento dos repasses financeiros, a distribuição célere dos refugiados
para as demais unidades federativas, esta última medida tendo demorado a se concretizar.
Outro aspecto relevante é que houve um verdadeiro adiantamento da medida já que
o governador que tomaria posse assumiu como interventor, havendo, portanto, até mesmo
discussões sobre inelegibilidade quando da sua eventual candidatura à reeleição, algo a se
conferir futuramente. O uso ordinário da intervenção federal ensejará a vulgarização do ins-
tituto e, consequentemente, um revés democrático, pois essa técnica deve ser excepcional,
reservada a momentos de instabilidade no equilíbrio federativo, sob pena de violar a federa-
ção e a própria democracia.
Conclusão
A crise na Venezuela, motivada por questões políticas, econômicas e sociais, já le-
vou ao deslocamento forçado de 4 milhões de venezuelanos, os quais, expostos a uma
severa situação de violência, fome e escassez generalizada, não tiveram outra alternativa, a
não ser deixar a Venezuela em busca de uma vida digna e segura para si e para a sua família.
Como apresentado, os países latino-americanos e caribenhos têm recebido consi-
derável número de migrantes venezuelanos, especialmente a Colômbia, o Equador e o Peru.
74 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL
Por uma questão de proximidade, em razão das fronteiras na região Norte, o Brasil está na
rota de trânsito ou destino dos migrantes venezuelanos. Assim, de acordo com os dados
da Polícia Federal, no período entre janeiro de 2017 e abril de 2019, registrou-se a entrada
de milhares de venezuelanos, os quais buscam, pelo instituto do refúgio e/ou pela Lei de
Migração, a permanência no país.
Tal situação representou uma problemática a ser enfrentada pelo Estado de Roraima,
responsável pelo recebimento imediato de milhares de migrantes. A Ação Civil Originária
n. 3.121 que, dentre outros pedidos, pugnava pelo fechamento da fronteira com a Venezuela
(algo incompatível com o texto constitucional brasileiro) é um indicativo de que a gestão da
crise migratória demanda não só ação estratégica, como também o compartilhamento de
responsabilidades, a nível internacional e interno.
Na ACO n. 3.121, depreende-se que a União Federal lançou mão de uma medida ex-
cepcional, a intervenção federal, a qual põe em xeque o próprio equilíbrio federativo, sem ter
trazido resultados efetivos no enfrentamento da situação atípica. Portanto, o que se observa,
é que o Brasil, uma República que se assenta na dignidade da pessoa humana, tem falhado
(especialmente com a recente saída do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Re-
gular). Isso tanto como protagonista da América do Sul em dar uma resposta efetiva aos mi-
grantes, como na questão do equilíbrio de forças internas com o manejo de um instrumento
autoritário como a intervenção federal, no lugar de uma gestão a partir da cooperação entre
os entes. Uma situação continental acabou por explicitar o desequilíbrio de forças locais,
ensejando uma reflexão sobre a federação brasileira e sobre como a centralidade do poder
federal ainda predomina no Brasil.
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ZIMMERMANN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005.
CAPÍTULO V
Introdução
Um dos reflexos advindos da violência em suas várias manifestações e da crimina-
lidade é o surgimento de insegurança que se estende de forma generalizada na maioria dos
estratos sociais no Brasil. Existem vários fatores que influenciam a criminalidade, inclusive a
omissão estatal em realizar políticas públicas de inclusão social e de geração e renda, sendo
um fenômeno multifacetado.
Ante esse contexto, com amparo no prescrito na Constituição da República Fede-
rativa do Brasil de 1988 acerca do direito fundamental social à segurança, as instituições
que atuam nessa seara, a exemplo das Polícias Militares estaduais, têm procurado formas
variadas de realizar com eficácia a missão de preservação da ordem pública, tanto na forma
reativa quanto preventiva.
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc).
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped). E-mail: betocichella@gmail.com.
2
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estremo Sul Catarinense, UNESC.
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped). E-mail: leonardorosa1979@gmail.com.
3
Mestre e Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (PPGD/UFSC). Professor, pesquisador e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradua-
ção em Desenvolvimento Socioeconômico (mestrado e doutorado) da Unesc. Coordenador do Núcleo de Estu-
dos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc) e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (LADSSC/
Unesc). Membro da Rede Ibero-americana de Direito Sanitário. Membro e coordenador da Rede Brasileira de
Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos. Advogado. E-mail: prof.reginaldovieira@gmail.com.
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 79
4
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preserva-
ção da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia
federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e
corpos de bombeiros militares. § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e
mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e
social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas
públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija
repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respecti-
vas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer,
com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente,
organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento os-
tensivo das rodovias federais. § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela
União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 81
§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da
União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias
militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além
das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.§ 6º - As polícias militares
e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as
polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 7º - A lei disciplinará a or-
ganização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência
de suas atividades.§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus
bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.§ 9º A remuneração dos servidores policiais integrantes
dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39” (BRASIL, 1988).
82 | ALBERTO CARDOSO CICHELLA | LEONARDO ALFREDO DA ROSA | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
Embora não sejam formalmente instituídas para promover a segurança e a ordem pú-
blica, há outras instâncias que são parte do processo para a harmonia social. Essas institui-
ções que, segundo Marcineiro (2009), formam as instâncias informais de segurança pública
são: a família, a igreja, a mídia, a escola, as diversas organizações não governamentais etc.
As instituições de segurança pública e a sociedade civil como um todo estão dire-
tamente submetidas ao Estado Democrático de Direito, no qual o respeito aos princípios da
legalidade e democrático são requisitos centrais e vinculativos e, portanto, o arbítrio dos
organismos estatais e dos(as) cidadãos(ãs) não é ilimitado.
Streck e Morais (2006, p. 98-99, grifo nosso) em relação ao Estado Democrático de
Direito, desenvolvem os seguintes princípios:
Sobre o Estado Democrático de Direito, Vieira (2013, p. 187) também discorre que:
Portanto, o Estado Democrático de Direito pode ser considerado como uma evolução
ou transformação das matrizes do Estado de Direito Liberal e do Estado Social de
Direito, pois não os nega, mas os incorpora a partir de uma leitura que reconhece que
somente as garantias por eles estabelecidas são insuficientes para a concretização
de uma concepção de justiça social e de ampliação da cidadania. Deste modo, ele
concretiza a democracia para além das meras regras procedimentais e eleitorais, pois
vislumbra a importância da democracia como fundamental, tanto nos resultados obti-
dos quanto nos meios utilizados para o alcance desses resultados.
ser humano. O princípio básico a ser respeitado nesse regime político está estritamente
relacionado com a vontade do povo. Por isso, a democracia não é um mero conceito, mas
um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais conquistados
ao longo da história.
Assim a CRFB/1988 sedimentou formalmente a concepção de que o ser humano é o
ponto principal de qualquer organização política democrática no Brasil, com preceitos impe-
rativos de que todas as estruturações devem promover a sua dignidade. Em contraposição
às restrições de outrora, consagrou um extenso rol de garantias, individuais e coletivas (na
qualidade de direitos humanos inseridos no textos constitucional como direitos fundamen-
tais), com natureza de cláusulas pétreas que são insuscetíveis de supressão.
Nesse sentido, considerando que o ser humano é titular de direitos invioláveis em
todas as suas dimensões de valores (destacando-se valores como da cidadania, da dignida-
de, do trabalho e da livre iniciativa ou capital; considerando ainda direitos inalienáveis: como
à vida, à liberdade, à igualdade, à personalidade etc.), a sua proteção é uma das diretrizes
centrais do Estado Democrático de Direito.
Esses valores quando positivados na Constituição são tratados como direitos fun-
damentais que, conforme Paulo e Alexandrino (2010), surgiram com a necessidade de se
impor limites e controles aos atos praticados pelo Estado e suas autoridades constituídas.
Os direitos fundamentais são os bens em si mesmos considerados, e assim decla-
rados nos textos constitucionais. Como instrumentos de proteção tem-se as garantias5,
que possibilitam aos indivíduos fazer valer, frente ao Estado, os seus direitos fundamentais.
(PAULO; ALEXANDRINO, 2010).
À luz da CRFB/1988, o direito à segurança foi prescrito, juntamente com outros tidos
como cláusulas pétreas conforme o seu art. 5º, caput, como parte integrante do título “dos
direitos e deveres individuais e coletivos”. Cumpre reforçar que esse dispositivo preceitua
que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberda-
de, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988).
Conforme se pode verificar, o direito à segurança foi referenciado no mesmo patamar
de importância dos demais delineados no caput do art. 5º da CRFB/1988 (BRASIL, 1988).
Além disso, é importante esclarecer que esse direito não atinge somente o indivíduo, mas
toda a sociedade de forma global, o que determina a sua inclusão como um direito social.
(COSTA, 2008).
5
Exemplos de direitos fundamentais são o direito à liberdade de locomoção, o direito à vida e o direito à manifesta-
ção do pensamento. Como garantias fundamentais, nesse contexto, é possível citar o Habeas Corpus, a vedação
à pena de morte e a proibição da censura.
84 | ALBERTO CARDOSO CICHELLA | LEONARDO ALFREDO DA ROSA | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
6
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa
humana” (BRASIL, 1988).
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 85
tos das Polícias Militares de outros Estados da Federação, o princípio da dignidade da pessoa
humana foi previsto no art. 29 da Seção II do Título II, do Estatuto dos Policiais Militares do
Estado de Santa Catarina7.
Vê-se, então a necessidade do(a) profissional de Segurança Pública, nesse caso o(a)
Policial Militar, agir dentro dos limites definidos em lei, alinhado(a) com o propósito firme
de ser um(a) agente defensor(a) da dignidade da pessoa humana. Os esforços do trabalho
devem ser na defesa da sociedade por meio da proteção das pessoas, até mesmo o(a) infra-
tor(a). Isso implica, necessariamente, em ver o(a) cidadão(ã) como detentor(a) dos direitos
e garantias fundamentais, inseparáveis da sua condição de ser humano.
Atualmente, ainda, os investimentos em Segurança Pública são, normalmente, pau-
tados em aparatos de repressão, que claramente se mostram ineficientes para reverter o
crescimento da criminalidade. É necessário, que os órgãos policiais busquem uma aproxi-
mação com a comunidade, para juntos enfrentarem essa empreitada.
Em muitas instituições policiais militares, ainda, o trabalho basicamente é realizado
por meio da solicitação do(a) cidadão(ã) ao Centro de Emergência 190. O procedimento
adotado pelos(as) policiais nesses casos são sempre os mesmos: tomam ciência da ocor-
rência, comunicam-se com a central sobre o que fazer, encaminham as partes aos canais
competentes, encerram e vão embora. Tudo isso contribui para o afastamento entre a Polícia
e a Sociedade (BEATO FILHO, 2000).
Esse modelo reativo de policiamento afasta o Estado (polícia) dos cidadãos, tor-
nando a polícia um órgão estatal estranho e distante da comunidade. Assim, mesmo que os
esforços para a segurança se desenvolvam em sua intensidade máxima vão redundar “em
lugar nenhum”, visto que a intervenção será quando o crime já ocorreu, favorecendo uma
sensação de impotência das forças policiais. Assim, por mais investimentos públicos que se
tenha em segurança pública, as práticas e métodos adotados acabam por não surtir efeitos
(ROLIM, 2006).
Em vez de se desenvolver o trabalho policial como um serviço ambulatorial, as preo-
cupações devem ser pautadas principalmente em conhecer as necessidades locais, assim,
o Policial Militar nos seus deslocamentos deve dialogar com as pessoas, fazer-se visível
dentro da comunidade, obter o respeito dos habitantes e atendê-los(as) em serviços não
emergenciais (SKOLNICK; BAYLEY, 2002).
Dessa forma, serão capazes de ajudar na autoproteção coletiva e individual, bem
como antecipar os problemas que futuramente poderiam surgir, apreciando as preocupações
da comunidade, explicando os serviços da polícia com precisão e analisando informações
7
“Art. 29. O sentimento do dever, o pundonor policial-militar e o decoro da classe impõem a cada um dos inte-
grantes da Polícia Militar, conduta moral e profissional irrepreensível, com a observância dos seguintes preceitos
de Ética Policial-Militar: [...] III Respeitar a dignidade da pessoa humana; [...]”. (SANTA CATARINA, 1983).
86 | ALBERTO CARDOSO CICHELLA | LEONARDO ALFREDO DA ROSA | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
que levem a prisões de infratores(as) em potencial. Para mudar e encurtar a distância entre
a comunidade e a Polícia é preciso estabelecer estratégias para que a segurança pública se
torne mais eficiente.
As organizações policiais devem levar em conta o relacionamento com o público
num contexto de democratização e buscar estratégias mais eficientes para lidar com o pro-
blema da criminalidade, dentre essas, atuações descentralizadas que possibilitem lidar com
problemas e soluções locais. Com isso, o desenvolvimento de instrumentos mais precisos
para a análise dos registros de ocorrências contribui para o desenvolvimento de ações para
casos específicos de violência (BEATO FILHO, 2000). O rompimento com o modelo reativo se
configurou com a estruturação de uma concepção de polícia comunitária, entendida como:
Uma filosofia e uma estratégia organizacional que proporcionam uma nova parceria
entre a população e a polícia. Baseia-se na premissa de que tanto a polícia quanto a
comunidade devem trabalhar juntas para identificar, priorizar e resolver problemas
contemporâneos, tais como: crime, drogas, medo do crime, desordens físicas e mo-
rais e, em geral, a decadência do bairro, com o objetivo de melhorar a qualidade geral
da vida na área (TROJANOWICZ; BUCQUEROUX, 2003, p. 4)
Dias Neto (2003), nessa linha, ensina que o policiamento deve ser caracterizado por
uma concepção mais ampla da função policial que abrange a variedade de situações não cri-
minais que levam o público a invocar a presença da polícia. Considerando, dessa forma, uma
descentralização dos procedimentos de planejamento e prestação de serviços, para que as
prioridades e estratégias policiais sejam definidas de acordo com as especificidades de cada
localidade e uma maior interação entre policiais e cidadãos, visando ao estabelecimento de
uma relação de confiança e cooperação.
Conclusão
Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Brasil deu um
grande passo, ao menos formalmente, para o Estado deixar de ser um fim em si mesmo e,
gradativamente, focar seus esforços na satisfação dos legítimos interesses da sociedade.
O cidadão passa a ter consciência de seu papel e de importância no contexto social,
numa postura ativa, com possibilidade de exigir a concretização e preservação de seus direi-
tos e garantias, sejam individuais, coletivos ou difusos. Nesse cenário, imposições arbitrá-
rias, apoiadas exclusivamente na vontade da autoridade, não são mais aceitas como outrora.
O Brasil, ao cumprir com o seu dever constitucional, estabeleceu na CRFB/1988 o
rol de órgãos responsáveis pela segurança pública, que são: a polícia federal, a polícia ro-
doviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis estaduais, as polícias militares
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 87
Referências
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RENATO CECHINEL 1
ANDRÉ AFONSO TAVARES 2
REGINALDO DE SOUZA VIEIRA 3
Introdução
A forma como o Estado é organizado no sentido de administração da coisa pública
está em constante evolução e é possível identificar três modelos ou fases distintas de admi-
nistração Estatal, a saber: patrimonial, burocrático e gerencial. O modelo patrimonial é mar-
cado pela confusão entre o Estado e o soberano, ou seja, o soberano era a personificação do
Estado, assim não existindo a coisa pública no sentido contemporâneo, sendo comum o uso
indevido da máquina pública para fins pessoais, corrupção e nepotismo.
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/
Unesc). Especialista em Prática Jurídica pela Escola Superior de Magistratura do Estado de Santa Catarina
(Esmesc/Unesc). Especialista em Direito Administrativo e especialista em Direito Processual Moderno ambas
pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Unesc. Membro do Núcleo de Estudos em Estado,
Política e Direito (Nuped/Unesc). Advogado. Servidor Público Municipal no cargo de Analista de Controle Interno.
E-mail: advrenatoc@gmail.com.
2
Mestrando Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc).
Membro do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Especialista em Direito Público e em
Auditoria Governamental. Graduado em Direito e em Ciências Contábeis. Graduando em Engenharia de Software.
Advogado. Contador. E-mail: afonsotavares.andre@gmail.com.
3
Mestre e doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (PPGD/UFSC). Professor, pesquisador e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradua-
ção em Desenvolvimento Socioeconômico (mestrado e doutorado) da Unesc. Coordenador do Núcleo de Estu-
dos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc) e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (LADSSC/
Unesc). Membro da Rede Ibero-americana de Direito Sanitário. Membro e Coordenador da Rede Brasileira de
Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos. Advogado. E-mail: prof.reginaldovieira@gmail.com.
90 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
No patrimonialismo, não é possível afirmar que existe coisa pública em sentido con-
temporâneo, uma vez que o próprio Estado se confunde com patrimônio do soberano,
sendo mera extensão daquilo que lhe pertence. O interesse perseguido é sempre o
de quem detém o aparelho de Estado em suas mãos, não se podendo falar, nesse
92 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
Conforme Paludo (2012, p. 50) “tudo que existia nos limites territoriais de seu “reina-
do” era tido como domínio do soberano, que podia utilizar livremente os bens sem qualquer
prestação de contas à sociedade”.
O modelo de administração burocrática substituiu o modelo patrimonialista, e se
orienta pelo cumprimento às normas, à formalidade e pelo profissionalismo, ou seja, a ideia
de igualdade por meio de regras formais. Para Paludo (2012, p. 56), o modelo burocrático:
[...] trouxe novos conceitos à Administração Pública: a separação entre a coisa pú-
blica e a privada, regras legais e operacionais previamente definidas, reestruturação
e reorientação da administração para atender ao crescimento das demandas sociais
e aos papéis econômicos da sociedade da época, juntamente com o conceito de
racionalidade e eficiência administrativa no atendimento às demandas da sociedade.
[...] tornar a Administração Pública mais ágil no atendimento das demandas sociais,
ao mesmo tempo em que pretendia devolver ao Estado a capacidade de investir, me-
diante a contenção da dívida pública e a redução do custo dos serviços prestados.
Foi trazido da iniciativa privada para o setor público o conceito de produtividade (fazer
mais com menos), e iniciaram-se as grandes privatizações.
Nesse segundo modelo, embora a redução de custos continue fazendo parte da efi-
ciência do Estado, ela deve estar acompanhada da qualidade do serviço prestado, passando
a reconhecer o cidadão como cliente dos serviços prestados pelo Estado, tendo como prio-
ridade a satisfação desse cliente. (PALUDO, 2012). Os elementos desse estágio, conforme
Bento (2003, p. 91), são:
1º o Estado serve a cidadãos e a não clientes, devendo focar seus esforços no sentido
da construção de relações de confiança e colaboração com os cidadãos, encorajan-
do a assunção de suas responsabilidades como tais, trabalhando conjuntamente na
construção de uma cidadania ativa; 2º - a ação administrativa deve estar orientada à
identificação do que seja o interesse público; 3º - o Estado deve valorizar a cidadania
e o serviço público mais do que o empreendedorismo; 4º - a ação administrativa deve
ser concebida estratégica e democraticamente, como caminho de potencialização de
96 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
[...] previa, já àquela época, o direito de pedir a prestação de contas ao agente públi-
co, demonstrando a preocupação e a importância do controle das atividades e das
finanças do governo. Surgiu inicialmente em razão da necessidade de controle sobre
a arrecadação tributária, dado que, antigamente, era extremamente pessoal a relação
entre contribuinte e Fisco. O Fisco, na realidade, era representado na personificação
estatal da figura do arrecadador, o que facilitava a malversação dos recursos públicos
e a corrupção dos agentes imbuídos dessa função.
Assevera-se que é possível visualizar, ainda que timidamente, nos países latinos,
dentre eles o Brasil, os controles internos passando a atuar para a verificação dos atos ad-
ministrativos sob o trinômio: prevenção, orientação e correção (CONTI, CARVALHO, 2011).
Roberto Piscitelli (1998, p. 74) traz uma definição tida como moderna ao definir os
quatro principais objetivos dos Controles Internos: “revisão e/ou verificação das operações
sob o aspecto eminentemente contábil, formal e legal”; “eficiência, que concerne aos meios
empregados, aos recursos utilizados para a consecução dos objetivos”; “a eficácia, a verifi-
cação do produto, dos programas, dos fins perseguidos”; e “a avaliação dos resultados, ou
seja, o julgamento da própria administração”.
Deve-se asseverar que Piscitelli (1998), ao elaborar o que entende como moderno
conceito de controle interno, traz como primeiro objetivo a necessidade de manutenção da
avaliação dos aspectos formais e de legalidade já consolidados como prática, mas destaca
que atualmente o controle interno necessita ir além. Assim, este deve alcançar principal-
mente os aspectos da eficiência e eficácia, ou seja, o controle sobre os procedimentos e
resultados, e destaca como atribuição dar subsídios para o controle vertical (sociedade).
As diretrizes da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores
(INTOSAI) para Padrões de Controles Internos para o Setor Público (2004, p. 6) definem
controle interno como:
[...] um processo fundamental efetuado por todos em uma entidade, projetado para
identificar riscos e fornecer garantia razoável de que, ao se buscar cumprir a mis-
são da entidade, os seguintes objetivos gerais serão atingidos: executar operações
de forma organizada, ética, econômica, eficiente e eficaz; cumprir as obrigações de
accountability; estar em conformidade com as leis e os regulamentos aplicáveis; sal-
vaguardar recursos contra perda, abuso e dano.
Sobre essa nova forma de se entender os controles, Conti e Carvalho (2011, p. 203)
esclarecem que este vem se modificando com o tempo e “começa a ganhar outros ares,
indo além do mero controle burocrático, promovendo-se um verdadeiro controle gerencial”.
Spinelli (2009, p. 32) destaca que há caráter de accountability horizontal no controle
interno “por se configurar como uma instância pertencente ao ambiente estatal com capa-
cidade de monitorar e controlar seus próprios atos administrativos”, assim havendo uma
separação de funções da administração pública, em que a função executora passa a ser
policiada pela função controladora.
Para Juan Eduardo Toledo Cartes (2003, p. 1-2), necessário destacar que o controle
interno seja descentralizado, com um órgão permanente e possuir independência funcional,
com “unidades de controle interno deliberadas, representativas de uma capacidade de ob-
98 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
servação independente das linhas executoras, e de apoio efetivo às autoridades das institui-
ções públicas”. O controle passa a ser relevante como instrumento de apoio da autoridade
administrativa, assessorando-a na fiscalização, controle e orientação da coisa pública.
Ainda nessa linha de raciocínio Conti e Carvalho (2011, p. 210) destacam:
Além da função fiscalizatória, também são abarcadas pelo controle interno a preven-
ção e a orientação. Trata-se de importante instrumento para que a Administração
Pública alcance a eficiência, sinônimo de otimização na atuação governamental de
gestão de recursos públicos. Para isso, o controle interno deve, ao mesmo tempo,
integrar o órgão a que pertence e ter autonomia e independência suficientes para
exercer livremente suas atribuições, que abrangem, em função da sua competência,
a apuração de irregularidades, apontamento de falhas, orientação da atuação dos
gestores e indicação das melhores práticas de gestão.
Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal,
mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo
Municipal, na forma da lei.
[...]
Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da
União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legiti-
midade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exer-
cida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle
interno de cada Poder.
[...]
Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada,
sistema de controle interno com a finalidade de: I - avaliar o cumprimento das metas
previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamen-
tos da União; II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia
e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e enti-
dades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por
entidades de direito privado; III - exercer o controle das operações de crédito, avais e
garantias, bem como dos direitos e haveres da União; IV - apoiar o controle externo no
exercício de sua missão institucional (BRASIL, 1988, grifo nosso).
100 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
Art. 59. O Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas,
e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público, fiscalizarão o
cumprimento das normas desta Lei Complementar, com ênfase no que se refere a:
I - atingimento das metas estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias; II - limites e
condições para realização de operações de crédito e inscrição em Restos a Pagar; III
- medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite,
nos termos dos arts. 22 e 23; IV - providências tomadas, conforme o disposto no art.
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 101
31, para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respec-
tivos limites; V - destinação de recursos obtidos com a alienação de ativos, tendo em
vista as restrições constitucionais e as desta Lei Complementar; VI - cumprimento do
limite de gastos totais dos legislativos municipais, quando houver (BRASIL, 2000).
são marcados por uma atuação repressiva e punitiva, o que demonstra a falta de uma cultura
de acompanhamento das fases de execução dos atos administrativos (PESSOA, 1998). Essa
característica dos controles internos de um trabalho de correição a posteriori prejudica a
atuação dos órgãos de controle interno como instrumento de aprimoração da administração
pública, as atividades puramente coercitivas têm sua abrangência limitada, pois o ato já foi
consumado, assim são menos tempestivas em relação à garantia da segurança jurídica
(ROCHA, 2002).
Nesse momento em que as instituições estão voltadas para o futuro e preocupadas
em acompanhar as constantes mudanças, os controles internos apresentam limitações e
falta de sincronia, com uma predisposição para o presente e para o passado, sem foco para
o futuro. Essa obsolescência provém de um projeto ultrapassado formulado no passado para
uma forma de controle das atividades que talvez não sejam mais relevantes (MCNAMEE,
SELIM, 1999).
Por isso o controle interno não deve ocorrer somente após o ato, pois uma inefi-
ciência já ocorrida dificilmente poderá ser desfeita. Desse modo, o controle interno para
ser eficaz deve acompanhar a execução e identificar a ineficiência antes do momento da
ação. Significa dizer que objetivos, planos, políticas e padrões preestabelecidos devem ser
compreendidos antes de sua realização e ter acompanhamento concomitante, ocorrendo um
controle prévio, sendo possível aos responsáveis nortear as políticas, corrigi-las a tempo,
para que estas apresentem resultados eficazes (WELSCH, 1996).
Deve o controle estar interligado, de forma a acompanhar, no tempo e espaço, to-
das as fases de desenvolvimento da ação em andamento, identificando as situações que
causam a ineficiência e orientando para que sejam adotadas medidas compensatórias e/ou
alterações nos processos para reduzi-las, assim alcançando a máxima eficiência possível
(PESSOA, 1998; ABRAMO, 2004).
Portanto, os Sistemas de Controle Interno (SCI) devem acompanhar os processos de
evolução da administração pública e se fortalecerem como instituição, passando a cumprir
com autonomia e isenção sua missão constitucional de acompanhar o desenvolvimento de
políticas públicas, orientando os gestores das ineficiências verificadas visando corrigi-las
antes do resultado ineficaz. Mesmo assim continua o controle a posteriori quanto à legalida-
de e sua característica punitiva quando necessário, contudo, agora imprescindível garantir a
eficiência da atuação administrativa e demonstrar se as políticas públicas desenvolvidas pelo
Estado apresentam resultados eficazes, garantindo ao cidadão e à sociedade informações
seguras e confiáveis acerca da atuação estatal.
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 103
Conclusão
Demonstrou-se que a Administração Pública tem evoluído constante, iniciando o
estudo pelo modelo patrimonialista, passando para o burocrático e, por fim, o gerencial,
abordando os estágios desse último modelo, sendo que o estágio atual denomina-se modelo
gerencial orientado ao serviço público.
Ao passo que os Sistemas de Controle Interno (SCI), segmento da própria admi-
nistração pública que visa salvaguardar a legalidade, eficiência e eficácia das ações admi-
nistrativas, também evoluíram, sendo instituídos originalmente como órgãos de atestação
da conformidade legal dos procedimentos burocráticos da administração, passando para o
trinômio da orientação, prevenção e correção de ações, para, por fim, abarcarem a avaliação
dos resultados com a finalidade de atestar sua eficácia real.
Observou-se que a evolução da administração e dos SCI deve se dar de forma
concomitante, devendo o SCI ser instrumento de auxílio da evolução do Estado enquanto
propulsor de políticas públicas, pautando-se pelos princípios relacionados à cidadania, re-
publicanismo e democracia utilizando-se de conceitos como accountabillity, transparência,
participação política, equidade e justiça.
Constatou-se que a legislação brasileira adota o moderno entendimento de SCI for-
mado pelo conjunto de atribuições que abarcam a verificação dos aspectos formais e le-
gais aliados à orientação, prevenção, correção e avaliação quanto à eficácia dos resultados.
Porém, verificou-se que na prática esses controles apresentam características puramente
burocráticas, no sentido de atuarem estritamente na verificação da formalidade e legalidade
dos procedimentos administrativos, demonstrando uma falha do Estado que não consegue
controlar a si mesmo e que, como reflexo, inviabiliza o controle por parte da sociedade, pois
as informações produzidas são escassas e não possuem qualidade substancial.
Assim traz este estudo a reflexão quanto à importância do avanço concomitante dos
SCI com o da administração pública estatal, sendo necessário o aperfeiçoamento da insti-
tuição de controle interno como meio de auxiliar o aprimoramento da administração pública,
suas políticas e as informações disponibilizadas aos cidadãos e à sociedade como um todo.
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Introdução
O presente artigo aborda a temática do desenvolvimento sustentável da Agenda 2030
da Organização das Nações Unidas (ONU), com base na análise do cooperativismo de pla-
taforma como instrumento de desenvolvimento na sociedade contemporânea. Trata-se de
um tema complexo e contemporâneo, porque enfrenta situações que estão ocorrendo em
tempo real na nossa sociedade, reflexos do fenômeno da globalização e, especialmente, dos
avanços tecnológicos que tomaram conta das mais diversas relações sociais.
O objetivo geral deste estudo consiste em analisar as potencialidades do cooperati-
vismo de plataforma como um instrumento de desenvolvimento sustentável pluridimensional
na Agenda 2030 da ONU. Especificamente, tem-se a tarefa de compreender o mundo do
trabalho e seus desafios no cooperativismo de plataforma; a de estudar o desenvolvimento
sustentável pluridimensional e a Agenda 2030 da ONU como um novo marco civilizatório; e,
por fim, verificar se o cooperativismo de plataforma pode vir a ser considerado um instru-
mento de desenvolvimento sob a ótica da Agenda 2030 da ONU.
1
Doutoranda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade Co-
munitária da Região de Chapecó – Unochapecó. Advogada. E-mail: isadoralazaretti@unochapeco.edu.br.
2
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Unochapecó. E-mail: golsson71@gmail.com.
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 109
garantidores de sua subsistência, tendo, assim, se tornado uma necessidade humana. Des-
de o surgimento das relações de trabalho no mundo, inúmeras foram as transformações
ocorridas nesse campo, especialmente pelo avanço da sociedade e, mais recentemente, pela
emergência do fenômeno da globalização.
A globalização reconfigurou diversas esferas da vida em sociedade, por exemplo, no
campo das comunicações, transportes, informática, telemática, alimentação, e, em especial,
as relações de trabalho, uma vez que todos esses campos passaram a depender cada vez
mais da tecnologia, da criatividade, das indústrias e das inovações. Trata-se, assim, nas
palavras de Ianni (2007, p. 9), de “[...] um processo de amplas proporções” que envolve
“nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais,
economias e sociedades, culturas e civilizações”.
Passou-se a verificar o surgimento de nova economia, que transformou as relações
de trabalho a partir do deslocamento do poder do Estado para, em especial, as gigantescas
empresas transnacionais. Os mercados passaram a se integrar numa velocidade surpreen-
dente, resultando na circulação cada vez maior e mais rápida de bens e serviços, assim
como de capital, informação e tecnologia em escala global como nunca tinha se visto (FA-
RIA, 1999).
As operações de capital passaram a envolver montantes elevados e com maior mo-
bilidade (CHESNAIS, 1998). Essas modificações, consequentemente, geraram grande re-
percussão sobre os empregos e a política social, inclusive, com a flexibilização dos direitos
trabalhistas em uma espécie de “corrida para baixo”, em que os Estados reduzem os seus
padrões de proteção social (e, em paralelo, de proteção ambiental e de taxação de tributos),
na tentativa de ampliar a atração de investimentos externos.
Nesse sentido, pode-se mencionar que a globalização, na perspectiva de Faria (1999,
p. 75), relaciona-se com a “progressiva conversão das ciências exatas, biomédicas e huma-
nas em técnicas produtivas”, em razão da reunião da tecnologia nos processos produtivos
ao longo dos anos. Com base nessas mudanças, emergiu, assim, um novo modelo de pro-
dução que envolve a divisão do trabalho e a própria organização empresarial, a exemplo do
fordismo e do taylorismo (OLSSON, 2006). Esses modelos de produção são considerados
por Faria como uma espécie de “produção em massa de produtos homogêneos” que fazem
uso da “tecnologia rígida da linha de montagem com maquinário especializado e rotinas de
trabalho padronizadas por métodos tayloristas” (1999, p. 76).
A utilização da ciência enquanto uma técnica voltada para a produção resultou num
conjunto de transformações técnicas e científicas decorrentes da “cooptação do conheci-
mento científico pelo capital”. Albuquerque (2006) menciona como exemplos o fordismo e
o toyotismo, utilizando-se, ainda, da concepção de Faria (1999) para descrever essas novas
formas de organização do trabalho produtivo.
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 111
da proposição da “ética da responsabilidade”, uma vez que, no mundo hodierno, diante dos
grandes avanços tecnológicos das últimas décadas, ao homem tornou-se possível destruir
com facilidade a natureza e prejudicar as futuras gerações, de modo que se faz necessária
a prática de uma ética para a humanidade, focada no princípio da responsabilidade (MAR-
QUES; BARBOSA; ARAÚJO, 2017). Na verdade, a contribuição da Agenda 2030 não é no
sentido de abandonar as principais premissas da visão tradicional, mas sim de incorporar
novas dimensões, articulá-las e introduzir novos atores no debate, o que criou um projeto
não apenas mais completo e complexo, como substancialmente mais ambicioso.
Para Silva (2010), o termo “desenvolvimento sustentável” configura um conceito
multifacetado, e considera que sua definição não é pacífica, na medida em que seria possível
distinguir mais de sessenta significados. Contudo, para a autora, apesar da existência de
uma diversidade de significados, o desenvolvimento sustentável trouxe de novo “uma refle-
xão teórica que incorporou novas dimensões, tais como ecologia, equidade, justiça social”
(SILVA, 2010, p. 407).
A noção de desenvolvimento sustentável se transformou em uma categoria-chave,
que nos últimos anos passou a ser amplamente divulgada, constituindo um campo em que
transitam diferentes grupos sociais e de interesses, como economistas, políticos, ecologis-
tas, profissionais do setor público e privado, e empresas, dentre outros (LEITE; CAETANO,
2010).
Com a instituição da Agenda 2030 e com a premissa de que a realização desse pro-
jeto demanda boas práticas de governança, a promoção do desenvolvimento em nome des-
sa “boa governança” ocupou o centro dos debates sobre as políticas de desenvolvimento.
Segundo Chang (2004, p. 124), “todos os países devem adotar um conjunto de ‘instituições
boas’ [...]”, a partir da outorga aos países de um prazo mínimo de transição para mudanças.
Apesar da iniciativa, não se sabe quando os Estados e a humanidade avançarão no
cumprimento e no alcance dos objetivos e metas de desenvolvimento sustentável da Agenda
2030. Todavia, algumas práticas se apresentam, desde logo, como potenciais aliadas para
esse fim, como, em destaque, o direito ao trabalho decente e as possibilidades de as novas
plataformas constituírem instrumentos de desenvolvimento, cuja análise será realizada no
próximo tópico.
dos trabalhadores. Deve ser analisada do ponto de vista que se tratam de inovações que
podem, em alguma medida, melhorar a vida das pessoas, desde que os avanços implemen-
tados por esse novo cenário não ocorram às custas da piora das condições de trabalho.
Nesse viés, a Agenda 2030 da ONU elenca que um de seus objetivos é a promoção
do crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo
e o trabalho decente para todos, de modo que as plataformas de trabalho podem ser con-
sideradas como um instrumento de efetivação do desenvolvimento sustentável, na medida
em que essa nova economia estimula o empreendedorismo, erradica o trabalho forçado e as
formas análogas a do trabalho escravo, garantindo a todos o alcance de seu potencial e de
suas capacidades (ONU, 2015).
De igual modo, considerando que as plataformas digitais de trabalho se tornaram
acessíveis para um número indeterminado de pessoas, ainda que não se trate de um em-
prego formal com a garantia de direitos trabalhistas assegurados pela legislação de cada
Estado nacional, essa atividade pode configurar um meio de melhorar a vida daqueles que a
exercem, permitindo auferir uma fonte de renda. Segundo a ONU (2015), globalmente, mais
de 700 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 1,90 por dia, e mais da metade da
população global vive com menos de US$ 8,00 por dia. Esses dados são fornecidos para
justificar o primeiro objetivo a ser alcançado pela Agenda 2030, que consiste na erradicação
da pobreza e redução das desigualdades sociais.
Nesse viés, a economia do compartilhamento, verificada por meio das novas plata-
formas, pode vir a ser uma “estrada que sinaliza um futuro do trabalho melhor” (SCHOLZ,
2017, p. 19), contribuindo, inclusive, para a inclusão social e erradicação da pobreza. Exem-
plos como o do Airbnb, na mesma linha, apontam para a possibilidade de ocupação de espa-
ços urbanos ociosos e a complementação de renda dos proprietários dos imóveis, o que, de
alguma forma, pode contribuir para o seu sustento. É certo que essas plataformas, com seus
modelos de negócios disruptivos, atingem em cheio outros modelos tradicionais, como os
do setor de hotelaria. Contudo, a extensão e a profundidade das transformações e impactos
precisam ser analisadas em todo o contexto social, e não apenas da perspectiva de empre-
sas já estabelecidas em um ou outro modelo, como uma reação meramente concorrencial.
Além disso, a utilização das novas plataformas pode tornar a vida mais acessível,
conveniente e eficiente, além de que suas práticas são, muitas vezes, mais benéficas para o
meio ambiente do que os modelos tradicionais mostraram ser. Exemplo disso são as empre-
sas que adaptaram suas atividades de logística, ao adotar o uso de frotas compartilhadas,
reduzindo além de custos de transporte, o consumo de combustíveis, melhorando a mobili-
dade, e contribuindo para a redução da emissão de gases de efeito estufa.
Por fim, considerar as plataformas como instrumentos à efetivação do desenvolvi-
mento não significa ignorar ou abandonar a perspectiva do alcance de formas de trabalho
mais dignas. Pelo contrário, essa análise é feita de forma crítica, de modo a contribuir com
120 | ISADORA KAUANA LAZARETTI | GIOVANNI OLSSON
Conclusão
A partir da realização do presente estudo, foi possível verificar que o cenário atual
está marcado pelo desenvolvimento tecnológico e científico, pela transnacionalização das
fronteiras, pela globalização e pelo livre acesso de informações, ampliando, assim, os deba-
tes que envolvem os direitos humanos, e, especificamente, o trabalho digno. Com o marco
da Agenda 2030 da ONU, que configurou um novo projeto civilizatório a ser observado, o
debate envolvendo o desenvolvimento sustentável se tornou recorrente. Esse plano de ação
conta com objetivos e metas que se preocupam com o crescimento econômico, com o meio
ambiente e com a pessoa humana, em qualquer lugar e sob qualquer protagonismo.
Verificou-se, assim, que, com o advento da globalização e das inovações tecnológi-
cas, várias foram as mudanças ocasionadas à sociedade como um todo. Em especial, des-
tacam-se as relações de trabalho, que estão em constante transformação, proporcionadas
pelo surgimento das plataformas virtuais de serviços. A princípio, o desemprego, a informa-
lidade das relações de trabalho e a redução dos níveis de proteção trabalhista foram vistos
como resultados do fenômeno globalizante, na medida em que, atualmente, a prestação de
serviços por trabalhadores autônomos reduz o custo de trabalho e aumenta a lucratividade
das grandes corporações. Contudo, a utilização das plataformas digitais pode configurar um
instrumento de promoção do desenvolvimento.
Por exemplo, dentre os objetivos elencados pela Agenda 2030 da ONU, está o obje-
tivo de promover o crescimento econômico e sustentado, inclusivo e sustentável, além do
emprego pleno e produtivo e o trabalho decente para todos. A partir desse objetivo, é possí-
vel considerar que as plataformas de trabalho estimulam o empreendedorismo, contribuindo,
de alguma forma, para a erradicação do trabalho forçado, permitindo a todos o alcance
de seu potencial e de suas capacidades, especialmente porque as plataformas digitais são
facilmente acessíveis.
Ainda que não se trate de um emprego formal, e que se discuta a garantia e a pro-
teção dos direitos trabalhistas, o exercício dessa modalidade de atividade configura uma
forma de oportunizar renda a uma massa de trabalhadores já excluídos do mercado formal,
vindo a contribuir para a inclusão social, redução de desigualdades e erradicação da pobreza,
objetivos que fazem parte do plano de ação descrito na Agenda 2030 da ONU. Nessa esteira,
não se trata de endossar o modelo econômico ou de estimular a sua expansão, mas de tentar
compreender melhor seus limites, e, em especial, as possibilidades que pode oferecer no
contexto contemporâneo.
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 121
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CAPÍTULO VIII
Introdução
O cenário é o seguinte: é domingo e a família se reúne à mesa para almoçar a comida
feita pela mãe. Todos comem. Os homens sentam no sofá. Elas devem guardar a comida que
restou e lavar as louças sujas. Segundo a última pesquisa do IBGE, as mulheres trabalham,
em média, 20,9 horas semanais nos afazeres domésticos, enquanto os homens trabalham
apenas 11,1 horas. Outra pesquisa3, de 2015, constatou que 82% das tarefas domésticas
ainda são realizadas por elas. Engana-se, portanto, quem pensa que essa estrutura ficou no
passado. É só parar para pensar como acontece nas casas dos brasileiros.
Muito além dos dados, a proposta é ultrapassar os números para perguntar: o as-
sunto está sentado na sala da sua casa? Em algum momento de sua vida, uma mulher fez
o seu jantar, lavou sua roupa e te proporcionou usar o tempo para estudar, trabalhar e se
1
Doutora em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra em Direito,
Estado e Sociedade (UFSC). Doutoranda em Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Humano. Professora
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atuante em Graduação e em Pós-Graduação em Direito, nas
disciplinas de Direito e Feminismos, Hermenêutica Jurídica, Prática Jurídica e Metodologias do Ensino Jurídico e
da Pesquisa. Pesquisadora Líder do Grupo de Pesquisa/CNPq Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminis-
mos pesquisa sobre sistemas sociais, epistemologias críticas e análise discursiva jurídica. E-mail: grazyab@
gmail.com.
2
Mestra do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), na
área de Historicismo, Conhecimento Crítico e Subjetividade. Graduada em Direito (CESUSC). Pesquisadora do
Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos Lilith. E-mail: almeidacoelhobeatriz@gmail.com.
3
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/mulheres-trabalham-7-5-horas-a-mais-do-que-os-
-homens-devido-a-dupla-jornada. Acesso em 10/07/2019.
124 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO
desenvolver pessoalmente? Porque é na vida que nos encontramos: quem lê, quem pesquisa
e quem escreve. Como disse Angela Davis (2016), por mais impressionante que qualquer
estatística possa parecer, ela não é sequer uma estimativa da atenção constante e impossível
de ser quantificada que as mães precisam dar às suas crianças. Assim como as obrigações
maternas de uma mulher são aceitas como naturais, o infinito esforço como dona de casa
raramente é reconhecido no interior da família.
Por essa razão, Marcia Tiburi (2018) sugere que não podemos pensar na questão
das mulheres sem pensar no trabalho, principalmente porque o trabalho é uma necessidade
que a civilização capitalista impõe. A problematização da conexão entre gênero e trabalho
nos permite questionar “categorias e métodos que aprendemos a considerar neutros” (SOU-
ZA-LOBO, 1991, p. 149).
Nessa perspectiva, precisamos analisar onde, como e quando as mulheres traba-
lham. Porque não é exagerado se falarmos que, desde o nascimento, uma menina está con-
denada a um tipo de trabalho que se parece muito com a servidão e que, em tudo, é diferente
do trabalho remunerado, ou, dependendo da classe social a qual pertence, o trabalho que se
pode escolher (TIBURI, 2018).
Em diferentes contextos, lugares, países e culturas, mulheres em idades distintas
trabalharão para homens de sua família. Serão, apenas por serem mulheres, submetidas ao
trabalho doméstico. Desde a infância, entre panelinhas cor-de-rosa e bonecas para alimentar,
as mulheres são educadas para os enlaces romantizados dessas tarefas. Apresentam-lhes
o casamento como plano único de sucesso e não como uma possibilidade de vida. Ainda,
mesmo quando, mais tarde, tiverem um emprego fora de casa, a maior parte das mulheres
trabalhará mais do que os homens, em decorrência do trabalho remunerado e do não re-
munerado. Com pouco ou nenhum tempo para desenvolverem outros aspectos da própria
vida. A questão central está também em acreditar que isso é natural, como se fosse uma
predisposição biológica que acompanha as mulheres (TIBURI, 2018).
Há uma exploração que se efetiva porque o trabalho doméstico é realizado por mu-
lheres. Contudo, isso não significa que a exploração seja aplicada nas mesmas condições
a todas as mulheres. Isso porque a divisão sexual do trabalho dita as regras ao trabalho do-
méstico, mas o faz de maneiras distintas e afeta as mulheres de forma e em graus desiguais,
levando em consideração os fatores de classe e raça.
Por essa razão, Saffioti (2013, p. 133) destaca a concentração de renda como com-
ponente incontornável das hierarquias: “se as mulheres da classe dominante nunca puderam
dominar os homens de sua classe; puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da
força de trabalho de homens e mulheres da classe dominada”.
É que as mulheres são impactadas de maneiras distintas pela atribuição distinta das
responsabilidades. A ideia de que as mulheres “entraram no mercado de trabalho” nas últi-
O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE TRABALHO DAS MULHERES | 125
mas décadas não se aplica àquelas mulheres que nunca tiveram a possibilidade de não fazer
parte dele. Ainda que isso significasse uma antecipação da problemática atual de acúmulo
de trabalho doméstico com trabalho mal remunerado (BIROLI, 2015). Entre as camadas mais
pobres da sociedade, há muito o trabalho fora de casa representava mais uma estratégia
familiar de sobrevivência das mulheres do que norma de gênero.
Nesse contexto, o documentário Babás, produzido e dirigido por Consuelo Lins, traz
a foto de um bebê branco no colo de sua ama de leite. A informação se constata sem nada
dizer, porque para ter direito à foto, a mulher certamente amamentou a criança desde os
primeiros dias de vida. O menino se apoia nela com afeto e intimidade. Provavelmente, ela
transferiu a ele o amor pelos filhos, que lhe foram tirados para que pudesse ser ama de leite.
“Talvez por isso a dureza no olhar que confronta a câmera. Quase todo Brasil cabe nessa
foto”, afirmou o historiador Luiz Felipe Alencastro no documentário. Não sabemos se quase
todo Brasil cabe nessa imagem, mas da história de muitas famílias brasileiras certamente
faz parte.
O ponto aqui é que as desvantagens que atingem as mulheres não são suficientes
para que se constitua um grupo de interesses homogêneos. O gênero não se configura de
maneira independente em relação à classe e à raça. Entretanto, também não é apenas um
acessório irrelevante da equação.
É nesse panorama que se pretende analisar a conexão entre a forma como é feita a
divisão sexual do trabalho e o tempo de trabalho das mulheres. Questiona-se, portanto, qual
é o valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres.
Partindo-se de tal objetivo, será brevemente abordada a divisão sexual do trabalho
no centro da dinâmica de opressão das mulheres e da produção do gênero. Tudo isso a se
verificar o real valor social do trabalho doméstico não remunerado.
Na sequência, passa-se a discutir a intersecção da produção do gênero com ques-
tões de classe e raça, especificamente em relação a esse tipo de trabalho. Depois, expõe-se
brevemente uma pesquisa que busca demonstrar o valor econômico do trabalho doméstico
se fosse remunerado e contabilizado. Por fim, avança-se na discussão, que conecta a divi-
são sexual do trabalho à produção das vulnerabilidades que constrangem estruturalmente as
possibilidades de vida das mulheres.
O passo seguinte foi definir todo trabalho feminino, quando realizado em casa, como
“tarefa doméstica”. Mesmo quando realizado fora de casa, era dado-lhe um valor menor do
que o atribuído ao trabalho masculino. Nunca era remunerado o suficiente para que as mu-
lheres pudessem sobreviver dessa renda (FEDERICI, 2017). A produção foi transferida para
as fábricas, minas e escritórios. Nesses lugares, foi considerada “econômica” e remunerada
com salários em dinheiro. A reprodução social, por outro lado, foi relegada “à família”, em
que foi feminizada e sentimentalizada, definida como “cuidado” (em oposição à “trabalho”)
e realizada por “amor”, em oposição ao dinheiro (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER,
2019).
Em decorrência da dependência financeira, o casamento virou a carreira das mulhe-
res, e o contrato de casamento um contrato de trabalho. O contexto aqui é da mulher branca
e de classe média ou alta, possivelmente europeia. Nesse caso, tornar-se esposa implica tor-
nar-se dona de casa; ou seja, a esposa é alguém que trabalha para seu marido de forma não
remunerada no lar conjugal (PATEMAN, 1993). Quando se adicionam as atividades sexuais
como “atribuições” da mulher casada, diz-se que “se um homem se casa com sua emprega-
da doméstica ou com uma prostituta, o mesmo trabalho e a mesma mulher repentinamente
se tornarão não remunerados e improdutivos” (BIROLI, 2016, p. 8).
Contudo, no contexto do pensamento anglocentrado, ao longo do tempo a família
assumiu diferentes formas. A partir do surgimento de demandas por força de trabalho, o sis-
tema capitalista interferiu na manutenção do sistema patriarcal. As mulheres tiveram que sair
de casa para trabalhar e suprir essa necessidade. Contudo, foi a privatização do trabalho das
mulheres – imposta pelo sistema patriarcal – que tornou a mão de obra feminina mais barata,
se comparada a dos homens. Assim surgiram as duplas ou triplas jornadas das mulheres,
que se mantiveram responsabilizadas pela vida doméstica (WALBY, 1990).
Nesse contexto surge a crise da reprodução social. O trabalho de reprodução social
não tem seu valor reconhecido e é tratado como uma “dádiva” gratuita e inesgotável. Pre-
sume-se que sempre haverá energia suficiente para produzir seres humanos, que por sua
vez serão mão de obra e sustentarão as relações sociais das quais a produção econômica
depende. Porém, a forma atual, neoliberal de capitalismo está mostrando exatamente o con-
trário: ao expor suas principais provedoras a longas e cansativas jornadas de trabalho mal
remuneradas, está esgotando sistematicamente as capacidades individuais e coletivas para
reconstituir os seres humanos e para sustentar os laços sociais (ARRUZZA; BHATTACHAR-
YA; FRASER, 2019).
À primeira vista, essa estrutura pode parecer estar destruindo a divisão de gênero
entre mão de obra produtiva e reprodutiva. Proclama-se o novo ideal de “família com dois
salários”. Porém, esse ideal é fraudulento. É verdade que uma pequena parte das mulheres
O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE TRABALHO DAS MULHERES | 127
Muito mais do que limpar a casa, serve-se os trabalhadores remunerados de forma física,
emocional e sexual, preparando-os para o trabalho dia após dia. Cuida-se das crianças,
que são os trabalhadores do futuro. Amparando-as desde o nascimento, garantindo que os
desempenhos escolares estejam de acordo com o que se espera. Esse é um trabalho oculto
(FEDERICI, 2019).
Esses constrangimentos materiais que constituem as escolhas feitas pelas mulheres
devem ser situados na dinâmica social em que são produzidos, e não explicados numa
perspectiva individual. Isso porque as motivações dessas escolhas se apresentam às mu-
lheres como desdobramentos das estruturas em que estão configuradas (PATEMAN, 1993).
A divisão sexual do trabalho tem um caráter estruturante.
Daí porque a produção dos modelos de trabalho doméstico não remunerado, pautada
na divisão sexual do trabalho, é a base fundamental sobre a qual se assentam as hierarquias
de gênero. O trabalho que as mulheres desempenham no cotidiano das atividades domés-
ticas e na criação/manutenção de seres humanos libera os homens para que se engajem
no trabalho remunerado. Por trás do empregado de sucesso ou do pesquisador produtivo
existe uma mulher que mantém suas necessidades de pessoa corporificada: que cozinha o
alimento para matar a forme, que limpa a sujeira, que lava a roupa suja. Muitas vezes, essa
mulher não tem uma carreira profissional, e quando a tem, produz menos, porque divide o
tempo de produção com as tarefas relativas à reprodução social. O capital leva em conta
o quanto menos a mulher produz, mas não leva em consideração o tempo que gasta nas
atividades domésticas.
É comum nos depararmos com argumentos de que essa estrutura ficou para trás;
que é coisa do passado. De fato, a nova consciência associada ao movimento feminista
contemporâneo encorajou um número crescente de mulheres a reivindicar que seus com-
panheiros ofereçam algum auxílio no trabalho doméstico. Muitos homens já começaram a
colaborar com suas parceiras em casa, alguns deles (ainda que poucos) até devotando o
mesmo tempo que elas aos afazeres domésticos. Contudo, a questão principal é: quantos
desses homens se libertaram da concepção de que as tarefas domésticas são “trabalho de
mulher”? Quantos deles não caracterizariam suas atividades de limpeza da casa como uma
“ajuda” às companheiras?
A explicação pode estar no conceito de carga mental. Se compararmos a família
com uma grande empresa, veremos que são as mulheres, na grande maioria das vezes,
que gerenciam e planejam as tarefas. Por mais que os homens realizem tarefas domésticas,
planejar e garantir que todas as tarefas se encaminhem é responsabilidade da mulher. Fazer a
lista da feira, verificar se falta arroz para o almoço, conferir o tamanho das roupas dos filhos,
agendar consultas médicas... são tarefas atribuídas exclusivamente às mulheres.
130 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO
cíclico, esses obstáculos contribuem para a manutenção do status quo, visto que, dessa
forma, é mais difícil para as mulheres se libertarem dessas correntes.
A família permanece, portanto, como fator principal da produção do gênero e da
opressão às mulheres, a partir da manutenção das vulnerabilidades. Há, sem dúvidas, uma
conexão entre essas vulnerabilidades e a divisão sexual do trabalho, que constrange estrutu-
ralmente as possibilidades que são apresentadas às mulheres.
O que se vê é que a divisão sexual do trabalho é a base para a opressão das mulhe-
res: o gênero é produzido na forma da exploração do trabalho e da vulnerabilidade relativa
que é concebida. Isto é, as diferenças que definem a dicotomia feminino-masculino, embora
supostamente sejam codificadas como correspondentes ao sexo biológico, decorrem da
atribuição distinta de habilidades e tarefas construídas aos homens e às mulheres. Essas
diferenças são utilizadas para justificar as desvantagens econômicas das mulheres (WIL-
LIAMS, 2010).
A divisão sexual do trabalho está ancorada na naturalização de relações de autoridade
e subordinação, que são justificadas por teorias biológicas. Em ato contínuo, são ensinadas
restrições definidas pelo gênero, pela raça e pela classe social, que fazem as escolhas serem
conformadas. Dessa forma, distribui-se desigualmente as responsabilidades: incentivam o
acesso a determinadas ocupações, enquanto dificultam o acesso a outras (BIROLI, 2016).
Ainda, as restrições se estabelecem na forma de opressões cruzadas, na conver-
gência entre gênero, classe e raça. Sem que se leve em conta as relações de gênero, é
impossível explicar porque as vulnerabilidades são maiores entre as mulheres ou mesmo
compreender porque as mulheres estão em posições assimétricas nas hierarquias sociais
(BIROLI, 2016).
Conclusão
Em uma perspectiva sistêmica, a análise do que se passa nos espaços privados e
domésticos é significativa para entender a dinâmica social. Se as relações de poder nesses
espaços destoam de valores de referência igualitários, os quais são buscados na esfera
pública, existe um problema. Recorrendo à expressão de Carole Pateman, a “tolerância à
subordinação” compromete as democracias mesmo que corresponda a esferas bem deter-
minadas (BIROLI, 2015).
A análise de como se organiza a divisão sexual do trabalho – dimensão fundamental
das relações de poder – permite levar em conta que os espaços domésticos são produtos
sociais, efeitos destas. É importante ter em conta que o entendimento sobre as relações de
poder perpassa diferentes esferas. Isto é, as relações de poder domésticas ultrapassam os
espaços privados e atingem ao público (BIROLI, 2015).
132 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO
Dois ou três desfechos são fundamentais para entender a questão da divisão sexual
do trabalho: a) a divisão sexual do trabalho não pode ser explicada no âmbito da individua-
lidade, como se fossem escolhas voluntárias particulares; b) a divisão sexual do trabalho
estrutura identidades e alternativas das mulheres, sendo aplicada por instituições e políticas
públicas, que atingem a esfera privada e são aplicadas desde à infância; c) a divisão sexual
do trabalho constitui privilégios e restrições que interferem diretamente nas condições de
acesso ao tempo livre, à renda e no reconhecimento de competências e habilidades.
Por último, verifica-se que a desvalorização do trabalho doméstico serve à manu-
tenção da forma de produção do capital. Isso porque o trabalho para obtenção de lucros
não pode existir sem o trabalho não remunerado de produção de pessoas. Da forma como
foi institucionalizado o trabalho doméstico dentro dos lares, o capital não precisa pagar (ou
pagar muito) por esse trabalho desempenhado pelas mulheres.
Então, a posição das mulheres nas democracias é melhor entendida se aceitarmos,
de partida, que muito mudou. O percurso que marcou as conquistas de direitos das mulhe-
res teve grande impacto na organização das novas relações sociais. Contudo, ao mesmo
tempo, o controle de corpos das mulheres não se esgotou, apenas tomou novas formas,
mais complexas.
A divisão sexual do trabalho tem caráter estruturante nas relações interpessoais: ela
não é a expressão das escolhas de homens e mulheres, mas constitui estruturas consolida-
das a partir da responsabilização desigual pelo trabalho. Ainda, a responsabilização, nesse
ponto, deve ser entendida de forma sistêmica, porque ela está vestida com novos trajes.
Trajes esses mentais e invisíveis, em um ciclo favorável à reprodução. Especialmente porque
somente a partir dessa configuração é possível manter a dinâmica de exploração do trabalho
produtivo, que é o objetivo do capital.
Referências
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Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.
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BIROLI, Flávia. Divisão sexual do trabalho e democracia. Dados, v. 59, n. 3, p. 719-754, 2016. Dis-
ponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582016000300719.
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WILLIAMS, Joan C. Reshaping the work-family Debate: why men and class matter. Cambridge: Har-
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CAPÍTULO IX
RODRIGO GOLDSCHMIDT 1
CRISTIANO DE SOUZA SELIG 2
Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), em seu artigo
5º, §§ 1º e 2º, dispõe que os direitos e garantias fundamentais estabelecidos no texto cons-
titucional, bem como aqueles aceitos por seu sistema ou decorrentes dos princípios por ela
adotados, possuem eficácia imediata (BRASIL, 1988)3.
Pelo que, a priori, poder-se-ia dizer que os direitos fundamentais previstos no artigo
5º, a exemplo do direito ao respeito, à honra, à integridade moral, à integridade física, o
direito de comunicação e de informação, e todas as garantias decorrentes da dignidade da
pessoa humana, que, aliás, não é um simples direito, mas um atributo inerente à pessoa4,
aplicam-se também às relações trabalhistas.
1
Pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Doutor em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Pesquisador permanente do PPGD/
Unesc. Coordenador da linha de pesquisa Direito, Sociedade e Estado do PPGD/Unesc. Membro pesquisador do
Nuped/Unesc. Juiz do Trabalho Titular do TRT da 12ª Região/SC. E-mail: rodrigo.goldschmidt@trt12.jus.br.
2
Especialista em Direito Constitucional pela Unisul/LFG. Professor das disciplinas de Direito Constitucional e
direitos difusos e coletivos da Unisul. Analista Processual do Ministério Público Federal. E-mail: csselig@
hotmail.com.
3
“Artigo 5º, § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
4
Segundo Marcelo Novelino, “a dignidade da pessoa humana não é um direito em si, mas um atributo a todo
o ser humano, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social, ou qualquer outro requisito. O
ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a função de proteger e promover este valor.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 135
O reconhecimento da dignidade como fundamento impõe aos poderes públicos o dever de respeito, proteção e
promoção dos meios necessários a uma vida digna” (NOVELINO, 2010, p. 340).
5
Artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios
[...] II – propriedade privada da empresa”.
6
Artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa;”
7
Art. 170 “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional; II - propriedade privada; III- função social da propriedade”.
136 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG
outra, denominada de princípio, o princípio da propriedade privada (BRASIL, 1988). Por livre
iniciativa, entende-se, segundo Celso Ribeiro Bastos, a liberdade do empresário de lançar-
-se na atividade econômica, sem sofrer restrições pelo Estado (BASTOS, 2002), ou seja, o
empresário tem a plena liberdade de aventurar-se no setor econômico, sem que o Estado
lhe imponha vedações. Já no que diz respeito ao princípio da propriedade privada da empre-
sa, inicialmente, é preciso buscar no direito civil o conceito de propriedade. Nesse sentido,
segundo Maria Helena Diniz, “a propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem,
dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de uma coisa corpórea ou incorpórea,
bem como reivindicar de quem injustamente a detenha” (DINIZ, 2009, p. 847).
Logo, adaptando para a propriedade privada da empresa, tem-se que o seu proprietá-
rio tem o poder de usar e gozar de sua empresa da forma que melhor lhe aprouver, dispondo
de liberdade, inclusive, no que diz respeito à contratação, desligamento e subordinação de
seus empregados.
Nesse compasso, o Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, Consolidação das
Leis do Trabalho, em seu artigo 2º estabelece que empregador é aquele que, “assumindo
os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”
(BRASIL, 1943). Na sequência, o mesmo Decreto dispõe que empregado “é toda a pessoa
física que presta serviço não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante
salário” (BRASIL, 1943).
Assim, conjugando os dispositivos constitucionais com os dispositivos da CLT, ine-
vitavelmente, a conclusão a que se chega é que o empregador é dotado, legalmente, do
poder empregatício, ao qual, por sua vez, está subordinado o empregado, a parte vulnerável
da relação.
A respeito do poder empregatício, Rúbia Zanotelli de Alvarenga leciona que o “poder
nas relações entre capital e trabalho somente pode ser estudado a partir do conceito de su-
bordinação jurídica”. A professora, aduz, ainda, que “na relação empregatícia, o empregador
detém os poderes para dirigir, regulamentar, fiscalizar e aplicar penalidades ao trabalhador”
(ALVARENGA, 2019, n.p.), sendo por intermédio da subordinação jurídica que o poder do
empregador se exterioriza.
No que tange à vulnerabilidade do empregado, em verdade, ela é uma decorrên-
cia da disformidade da relação trabalhista, na qual uma das partes detém grande poder de
condução da relação, enquanto à outra, resta, apenas, a concordância (ou não) com regras
e penalidades impostas. Em contraponto, e com mesmo status normativo que as normas
constitucionais que alavancam o poder empregatício, o constituinte fixou algumas limitações
a esse poder. Tais limitações foram apresentadas no próprio artigo 170, quais sejam, “a
valorização do trabalho humano, a finalidade de assegurar a todos a existência digna, e a
função social da propriedade” (BRASIL, 1988).
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 137
José Afonso da Silva, quando trata da valorização do trabalho humano, aduz que
“embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre
todos os demais valores da economia de mercado” (SILVA, 2000, p. 766). Depreende-se
então que, em que pese tenha o proprietário da empresa todo um poder legal decorrente de
sua apropriação privada (entre eles o poder empregatício), ele está vinculado à necessidade
de valorizar o trabalho humano.
A valorização do trabalho humano em detrimento da propriedade privada da empresa
também pode decorrer da leitura do texto constitucional (BRASIL, 1988). Isso porque, por
uma simples vistada na Constituição, pode-se perceber que o constituinte elaborou a Consti-
tuição trazendo, de antemão, as matérias mais importantes. Assim, ao analisar o artigo 1708
da CRFB/1988, pode-se verificar que a valorização do trabalho humano precede ao princípio
da propriedade privada. Ademais, a valorização do trabalho humano é fundamento, enquanto
que a propriedade privada é princípio, o que denota um maior peso à valorização do trabalho
humano. Desse modo, pode-se concluir que a valorização do trabalho humano é de superior
importância, se comparada com a propriedade privada da empresa.
Nesse compasso, a livre iniciativa e a propriedade privada da empresa também so-
frem limitações pelo princípio da dignidade da pessoa humana, isso porque, o próprio artigo
170 da CRFB/88 determina que a “ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos
a existência digna”, consagrando, assim, logicamente, o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana em superioridade à propriedade privada da empresa (BRASIL, 1988).
Sarlet, Marinoni e Mitidiero ensinam que “no momento em que a dignidade é guinda-
da à condição de princípio estruturante e fundamento do Estado Democrático de Direito, é o
Estado que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das
pessoas” (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 263).
O poderio do empregador também encontra limites na função social da propriedade,
que precisa ser lida como função social da empresa empregadora. Segundo Araújo e Nunes
Júnior, “a noção de cumprimento da função social da propriedade privada, na seara eco-
nômica, implica a observância dos fins da ordem econômica (propiciar dignidade a todos,
segundo os ditames da justiça social)” (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2003, p. 418).
No mesmo sentido, José Afonso da Silva aduz que:
8
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V -
defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o
impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das
desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas
de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.
138 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG
O artigo 170, III, ao ter a função social da propriedade como um dos princípios da
ordem econômica, reforça essa tese, mas a principal importância disso está na sua
compreensão como um dos instrumentos destinado à realização da existência digna
de todos e da justiça social (SILVA, 2000, p. 792).
Ainda no que diz respeito à função social da propriedade da empresa, Gilmar Mendes
e Gonet Branco assinalam que “como acentuado pela Corte alemã, a faculdade confiada ao
legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a compatibilizar o espaço de liberdade
do indivíduo no âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade” (MENDES;
GONET BRANCO, 2018, p. 347).
Desse modo, postas as premissas supracitadas, pode-se afirmar que o constituinte
previu que a atividade empresarial, realizada mediante a contratação de pessoas, estaria
revestida de diversas garantias constitucionais, contudo limitou as garantias do empresário
(livre iniciativa e propriedade privada da empresa) à valorização do trabalho humano e ao
respeito à dignidade da pessoa humana.
Com isso, as relações trabalhistas, além da limitação estabelecida em todo arcabou-
ço normativo infraconstitucional trabalhista, também sofrem limitações pelos direitos funda-
mentais, que incidem diretamente nas relações de emprego. Essa possibilidade de incidência
direta da constituição (direitos fundamentais) nas relações sociais (entre elas, as relações
laborais), convencionou-se denominar eficácia horizontal dos direitos fundamentais, assunto
que será abordado no próximo tópico.
Cunha Júnior os conceitua como “posições jurídicas que investem o ser humano de um con-
junto de prerrogativas, faculdades e instituições imprescindíveis a assegurar uma existência
digna, livre, igual e fraterna de pessoas” (CUNHA JÚNIOR, 2017, p. 494).
De forma um pouco parecida, também o faz Uadi Lammêgo Bullos, segundo o qual,
direitos fundamentais “são o conjunto de normas, princípios prerrogativas, deveres e insti-
tuições inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna e igualitá-
ria, independentemente de credo, raça, origem, cor condição econômica ou status social”
(BULOS, 2017, p. 526).
Flávio Martins Nunes Júnior, a respeito dos direitos fundamentais, aduz que “em
sentido material, são os direitos decorrentes da dignidade da pessoa humana, pretensões de
certos grupos ou povos, decorrentes da evolução histórica e de novas necessidades que se
apresentam” (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 606). Noutra concepção, direitos fundamentais são:
Não obstante, antes de atingir o fim proposto, é preciso, ainda que de forma breve,
apresentar considerações acerca das dimensões históricas dos direitos fundamentais, com
objetivo de melhor contextualizar e compreender as possibilidades de eficácia e incidência
desses direitos nas relações privadas.
O lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês10, expri-
miu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais,
profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização:
liberdade, igualdade e fraternidade” (BONAVIDES, 2017, p. 576-577).
9
Segundo Marcelo Novelino “a versão mais conhecida de constitucionalismo se identifica com a Separação dos
Poderes desenvolvida por Kant e Montesquieu – como forma de impedir o seu uso arbitrário. Contrapõe-se,
assim, à ideia de concentração do exercício do poder. Mais do que uma simples técnica constitucional, o cons-
titucionalismo é uma técnica de liberdade que assegura direitos fundamentais aos cidadãos de modo a impedir
sua violação por parte do Estado” (NOVELINO, 2010, p. 51-52).
10
Emmanuel Joseph Sieyés (1748-1836).
11
Karel Vasak, jurista tcheco-francês (1923-2015).
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 141
12
Georg Jellinek, jurista alemão (1851-1911). Autor da Teoria dos Quatro Status, relativa à posição que o indivíduo
assume perante o Estado: Passiva, Ativa, Negativa e Positiva.
142 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG
Uma substancial convergência de opiniões no que diz com o fato de que também
na esfera privada ocorrem situações de desigualdades geradas pelo exercício de um
maior ou menor poder social, razão pela qual não podem ser toleradas discriminações
ou agressões à liberdade individual que atentem contra o conteúdo em dignidade da
pessoa humana dos direitos fundamentais, zelando-se de qualquer modo, pelo equi-
líbrio entre estes valores e os princípios da autonomia privada e da liberdade negocial
e geral, que, por sua vez, não podem ser completamente destruídos (SARLET; MARI-
NONI; MITIDIERO, 2017, p. 378).
13
José Carlos Vieira de Andrade. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde
prestou provas de Doutoramento e de Agregação na área das Ciências Jurídico-Políticas. Entre as suas obras,
cita-se: Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 143
De qualquer modo, para além dessas e de outras considerações que aqui poderiam
ser tecidas, constata-se que no direito constitucional brasileiro tem prevalecido a tese
de que, em princípio, os direitos fundamentais geram uma eficácia direta prima facie
na esfera das relações privadas, sem se deixar de reconhecer, todavia, que o modo
pelo qual se opera a aplicação dos direitos fundamentais às relações jurídicas entre
particulares não é uniforme, reclamando soluções diferenciadas (SARLET; MARINO-
NI; MITIDIERO, 2017, p. 379-380).
14
Sérgio Gamonal Contreras. Professor de Direito do Trabalho da Universidade Adolfo Ibánez do Chile.
15
Erich Lüth (1902-1989). Jornalista alemão e ex-combatente da II Guerra Mundial. Promoveu boicote nacional
contra o filme de Harlan, em razão de seu passado nazista. Os protestos ocorreram em vários cinemas, e os
produtores do filme Amada Imortal processaram Lüth.
144 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG
16
Localizado na cidade de Karlusruhe.
17
Veit Harlan, Produtor de filmes alemão (1899-1964). Produziu Amada Imortal.
18
Recurso Extraordinário n. 161.243-6. Supremo Tribunal Federal. Relator Ministro Carlos Velleso. Julgado em
29.10.1996. Recorrente: Joseph Halfin e Recorrido: Compagnie Nationale Air France. Conhecido e Provido. I. –
Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado
o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao
empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988,
art. 5º, caput). II. – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indi-
víduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag
110.846 (AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. – Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes
no caso. IV. – R.E. conhecido e provido (BRASIL, 1996).
19
Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº: 1556-82.2012.5.18.0101. Relator: Luiz Philippe Vieira de
Mello Filho. 1. A realização do procedimento denominado “Barreira Sanitária”, mediante trânsito coletivo dos
trabalhadores em trajes íntimos pelos vestiários da empresa, traduz-se em inadmissível exposição do corpo e,
por consequência, da intimidade dos trabalhadores aos seus colegas de profissão, constrangimento passível de
reparação por dano moral. 2. No caso dos autos, ficou registrado que os locais destinados a banhos, situados
entre um vestiário e outro, não tinham portas, de modo que a dinâmica de trocas de uniformes imposta pela em-
presa implica exposição desnecessária de partes do corpo de trabalhadores, situação particularmente agravada
em caso de uso dos chuveiros, quando os trabalhadores ficam totalmente despidos. 3. A exigência sanitária deve
ser cumprida pelas empresas do ramo alimentício de forma consentânea com a preservação dos direitos fun-
damentais dos trabalhadores no ambiente de trabalho, visto que as normas do Ministério da Agricultura devem
ser cumpridas de forma harmônica com as normas do Ministério do Trabalho e Emprego e, sobretudo, com as
disposições superiores da Constituição Federal, que tutelam a dignidade humana dentro e fora do ambiente de
trabalho. Recurso de revista conhecido e provido.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 145
20
RECURSO DE REVISTA Nº: 1002145-82.2015.5.02.0720. Relator Márcio Eurico Vitral Amaro. 8ª Turma TST. I -
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA - REGÊNCIA PELA LEI Nº 13.015/2014 - INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS. VALOR ARBITRADO. Constatada violação do artigo 5º, X, da Constituição Federal, merece
provimento o agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista. II - RECURSO DE
REVISTA - REGÊNCIA PELA LEI Nº 13.015/2014 - INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESTRIÇÃO AO USO
DO BANHEIRO. A restrição ao uso de banheiro expõe indevidamente a privacidade do empregado, ofendendo sua
dignidade, visto que não se pode objetivamente controlar a periodicidade da satisfação de necessidades fisioló-
gicas que se apresentam em diferentes níveis em cada indivíduo. Tal procedimento revela abuso aos limites do
poder diretivo do empregador, passível de indenização por dano moral. Recurso de revista não conhecido. INDE-
NIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. VALOR ARBITRADO. O valor fixado à indenização por dano moral, R$ 15.000,00
(quinze mil reais), afigura-se bastante elevado à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e
ainda em face do tratamento que a jurisprudência desta Corte vem dispensando à matéria. Em atenção a tais
princípios, conhece-se do recurso por violação do art. 944, caput , do Código Civil, para, no mérito, reduzir para
R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a indenização. Recurso de revista conhecido e provido.
21
RECURSO EXTRAORDINÁRIO nº: 160222/RJ. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento: 11/04/1995.
Recorrentes: Ana Paula Muniz dos Santos e outros; Recorrido: Nahum Manela. I. Recurso extraordinário: legi-
146 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG
Conclusão
Ao concluir a presente pesquisa, classificada como artigo científico, chega-se à
conclusão de que os comandos constitucionais veiculadores dos direitos fundamentais pre-
cisam estar presentes em todas as relações sociais, sejam elas relações com o Estado –
relação verticalizada –, sejam relações privadas – relação horizontalizada –, aquelas em que
o Estado não se faz presente.
Dentre as relações privadas, maior destaque deve ser destinado às relações traba-
lhistas, porque são nelas que a vida acontece; é no ambiente de trabalho, que as pessoas
passam a maior parte de seu tempo, constroem amizades, amores, e auferem a renda ne-
cessária para desenvolvimento de seus projetos pessoais. Nesse compasso, pode-se afirmar
que, nessas bases, o constituinte brasileiro estabeleceu a valorização do trabalho humano
como fundamento da República Federativa do Brasil e também da ordem econômica, o que
conduz, com naturalidade, à afirmação da plena eficácia horizontal dos direitos fundamentais
no campo laborativo.
Obviamente, não se pode olvidar que nem todos os direitos fundamentais encontram
espaço nas relações trabalhistas, se pensados como trunfos22 contra o Estado. Não obstan-
te, os comandos constitucionais que servem para garantir a plena dignidade do trabalhador
precisam ser levados e garantidos no setor laborativo, como pugnam a doutrina a jurispru-
dência pesquisadas e debatidas nesta pesquisa.
timação da ofendida - ainda que equivocadamente arrolada como testemunha -, não habilitada anteriormente,
o que, porém, não a inibe de interpor o recurso, nos quinze dias seguintes ao término do prazo do Ministério
Público, (STF, Sums. 210 e 448). II. Constrangimento ilegal: submissão das operárias de indústria de vestuário
a revista intima, sob ameaça de dispensa; sentença condenatória de primeiro grau fundada na garantia cons-
titucional da intimidade e acórdão absolutório do Tribunal de Justiça, porque o constrangimento questionado a
intimidade das trabalhadoras, embora existente, fora admitido por sua adesão ao contrato de trabalho: questão
que, malgrado a sua relevância constitucional, já não pode ser solvida neste processo, dada a prescrição super-
veniente, contada desde a sentença de primeira instância e jamais interrompida, desde então.
22
Cf.: NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora/Revista dos
Tribunais, 2006. Disponível em: http://esmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais-Trun-
fos-contra-a-maioria.pdf. Acesso em: 03 set. 2019.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 147
Referências
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ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 7. ed.
São Paulo: Saraiva, 2003.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 1. ed. São Paulo: Celso Bastos. São Paulo,
2002.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32. ed. São Paulo: Malheiros. São Paulo, 2017.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 25 out.
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Rio de Janeiro, Presidência da República, 1943.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 161.243-6/DF. Relator: Ministro Carlos
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BRASIL. Tribunal de Justiça. Recurso Extraordinário n. 160222/RJ. Relator: Ministro Sepúlveda Per-
tence. Primeira Turma. Data de Julgamento: 11/04/1995. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/juris-
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tinyurl.com/y5ub8mev. Acesso em: 03 set. 2019.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº: 1556-
82.2012.5.18.0101. Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. Disponível em: https://jurisprudencia.
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Philippe Vieira de Mello Filho. Disponível em: https://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/486395036/re-
curso-de-revista-rr-109982320155120008/inteiro-teor-486395097. Acesso em: 05.04.2021.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
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DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GOLDSCHMIDT, Rodrigo. Flexibilização dos direitos trabalhistas: ações afirmativas da dignidade da pes-
soa humana como forma de resistência. São Paulo: Ltr, 2009 .
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
148 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG
MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed.
São Paulo: Saraiva, 2018.
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora/Re-
vista dos Tribunais, 2006. Disponível em: http://esmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-
-Reis-Novais-Trunfos-contra-a-maioria.pdf. Acesso em: 03 set. 2019.
NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIEIRO, Daniel. Curso de Direito Constitucio-
nal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
CAPÍTULO X
Introdução
Antes de adentrarmos no tema financiamento precisamos esclarecer o termo “Auste-
ridade” que é sinônimo de “Retrocesso”, dedicado à análise da política fiscal e das finanças
públicas no Brasil, como foco de frear todos os gastos públicos. Entretanto essa agenda
governamental tem como consequência a violação de muitos direitos, sejam eles humanos
ou sociais.
A austeridade também pode ser compreendida tanto pela filosofia, que “buscava
transpor, sem mediação, virtudes individuais (sobriedade, parcimônia, prudência)
para o plano público” como pela dimensão econômica, em que “é a política de ajuste
fundada na redução dos gastos públicos e do papel do Estado em suas funções de
indutor do crescimento econômico e promotor do bem-estar social” (ROSSI, 2017,
n.p.).
1
Bacharel em Administração, acadêmica do Curso de Especialização em Sistema Único de Assistência Social
(Suas) e o Trabalho Interdisciplinar. Secretária Municipal de Assistência Social de Sideropólis/SC. E-mail: gla-
dys_glk@hotmail.com.
2
Doutorando no PPGDS/Unesc. Pesquisador do Núcleo em Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc).
Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico Unesc/SC. E-mail: cordovaismael@hotmail.com.
150 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA
Para tanto cabe ressaltar que, persistindo essa agenda de austeridade, a Constitui-
ção Federal de 1988 de certa forma sofre e sofrerá uma deterioração no que se refere aos
direitos já garantidos à custa da oposição dos movimentos sociais nas décadas anteriores de
1970/1980. Com a Carta Magna um grande pacto social é assinado em nome do bem-estar
e da proteção social. Nele são reconhecidos direitos sociais como a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Sendo o Estado o
detentor e responsável pela sua aplicação. Nesse novo pacto social, transfere-se a respon-
sabilidade para o mercado no fornecimento de bens sociais. Trata-se de um processo que
transforma direitos sociais em mercadorias (ROSSI, 2017).
No entanto com a lógica proposta na Emenda Constitucional n. 95, impõe-se o rom-
pimento desse pacto social preestabelecido, uma vez que esse pacto social que estabelece
direitos sociais ao cidadão e deveres ao Estado estaria sendo refeito. O marco dessa mudan-
ça de orientação no papel do Estado é a Emenda Constitucional (EC) n. 95, decorrente do
Projeto de Emenda Constitucional (PEC 241). Sendo assim, além de gerar retração econô-
mica, a austeridade ainda pode piorar a situação fiscal. Considerando essas possibilidades,
o presente estudo buscará entender se essas medidas poderão ter como consequência a
redução da cobertura e ampliação da vulnerabilidade de renda de idosos e de pessoas com
deficiência no país caso efetivadas.
Quanto aos procedimentos metodológicos, este estudo possui uma abordagem
quantitativa e de caráter documental. As pesquisas quantitativas são aquelas embasadas em
dados numéricos e a busca em documental se dá por meio da análise secundária de “dados
que não foram coletados para o seu próprio projeto de pesquisa” (FLICK, 2013, p. 124).
Não se pode também deixar de citar a Constituição Federal, em seu art. 204 – em
que propõe que as ações governamentais na área de Assistência Social serão realizadas com
recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes.
No que tange às novas mudanças podemos perceber que com a Emenda Constitucional 95,
que ficou conhecida como a “PEC da Morte” (PEC 241/2016), há um rompimento com o
pacto supracitado. Essa austeridade econômica defendida pelo governo, interrompe o que
vinha sendo implantado, enfraquecendo e limitando os investimentos em políticas sociais,
fragilizando toda a rede de proteção social. A proposta brasileira de implementação do teto
para os gastos públicos federais, objeto da PEC 241/2016, foi aprovada em 16 de dezembro
de 2016, consolidando-se na Emenda Constitucional de número 95, que instituiu um novo
regime fiscal para vigorar nos próximos 20 (vinte) anos, valendo, portanto, até 2036.
Essa proposta de emenda foi alvo de intensos protestos pela sociedade civil; vários
movimentos sociais ligados a universidades em todo o país fizeram manifestos, o que não
impediu, contudo, sua aprovação. Nessa nova regra, o gasto primário do governo federal fica
limitado por um teto definido pelo montante gasto no ano anterior, reajustado pela inflação
acumulada, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
[...] Além da ausência de diálogo com a sociedade civil, os protestos foram motivados
pela oposição a um discurso oficial falacioso da necessidade de um novo regime
fiscal, por meio da limitação de gastos e investimentos públicos, especialmente nos
serviços de natureza social, como única medida capaz de retomar o crescimento da
economia, que teria sucumbido diante de um suposto comportamento fiscal irrespon-
sável do governo anterior (MARIANO, 2017, p. 259).
Portanto as regras do novo regime não permitem, com isso, o crescimento das
despesas totais e reais do governo acima da inflação, nem alterações se a economia estiver
bem, diferentemente de outros países que adotaram esse corte do teto dos gastos públicos.
Somente será possível aumentar os investimentos em uma área caso sejam feitos cortes
em outras. As novas regras desconsideram, portanto, as taxas de crescimento econômico,
como também as demográficas pelos próximos 20 (vinte) anos, o que poderá levar ao suca-
teamento das políticas sociais, especialmente nas áreas da saúde, educação e assistência
social, pondo em risco a qualidade de vida da população brasileira, além do retrocesso nas
conquistas dos direitos sociais.
A Emenda Constitucional n. 95, de 2016 é a radical expressão normativa da denomi-
nada “política de austeridade” cujo objetivo seria enfrentar a crise fiscal. Ela alterou o Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), para instituir o Novo Regime Fiscal, cujo
núcleo é a imposição, por vinte anos, de limites individualizados para as despesas primárias,
em âmbito federal, de órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e das funções
essenciais à justiça (Ministério Público da União; Conselho Nacional do Ministério Público;
Defensoria Pública da União).
154 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA
Os anos 1980 foram marcados pelo domínio dos movimentos sociais no campo da
política brasileira, protagonistas da luta contra a ditadura militar e pela democratização do
país, exigiam do Estado não apenas participação política no processo decisório das políticas
públicas, mas também o responsabilizavam pela situação de precariedade em que vivia a
maioria da população. As passeatas, greves, caravanas, entre outros eram meios utilizados
para pressionar o Estado por direitos sociais. As políticas públicas eram concebidas como
dever do Estado e direito do cidadão, e a transformação da sociedade capitalista era presente
nesses debates.
Ao longo da década de 1980, o Brasil presenciou uma efervescência política com
grandes mobilizações populares, greves, conflitos e extensos debates públicos que culmi-
naram em um amplo acordo político: a Constituição Federal de 1988 (CF/1988). A chamada
Constituição Cidadã sela um pacto social no Brasil que oferece uma ampla garantia dos
direitos individuais e coletivos e o mais completo conjunto de direitos sociais que o país
conheceu, além de uma ampla cobertura da seguridade social, tendo sido um dos maiores
programas de proteção social de todo o mundo. Um exemplo dessa proteção social garan-
tida pela Constituição está no art. 230, inciso V, assim descrito: a garantia de um salário
mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem
não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, con-
forme dispuser a lei.
Na década de 1990 o cenário se modifica: o neoliberalismo adentrou a seara dos
movimentos sociais com raríssimas exceções modificando não apenas suas formas de luta,
mas principalmente sua disposição para a luta. Entram em cena as Organizações Não Go-
vernamentais (ONGs) que vêm “colaborar” com o Estado naquilo que ele como detentor não
consegue realizar. Sendo substituída pela participação nos projetos do governo sem nenhu-
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 155
A piora na qualidade dos serviços públicos é uma perspectiva bem concreta avaliado
o efeito do congelamento dos gastos em serviços públicos pelos próximos vinte anos, con-
forme instituiu a PEC do teto dos gastos (PEC 241/2016). Com menos recursos do governo
federal orçados para educação, saúde, previdência e assistência social, é fácil imaginar uma
queda na qualidade de vida da população periférica. Destaque-se que não se leva em conta
que a população mais pobre paga mais tributos do que a mais rica, uma vez que os tributos
incidem mais sobre o consumo e não sobre a renda.
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 157
A assistência social nos Municípios, dentro dessa perspectiva, será cada vez mais
ausente com o congelamento do orçamento, tornando maior a influência de iniciativas
particulares, ONG’s, Igrejas que, amparando a população conforme seus critérios, ou
até sendo apenas referência de quem ajuda na “necessidade”, acabariam por exercer
um efeito destrutivo na noção de cidadania nas periferias, principalmente por conta
da não universalidade dessas ações, além de tornar esses territórios mais vulnerá-
veis para a instalação de relações de poder por meio do clientelismo. Isso seria um
retrocesso às lutas pela política de assistência social como Direito. [...] não pretende
atingir o Estado mínimo, mas reconstruir um Estado que mantém suas responsabilida-
des na área social, acreditando no mercado, do qual contrata a realização de serviços,
inclusive na própria área social (BEHRING, 2008, p. 172).
Dessa forma, pretende-se achar uma saída para a crise econômica que assola o
país, desresponsabilizando o Estado em detrimento de transferência de responsabilidades a
sociedade. Nessa esteira, surgem os discursos governamentais sobre a privatizações, a in-
tervenção mínima do Estado, que corroboram com a desproteção social. Ademais, a volta de
práticas clientelistas, sem considerar as questões sociais trazidas por um estado neoliberal,
fragiliza os direitos sociais.
Vale lembrar que foi a partir da Constituição de 1988 e principalmente com a Lei
Orgânica de Assistência Social (Loas) que a assistência passou a ser um direito, como
política universal, de todo cidadão que dela necessitar. Tais leis apontam para a centralidade
do Estado na garantia da prestação de serviços sociais qualificados, que promoveriam um
padrão de cidadania garantido pela lei.
5 Os direitos sociais
Em 1988 surge a Constituição Federal, um grande pacto assinado em nome do bem-
-estar e proteção social. Nele são reconhecidos como direitos sociais, entre outros, a edu-
cação, a saúde, a segurança, a previdência social, a assistência sendo o Estado o detentor
e responsável pela sua aplicação. A Emenda Constitucional 95, conhecida como PEC da
Morte (PEC 241/2016, quando em tramitação na Câmara dos Deputados e a PEC 55/2016,
no Senado Federal, rompem esse pacto. A suposta austeridade econômica defendida pelo
governo interrompe o que vinha sendo implantado e enfraquece e limita os investimentos em
políticas sociais, fragilizando toda a rede de proteção social.
Os fundamentos de soberania, cidadania e dignidade da pessoa humana foram esta-
belecidos por meio da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º, sendo um dos princi-
pais objetivos estabelecidos para a República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza
e a redução das desigualdades sociais. O artigo 6º da CF/1988 enumera os direitos sociais,
aqueles que são classificados como direitos de igualdade, como a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção da maternidade e da infância e a assistência aos desamparados.
A ordem social definida nos termos do art. 193 da CRF/88 tem como base o primado
do trabalho, e como objetivos o bem-estar e a justiça social. A seguridade social está juri-
dicamente definida no artigo 194 é um dos instrumentos para implementar o bem-estar e a
justiça social. De igual forma está estabelecida a previdência social no seu artigo 201 e é de
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 159
caráter contributivo ou seja só terá acesso os que para ela contribuírem, sendo que em seu
parágrafo § 12, a referida lei contemplou a existência de um sistema especial de inclusão
previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria que
se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que
pertencentes a famílias de baixa renda, garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a
um salário-mínimo. Já a assistência social, direito subjetivo estabelecido no artigo 203 da
CR/1988, dispõe que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independen-
temente de contribuição à seguridade social, tendo como objetivos:
Criada em 1974, pela lei nº 6, a RMV, era destinada a cidadãos maiores de setenta
anos ou inválidos e que não exerciam atividades remuneradas, não aferiam quaisquer
rendimentos, não eram mantidos por suas famílias, mas contribuintes para a previ-
dência Social por, no mínimo doze meses (SANTOS, 2004, p. 127).
160 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA
Em primeiro de janeiro de 1996 foi extinta a RMV, dando lugar ao Benefício de Pres-
tação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/Loas), que é um Direito
Assistencial operacionalizado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), sendo
custeado com recursos provenientes do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). É
um Benefício individual não contributivo, não vitalício e intransferível que consiste na trans-
ferência mensal e temporária de renda, sem contrapartidas, no valor de um salário-mínimo,
destinado às pessoas com deficiência e idosos com 65 anos de idade ou mais, ambos com
renda per capita familiar inferior a ¼ do salário-mínimo (BRASIL, 1993, 2007).
No caso da pessoa com deficiência, após habilitação do benefício, ela é direcionada
para ser avaliada por assistente social e médico perito do INSS, em relação à deficiência e ao
grau de impedimento (BRASIL, 2011a). O Ministério da Cidadania é responsável pela gestão,
coordenação, regulação, financiamento, monitoramento e avaliação do Benefício, enquanto
ao INSS cabe a operacionalização, incluindo o reconhecimento do direito e a concessão,
com base nas avaliações médica e social.
O BPC constitui, muitas vezes, a única fonte de renda de famílias vulnerabilizadas,
pela condição de deficiência ou idade. Além das condições já mencionadas, em 2016 outra
condição de acesso ao benefício foi exigida. Por meio do Decreto n. 8.805, de 7 de julho de
2016, que alterou o Decreto n. 6.214, de 26 de setembro de 2007, consolidando o Cadastro
Único como ferramenta integrante do processo de concessão, revisão ou análise do Benefí-
cio de Prestação Continuada. Tal normativa extingue o formulário Declaração da Composição
e Renda Familiar e estabelece CadÚnico como fonte de informação sobre a composição e
renda familiar; em seu art. 12 diz que são requisitos para a concessão, a manutenção e a
revisão do benefício as inscrições no Cadastro único de Pessoas Físicas (CPF) e no Cadas-
tro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CadÚnico. O CadÚnico organiza a
relação de parentesco tomando como referência o chefe da família. A reclassificação das
relações de parentesco é necessária para compor a família legalmente definida para fins do
BPC. Ressalte-se que enquanto os conceitos de família BPC e CadÚnico forem distintos esse
será um procedimento complexo.
Além de que essa alteração introduz regra para dispensar avaliação da deficiência
quando a renda per capita for superior ao critério, sendo que vai contra a decisão do STF de
2013 que considera a renda per capita critério insuficiente para elegibilidade BPC, sabendo
que foi incluída na Lei de Inclusão da pessoa com deficiência – LBI/2016 que acata decisão
do STF sobre a insuficiência do critério de ¼ do salário mínimo para definição da elegibili-
dade ao benefício.
O cadastro é apenas uma das ferramentas utilizadas pelo governo federal para ana-
lisar o perfil dos beneficiários. Entretanto, quem recebe o BPC tem que atualizar obrigato-
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 161
riamente o Cadastro Único para evitar o bloqueio desse benefício. Tudo leva crer que foi
mais uma estratégia que o Governo Federal lançou para cortar gastos, uma vez que vários
beneficiários que não estavam dentro do perfil exigido foram notificados para apresentarem
carta de defesa para o INSS para que o recurso fosse desbloqueado.
Diante disso representará perdas expressivas para o campo assistencial a política de
ajuste fiscal proposta na EC 95, visto que poderá comprometer os avanços realizados em
relação ao combate à pobreza e à desigualdade, e à promoção da cidadania inclusiva. As
ações assistenciais, principalmente o Benefício de Prestação Continuada, o Programa Bolsa
Família e o Sistema Único de Assistência Social colocaram o Brasil em um patamar mais
elevado, ao afiançar direitos e proteção à população em situação de vulnerabilidade, seja pela
situação de pobreza, seja devido à violação de direitos.
Logo, o Novo Regime Fiscal poderá impor uma descontinuidade da oferta sociopro-
tetiva, o que poderá compelir as proteções já afiançadas pela política assistência. A premissa
considerada para esse cenário é, de maneira geral, conservadora. Parte da hipótese de que o
ex-Ministério do Desenvolvimento Social e o atual Ministério da Cidadania garantirá a manu-
tenção das políticas atualmente sob sua responsabilidade, mas não expandirá a cobertura do
número de beneficiários proveniente de novas demandas num contexto de crise econômica,
nem outras frentes de atendimento às populações em situação de pobreza ou vulnerabilidade
social. Em linhas gerais, deixará de incorporar as demandas que surjam pelo aumento das
necessidades socioassistenciais das populações vulneráveis. Em outros termos, nas proje-
ções para esse cenário, o impacto do aumento de mais de 100% da população idosa entre
2016 e 2036, previsto pelas estimativas do IBGE, bem como o crescimento da população
total de 10% no mesmo período será incorporado ao cálculo, sendo relevante para a projeção
dos gastos como BPC (IPEA, 2016).
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os benefícios eventuais integram o
conjunto de cobertura do Sistema Único de Assistência Social (Suas), sendo estes definidos
como prestação de transferência de renda e ofertados na proteção social básica. Sendo as-
sim o benefício é dirigido a dois segmentos de vulnerabilidade: ao idoso, pelo ciclo de vida e
pobreza, e à pessoa com deficiência, por estar em desvantagem em relação às demais pes-
soas, além da pobreza, garantindo com isso provisão de renda para sobrevivência. É ainda
uma das únicas políticas não contributivas de responsabilidade do Estado, que está presente
em todos os municípios brasileiros, e sofre sérios riscos de redução e cortes na atual con-
juntura política de corte de gastos e de ser afetada pelo projeto de reforma da previdência.
162 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA
3
Informações acessadas por meio dos Relatório Social: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/ri/relatorios/cidada-
nia/#. Acesso em 04 abril de 2021.
4
Informações disponíveis em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html. Acesso em 04
de abril de 2021.
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 163
Conclusão
O Brasil terá um enorme potencial de crescimento econômico e desenvolvimento
produtivo quando enfrentar duas de suas principais mazelas sociais: a concentração de ren-
da e a carência na oferta pública de bens e serviços sociais. Isso porque a distribuição de
renda e o investimento social são importantes impulsionadores do crescimento econômico.
164 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA
A saída desse cenário pode ser o aumento da privatização em suas diversas áreas
como saúde e educação, porém devemos estar atentos aos interesses espúrios de uma
parcela da sociedade, escondidos por detrás dessas mudanças, que quer reduzir a partici-
pação do Estado e das instituições públicas nas relações econômicas e nas relações sociais
amplas na intenção de abrir caminho para que o mercado, supostamente ou não, se torne
protagonista de direitos.
Ademais é importante analisar que a tabela nos mostra que o crescimento de acesso
ao BPC no Município de Siderópolis de 2004 até 2018 significou um aumento de 400% dos
idosos e 230% das pessoas com deficiência; em contraponto, a população total cresceu en-
tre 2004 e 2017 em torno de 8% de acordo com dados do IBGE. Diante do exposto, conclui-
-se que a EC 95 congela os gastos até 2036 e dentre esses gastos está a seguridade social
resultante do pacto social estabelecido na Constituição de 1988. O BPC foi um dos pilares
de ampliação do nível de proteção social num país ainda marcado por fortes desigualdades,
que garante renda de substituição a um público extremamente pobre e reconhecidamente
incapaz de garantir sua própria sobrevivência por meio do trabalho remunerado. Essa ga-
rantia de renda proporcionou melhorias de condições de vida desses grupos e contribuiu
significativamente para redução da miséria e da desigualdade no país nas últimas décadas.
Contudo, a EC 95 ameaça esse importante instrumento contra a pobreza e a miséria,
seja sinalizando possibilidades de redução de investimentos em áreas importantes como
na saúde, educação e assistência social, seja propondo a desvinculação do BPC do salário
mínimo, a restrição do acesso ou a elevação da idade para o público idoso na proposta de
emenda da reforma da previdência em tramitação no Congresso, projetando futuro aumento
da demanda por benefícios assistenciais. Com tais medidas, essas reformas comprometem
elementos e princípios equitativos da seguridade social num país ainda marcado por eleva-
dos níveis de desigualdade, portanto, a agenda neoliberal irá vulnerabilizar ainda mais as
pessoas que são beneficiárias do BPC.
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CAPÍTULO XI
Introdução
O tema apresentado aqui, num paralelo entre transexualidade e Previdência Social,
apresenta uma análise do que será enfrentado pelos transexuais, a partir do momento que
chegarem ao tempo de se aposentar, pois trata de um assunto complexo que sugere muita
polêmica. Cabe ressaltar que os transexuais já tiveram muitas conquistas como a possibi-
lidade legal da cirurgia de redesignação sexual, inclusive no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS), o direito de obter um novo nome, ou seja, sua real identidade e a modificação
do registro civil, mesmo ainda sem a cirurgia para mudança de sexo.
Embora o ordenamento jurídico não ofereça muitas respostas para as mudanças
que ocorrem na sociedade atual, cabe aos juristas a tarefa desafiadora de produzir novos
conceitos e soluções que se adequem às necessidades sociais com a legislação em vigor.
Portanto, sem uma norma regulamentadora no direito previdenciário para os transexuais,
em que se aplica tratamento normativo diferenciado para homens e mulheres, sendo o sexo
o parâmetro para concessão de benefícios, essa problemática é pertinente como objeto de
estudo.
1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/Unesc). Especialista em Direito Previdenciário pela Unibave. Advogado e professor do Curso de Direito das
Faculdades Esucri. Conselheiro Estadual da OAB/SC, gestão 2019-2021. E-mail: lucasalberton@hotmail.com.
2
Bacharel em Direito pela Escola Superior de Criciúma - Esucri. E-mail: patriciarodriguesoenning@gmail.com.
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 169
insere o sexo e suas diferenças fora da realidade social (ABÍLIO, 2017, p. 47). É a exterioriza-
ção do sentimento interior e individual de cada pessoa do seu sexo, como se vê no mundo.
Para Butler (2016), a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais
que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído;
consequentemente não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco a aparência fixa
do sexo. Revelando uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros construí-
dos. Sexo é natural, anatômico, cromossômico, hormonal. Gênero é construído, psicológico,
sentimento intrínseco que existe em relação a outro, o oposto.
A identidade sexual, como define Anna Paula Uziel (2014), é o modo como o indi-
víduo manifesta sua sexualidade para satisfação carnal, com pessoas do mesmo sexo, do
sexo oposto ou com ambos os sexos. Vai além do interesse reprodutivo das pessoas. Identi-
dade de gênero é a identificação do sujeito como sendo masculino ou feminino. Nesse sen-
tido, vale ressaltar que sexo está ligado à fisiologia humana, sendo sexo biológico, genético,
o que difere fisicamente o homem da mulher. Sexo biológico, em síntese, seria a percepção
do sexo genético, endócrino e morfológico (QUADRINI; VENAZZI, 2016). Identificando física
e externamente o indivíduo, como aparece ao olhar do outro.
A identidade de gênero é a visão pessoal de si mesmo, compreendendo aspectos
integrados de relações sociais, sentimentais e psicossociais, determinando um processo
ininterrupto na definição de si mesmo, de como é no mundo (BOCK, FURTADO; TEIXEIRA,
2008). É a manifestação dos sentimentos internos e atitudes individuais de cada pessoa, que
será ou não em consonância ao sexo atribuído no nascimento, englobando a modificação da
aparência, por meios cirúrgicos ou hormonais, incluindo o modo de se vestir, falar e de se
comportar (ABÍLIO, 2017). Importante ressaltar, que não se trata de escolha sexual, opção
sexual ou transtorno, como se observa no senso comum.
Nesse contexto, podemos definir que transexual é o indivíduo que encontra uma difi-
culdade de se apresentar com seu sexo biológico, por entender que pertence ao sexo oposto.
Apresenta uma oposição físico-psíquica em relação a si mesmo. Há, para essa pessoa,
uma diferença entre o sexo biológico e o sexo psicológico. São pessoas que, desde muito
cedo, pode-se dizer que desde o ventre materno, poderão apresentar significativa oposição
psicológica e emocional em relação ao seu sexo biológico pois amoldam-se ao sexo oposto
ao seu corpo, devido a diversos fatores, sejam eles genéticos, hormonais ou familiares (SÁ
NETO; GURGEL, 2014).
Para Hélio Gustavo Alves (2018), independente do sexo com que o indivíduo nasceu,
ele tem a percepção de si como sendo do outro gênero; masculino, feminino ou uma mes-
cla dos dois, sendo que tal fato se relaciona com seus sentimentos, a maneira de agir, se
comportar e interagir, em conformidade com suas características de personalidade ou sua
identidade, ou modo como deseja ser reconhecido.
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 171
rem na sociedade em razão da identidade das pessoas, de como elas expressam e vivem sua
sexualidade que é formada por determinantes biológicos, psicológicos e sociais.
Contudo, conforme expressa Fábio Costa de Souza (2015), o direito de reconheci-
mento dos transexuais é invisível para diversos atores sociais, visto que a elaboração de polí-
ticas públicas de proteção social não é suficiente para suprir as demandas dessa população,
estando sujeita a frequentes e graves violações dos direitos humanos. Se para o transexual,
o que prevalece é o sexo psicológico, ou seja, como ele se vê e se sente, sem a garantia
legal será tratado como homem ou mulher, de acordo com seu sexo biológico (CASTOLDI;
MULLER 2016,). Essa situação acaba gerando constrangimentos significativos para os tran-
sexuais, ferindo sua dignidade, além aflorar o sentimento de humilhação. Não obstante, res-
tará ao Poder Judiciário, a árdua competência de julgar os casos de violação dos direitos e
garantias fundamentais, bem como os direitos de personalidade pertinentes aos transexuais.
Como define Flávio Tartuce (2014), direitos da personalidade englobam o modo de
ser, físico ou moral do indivíduo, envolvendo aspectos psíquicos para proteção de sua inte-
gridade física, moral e intelectual, desde a concepção até a morte. Porém existem pessoas
que apresentam uma condição real, vivendo como se veem (identidade social) mas carre-
gam um documento de identificação que informa um nome diferente (nome civil) que já não
é o seu, esse nome é o que vive no mundo dos registros, num mundo real que não existe
(SÁ NETO; GURGEL, 2014).
Essa pessoa que tem uma identidade social diferente da identidade civil, não tem,
em regra, seus direitos garantidos, passando pela invisibilidade de um contexto social pre-
conceituoso. Sem um reconhecimento pleno de sua cidadania, essa pessoa é levada ao
isolamento, desamparada também pela lei, é inclinada à escolha pelo mercado informal ou
autônomo, muitas vezes vivendo à margem da sociedade, pela falta de garantia dos direitos
inerentes.
Apesar da constante evolução da sociedade, o preconceito e discriminação também
evoluem e a classe dos transexuais parece esquecida ou invisível, talvez pela repulsa que
causa aos olhos de quem não os compreende (aceita), sendo, então, percebidos somente
quando ligados a temas no ruidoso noticiário de homicídios, prostituição ou escândalos em
casas noturnas. A luta constante dessa classe para suplantar os obstáculos existentes se
dá por falta de legislação específica que normatize sua condição social (SÁ NETO; GURGEL,
2014). Denote-se que é muito forte a influência e a presença, bem como o próprio poder, das
classes dominantes heteroafetivas na sociedade. A invisibilidade dos transexuais leva a um
tratamento diferenciado que irá refletir na concessão dos benefícios previdenciários, quando
apresentam particularidades em razão da idade e sexo.
Assim, em 2014, quando o Supremo Tribunal Federal ao julgar, o Recurso Extraor-
dinário 845.779, originário do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e, sendo reconhecida a
repercussão geral pelo Ministro Relator Luís Roberto Barroso, fundamentando sua decisão
174 | LUCAS DE COSTA ALBERTON | PATRICIA RODRIGUES OENNING
onde “o tema debatido no recurso ultrapassa os limites subjetivos da lide, possuindo relevân-
cia social e jurídica, pois envolve reconhecer a indivíduo integrante de uma minoria o direito a
uma vida digna” (BRASIL, 2014). Continua sua decisão, em reconhecer a repercussão geral
Essa decisão da Suprema Corte, é o início do processo em que todos devem ser
tratados de forma igualitária, respeitando suas diferenças com base na nossa Carta Magna,
para o livre exercício da cidadania sem preconceitos ou discriminação a determinados gru-
pos, principalmente aos transexuais.
Com efeito, a identidade é um direito da personalidade fundamental de estreita liga-
ção com a dignidade da pessoa humana, relacionado com a existência jurídica da pessoa
garantindo sua efetiva concretização (ALMEIDA; VEDOVATO; SILVA, 2018) no tratamento de
forma igualitária para as minorias, incluindo os transexuais, em suas diferenças, objetivando
o pleno reconhecimento de sua identidade.
Nesse sentido, para o fortalecimento e reconhecimento das minorias como sujeitos
detentores dos direitos constitucionais, em 2018, o Supremo Tribunal Federal, julgou proce-
dente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, entendendo que todo cidadão tem
direito de ser chamado como desejar, reconhecendo às pessoas transexuais a garantia de
alteração do nome e sexo diretamente no registro civil, em cartório, sem precisar se subme-
ter ao processo cirúrgico de redesignação, observando o princípio da dignidade da pessoa
humana. Essa iniciativa denota um grande avanço contra a discriminação e o tratamento
excludente que tem estigmatizado a comunidade dos transexuais. No voto da Presidente da
Corte, ela afirmou que: “O ser humano é único, mas os padrões se impõem. O Estado há que
registrar o que a pessoa é, e não o que acha que cada um de nós deveria ser, segundo a sua
conveniência” (BRASIL, 2018).
Essa ação foi proposta pela Procuradoria-Geral da República para que fosse feita a
interpretação de acordo com a Constituição Federal e pactos internacionais que tratam dos
direitos fundamentais objetivando a possibilidade da alteração de nome e gênero no registro
civil com averbação no registro original, independentemente de cirurgia de transgenitalização
ou pareceres e laudos psicológicos ou médicos e sem a necessidade de autorização judicial
e limite de idade mínima. Sendo necessário, somente a autodeclaração. O Ministro Edson
Fachin em seu voto afirmou:
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 175
proporção. Tal fórmula matemática também deverá ser aplicada nos casos de aposentadoria
por idade e na aposentadoria especial, uma vez que poderá ser convertido para comum,
sendo diferente para homens e mulheres. Assim, a pessoa com nova identificação nos seus
registros, prevalecendo sua identidade atual, se aposentará com a diferença proporcional da
idade do homem e da mulher.
Nesses casos, aplicando-se a regra supracitada, seria a forma mais plausível para
garantir o direito ao transexual, bem como a segurança jurídica ao sistema previdenciário
(ALVES, 2018), levando em consideração todo o tempo trabalhado de acordo com o sexo.
Porém, se administrativamente for indeferida a solicitação de alteração do nome nos ca-
dastros junto à autarquia, restará ao interessado buscar o poder judiciário para apreciar sua
pretensão, de modo que seja respeitado o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, vemos que os efeitos da transexualidade não atingem somente os
segurados da Previdência Social, mas também os dependentes transexuais. Podemos citar
aqui a pensão por morte no caso dos militares, na qual a filha mulher e solteira teria o direito
de receber a pensão do pai falecido, caso não venha a ocupar cargo público permanente ou
deixar de ser solteira.
Nesse sentido, decidiu um Juiz Federal do Rio de Janeiro, em setembro de 2017,
quando a Marinha do Brasil cancelou o benefício ao filho transexual, na apresentação de seus
novos documentos como sendo homem. Motivou sua decisão na ideia de que “considerar o
autor como sendo do sexo feminino, não seria respeitada sua nova condição social” (RIO DE
JANEIRO, 2017), como se observa na transcrição de um trecho da decisão:
Entender que o impetrante seria titular do direito à pensão seria considerá-lo, em algu-
ma medida ou para certos fins, como um indivíduo do sexo feminino, o que reavivaria
todo o sofrimento que teve durante a vida e violaria sua dignidade, consubstanciada
no seu direito – já reconhecido em juízo – a ser reconhecido tal como é para fins
jurídicos, ou seja, como um indivíduo do sexo masculino (RIO DE JANEIRO, 2017).
Assim, também decidiu o juiz Joviano Carneiro Neto, em audiência realizada durante
do Programa Acelerar – Núcleo Previdenciário, na comarca de Aragarças/GO, em junho de
2018 (GOIÁS, 2018). O magistrado concedeu o benefício da aposentadoria por invalidez a
uma jovem de 30 anos que é soropositiva, portadora do vírus HIV/Aids. Baseou sua decisão
no artigo 42 da Lei n. 8.213/1991, bem como no laudo médico apresentado aos autos, o
qual comprova a existência de incapacidade total e permanente, trazendo a possibilidade da
concessão do benefício. O segurado que nasceu homem, desde os 14 anos se sente mulher
(GOIÁS, 2018).
Fica claro que nesse caso o magistrado, além de motivar sua decisão nos documen-
tos apresentados aos autos, se valeu do entendimento que vem sendo dado em relação às
180 | LUCAS DE COSTA ALBERTON | PATRICIA RODRIGUES OENNING
doenças que tem grande estigmatização social, como no caso da Aids, em que excepcional-
mente se analisa as condições pessoais, sociais e econômicas na concessão do benefício,
demonstrando a incapacidade social. A aposentadoria por invalidez poderá ser concedida
como primeira opção para as pessoas com incapacidade para as atividades laborais ou de-
correrem do benefício auxílio-doença, quando se verifica a incapacidade total e permanente
para o exercício das atividades laborativas.
Certamente, é necessária uma adequação na norma para acompanhar todas as mu-
danças sociais. A fim de que sejam resguardados os direitos das minorias (NASCIMENTO;
LEHFELD, 2016), de modo justo e igualitário sem preconceitos ou prejuízos, preservando
o direito à dignidade humana previsto na Constituição Federal. Portanto, se cumpridas as
exigências legais e realizada a fórmula matemática para as pessoas que alteraram sua iden-
tidade civil para um outro gênero, a concessão da aposentadoria seria o resultado esperado.
Contudo, está tramitando no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Consti-
tuição – PEC 287/2016, de autoria do Poder Executivo, para a reforma da Previdência Social.
Essa reforma prevê grandes mudanças no Regime Geral de Previdência Social, inclusive para
o funcionalismo público. De sorte, que tal mudança só valerá para os benefícios concedidos
após aprovada a reforma. Mesmo assim, não se observa a previsão legal para concessão
dos benefícios previdenciários em relação ao tempo a ser computado aos transexuais, que
biologicamente têm características de determinado sexo e se amoldam como pessoas do
gênero sexual oposto.
Essa situação se apresenta, em face do Brasil ter no ordenamento jurídico o elemen-
to sexo como determinação da identidade da pessoa (masculino/feminino) (ABÍLIO, 2017).
Prova disso é a Lei de Registros Públicos, que determina a indicação do sexo da pessoa em
sua certidão de nascimento. Dessa forma, os transexuais que são as pessoas que não se
identificam com seu sexo biológico, encontram-se sem amparo legal, abrindo espaço para
grandes problemas e constrangimentos.
Nesse contexto, ao analisarmos que a identidade pessoal não é estabelecida ape-
nas por seus fatores físicos e biológicos, mas por uma construção social e um sentimento
interno de pertencer ao sexo oposto (NASCIMENTO; LEHFELD, 2016), seria o pressuposto
para efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo como consequência a
garantia do direito à igualdade e à liberdade, ligados intimamente aos aspectos relacionados
à identidade do transexual.
Conclusão
Com base no que foi apresentado, podemos definir que transexual é a pessoa que
nasceu com um sexo biológico e encontra dificuldade de se apresentar como tal por entender
que pertence ao sexo oposto. Dessa forma, é necessária a supressão das desigualdades so-
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 181
Referências
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CAPÍTULO XII
Agradecimentos
Agradecer o apoio do Estado de Santa Catarina e da Universidade Comunitária da
Região de Chapecó (Unochapecó) pela realização desta Pesquisa de Iniciação Científica
com Recursos do art. 170 da Constituição Estadual de Santa Catarina – Edital 008/REITO-
RIA/2018 – UNOCHAPECÓ.
Agradecer o Comitê de Ética da Unochapecó pela aprovação da pesquisa, sobretudo
no tocante à realização das sete entrevistas com mediados atendidos pelo SMF/Unochapecó,
que encaminharam pedidos de divórcio consensual pela via extrajudicial, culminando com a
desjudicialização de conflitos familiares.
1
Bolsista de Pesquisa de Iniciação Científica com Recursos do art. 170 da Constituição Estadual de SC – Edital
008/Reitoria/2018 Unochapecó; bacharel em Direito – Unochapecó – Universidade Comunitária da Região de
Chapecó; E-mail: babieidt06@gmail.com.
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Direito Público e Evolução
Social pela Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Professora permanente do Programa de Mestrado
Acadêmico em Direito UNOCHAPECÓ na Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e Atores Internacionais. Integrante
dos Grupos de Pesquisas: Relações Internacionais, Direito e Poder – atores e desenvolvimento pluridimensional;
Liberdade, Estado e Desenvolvimento, ambos da UNOCHAPECÓ. Integrante da Rede de Pesquisa Interinstitu-
cional (UFSC, UNESC, UCS, ESUCRI, UNOCHAPECÓ) em Republicanismo, Cidadania e Jurisdição – RECIJUR.
Mediadora. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1370518931808075 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
3722-8581 Email: silviaorm@unochapeco.edu.br.
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 185
Introdução
Os conflitos disseminados no corpo social, originam-se de divergências entre os
envolvidos, entre eles e as entidades as quais pertencem ou entre estas propriamente ditas,
por conta de um momento de incertezas de ordem econômica, social, jurídica, política, filo-
sófica e emocional. O conflito é inerente à pessoa e pode ser verbalizado ou não, porquanto
não serão objeto da pesquisa as motivações intersubjetivas que originaram o dissenso, nem
mesmo os conflitos oriundos de situações de vulnerabilidades, como violência doméstica,
crianças, adolescentes, idosos e deficientes em situação de risco, mas sim as formas que
se pode utilizar a partir do conflito externalizado, levando-se em consideração a repercussão
tida com a outra parte conflitante (mediando).
A intervenção nos conflitos requer práticas inovadoras de encaminhamento que mi-
grem para um ideal de justiça, mesmo que na ordem privada. Em razão desse contexto de
conflitualidade crescente, sobretudo familiar, e o Poder Judiciário abarrotado de processos,
tem-se na desjudicialização um mecanismo que faculta às partes comporem seus litígios
fora da esfera de jurisdição estatal, cuja operacionalização vem acompanhada da edição de
leis, resoluções e provimentos que dispõem sobre atos jurídicos que dispensam a judiciali-
zação e que são eficazes, o que fortalece o sistema de justiça, conferindo-lhe autonomia e
oferecendo tutela jurídica aos jurisdicionados.
Nesse teor, a desjudicialização aponta para inúmeras possibilidades de desafoga-
mento do Poder Judiciário, de suas atribuições ante o crescimento exponencial das lides
oriundas das relações sociais. Assim, a mediação extrajudicial alberga perspectivas para
o futuro, fato corroborado pela edição da Lei da Mediação – Lei n. 13.140/2015, Lei de
Divórcio e Inventário Extrajudiciais – Lei n. 11.441/07, Provimento 63, de 14 de novembro
de 2017, do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre o reconhecimento voluntário e
a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva.
O tema escolhido possui relevância pois os conflitos, sobretudo os de ordem familiar,
aumentam cotidianamente e se apresentam cada vez mais complexos, fruto de relações
sociais desajustadas que necessitam de intervenção preventiva qualificada para possam ser
compreendidos e assumidos pelos envolvidos. Assim, os deveres oriundos, por exemplo, de
um divórcio certamente serão cumpridos porque houve diálogos, convenções e acordos que
tornaram a decisão do casal factível ao cumprimento, porque ambos participaram da cons-
trução da melhor decisão que o fato requeria e compreenderam o papel de cada um perante
os termos mediados: a responsabilidade.
Com esse introito, tem-se que o artigo contempla o eixo de Novos Direitos, Litigio-
sidade e Direitos Humanos. Ressalta-se que diante da pesquisa ser circunscrita ao tema da
desjudicialização, isto é, conflitos familiares que não foram judicializados, não foram objeto
de investigação as contendas que versavam sobre direitos indisponíveis, como o envolvi-
186 | BÁRBARA MARIA EIDT | SILVIA OZELAME RIGO MOSCHETTA
Importante salientar que o acesso à justiça não é garantido somente por meio do
Poder Judiciário, buscando em determinadas situações a judicialização para a resolução dos
litígios, como também a desjudicialização tem se apresentado como uma possibilidade de
acesso com segurança jurídica garantida. Portanto, a desjudicialização busca a solução de
conflitos, problemas sociais por meio de órgãos extrajudiciais mediante processos adminis-
trativos.
Não há outra consideração a fazer senão reconhecer a mediação como uma alterna-
tiva de se abduzir a cultura da sentença cedendo espaço para a desjudicialização no âmbito
dos conflitos familiares, traduzindo-se em prestação da tutela almejada pelos mediados e
garantindo segurança jurídica.
3
As entrevistas foram transcritas e os depoimentos constantes neste artigo passaram por revisão ortográfica no
que se refere à pronúncia correta das palavras, além da correção em termos de concordância e regência, ambas
nominal e verbal.
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 191
precisou procurar o Poder Judiciário para resolver seu conflito, por conseguinte, concluímos
que nesses casos a desjudicialização do conflito familiar obteve um resultado positivo.
Quanto à procura do SMF/Unochapecó, nota-se que há divulgação do SMF e dos
encaminhamentos feitos: “[...] eu não sabia da mediação familiar, mas um colega meu da
BRF indicou, procurei e percebi que foi bom, não teve custo e foi muito rápido, bem bom, não
demorou nada” (MEDIADO 7, 2019).
A possibilidade de desjudicialização do conflito familiar também demonstra a certeza
de não intervenção estatal na vida privada, situação assim descrita: “se a gente tivesse que
enfrentar um juiz ele talvez tentaria uma reconciliação e talvez o processo demorasse mais”
(MEDIADO 5, 2019).
Indubitavelmente, a gratuidade se apresenta como uma das vantagens do encami-
nhamento extrajudicial, embora o judicial também garanta assistência judicial, pela via da
hipossuficiência dos mediados, a prestação gratuita aliada à celeridade evidenciam a neces-
sidade dos mediados, pois quando questionados sobre o porquê da procura pelo SMF, assim
responderam: “pela questão financeira a gente procurou e pela agilidade, pois vocês enca-
minharam os documentos e a gente não precisou dispor desse tempo” (MEDIADO 6, 2019).
Sobre o protagonismo em encaminhar os próprios conflitos familiares a partir do
conhecimento da mediação ambientada em uma metodologia participativa e preventiva, per-
cebe-se que as respostas são afirmativas, destacando-se o diálogo, ou como mencionado
alhures, a escuta qualificada, a saber:
Entrevistador: Tu achas que a questão da mediação ela ajuda, contribui para que as
pessoas consigam resolver seus conflitos de família?
Mediado 5: É eu acho que sim, porque é um caminho mais fácil do que você enfrentar
um juiz, eu acho que ali se as pessoas conversassem entre elas e já tem mais ou
menos um acordo, é bem mais fácil (MEDIADO 5, 2019).
Conclusão
A mediação familiar permite que os interessados tenham autonomia para tratar e
ressignificar o conflito existente, tornando-se capazes de decidir sobre a melhor resposta
para o impasse vivenciado. Nessa perspectiva, os procedimentos são refletidos na forma
como é conduzida a sessão de mediação. Esta deve ser um processo dinâmico e flexível, em
que fatores sociais, econômicos e culturais dos mediandos sejam levados em consideração
para a escolha do modo de abordagem do mediador (por isso a formação interdisciplinar é
necessária), a fim de que se possam alcançar a igualdade e o equilíbrio entre as forças em
disputa e se estabeleça a comunicação.
A pretensão do artigo foi apresentar a mediação como metodologia interventivo-par-
ticipativa e preventiva de encaminhamento de conflitos familiares e mostrar os resultados de
pesquisa realizada com o apoio e financiamento. Para demonstrar viabilidade da pesquisa
foram apresentados alguns trechos das entrevistas realizadas com os mediados que utiliza-
ram o SMF/Unochapecó e não necessitaram da judicialização de seu conflito.
Os entrevistados ressaltam o bom atendimento do Serviço de Mediação Familiar
Extrajudicial da Unochapecó, em que foram recolhidos os documentos, prestadas as devidas
informações e confeccionada a minuta da demanda solicitada (divórcio consensual), pos-
teriormente foi encaminhado ao respectivo Cartório para confecção da respectiva Escritura
Pública de Divórcio Consensual. No âmbito do Cartório Extrajudicial os mediados obtiveram
toda a orientação jurídica sobre o processo, o que evidenciou a celeridade como ponto po-
sitivo. Outro ponto destacado pelos mediados entrevistados foi em relação à gratuidade do
procedimento, o qual conta com a dispensa de custas, sendo assim uma facilidade oferecida
pelo Serviço de Mediação Familiar Extrajudicial.
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 193
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maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão
dos filhos havidos por reprodução assistida. Diário da Justiça, n. 191, 17 nov. 2017.
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sensual e divórcio consensual por via administrativa. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 jan. 2007.
BRASIL. Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como
meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração
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CAPÍTULO XIII
CLOVIS DEMARCHI 1
ELAINE CRISTINA MAIESKI 2
Introdução
Considerada como um grande avanço, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também
conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146 (BRASIL, 2015), tem
impactado diretamente a vida de cerca de 45 milhões de brasileiros com algum grau de
deficiência, e indiretamente, toda sociedade, governo e instituições. A lei que trouxe mais
autonomia às pessoas com deficiência alterou o instituto da capacidade possibilitando que
esses cidadãos possam exercer atos da vida civil em condições de igualdade com as demais
pessoas, como o direito de casar ou constituir união estável e exercer seus direitos sexuais
e reprodutivos em igualdade de condições com as demais pessoas.
Também introduziu novos institutos como a Tomada de Decisão Apoiada (TDA), pos-
sibilitando o auxílio de pessoas de sua confiança em decisões sobre atos da vida civil, com
a designação de um curador para atos de direitos patrimonial ou negocial. Nesse contexto,
o artigo tem como objeto a discussão sobre a aplicabilidade do Estatuto da Pessoa com
Deficiência e a sua relação com a Dignidade Humana.
O objetivo geral é analisar o Estatuto da Pessoa com Deficiência e as consequentes
alterações na legislação brasileira, em especial no Código Civil e verificar as consequências
destas alterações. Como objetivos específicos têm-se: a) caracterizar dignidade humana; b)
1
Doutor em Ciência Jurídica. Professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (PPGD/Univali). E-mail: demarchi@univali.br.
2
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Jornalista. E-mail: lane.maieski@
gmail.com.
196 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI
Nesse contexto, Flávia Piovesan (2018. p. 102) diz que a dignidade da pessoa hu-
mana está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido,
condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se como “cânone constitucio-
nal que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico
a todo o sistema jurídico Brasileiro”. Portanto, a efetivação da dignidade humana se dá por
meio da implementação de políticas públicas que dão solidez a todos os direitos previstos e
pautados no Direito Brasileiro, e encontram guarida inclusive na tutela do mínimo existencial,
já que as políticas de estado e as políticas de governo devem estar voltadas às necessidades
dos mais diversos grupos sociais, sem distinção.
Sendo assim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência é hoje um importante instru-
mento de concretização da dignidade humana, pois possibilita não apenas a implementação
de políticas públicas voltadas às necessidades da pessoa com deficiência, mas também
um entendimento e identificação mais específicos das barreiras que ainda impedem a plena
inclusão e acessibilidade.
ou sensorial, [...], em interação com [...] barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva[...] em igualdade de condições com as demais pessoas”. Ou seja, a deficiência não
é um “defeito” que precisa ser consertado.
O modelo adotado é social ou de garantia da Dignidade da Pessoa. Consagra-se,
assim, o vetor de antidiscriminação, exigindo a efetivação de políticas públicas e a responsa-
bilidade do Estado na eliminação das barreiras e assegurando a igualdade material (RAMOS,
2018). Cite-se também o parágrafo primeiro do artigo 2º3, que dispõe que a avaliação da
deficiência será biopsicossocial, devendo ser realizada por equipe multiprofissional e inter-
disciplinar.
Destaca-se que a avaliação biopsicossocial deve considerar aspectos sociais e da-
dos médicos. Essa abordagem supera o simples modelo biológico, para considerar, fato-
res sociais como nível de escolaridade, profissão, composição familiar, e outros (FARIAS;
CUNHA; PINTO, 2016).
O caput do artigo 4º do Estatuto afirma que “Toda pessoa com deficiência tem direito
à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de
discriminação” (BRASIL, 2015). O disposto atende à dignidade da pessoa humana, à liber-
dade e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
O segundo título do Estatuto da Pessoa com Deficiência, destina-se aos direitos
fundamentais, como direito à vida, à habilitação e à reabilitação, à saúde, à educação, à
moradia, ao trabalho, à assistência social, à previdência social, à cultura, ao esporte, ao
turismo e ao lazer, ao transporte e à mobilidade. Quanto à educação, o Estatuto assegura
um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo da vida, como
dispõem os artigos 27 e 28.
Em relação à assistência social prevista no artigo 39 e nos seguintes, o Estatuto
garante o direito da pessoa com deficiência e sua família à proteção social, assim como
criou o auxílio-inclusão, de cunho previdenciário, para pessoas com deficiência moderada
ou grave, conforme artigo 94. Observa-se que o Estatuto reafirmou os direitos previdenciá-
rios e socioassistenciais assim como apresentou avanços para ampliar a proteção social
e a acessibilidade. Outra preocupação do Estatuto encontra-se no artigo 42, que garante o
acesso à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as
demais pessoas.
O título III é destinado à acessibilidade, sendo um direito de toda pessoa com de-
ficiência viver com independência e exercer seus direitos de cidadania e de participação
3
“§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissio-
nal e interdisciplinar e considerará: I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II - os fatores
socioambientais, psicológicos e pessoais; III - a limitação no desempenho de atividades; e IV - a restrição de
participação” (BRASIL, 2015).
200 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI
social, conforme o artigo 53. É importante ressaltar que o conceito de acessibilidade está
previsto no artigo 3º do Estatuto, qual seja:
para realizar ou não determinado ato. Esta ideia além de ser inclusiva, caracteriza-se como
não discriminatória. Com a nova regra, toda e qualquer pessoa com deficiência, passou a ser
plenamente capaz perante o Direito Civil, consolidado ainda mais a ideia de inclusão social
e dignidade humana.
Igualmente importante, cita-se a alteração do artigo 4º do Código Civil, que trata das
pessoas relativamente incapazes, mais precisamente nos incisos II e III, tendo atualmente a
seguinte redação:
O novo dispositivo legal não faz mais referência às pessoas com discernimento re-
duzido como relativamente incapazes, como eram anteriormente consideradas, mantendo
apenas nessa categoria os ébrios habituais e os viciados em tóxicos. O inciso III tirou da
condição de relativamente incapazes os excepcionais, sem desenvolvimento mental com-
pleto, como é o caso das pessoas com Síndrome de Down, passando a integrar o rol as
pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade e que
antes da alteração, eram consideradas absolutamente incapazes. Tais alterações contribuem
para a inclusão de pessoas que antes eram relegadas ou desconsideradas no contexto da
dignidade e de direitos.
O instituto do casamento também recebeu importantes modificações com a vigência
do Estatuto da Pessoa com Deficiência. O artigo 1.548 do Código Civil, em seu inciso I,
indicava que era nulo o casamento contraído pelo enfermo mental sem discernimento para
os atos da vida civil. Tal inciso foi revogado pela vigência da nova norma. Ou seja, a partir
do Estatuto da Pessoa com Deficiência, não se pode mais anular o casamento contraído
pelo enfermo mental, sem discernimento. O texto anterior sugeria o casamento para a pes-
soa incapaz como algo negativo. Porém, a nova regra institui o contrário, afirmando que o
casamento é via de regra salutar à pessoa que apresente alguma deficiência, visando assim,
reafirmar a tutela de sua dignidade e inclusão social.
O artigo 1.550 do Código Civil, que trata da nulidade relativa do casamento, também
sofreu alterações, passando a vigorar com o acréscimo de um novo parágrafo, e redação
como se segue: “Art. 1.550. É anulável o casamento: [...] § 2o A pessoa com deficiência
mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade
diretamente ou por meio de seu responsável ou curador”.
202 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: [...]
III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não carac-
terize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança,
capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência; (BRASIL,
2002).
O inciso III do artigo passou a ter uma ressalva, em que menciona que se considera
erro essencial quanto à pessoa do outro a ignorância, anterior ao casamento, de defeito
físico irrecuperável que não caracterize deficiência ou moléstia grave, e o seu inciso IV, que
tratava do erro essencial relativo à doença mental grave da pessoa, foi revogado.
A curatela também sofreu alterações pela Lei n. 13.146/2015, com vários artigos no
Código Civil alterados ou revogados. Nesse novo contexto, a curatela também foi instituída
como forma de assegurar o direito ao exercício da capacidade civil da pessoa com deficiên-
cia. Dispõe o artigo 84, caput e parágrafo 1º, da Lei n. 13.146/2015:
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capa-
cidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1o Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, con-
forme a lei.
O artigo 1.767 do Código Civil, o primeiro a abordar a curatela, sofreu alterações pelo
Estatuto da Pessoa com Deficiência no que diz respeito ao rol de pessoas sujeitas a esse ins-
tituto, excluindo os que por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o discernimento
para os atos da vida civil, os deficientes mentais e os excepcionais sem completo desen-
volvimento mental, passando a vigorar nos seguintes termos: “Art. 1.767. Estão sujeitos a
curatela: I - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua
vontade; [...] III - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; [...] V - os pródigos”.
A inclusão do artigo 1.775-A no Código Civil, estabelece que na nomeação de cura-
dor para pessoa com deficiência o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais
de uma pessoa – o que até então não era possível. Nas alterações supracitadas, a curatela
passa a ser uma medida extraordinária, ficando limitada aos atos relacionados aos direitos
de natureza patrimonial e negocial, conforme determina o artigo 85, caput, sendo reforçada
essa ideia pelos parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 13.146/2015:
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS| 203
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza
patrimonial e negocial.
§ 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao
matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2o A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões
e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.
Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com defi-
ciência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos
e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre
atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que
possa exercer sua capacidade.
Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - Casar-se e constituir união estável;
II - Exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - Exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações
adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - Conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - Exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - Exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou ado-
tando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Art. 4o Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as
demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.
§ 1o Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção,
restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de
prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das li-
berdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações
razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
Como deixa claro em seu artigo 1°, o Estatuto da Pessoa com Deficiência “é des-
tinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e
cidadania”. Paradigmas históricos da lei brasileira que categorizavam a deficiência segundo
critérios médicos, dividindo os grupos por “tipos de deficiência”, foram superados com a
edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Nesse contexto, percebe-se que o a nova lei, além de ser extremamente positiva,
objetiva claramente a inclusão social da pessoa com deficiência, impondo a igualdade, ba-
seando-se na promoção do exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pela pessoa
com deficiência.
Conclusão
O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) e sua relação com a
Dignidade Humana colocou em outras perspectivas não apenas a teoria das capacidades,
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS| 205
mas também a forma como nos relacionamos com o tema deficiência. Observa-se que a dig-
nidade da pessoa humana se manifesta na capacidade de pensar, criar, interpretar e interagir
com os outros e com o ambiente em que vive, possibilitando ao deficiente expressar sua
opinião e suas vontades perante a sociedade e o Estado, exercendo sua cidadania, obtendo
voz e sendo respeitado.
Claramente o Estatuto da Pessoa com Deficiência objetiva a inclusão social da pes-
soa com deficiência, principalmente no que tange à igualdade, tendo em seu escopo a pro-
moção dos direitos e liberdades fundamentais, em especial da capacidade civil, assegurando
a tutela da Dignidade Humana. Como dito, esse dispositivo legal tem impactado diretamente
a vida de cerca de 45 milhões de brasileiros com algum grau de deficiência, e indiretamente,
toda a sociedade, governos e instituições.
Em termos genéricos, observa-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência altera
integralmente o artigo 3° do Código Civil. Toda e qualquer pessoa com deficiência, passou a
ser plenamente capaz perante o Direito Civil, consolidado a ideia de inclusão social e digni-
dade humana. O instituto do casamento recebeu modificações. Não se pode mais anular o
casamento contraído pelo enfermo mental, sem discernimento.
A curatela foi instituída como forma de assegurar o direito ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência. O artigo 1.775-A no Código Civil estabelece que na nomea-
ção de curador o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa. A
curatela passa a ser uma medida extraordinária, ficando limitada aos atos relacionados aos
direitos de natureza patrimonial e negocial.
A Tomada de Decisão Apoiada, incluída no Código Civil pela Lei n. 13.146/2015, por
meio do artigo 1.783-A, foi a grande novidade no que tange aos institutos assistenciais. Tal
instituto traz uma nova opção de representação, mais ampla, em que poderá optar por mais
de um representante para os atos de sua vida civil, sendo possível a nomeação específica
para cada ato de representação.
Nesse contexto, verifica-se que o problema de pesquisa foi efetivamente respondido,
visto que o Estatuto da Pessoa com Deficiência e as consequentes alterações na legislação
brasileira contribuíram para a efetivação da Dignidade da Pessoa Humana. Quanto à meto-
dologia teve por base o método indutivo com a técnica de pesquisa bibliográfica, legislativa
e documental.
Referências
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 25 out.
2018.
206 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI
BRASIL. Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Admi-
nistração Pública Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 jan. 1999. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9784.htm. Acesso em: 15 maio. 2019.
BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso
em: 15 maio. 2019.
BRASIL. Lei 13.146 de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiên-
cia (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06 jul. 2015. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 10 maio.
2019.
FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da Pessoa
com Deficiência Comentado artigo por artigo. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
GLOBO NEWS. Menos de 6% das cidades brasileiras têm plano de mobilidade. G1 – Globo, set. 2018.
Disponível em: https://g1.globo.com/globonews/noticia/2018/09/04/menos-de-6-das-cidades-brasilei-
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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 18. ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2018.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição Fe-
deral de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetória e metodologia. 2. ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2016.
PARTE III
ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA A CRIANÇA E O
ADOLESCENTE
CAPÍTULO XIV
Introdução
Os direitos fundamentais de crianças e adolescentes por muito tempo foram negli-
genciados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Foi apenas após a promulgação da Constitui-
ção Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, que esses sujeitos
passaram a ter seus direitos positivados. Apesar de garantidos em lei, ainda se percebe a
dificuldade da efetivação de direitos das crianças e dos adolescentes, em especial, quando
se trata ao direito à voz e à diversidade de gênero.
A elaboração da pesquisa acerca da transexualidade na infância se mostra conve-
niente em virtude de que, apesar de haver alguns pontuais avanços na garantia de direitos às
pessoas transgênero, pouco (ou quase nada) se vê em relação ao assunto quando abordado
na infância. Assim, ainda há muita dificuldade para esses sujeitos conseguirem ter uma vida
digna e livre de repressão social.
A população LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, transexuais, traves-
tis, intersexo e outras identidades) sofre diariamente com preconceito e violência. Conforme
1
Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Professor e pesquisador permanente do
Programa de Pós-Graduação em Direito e da graduação em Direito na disciplina de Direito da Criança e do Ado-
lescente na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado,
Política e Direito (Nuped/Unesc). E-mail: ismael@unesc.net.
2
Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/Unesc), com taxa pelo Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino
Superior – Prosuc/Capes e Unesc/Propex. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nu-
ped/Unesc). E-mail: pedrohhilario@unesc.net.
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 209
relatório anual divulgado pela ONG Grupo Gay da Bahia, em 2018 foram 420 mortes violen-
tas contra esse grupo social, sendo que, dessas 420 mortes, 164 foram de pessoas trans,
categoria considerada mais vulnerável a mortes violentas (GGB, 2019).
Pensando nisso, nasce a problemática: a atuação do poder legislativo e judiciário dá
suporte e garante a efetivação de direitos às crianças transexuais? Assim, o presente artigo
tem como objetivo geral analisar como os poderes legislativo e judiciário vêm tratando o
tema da transexualidade na infância. Para alcançar tal objetivo, o trabalho será dividido em
três tópicos, a saber: a teoria da proteção integral e o direito da criança à liberdade, respeito e
dignidade; diversidade de gênero como um direito fundamental; e a omissão do ordenamento
jurídico brasileiro na questão da transexualidade na infância.
O trabalho utilizou-se do método dedutivo e seu desenvolvimento se deu por meio de
técnicas de pesquisa documental-legal, doutrinas e julgados sobre o tema, com a realização
de revisão bibliográfica acerca dos direitos da criança e do adolescente e da questão de
gênero, bem como análise de como o legislativo e o judiciário brasileiro se posicionam no
tocante ao direito das crianças trans.
3
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia (sic) Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a seguran-
ça, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988).
4
“O Estado Democrático [...] significa que o Estado se rege por normas democráticas, com eleições livres,
periódicas e pelo povo, bem como o respeito pelas autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais é
proclamado, por exemplo, no caput do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil [...]” (MORAES,
2014, p. 6).
210 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO
dentre outros valores, para assegurar uma sociedade pluralista e sem preconceitos, que foi o
que o legislador buscou com a promulgação da Carta Magna (BRASIL, 1988).
Ao se estudar acerca dos direitos fundamentais de todo cidadão, é essencial desta-
car que vários grupos sociais possuem constantemente seus direitos reduzidos. Por conta
disso, Rubio (2014, p. 102) comenta que é de indispensável e imediata relevância analisar
a história dos direitos humanos conforme as “lutas, contextos e condições particulares de
cada grupo e forma de vida”. Diz, ainda, que não se deve condicionar essa análise à “[...]
visão geracional que apenas atende a reflexos normativos e institucionais vestidos por um
alfaiate que manifesta uma expressão de corpo humano, porém não é necessariamente a
única e nem serve para avançar na produção de humanidade” (RUBIO, 2014, p. 102).
Foi apenas a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que o Direito da
Criança e do Adolescente criou suas bases, “inter-relacionando os princípios e diretrizes da
teoria da proteção integral”, gerando, em consequência disso, “um reordenamento jurídico,
político e institucional sobre todos os planos, programas, projetos, ações e atitudes por parte
do Estado” (CUSTÓDIO, 2009, p. 26).
Com o fim do período ditatorial militar e com a promulgação da Constituição Federal
em 1988, passou-se a acolher, pelo menos no texto da lei, a criança e o adolescente de for-
ma social, olhando-os como sujeitos de direitos e concedendo-lhes garantias fundamentais.
Houve, então, a “transição da ‘doutrina da situação irregular do menor’ para a ‘teoria da
proteção integral’” (CUSTÓDIO, 2009, p. 24).
O novo olhar dado à criança e ao adolescente foi inserido ao texto constitucional de
1988, que reconhece uma série de direitos fundamentais a esses sujeitos de direitos e os
trata como sendo de “absoluta prioridade”:
Como pode ser analisado no dispositivo legal, o Estado, a família e a sociedade têm
a obrigação de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem diversos direitos, bem como
deixá-los livres de quaisquer tipos de violações e discriminações. Seguindo o exposto na
Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado em
1990 (Lei n. 8.069/1990). O ECA rompe com as ideias dispostas anteriormente nos Códigos
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 211
de Menores de 19275 e de 19796 e traz, em seu artigo 3º7, que “a criança e o adolescente
gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da pro-
teção integral de que trata esta Lei” (BRASIL, 1990).
Conforme Souza (2016, p. 65-66), a “proteção integral dos direitos da criança e do
adolescente salvaguarda os elementos necessários, pois condicionou a ruptura dos velhos
dogmas menoristas instituídos até fim do século XX”. Ficaram, assim, estabelecidas normas
que tentam garantir à criança e ao adolescente direitos, deveres, proteção e, principalmente,
dignidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, portanto, foi criado para implementar direi-
tos à criança e ao adolescente. Dentre as principais ações do Estatuto está a implementação
da proteção integral a esses novos sujeitos de direitos. A CRFB/88, junto com o ECA, foi de
suma importância para a evolução do tema. Firmo (1999, p. 32) aponta que:
5
Decreto n. 17.943-A, de 1927: “Consolida as leis de assistencia e protecção a menores” (BRASIL, 1927, sic).
6
Lei n. 6.697, de 1979: “Institui o Código de Menores” (BRASIL, 1979).
7
Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem
prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas
as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor,
religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica,
ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comu-
nidade em que vivem (BRASIL, 1990).
212 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO
É muito mais. É a garantia de fazer o que quiser, se o fazer não afronta a lei, deixar
de fazer o que não quiser fazer, se o fazer não for imposto pela lei, expressar como
quiser o seu pensamento e as suas convicções, professar a sua crença publicamente,
seja religiosa, filosófica ou política, divulgar as suas criações de espírito no campo da
literatura, das artes, da ciência e tecnologia, nos meios de comunicação (PEREIRA,
2008, p. 153).
Seguindo esse pensamento, entende-se que crianças e adolescentes devem ter seus
direitos civis, humanos e sociais assegurados como pessoas humanas que se encontram
em fase de desenvolvimento (CUSTÓDIO, 2009). Vê-se, assim, que a liberdade, o respeito
e a dignidade da criança e do adolescente são essenciais para a garantia da efetividade da
proteção integral. Ao respeitar e consolidar esses direitos, o Estado e os cidadãos estão
indo ao encontro de uma sociedade mais harmônica, justa, livre de preconceito, opressão e
marginalização.
Apesar de positivados, não há como afirmar que os direitos fundamentais de crian-
ças e adolescentes estão consolidados e que há observância ao que dita a teoria da proteção
integral.
8
“Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer trata-
mento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (BRASIL, 1990).
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 213
Ou seja, não se pode cair no comodismo de imaginar que, pelo fato de a Constituição
Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente trazerem dispositivos que versem
sobre a prioridade absoluta e a proteção integral, os direitos já estejam garantidos e não é
preciso reivindicá-los. A família, Estado e sociedade têm o dever de garantir a esses sujeitos
de direitos toda proteção necessária.
Partindo dessa ideia, tem-se por sexo biológico aquele que o corpo sexuado apre-
senta ao nascer. Barata (2009, p. 73-74), ao explicar o conceito de sexo, define-o como “um
marcador de diferenças biológicas entre indivíduos da espécie humana, relacionadas com
aspectos anatômicos e fisiológicos do aparelho reprodutivo e eventualmente com caracterís-
ticas genéticas vinculadas aos cromossomos x ou y”.
Inicialmente, os debates envolvendo o gênero limitavam-se às questões biológicas
e apenas nessas questões estava baseado. Tentava-se explicar e justificar diferenças físicas
e comportamentais existentes entre mulheres e homens, atendo-se à justificativa biológica.
Além disso, buscava-se encontrar explicação que comprovasse que cada corpo sexuado
possuía lugares sociais e destinos específicos (LOURO, 2003).
Buscando explicar o conceito social de como o gênero é construído, indo além da
mera diferenciação com o sexo, Beauvoir (1980, p. 9) apresentou o célebre pensamento de
que “[n]inguém nasce mulher: torna-se mulher”. Para além dessa frase, a autora faz a análi-
se de que “é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho
e o castrado que qualificam de feminino”.
Dessa forma, gênero e sexo se distinguem com o entendimento de que este é um
fator biológico, enquanto aquele é construído social e culturalmente. Butler (2016, p. 26)
segue sua discussão sobre distinção sexo/gênero esclarecendo que a ideia de que o gênero
decorre do sexo não é uma lógica que deve ser considerada regra nem natural. Logo:
214 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO
Com relação à lembrança de quantos anos tinham quando, pela primeira vez, teriam
sentido que a sua identidade de gênero estava em desacordo com a designada social-
mente, configurando-se assim a idade da epifania, os respondentes indicaram uma
idade média entre 6 e 7 anos (média igual a 6,75), com moda (valor mais frequente)
de 5 anos, idade mínima de 4 e máxima de 12 (JESUS, 2013, p. 5).
[a] decisão garante o respeito à dignidade da criança, que se via submetida a uma
série de constrangimentos e situações vexatórias em seu dia-a-dia e em razão da
discrepância entre seu gênero biológico e o gênero com o qual se identifica desde os
5 anos. Além disso, é importante porque serve de precedente para casos análogos.
[...]. Essa alteração garantirá direitos preconizados no Estatuto da Criança e do Ado-
lescente, no sentido de que a criança tenha assegurado o seu melhor bem-estar em
relação aos aspectos biológicos, psicológicos e sociais (DPRJ, 2019).
9
Informação extraída do portal eletrônico de notícias Veja São Paulo, haja vista a ação judicial correr em segredo
de justiça e os autores não terem tido acesso à decisão judicial até a data de submissão deste trabalho (ju-
lho/2019).
218 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO
parecem ainda não ter direitos. Graças ao trabalho da Defensoria Pública, essas crianças
conseguiram conquistar um pouco de dignidade e respeito perante a sociedade. Entretanto,
diferentemente desses dois casos, há muitas crianças e adolescentes que passam pela mes-
ma situação e não tem nem o acolhimento da família, tampouco o acesso à justiça.
O poder judiciário, nos dois casos supramencionados, atuou na garantia dos direitos
fundamentais das crianças, haja vista a ausência de posicionamento do legislador brasileiro
no tocante ao tema. Quantas outras ações terão de ser ingressadas para assegurar o melhor
interesse da criança? Quantas crianças terão de sofrer para que haja uma postura ativa que
assegure a dignidade desses sujeitos de direitos? Ainda há muito a se fazer para garantir a
efetivação da proteção integral à criança e ao adolescente.
Conclusão
Foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que crianças e adolescentes
passaram a ser tratados pelo legislador como sujeitos possuidores de direitos fundamentais
os quais todo ser humano possui, sendo-lhes assegurado o direito à liberdade, ao respeito e
à dignidade, a fim de os colocar livres de toda forma de opressão e discriminação. Seguido
a isso, foi publicado, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal que trouxe
a ideia da teoria da proteção integral à criança e ao adolescente, ou seja, criou dispositivos
legais que visam à garantia dos direitos fundamentais a esses sujeitos.
Antes de adentrar ao tema da transexualidade na infância, buscou-se elucidar a dis-
tinção entre os termos “identidade de gênero” e “sexo biológico”. Enquanto este é um fator
biológico, aquele se traduz numa construção social, cultural e identitária. As pessoas que se
identificam com um gênero diverso de seu sexo biológico são denominadas transgêneros,
termo que engloba travestis e transexuais; já as que se identificam com o mesmo gênero
atribuído ao nascimento são chamadas cisgêneros.
O descobrimento da identidade de gênero acontece, normalmente, na infância, entre
os 6 e 8 anos de idade. A partir dessa informação, é essencial voltar a atenção a essas
crianças que ainda são tratadas como seres invisíveis, sem voz, e que muitas vezes são
reprimidas ao tentarem expressar sua própria identidade.
Há apenas dois casos no Brasil de que se tem conhecimento de que crianças tran-
sexuais, representadas por seus pais e sob assistência jurídica da Defensoria Pública, in-
gressaram com ações judiciais e conseguiram a retificação do nome e sexo no registro civil.
Os magistrados, ao proferirem suas decisões, pautaram-se no princípio do melhor interesse
da criança para garantir às postulantes o seu melhor bem-estar no tocante aos aspectos
biológicos, psicológicos e sociais.
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 219
Ainda que de forma tímida, constatou-se que nos dois casos houve a preocupação
do judiciário em dar voz e garantir a devida proteção aos direitos e interesses da criança.
Porém, ainda se vê a inércia (leia-se: a resistência) do legislativo conservador brasileiro em
tratar essa questão. Não é novidade que os nobres deputados federais e senadores se recu-
sam a estudar temas relacionados a gênero e orientação sexual. Os pensamentos arcaicos e
reacionários do poder legislativo federal tiram a voz daqueles que já não são ouvidos, deixam
à escuridão aqueles que já são invisíveis e violam os direitos fundamentais de quem mais
tem direitos violados.
Referências
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CAPÍTULO XV
Introdução
O presente artigo analisa o trabalho infantil doméstico, mais precisamente o con-
texto, as causas e a proteção jurídica no marco teórico da proteção integral de crianças e
adolescente. A pesquisa sobre este tema é de extrema importância, visto que é com seu
estudo que se amplia a área de conhecimento discorrendo sobre a proteção jurídica das
crianças e dos adolescentes, para assim garantir seus direitos e assegurar o aprimoramento
das políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil.
Neste trabalho se busca compreender quais são as causas para o trabalho infantil
doméstico tendo por base o marco teórico da proteção integral. Considerando a comple-
xidade e a multidimensionalidade do tema, analisa-se as questões econômicas, culturais,
educacionais e políticas relacionadas ao trabalho infantil doméstico no Brasil.
A pesquisa utiliza o método de abordagem dedutivo, ou seja, analisa questões gerais
fundamentais para então compreender o tema e suas especificidades, permitindo um estudo
1
Pós-doutor pela Universidade de Sevilha/Espanha (US). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Professor e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (PPGD/Unisc). Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos
Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e Líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social
do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul
(Unisc). E-mail: andrecustodio@unisc.br.
2
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, e em Direito da
União Europeia na Universidade do Minho em Braga-Portugal, integrante do Grupo de Estudos em Direitos
Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do
PPPG/UNISC. Email: f.mramos@yahoo.com.br.
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 223
de maneira explicativa sobre o trabalho infantil doméstico, contribuindo para as políticas pú-
blicas de crianças e adolescentes vítimas de tais práticas. Como técnicas de pesquisa foram
utilizadas a documentação indireta bibliográfica e a documental.
O trabalho infantil doméstico é uma prática de exploração de mão de obra barata e
de difícil fiscalização, pois acontece dentro da própria casa das pessoas ou na de terceiros,
evidenciando aspectos resultantes das discriminações geracionais e de gênero decorrentes
das desigualdades econômicas e sociais.
e 15 anos (IBGE, 2015). Desta vista sabe-se que exceto no emprego doméstico, em que
predominam as mulheres, a proporção de meninos trabalhando é maior sendo a porcenta-
gem de trabalho infantil nas áreas rurais mais elevada do que nas áreas urbanas do Brasil
(KASSOUF, 2007).
Dados do Relatório Mundial sobre Trabalho Infantil 2015, elaborado pela OIT, indicam
que 168 milhões de crianças realizam trabalho infantil no mundo. Entre elas, 120
milhões tem idades entre 5 e 14 anos e cerca de 5 milhões vivem em condições
análogas à escravidão. Mais da metade (85 milhões) está envolvida com trabalhos
perigosos. Segundo a OIT, entre 20% e 30% das crianças em países de baixa renda
abandonam a escola e entram no mercado de trabalho até os 15 anos (CORTEZ,
2018, p. 68).
As informações encontradas sobre trabalho infantil doméstico não devem ser vis-
tos apenas como resultados “do acirramento da exclusão econômica e empobrecimento da
população, mas também indicam uma continuidade da dinâmica histórica consolidada por
práticas jurídicas e institucionais” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 75, pois sempre se é
transferido para as crianças e os adolescentes a responsabilidade pelo seu sustento e tam-
bém de sua família. Afinal, embora a exclusão econômica seja o principal fator para a causa
do trabalho infantil doméstico, este não é o único “visto existirem outros elementos históri-
cos claros que contribuíram para sua normalização, ampliando a capacidade de resistência
e consequentemente a reprodução do fenômeno” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 75).
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 225
Atualmente, a sociedade tem uma visão mais consensual de que o lugar da criança
é na escola, tendo sido criado por o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que
envolve o conjunto de ações intersetoriais da política de prevenção e erradicação do trabalho
infantil, fortalecendo os “espaços atuantes na defesa da criança e do adolescente, a exemplo
dos Conselhos de Direitos e Tutelares e do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil” (PERES, 2003, p. 16). Porém, ainda há muitas crianças e adolescentes que
continuam a trabalhar no país, e que por isso não conseguem estudar, sendo que no futuro
não conseguirão melhores empregos pois não estudaram “reproduzindo o ciclo vicioso da
miséria” (PERES, 2003, p. 16).
Por fim, para garantir a efetividade das políticas públicas de enfrentamento ao tra-
balho infantil foi editada a Recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT). Esta prevê “ações especificas para o enfrentamento do trabalho perigoso e medidas
de aplicação da Convenção 182”, como integrar e sistematizar dados sobre o trabalho infantil
e monitorar a aplicação das normas da referida Convenção” (SOUZA; LEME, 2014, p. 47).
Essas Convenções, que foram ratificadas pelo Brasil, criaram um “compromisso
com a adaptação das leis nacionais e do desenvolvimento de programas de ação específicos
e imediatos” (PERES, 2003, p. 26). No Brasil, desde o ano de 1988, temos a proibição do
trabalho infantil pela Constituição Federal em seu artigo 7º, XXXIII, que elucidava a proibição
de trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres aos menores de 18 anos e aos menores de
14 anos qualquer outro trabalho que não seja na condição de aprendiz.
Na data de 13 de julho de 1990 foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que
incorporou a proteção integral desses sujeitos já encontrada no artigo 227 da Constituição
de Federal de 1988, a qual assegurou a todas as crianças a aos adolescentes seus direitos
fundamentais.
A legislação internacional foi o esteio para que, depois de uma longa discussão com
a participação da sociedade civil organizada, o Congresso Nacional aprovasse a Lei
8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ainda
que relativamente pouco conhecido em profundidade pela sociedade brasileira, o ECA,
com seus 267 artigos, é o principal instrumento legal que dispõe sobre a proteção in-
tegral à criança e ao adolescente. O trabalho infanto-juvenil também é regulamentado
pela Constituição Federal (Título VIII, Capítulo VII, artigo 227) e pela Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT (Capítulo IV, artigos 402 a 441) (PERES, 2003, p. 26).
Não é apenas uma causa que se pode citar para a prática do trabalho infantil do-
méstico, pois se trata de questão mais complexa, causada pela junção de diversos fatores.
Contudo, pode-se apresentar alguns pontos para melhor compreensão dos motivos pelos
quais muitas crianças e adolescentes ainda se submetem ao trabalho infantil doméstico no
Brasil (CORTEZ, 2018).
O entendimento do trabalho infantil doméstico pode ser analisado de diversas for-
mas, mais evidentes são as relacionadas aos aspectos econômicos, culturais e políticos.
Quanto às causas econômicas, estas são consideradas como fatores determinantes do tra-
balho infantil, incluindo o doméstico: “A condição de pobreza e a baixa renda familiar são
um dos estímulos para o recurso ao trabalho da criança e do adolescente, pois a busca pela
sobrevivência exigiria a colaboração de todos os membros do grupo familiar” (CUSTÓDIO;
VERONESE, 2009, p. 77).
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 229
Com certeza a pobreza é uma das causas fundamentais do trabalho infantil, porém
não é a única, pois com a necessidade de complementação de recursos e as dificuldades
encontradas para sobreviver as crianças são direcionadas para o trabalho infantil domés-
tico. “A pobreza é resultado de políticas econômicas que geram e produzem as condições
de desigualdade e marginalização social, concentrando a riqueza nos estratos elitizados da
população” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 79).
Contudo, não é apenas a baixa renda familiar que estimula o uso do trabalho infan-
til doméstico, mas também as condições de desigualdade social. Isso explica, por
exemplo, porque no Brasil é mais frequente o uso do trabalho infantil em relação à
maior parte dos países da América Latina. Embora as condições econômicas de tais
países sejam muito mais precárias que as condições brasileiras, é o fator de desigual-
dade social que explica o maior uso de mão de obra infantil (CUSTÓDIO; VERONESE,
2009, p. 78).
Com relação a educação, tanto o ingresso quanto a frequência escolar podem ser vis-
tos como causas do trabalho infantil. O trabalho, ao ser conciliado com o estudo, aca-
ba por prejudicar o desempenho de crianças e adolescentes em atividades escolares.
A fadiga pode resultar no abandono ou na diminuição do rendimento escolar. É neces-
sário que haja uma reconstrução no modo como trabalho infantil é enfrentado, através
de políticas públicas educacionais que, além de serem eficazes no oferecimento e na
manutenção de crianças e adolescentes na escola, capacite os profissionais de modo
que compreendam o contexto em que a exploração está inserida. Porém, não são
somente políticas públicas educacionais que são deficientes. As políticas públicas que
dão acesso à cultura, ao lazer e ao esporte também são de suma importância para o
combate da exploração do trabalho infantil. Apesar de haverem programas de incenti-
vo, faltam políticas que atendam de modo universal, que envolvam a articulação dos
setores e comprometam as unidades da Federação. É válido citar ainda, que também
existem deficiências nas políticas socioassistenciais (COSTA, 2019, p. 60).
Por fim, percebe-se que quando se trata de trabalho infantil doméstico temos que
fazer relações também às desigualdades de gênero, pois essas atividades ainda são im-
putadas, em sua maioria, às mulheres. O trabalho doméstico realizado por crianças e ado-
lescentes meninas ocorre pelo fato de seus pais, necessitando uma nova renda devido às
condições sociais em que vivem e também pela falta de sistema protetivo direciona suas
filhas para a realização desse trabalho.
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 231
Assim, vemos que a “integração das mulheres ao mercado de trabalho também vem
fortalecendo um componente importante no reforço e integração de crianças e adolescentes
no trabalho doméstico”, seja no trabalho realizado em sua própria casa com irmãos ou em
casa de terceiros, pois “a ausência de políticas públicas de atendimento para crianças e ado-
lescentes e de apoio socioassistencial às mulheres torna ainda mais grave essa condição”
(CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 81).
Conclusão
O presente artigo demonstra que o trabalho infantil possui um contexto amplo e com-
plexo, cuja prática viola os direitos humanos de crianças e adolescentes acarretando prejuí-
zos que comprometem o seu pleno desenvolvimento físico, psicológico, cognitivo e moral.
Analisando a proteção jurídica contra o trabalho infantil no âmbito internacional, con-
clui-se que a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas
(1989), a Convenção 138, a Recomendação 146, a Convenção 182 e a Recomendação 190
focam na prevenção e na erradicação do trabalho infantil. Já as normas nacionais como a
Constituição Federal e o Estatuto da Criança do Adolescente se direcionam para a regula-
mentação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes amparados no artigo 227
da Constituição Federal.
Por fim, conclui-se que as maiores causas do trabalho infantil sem dúvidas tem ori-
gem em questões culturais, econômicas, políticas e educacionais, sendo a pobreza a maior
delas, dada a necessidade de trabalhar para ajudar em casa, reproduzindo o perfil do pais
que também trabalharam na infância e deixaram de estudar e por esse motivo não tiveram
oportunidades melhores na fase adulta.
Com a fragilidade dos mecanismos de fiscalização do trabalho infantil doméstico, é
indispensável que políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil articulem
estratégias envolvendo a rede de atendimento, proteção e justiça, de modo a garantir o exer-
cício dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, caso contrário essa realidade
alarmante dificilmente mudará.
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CAPÍTULO XVI
BETANI HILGERT 1
LUCIANA ROCHA LEME 2
Introdução
A adoção internacional é um instituto jurídico criado oficialmente no período pós-
-Segunda Guerra Mundial, como alternativa para o grande contingente de órfãos vítimas
do conflito. A partir do desenvolvimento do conceito, a adoção internacional passou a ser
viabilizada com o intuito de possibilitar aos indivíduos o convívio familiar, mesmo que dis-
tante de sua nação materna. Com o avanço dos direitos humanos na seara internacional, a
adoção deixou de ser tema de exclusividade do direito interno dos Estados e passou a ser
discutido internacionalmente. O tema encontra nos tratados e convenções suas principais
diretrizes, mas ainda cabe ao Estado internalizar e decidir em que condições essas normas
terão eficácia e efetividade.
Atuando muito mais como provedor de crianças do que receptor destas, o Brasil
possui um fluxo considerável dessa modalidade de adoção. Entre as causas estão, além do
reflexo a dinâmica externa, a cultura da adoção interna. Ainda que o número de candidatos
a adotantes seja significativamente superior ao de crianças disponíveis para a adoção, o
perfil requerido pelos pretensos adotantes não condiz com a realidade encontrada nas insti-
tuições de acolhimento. Enquanto o perfil solicitado compreende crianças brancas, de idade
1
Pós-graduada em MBA de Gestão de Projetos pela Universidade Positivo. Graduada em Relações Internacionais
pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail: betanihilgert@gmail.com.
2
Doutoranda junto a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul (Unisc). Professora de Direitos Humanos e Direito Constitucional dos Cursos de Direito e Relações
Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail: luciana.rocha.leme@gmail.com.
234 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME
inferior a 5 anos e sem irmãos, dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
demonstram que o perfil mais recorrente nas instituições é de crianças com mais de seis
anos, negras ou pardas e com irmãos. Dentre os candidatos brasileiros, 91% só aceitam
crianças de até 6 anos, 20% só aceitam crianças brancas e 68% não aceitam adotar irmãos,
enquanto entre os estrangeiros não há, em sua maioria, empecilhos à adoção de crianças e
adolescentes negros ou pardos, irmãos e crianças mais velhas (CNJ, 2017).
Apesar da recente discussão do tema internacionalmente, problemas como a busca
de lucros por meio do procedimento de adoção, a intermediação por entidades não habilita-
das, o tráfico e rapto de crianças, a ausência de regulamentação e a falta de harmonização
quanto à regulamentação entre os países ainda assombram essa modalidade de adoção
e trazem insegurança ao processo. Diante dessa relação, surge o problema de pesquisa
deste trabalho, que busca compreender a atuação das organizações internacionais gover-
namentais e não governamentais diante da adoção internacional de crianças brasileiras por
estrangeiros, com o objetivo de detalhar como ocorre o processo de adoção internacional
que envolve adotados brasileiros no campo da normativa jurídica, compreendendo seus me-
canismos de promoção e a interação deste instituto com as instituições internacionais não
governamentais.
Com intuito de atender a proposta apresentada, a presente pesquisa se utiliza do
método dedutivo de abordagem e, quanto ao procedimento, dos métodos histórico e mono-
gráfico. A pesquisa foi realizada a partir de dados obtidos junto aos órgãos competentes a
respeito das ONGs atuantes na questão da adoção internacional, tema central do trabalho,
além de livros e produções acadêmicas sobre adoção e temas correlatos aos da presente
pesquisa.
3
Salienta-se que entre os índios, a adoção de crianças por parentes é costume, quando estas ficam órfãs, ou
quando a família não tem condições de criá-las (SENA; DELGADO, 2016).
4
O direito romano é considerado a mais importante fonte histórica do direito nos países do ocidente, presente em
vários institutos jurídicos atuais (MAGALHÃES; PEREIRA, 2010).
236 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME
A adoção por estrangeiros no Brasil foi realizada por muito tempo por meio de
simples escrituras públicas. Empregada por meio da normatização vigente para a adoção
interna, a adoção internacional era realizada sem o rigor necessário para coibir práticas
criminosas e avessas aos interesses da criança (FIGUEIRÊDO, 2005). A relativa facilidade
do processo de adoção internacional no Brasil abriu caminho para sua realização de maneira
desmedida, incluindo o país na rota de adoção internacional.
A difusão da adoção internacional no mundo ocorre durantes as décadas de 1970
e 1980, quando o fluxo de crianças tem uma considerável elevação em seus índices (FON-
SECA, 2006b), impulsionado por razões relativas às baixas taxas de natalidade nos países
desenvolvidos, além de questões culturais afloradas a partir da chamada “geração de ses-
senta e oito”5 (FIGUEIRÊDO, 2005). O alvo desse movimento foram os países em desenvol-
vimento, uma vez que a adoção internacional era encarada como meio de retirar crianças de
condições de miséria e pouca oportunidade de desenvolvimento em seus países de origem,
associando-os a famílias em países desenvolvidos. Especialmente nesse período, “o Brasil
ocupava a quarta posição dos principais países fornecedores de crianças para adoção inter-
nacional” (FONSECA, 2006a, p. 16).
Somente a partir da Constituição de 1988 e da vigência do Estatuto da Criança e do
Adolescente, implementado pela Lei n. 8.069/90 de julho de 1990, a adoção internacional
foi devidamente positivada no ordenamento jurídico brasileiro, instituindo procedimentos es-
pecíficos que a distinguem do processo de adoção interno. A partir da vigência do Estatuto,
estabeleceu-se também o princípio do melhor interesse da criança, garantindo que suas
especificidades fossem atendidas no lar substituto, em todas as suas esferas.
5
O ano de 1968 mudou profundamente as relações entre raças, sexos e gerações na França, e, em seguida, no
restante da Europa. As manifestações ajudaram o Ocidente a estabelecer ideais como a liberdade civil demo-
crática, os direitos das minorias, e da igualdade entre homens e mulheres, brancos e negros e heterossexuais e
homossexuais (MOVIMENTO..., 2008, n.p.).
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 237
externa e a seguir, girando-se a roda, era levada ao outro lado do muro. Sem necessidade
de identificar-se, o expositor apenas puxava uma cordinha com uma sineta para avisar ao
vigilante sobre a presença da criança (MARCILIO, 2003).
Com a ruptura para o período republicano em 1889, a infância adquire novo signifi-
cado. O Estado brasileiro assume para si a responsabilidade de fixar um aparelho institucio-
nal capaz de tutelar a infância, por meio do planejamento e implementação de políticas de
atendimento ao “menor” (RIZZINI; RIZZINI, 2004). Nesse caso, o termo “menor” carregava
uma conotação [...] “estigmatizante, isso porque até o advento do Estatuto da Criança e do
Adolescente, o termo era sinônimo de criança abandonada, carente, com desvio de conduta,
vítima de maus tratos ou mesmo infratora de algum tipo penal” (VERONESE, 1999, p. 48).
A elaboração de leis relacionadas a infância culmina em 1927 no primeiro Juízo de
Menores do país, implantado no Rio de Janeiro, e na aprovação do Código de Menores,
denominado de Código Mello Mattos6. Criando um sistema de assistência social e jurídica,
o Código conferiu ao Juizado funções relativas à vigilância, regulamentação e intervenção
direta sobre o menor, entre elas destaque-se a internação. Ao aplicar um modelo de classi-
ficação e intervenção sobre a criança e o adolescente, herdado da ação policial, o Juizado
identificava, encaminhava, transferia e desligava das instituições aqueles designados como
“menores”. Devido à alta demanda criada pelo próprio modelo, os juízes não conseguiam
internar todos os casos que chegavam às suas mãos, o que levou o sistema a esgotar-se em
alguns anos (RIZZINI; RIZZINI, 2004).
Em 1964, sob o regime militar, é instituída a Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor (Funabem), resultado da nova proposta para infância no período, a Política Nacional
do Bem-Estar do Menor. Seus pilares eram sustentados pela doutrina da segurança nacio-
nal, encarando a questão como um problema nacional de competência do Poder Executi-
vo. Incorporando a estrutura vinculada ao extinto SAM, a Funabem instituiu o sistema de
internação de carentes e abandonados e a “política dos muros redentores” no tratamento
aos infratores (SANCHES; VERONESE, 2016), evidenciada pela atuação da Fundação do
Bem-Estar do Menor (Febem), criada no primeiro ano da Ditadura Civil Militar com objetivo
de representar as políticas da Funabem em instância estadual e responsável pela aplicação
de grande parte das medidas voltadas a internação (MIRANDA, 2016).
As políticas públicas empregadas durante o período de 1964 eram pautadas no
assistencialismo e em uma autoritária representação de “família estruturada”, aos moldes
conservadores. Voltadas para crianças e adolescentes atingidos pela marginalização social,
limitavam-se a sua integração à comunidade e em atender suas “necessidades básicas” por
meio da assistência à família. Alvo de críticas até mesmo de organismos internacionais, a
Política Nacional do Bem-Estar do Menor entrou em declínio já no fim da década de 1970,
6
Primeiro juiz de menores do Brasil e de mais longa permanência, de 1924 até o ano de seu falecimento, em
1934. Cf.: Rizzini e Rizzini (2004, p. 29).
238 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME
7
Considera-se em situação irregular o menor privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e ins-
trução obrigatória, ainda que eventualmente, vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais
ou responsável, em perigo moral, privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou
responsável, com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária e/ou autor de
infração penal (BRASIL, 1979).
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 239
oposição representada por países latinos americanos8 temia o aumento no fluxo já bastante
expressivo de crianças latinas adotadas por estrangeiros, em razão de fatores estruturais,
como a pobreza. Aliados nessa questão encontravam-se também os representantes de paí-
ses islâmicos, contrários à adoção por motivos religiosos (PILOTTI, 2000). No caso da ado-
ção por estrangeiros, foi estabelecido em seu artigo 21 o reconhecimento da adoção inter-
nacional como alternativa de proteção à criança, munida de garantias e normas equivalentes
às aplicáveis em caso de adoção nacional, além de estimular acordos, tratados bilaterais ou
multilaterais sobre o tema para assegurar que as adoções sejam efetuadas por autoridades
ou organismos competentes (ONU, 1989).
A Convenção de Haia Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria
de Adoção Internacional de 1993 é referência para a questão da adoção por estrangeiros,
determinando parâmetros e garantias mínimas a sua efetivação a fim de evitar o tráfico inter-
nacional de crianças. Complementar à Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção
de Haia de 1993 estabelece medidas comuns que resguardem o interesse superior da crian-
ça para que aquelas que não encontram família adequada em seu país de origem possam
gozar da convivência familiar (GATELLI, 2005). Segundo as disposições da convenção, a
adoção por estrangeiros só pode ser empregada observando-se alguns aspectos pontuais. O
primeiro deles é a situação geral da criança e de seus candidatos à adoção. Há de se inves-
tigar o histórico da criança, seus vínculos afetivos, condição médica e jurídica, bem como
o do adotante. A adoção somente deverá ser concretizada se a criança estiver autorizada a
permanecer em caráter permanente no país de acolhida (LIBERATI, 2003).
O advento da convenção institui as autoridades centrais, responsáveis por garantir
a cooperação e segurança do processo de adoção. Vinculadas ao Estado contratante, dis-
põem de mecanismos de controle e fiscalização garantindo que eventuais intermediários
não obtenham benefícios materiais na adoção (MÔNACO, 2002). Organizações que atuam
como intermediárias do processo de adoção internacional também receberam atenção junto
a convenção. Dessa maneira, um organismo somente pode atuar perseguindo fins não lucra-
tivos, dentro dos limites fixados pelas autoridades do Estado ao qual está creditada, estando
submetido às autoridades quanto ao seu funcionamento, composição e situação financeira
(HAIA, 1989).
A convenção também atribui ao país de origem do adotado a competência do pro-
cesso de adoção, que deve ser reconhecido no país de acolhida da criança, nesse sentido:
8
Principalmente por Argentina, Brasil, Cuba, Peru e Venezuela (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).
242 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME
seja (LIBERATI, 2009). Dessa forma, restringe-se a atuação de esquemas ligados ao tráfico
de pessoas e a obtenção de lucros nos processos de adoção internacional e torna público a
atuação dessas ONGs.
Entre as funções das ONGs no processo de adoção internacional estão: a garantia
que a criança ou adolescente brasileiro saia do país com o passaporte brasileiro e com visto
de adoção emitido pelo consulado do país de acolhida; que os adotantes encaminhem à
autoridade central federal brasileira cópia da certidão de registro de nascimento estrangeira
e do certificado de nacionalidade tão logo lhes sejam concedidos e fornecer a qualquer tem-
po; todas as informações que lhe forem solicitadas pela Autoridade Central Administrativa
Federal (BRASIL, 2005).
Responsáveis pelo acompanhamento pós-adotivo, as ONGs devem apresentar re-
latórios de acompanhamento das adoções internacionais efetuadas, com intervalo de seis
meses, à autoridade central estadual e a autoridade central federal brasileira, pelo período
mínimo de dois anos (BRASIL, 2005). A atuação das organizações credenciadas é primor-
dial ao procedimento pós-adotivo, uma vez que poderão ser o único meio de controle que o
governo brasileiro disponibiliza (LOPES, 2015) nessa fase sensível de adaptação do adotado.
A finalidade dos organismos credenciados é a garantia da proteção integral da criança e do
adolescente. Ao intermediar uma adoção internacional, as ONGs devem preparar os adotan-
tes para receber uma criança ou adolescente com cultura e costumes diferentes, devem ava-
liar se os adotantes possuem todas as condições para garantir o desenvolvimento saudável
do adotado e devem acompanhar o processo de adaptação à nova família (LOPES, 2015).
As ONGs de adoção internacional atuam como intermediárias entre os candidatos
estrangeiros, a adoção e as autoridades brasileiras. Ainda que haja uma legislação inter-
nacional acerca da adoção por estrangeiros, cada Estado possui a prerrogativa de instituir
normas próprias ao processo de adoção, como evidencia Costa (1998), referentes à idade
máxima e mínima, diferença de idade, consentimentos, estado civil, tempo mínimo de matri-
mônio, solenidade e efeitos do vínculo adotivo, comumente diferentes do Estado de origem
do adotante. Nesse emaranhado de normas jurídicas, as organizações atuam no sentido de
orientar o candidato à adoção oferecendo informações precisas sobre o processo, uma vez
que possuem conhecimento de procedimentos e critérios solicitados pelo Estado brasileiro.
Constata-se grande participação das ONGs nas demandas de adoção internacional
no Brasil, acionadas pelos pretensos adotantes ou recomendadas por seu Estado de origem.
Como exposto anteriormente, de acordo com estatísticas divulgadas pela autoridade central
brasileira, as adoções internacionais concluídas no ano de 2015 totalizaram 115 (cento e
quinze) casos, dos quais 98 (noventa e oito) tiveram a participação de organismo credencia-
do, o que caracteriza um dos objetivos da Convenção de Haia de 1993 no intuito de impedir
as adoções privadas, obrigando os interessados na adoção a procurarem os organismos
credenciados fiscalizados pelo Estado.
244 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME
Apesar de todos os procedimentos legais adotados pelo Brasil para garantir o bem-
-estar do adotado, o método ainda é passível de falhas. É possível que a adoção não seja
bem-sucedida, resultado de uma não compatibilidade da criança ou adolescente com os pais
adotivos ou com o novo meio social em que se insere, além de uma eventual adoção com
objetivos escusos. Ao atuarem no acompanhamento pós-adotivo, assim como afirma Libe-
rati (2009), as ONGs contribuem para eliminar o tráfico de crianças e são grandes aliadas na
garantia da proteção dos interesses do adotado.
Ademais, as ONGs costumam estar envolvidas em todas as esferas do processo de
adoção. Reuniões, palestras, encontros, no sentido de incentivar e preparar os futuros país
adotivos para a adoção e assistência aos pais adotivos, reunindo-os em movimentos e asso-
ciações, em ambientes que podem trocar experiências e até resolver dificuldades referentes
à condução da paternidade etc. são algumas iniciativas alavancadas por essas organizações,
a fim de solucionar dilemas simples, inerentes ao processo de adoção internacional.
Ainda que demonstrada a importância das ONGs de adoção internacional, no Brasil
a presença desses organismos não é de caráter obrigatório, mas sim facultativo. A possibi-
lidade de adoções internacionais de cunho privado abre brecha para adoções com objetivos
escusos e dificulta o acompanhamento pós-adotivo, que passa de incumbência das ONGs
para responsabilidade do adotante e das autoridades do país de acolhida. Alguns Estados
admitem somente adoções por meio de representantes de organismos autorizados, como
forma de atribuir seguridade ao processo de adoção e impossibilitar o ganho de lucros por
terceiros. Segundo Costa (1998), países como Peru, Colômbia, Equador, Índia e Indonésia
aceitam a adoção apenas por meio desses organismos.
Em relação às ONGs credenciadas junto à autoridade brasileira, encontram-se de
modo majoritário organizações estrangeiras. Dentre os 21 organismos credenciados9, 18
são de origem europeia e 3 provenientes dos Estados Unidos, nenhum brasileiro. Mesmo
atestada a proteção advinda da presença dessas entidades no processo de adoção interna-
cional, a presença de ONGs de adoção internacional estrangeiras coloca o Brasil em posição
apenas de acompanhar o movimento vindo de países desenvolvidos, tornando-o mero “for-
necedor de crianças”. Isso se explica também pela aparente falta de interesse da sociedade
civil brasileira na modalidade de adoção internacional, motivada pelo perfil adotivo pouco
flexível e a tentativa de preservar crianças e adolescentes em território brasileiro. No que
9
AAiM - Associació D’Ajuda als Infants del Món; AFN – Azione per Famiglie Nuove; AiBi - Associazione Amici dei
Bambini; AIPA - Associazione Italiana Pro Adozione; AMI - Amici Missioni Indiane; ARAI PIEMONTE – Agenzia
Regionale Per Le Adozioni Internazionali; ATWA - Across The World Adoption; Associação Arc en Ciel France –
Brésil, Associação Progetto São José, AVSI - Associazione Volontari per il Servizio Internazionale, BRADOPTA,
CIFA - Centro Internazionale per l´Infanzia e la Famiglia, COFA COGNAC, Hand in Hand Internacional Adoptions,
I CINQUE PANI, IL MANTELLO – Associazione di Volontariato per la Famiglia e l’Adozione, Lifeline Children´s
Service, Nova-nuovi Orizzonti per Vivere la Adozione, Sete Speranza Onlus, Senza Frontiere Onlus e Médecins Du
Monde que não atua mais como ONG de adoção internacional, entretanto permanece vinculada aos processos
de adoção iniciados antes de seu desligamento.
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 245
Conclusão
Referente à esfera dos Direitos da Criança, a adoção nacional ou internacional é con-
siderada medida excepcional, optando-se pela manutenção da criança ou adolescente em
sua família original. Importante recurso de garantia da criança e do adolescente à convivên-
cia familiar, a adoção internacional surge como alternativa a crianças que não se enquadram
no perfil de adotados no Brasil.
A adoção é uma prática recorrente desde as primeiras formas de civilização e foi por
muito tempo encarada como um meio de preservar a família. No Brasil, atrelada à legislação
e às políticas para a infância, a adoção era aplicada sem o devido cuidado com a criança ou
adolescente, que por diversas vezes se viam retirados desnecessariamente de seu núcleo
familiar original. Com a extinção de mecanismos como a Roda dos Expostos e a legislação
menorista, a adoção passou a ser encarada a partir do princípio do melhor interesse da
criança, originário do direito internacional e, portanto, igualmente empregado na adoção
internacional. Desde seu primeiro registro em 1927, a adoção internacional foi realizada no
Brasil por um longo período sem o devido grau de formalidade e fiscalização. Apesar de se
tratar de uma prática recorrente, tal modalidade de adoção não se encontrava positivada ao
direito interno, sendo executada por meio de simples escrituras públicas. Somente a partir da
Constituição de 1988 e da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 (ECA)
a adoção internacional foi devidamente positivada na norma brasileira, instituindo procedi-
mentos específicos que o distinguem do processo de adoção interno.
A partir da atuação da ONU, a adoção por estrangeiros passou a ser discutida de
maneira mais abrangente entre os Estados. Problemas ocasionados pelos processos de
246 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME
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CAPÍTULO XVII
GLÁUCIA BORGES 1
Introdução
Sob o manto da teoria da Proteção Integral às crianças e adolescentes devem ser
assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado solidariamente todos os direitos
inerentes à dignidade da pessoa humana e os demais especialmente reservados a essa
população, com absoluta prioridade. Esses direitos estão consagrados destacadamente na
Constituição Federal Brasileira de 1988 e na Convenção sobre os Direitos das Crianças, de
1989, que foi ratificada pelo Brasil em 1990, bem como no Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, também de 1990.
Nessa lógica, tendo o Brasil ratificado a Convenção e incorporado em seu ordena-
mento jurídico a Proteção Integral, nosso dever de especial proteção às crianças e adoles-
centes torna-se obrigação internacional de cumprimento. Por isso, devemos estar atentos se
as Políticas Públicas nacionais destinadas às crianças e aos adolescentes estão respeitando
todas as diretrizes da teoria da Proteção Integral, conforme determinam as normas interna-
cionais e nacionais.
Analisar se nas Políticas Públicas destinadas à população infantojuvenil estão sendo
assegurados os deveres de forma solidária entre a tríplice responsabilidade compartilhada
1
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(Unesc). Especialista em Direito Civil e Processo Civil e graduada em Direito pela Unesc. Integrante do Núcleo de
Pesquisa em Estado, Política e Direito (Nuped) e do Núcleo de Pesquisa em Direito da Criança e do Adolescente
e Políticas Públicas, da Unesc. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa
Catarina (Fapesc). E-mail: glauciaborges@icloud.com.
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 251
é medida essencial para buscarmos a real tutela dos direitos e garantias das crianças e dos
adolescentes. Assegurar o mútuo dever dessas três entidades é buscar efetividade na aplica-
ção e salvaguarda dos direitos destas.
Nesse sentido, a presente pesquisa buscará demonstrar que, em verdade, quando se
trata da efetividade dos serviços de acolhimento familiar, a atual protagonista é a sociedade
civil. Do mesmo modo, buscará asseverar que com as Políticas de Acolhimento Familiar, o
Estado tem se afastado desse mútuo dever.
Para alcançar esse objetivo, o trabalho foi dividido em dois tópicos: o primeiro abor-
dará o conceito do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, pois foi visando a tutela des-
se direito que surgiu a necessidade de novas formas de acolhimento, bem como será feito
um breve histórico sobre o direito das crianças e adolescentes no Brasil, dando maior ênfase
às instituições, justificando o porquê da necessidade dessa nova forma de acolhimento fami-
liar. O segundo tópico versará sobre o protagonismo da sociedade na proteção dos direitos
e garantias das crianças e adolescentes quando abordamos o acolhimento familiar, demons-
trando a grande responsabilidade deixada pelo Estado para a sociedade civil na efetividade
do serviço e na garantia do Direito fundamental à Convivência Familiar e Comunitária. A
metodologia utilizada será a dedutiva, a de procedimento monográfica e técnicas de pesquisa
bibliográfica e documental indireta.
isto é, família natural, extensa, substituta ou até mesmo afastada do convívio de sua família
nuclear, os esforços devem ser para a garantia desse direito, pretendendo seu integral de-
senvolvimento (BRASIL, 1990b).
A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, sendo atualmente a norma in-
ternacional mais importante para o ramo dos direitos e garantias da população infantojuve-
nil, ratificada pelo Brasil em 1990 (BRASIL, 1990a), dispõe que as crianças que estiverem
privadas temporária ou permanentemente do seu meio familiar têm proteção e assistência
especial do Estado. Por sua vez, o Estado, enquanto parte ratificadora da Convenção, deve
garantir, conforme as leis nacionais, cuidados alternativos a essas crianças, adequados a
sua proteção.
Nesse sentido e, entre outras importantes garantias, foi visando tutelar o Direito à
Convivência Familiar e Comunitária para crianças e adolescentes cujo poder familiar esteja
suspenso ou destituído, que a Lei n. 12.010 de 2009, trouxe uma série de inclusões, emen-
das e vetos ao Estatuto. Essa lei consagrou a nível de normativa federal a possibilidade de
que o acolhimento de crianças e adolescentes que estivessem sob a condição de medida
de proteção de afastamento da família de origem não ocorresse somente mediante o acolhi-
mento institucional, regulamentando em lei o acolhimento familiar como uma das medidas
especiais de proteção do Sistema de Garantia dos Direitos das crianças e dos adolescentes
(BRASIL, 2009).
O acolhimento familiar é uma medida protetiva, excepcional e provisória, que se
dá diante da impossibilidade de manutenção da criança ou do adolescente em sua família
natural ou extensa (BRASIL, 1990b), preservando a Convivência Familiar e Comunitária en-
quanto o processo judicial de suspensão ou perda do poder familiar estejam em andamento,
evitando-se a numerosa institucionalização de crianças e adolescentes.
Isso porque o caminho da acolhida de crianças e adolescentes foi historicamente
marcado por uma série de descuidos e desproteções por parte do Estado, acabando por es-
tigmatizar instituições de acolhimento como ruins. Por isso, opções diversas se mostraram
viáveis e modificadoras dessa situação, buscando evitar a institucionalização em massa de
crianças em adolescentes. Atualmente, e em consequência disso, o acolhimento familiar
possui prioridade frente ao acolhimento institucional (BRASIL, 1990b). Nesse norte, ainda
que brevemente, faz-se importante entender a perspectiva histórica dessa população no Bra-
sil, especialmente com relação às instituições.
Em nosso país, desde o século XVI, quando da colonização portuguesa, havia um
tratamento diferenciado entre crianças e adultos, situação que as crianças e os adolescentes
eram considerados como categoria secundária, em que a proteção maior era destinada aos
adultos (CABRAL, 2012). “No Brasil-Colônia, regra geral, as crianças eram consideradas
pouco mais que animais. Comiam no chão e as que nasciam na escravidão eram, constan-
temente, objeto de brinquedo dos filhos dos senhores de escravos” (CABRAL, 2012, p. 23).
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 253
vimentos sociais, por meio da interação da sociedade civil nas necessidades fundamentais
de todos os seres humanos, ou seja, em prol da coletividade, se desenvolvendo a partir das
necessidades da própria sociedade (VIEIRA, 2013), buscando modificar o caminho pelo qual
algumas categorias ou classes trilhavam, como é o caso das crianças e adolescentes.
Foi por meio de diversos movimentos sociais que houve uma mudança no Brasil,
fazendo com que os Direitos Fundamentais e sociais fossem devidamente contemplados
em nosso ordenamento jurídico (LIMA; PAGANINI, 2017). Isso fez com que as crianças e
adolescentes se tornassem atores sociais reconhecidos e tivessem a favor de si legislações
específicas e capazes de atuar em prol de sua proteção (LIMA; PAGANINI, 2017).
Mais do que isso, quando tratamos sobre as medidas especiais de proteção, o Es-
tatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990b) deixa claro que um dos princípios que
regem sua aplicação é o da responsabilidade primária e solidária do poder público. Isso quer
dizer que para a plena efetivação dos direitos assegurados a crianças e a adolescentes pelo
Estatuto e pela Constituição Federal, salvo nos casos por esta expressamente ressalvados,
é de responsabilidade primária e solidária das três esferas de governo a aplicação das me-
didas de proteção, sem prejuízo da municipalização do atendimento e da possibilidade da
execução de programas por entidades não governamentais. Assim, devem ser observadas
as Políticas Públicas destinadas às crianças e adolescentes, nas quais a responsabilidade
não deve ser imposta tão somente à família ou à sociedade, especialmente quando se tratar
de medida de proteção, pois maior ainda deve ser o protagonismo do Estado.
As Políticas Públicas destinadas a crianças e adolescentes acolhidos estão localiza-
das dentro dos serviços de proteção social especial da Assistência Social, que se dividem
em média e de alta complexidade (BRASIL, 2004).
Essa questão da omissão do Estado, que acaba dando à sociedade maior obrigação
quando abordamos o acolhimento familiar, pode acabar trazendo de volta as antigas práticas
assistencialistas, pois pode confundir-se com a ideia de solidariedade da sociedade que
abriga a criança necessitada. Essa abordagem não é boa nem para a população infantoju-
venil, que não será vista como sujeito de direitos, nem para a Assistência Social, que luta
há anos para modificar sua forma de ser concebida e mesmo para a sociedade, que ficará
sobrecarregada.
Na forma de agir do poder público, este vem necessitando e muito que a sociedade
protagonize o acolhimento familiar. O Estado simplesmente coloca em forma de lei a garantia
do acolhimento familiar, colocando-o como preferencial (ou seja, retirando a obrigação de
serem feitas boas instituições de acolhimento) e impondo que a sociedade civil faça tal papel.
Nesse aspecto, é possível que haja confusão entre o acolhimento familiar e as an-
tigas práticas benemerentes, pois o Estado, não podendo garantir às crianças e aos ado-
lescentes todos os direitos a eles inerentes em caso de afastamento de sua família natural,
coloca na sociedade civil toda a responsabilidade de fazê-lo. Por fim, cumpre frisar que a
sociedade civil também tem o dever de garantir os direitos de crianças e adolescentes, no
mesmo nível que a família e o Estado. Assim, não há óbice de que algum encargo seja a este
dado, já que houve a implementação do acolhimento familiar e há a falha da entidade familiar.
A objeção está na falta de solidariedade do Estado neste momento, deixando as crianças e os
adolescentes praticamente sob proteção única dessas pessoas, quando a teoria da Proteção
Integral diz o contrário.
260 | GLÁUCIA BORGES
Conclusão
Quando tratamos de crianças e adolescentes em medidas de proteção, afastadas de
sua família de origem, encontramos o desafio de a elas continuar a garantir, com absoluta
prioridade, entre outros diversos direitos, o da Convivência Familiar e Comunitária.
Conforme se verificou, diante da massificadora institucionalização da população in-
fantojuvenil, bem como por essas ditas instituições de acolhimento não terem oferecido no
passado as devidas condições de pleno e sadio desenvolvimento aos acolhidos. De tal modo
que o acolhimento familiar se mostrou como um assegurador dos seus direitos, um garanti-
dor da continuidade da convivência em ambiente familiar, principalmente quando a situação
dos acolhidos para com a família natural não se encontra definida.
Em contrapartida, também foi possível verificar que essas novas formas de aco-
lhimento deram à sociedade civil um protagonismo e uma responsabilidade quase que in-
dividual. Primeiro, porque a entidade familiar de origem está impossibilitada de fazê-lo ou
auxiliá-la e, segundo, porque o Estado, enquanto mantenedor de acolhimentos institucionais,
não estava preservando o Direito à Convivência Familiar e Comunitária, necessitando de su-
porte de outra entidade corresponsável no dever de salvaguardar os direitos infantojuvenis.
No entanto, apesar de o Estado, quando organizador do serviço, agir na capacita-
ção, seleção e acompanhamento das Famílias Acolhedoras, deixou para essas pessoas um
grande encargo, abstendo-se de melhor preparar os profissionais dos acolhimentos institu-
cionais, abrir mais instituições e/ou melhorar as existentes. Para essa Família Acolhedora,
enquanto o processo da suspensão do poder familiar durar (o que poderá ser muito tempo),
ficará toda a responsabilidade como se família de origem fosse.
A atuação da sociedade civil juntamente com o Estado para garantir o Direito à Con-
vivência Familiar e Comunitária é norma constitucional, sendo a sua participação um avanço
com relação à atuação na tutela dos direitos, conforme preconiza a Proteção Integral. Porém,
o Estado não pode se abster totalmente ou deixar a maior responsabilidade sob estas, sob
penda de prejudicar especialmente crianças e adolescentes, principalmente porque, quando
se trata de medidas de proteção, sua responsabilidade é primária.
Assim, a pesquisa compreendeu que o Estado, ao dar maior protagonismo à socie-
dade civil nos serviços de acolhimento, a submete a maiores obrigações no cuidado dos
sujeitos acolhidos, desrespeitando preceitos da teoria da Proteção Integral, preconizados
na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como em diversas
outras normas.
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 261
Referências
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dispositivos da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do
Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1 de maio de 1943; e dá outras providências.
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aatr_pp_papel.pdf. Acesso em: 11 dez. 2018.
Introdução
Este texto apresenta uma reflexão a partir dos estudos realizados no Núcleo de Estu-
dos e Pesquisas Vida e Cuidado (Nuvic)2 sobre violências, infâncias e os movimentos pre-
sentes na elaboração das políticas públicas para a temática. De maneira específica, traz um
recorte da pesquisa de doutorado apresentada em 2019 ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na Linha de Pesquisa Sujeitos,
Processos Educativos e Docência/Ensino e Formação de Educadores que teve por objetivo
compreender mediante o Protocolo Apoia Online e seu fluxo dentro do Programa de En-
frentamento à Evasão Escolar vinculado ao Ministério Público de Santa Catarina, como são
construídas as aproximações entre Educação e Justiça. Nesse intuito o campo da pesquisa
foi constituído por duas Escolas Públicas da Rede Estadual e duas Promotorias de Justiça da
Infância (MP), situadas nas cidades de Criciúma e Tubarão, na Região Sul de Santa Catarina.
Caracterizou-se como uma pesquisa documental e de campo, integrada a uma abordagem
etnográfica.
Os conceitos centrais da pesquisa versaram sobre as violências, com atenção aos
maus-tratos na infância. Para este artigo, entretanto, optei pelo recorte que evidencia a dis-
cussão entre a Educação, o Sistema de Justiça e a relação que é estabelecida na elaboração
das Políticas Públicas voltadas às infâncias. As violências são aqui entendidas a partir da
perspectiva de Arendt (2018). Assim sendo, a violência tem caráter instrumental e a domina-
1
Doutora e mestra em Educação, pesquisadora do Núcleo Vida e Cuidado (NUVIC) vinculado à Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora Pedagógica na Secretaria do Sistema de Educação de Morro da
Fumaça, SC. E-mail: silviaufsceduca@gmail.com.
2
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Violências, vinculado ao Centro de Ciências da Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).
264 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA
ção e a obediência são construídas pela coerção. Dessa forma, o domínio pela pura violência
advém do poder sendo perdido e, onde o poder encolhe, a violência instala-se. Caracteri-
za-se como um fenômeno complexo, que não se reduz às explicações simplistas em que a
complexidade do olhar assume o diálogo com o campo empírico para construir explicações
aproximadas sobre o fenômeno dos maus-tratos na infância. Nesse cenário, valoriza-se a
infância como experiência em travessia.
A pesquisa apontou, entre outros aspectos, que a distância que marca as relações
entre Escola e Sistema de Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como
norma associada ao seu conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regulari-
dade e como determinação de conduta. Além disso, evidenciou que a invisibilidade de tantas
crianças ou dos ninguéns junto aos equívocos nos dados oficiais compromete a criação de
Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e assegurar os direitos de crianças e
adolescentes.
2 Violências em (con)textos
As violências, como conceito, são aqui entendidas por um fenômeno complexo e
plural que carrega dados culturais compositórios da vida em sociedade. Olhar de outro modo
para as violências significa “jogar luz” sobre o ocorrido em nossa volta, não para clarear
algo oculto, mas para “limpar” a visão e enxergar sem embaçar o objeto que se olha. Vio-
lências evocam ambivalências que são constituintes dos comportamentos humanos: homo
sapiens, homo violens (DADOUN, 1998), criando ou destruindo a vida dependendo de onde
o ser humano coloca sua intenção e pode inclusive fazer uso da perversão para produzir vio-
lências (ROUDINESCO, 2008). A perversão como estruturação da nossa condição humana
(ARENDT, 2014) cria ambivalências em torno das atitudes de cuidado e proteção.
O que essa clareza pode proporcionar? Enxergar que o fenômeno das violências não
é algo externo a nós ou uma entidade fora de nós, mas que em sua análise e compreensão
pode ser pensada na sua condição humana e suas manifestações culturais. A condição hu-
mana, sob a perspectiva de Hannah Arendt (2014), não é sinônimo de natureza humana, mas
significa as formas de vida que o homem impõe para sua sobrevivência, de modo que variam
conforme o contexto histórico e social, sendo condicionadas por seus modos/movimentos
de operar no mundo.
Violências podem ser entendidas de maneira ampla, plural e inscritas como “figuras
de desordem” (BALANDIER, 1997 apud SOUSA; MIGUEL; LIMA, 2010) que contornam as re-
lações sociais e perpassam as situações de vulnerabilidade da infância. Sendo consideradas
um fenômeno paradoxal, suscitando silenciamentos e resistências, traumas e resiliências,
dor e prazer, repulsa e atração, interesses individuais e direitos coletivos, estão diretamente
ligadas à cultura, história, ciência, educação, crença e aos valores e contextos em que sur-
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 267
gem. Olhar para as infâncias e violências reivindica pensar a história da criança marcada pela
dinâmica relacional dos agrupamentos familiares e sociais de cada época e considerar que é
antigo o abandono social da criança e que na medida em que avançamos no tempo surgem
outras formas de abandono, por vezes, disfarçadas de “cuidado”.
Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam des-
se direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos
ricos como se fosse dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua.
O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em
lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do
televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia
e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças (GALEANO, 1999, p. 11).
que tirou Mary da situação de abuso em que vivia. Baseado no recurso de que Mary Ellen
era um animal, a menina foi retirada da casa da mãe substituta, que cumpriu pena de prisão.
(GELLES; CORNELL, 1990).
Depois do desfecho do caso, em 1875, a Sociedade de Nova York para a Prevenção
da Crueldade contra a Criança (The New York Society for the Prevention of Cruelty to Children
- NYSPCC) foi a primeira agência com a finalidade de proteção de crianças em situação de
vulnerabilidade. Tal organização continua atuando até os dias de hoje nos EUA e sua criação
imediatamente inspirou a formação de outras sociedades no mesmo país.
Nesse período surgiu também o primeiro artigo médico sobre o tema dos maus-tra-
tos na infância, escrito por Tardieu, professor francês de Medicina, no qual o autor analisou
os resultados das autópsias de crianças com menos de cinco anos que vieram a óbito por
morte violenta em que se evidenciava que tais crianças teriam sido mortas por violências co-
metidas pelos pais. Cabe dizer que Tardieu foi provavelmente “o representante mais perverso
do discurso positivista da medicina mental, que teve como objetivo confesso descrever ao
infinito os danos de uma sexualidade dita ‘desviante’, de que o Estado democrático queria se
proteger” (ROUDINESCO, 2008, p. 89).
Os trabalhos publicados pelo referido médico pautavam-se no discurso higienista
que sustentariam a ciência criminal e a dicotomia entre uma raça “boa” e outra “ruim” além
do estigma dos “perversos”. Sobre o conceito de perversão, Elizabeth Roudinesco proble-
matiza:
Dar cabo da perversão. Eis, portanto, na atualidade, a nova utopia das sociedades
democráticas globalizadas, ditas pós-modernas: suprimir o mal, o conflito, o destino,
a desmedida, em prol de um ideal de gestão tranquila da vida orgânica. Por outro lado,
não haveria o risco de um projeto desse tipo ser capaz de fazer ressurgir, no seio
da sociedade, novas formas de perversões, novos discursos perversos? Não seria
ele capaz, em suma, de transformar a própria sociedade numa sociedade perversa?
(ROUDINESCO, 2008, p. 164).
Nem a violência nem o poder são fenômenos naturais, isto é, uma manifestação do
processo vital; eles pertencem ao âmbito político dos negócios humanos, cuja quali-
dade essencialmente humana é garantida pela faculdade do homem para agir, a habi-
lidade para começar algo novo (ARENDT, 2018, p. 103).
A perversidade não está apenas isolada na pessoa, está no sistema que banaliza o
mal. Diante da banalidade do mal, faz-se urgente a criação de medidas protetivas para a vida,
medidas que nos protejam do totalitarismo, da perversidade do sistema que nega o direito
de determinados grupos de dispor da vida e naturaliza o sofrimento de outros. Imerso na
“política dos afetos”, o que faz do homem um ser político é sua faculdade para a ação. A
ação ou ato político de quem educa não poderia apenas voltar-se para o “desenvolvimento
da criança”, mas também para a própria “continuidade do mundo” (ARENDT, 2000, p. 235).
Assim, agir no mundo de outro modo, olhar por outro ângulo, é retirar os antolhos e olhar de
perto as estatísticas referentes aos maus-tratos das crianças no Brasil e no mundo. É agir na
construção de uma cultura de paz e de uma cultura democrática que avance na compreen-
são do fenômeno das violências e evolua rapidamente na construção de Políticas Públicas
conscientes de que “a prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança
mais provável é para um mundo mais violento” (ARENDT, 2018, p. 101).
No Brasil vivem 63 milhões de crianças e adolescentes; destas, 46% das menores
de 14 anos vivem em domicílios com renda per capta de até meio salário mínimo; ainda,
132 mil famílias são chefiadas por crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos (IBGE, 2010).
Nesse contexto ocorrem, em média por ano, 82 mil denúncias de violação de direitos contra
as crianças, e de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF BRASIL,
2017)3, a cada sete minutos, no mundo, uma criança morre por ato de violência. Portanto, e
diante de números tão alarmantes, este texto nasceu das tensões que rondam os discursos
da infância e o exercício dos direitos da criança. O relatório de 2017 sobre os números das
violências contra crianças, apresentado pela Organização Social Visão Mundial4, aponta o
Brasil como o líder no ranking de violência contra a criança dentro da América Latina. No
recorte nacional, o estudo apontou que três em cada dez pessoas conhecem pessoalmente
uma criança que já sofreu violência.
As situações de maus-tratos na infância são consideradas pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) um caso de saúde pública mundial. No Brasil, por exemplo, “o total de de-
núncias recebidas pelo serviço Disque Denúncia Nacional 100, no período de maio de 2003
até dezembro de 2010 foi de 2,5 milhões de atendimentos tendo recebido e encaminhado
3
Relatório disponível em português: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/unicef_relatorios/violencia_
na_vida_de_criancas_e_adolescentes_unicef2017_resumo_port.pdf Acesso em: 26 abr. 2018.
4
Disponível em https://www.cenpec.org.br/wp-content/uploads/2019/07/percepcao-brasileira-violencia-crian-
cas-ipsos.pdf Acesso em: 29 nov. 2018.
270 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA
mais de 145 mil denúncias de todo o país” (BRASIL, 2018, p. 48). As violações mais relata-
das são a negligência, agressão psicológica e violência física.
O aumento das denúncias de violência sofridas por crianças e adolescentes está
relacionado a uma série de fatores que vão desde a piora na situação econômica do país, o
que influencia diretamente nas relações familiares, até uma maior conscientização da popu-
lação em relação à existência do canal “Disque 100”. O reconhecimento tardio das violações
de direitos das crianças e a dificuldade de identificação das variadas formas de violência ou
de situações caracterizadas como maus-tratos são resultado de concepções equivocadas,
diferenças culturais, tradições, preconceitos e estigmas deixando um legado duro e desafia-
dor para os dias atuais.
Encarar dados estatísticos alarmantes sobre nossa sociedade, ainda mais porque
envolvem as crianças, pode ser doloroso, porém é necessário dentro da Rede de Proteção,
uma vez que “compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com
atenção, e resistir a ela – qualquer que seja” (ARENDT, 2012, p. 12). Retomo neste texto,
a constatação de que não é simples formular uma definição de maus-tratos, ou ainda, “ne-
nhuma definição pode dar conta da complexidade de todo e de cada caso de maus-tratos”
(CANHA, 2003, p. 10). Maus-tratos aqui são entendidos como toda e qualquer violação dos
direitos de crianças. Ou ainda, como atos ou omissões que comprometem o cuidado e a pro-
teção da criança e que resultam no comprometimento de seu desenvolvimento emocional,
físico, intelectual ou social (BENETTI, 2002).
As violências e/ou os maus-tratos contra crianças são praticados por diversos ato-
res e em diferentes lugares e com uma constância assustadora ao longo da história e não
menos na contemporaneidade. A superação deste mal passa pela compreensão de que as
classificações padronizadas oferecem sinais e indícios de um corpo violentado, mas não é o
suficiente para analisar toda a dimensão do sofrimento que vivem as crianças e as famílias;
por isso, é preciso considerar que, enquanto um fenômeno complexo, se gesta em diferentes
contextos sociais, envolvendo aspectos multidimensionais, geracionais, históricos, econô-
micos, políticos, culturais, nos âmbitos do privado e do público.
No entanto, a definição de maus-tratos e sua identificação é o que permite a denúncia
e o encaminhamento dos casos na busca da proteção à vida daqueles/daquelas que sofrem
violências. A especificação das violências e/ou maus-tratos serve para a criação de indica-
dores que possibilitam Políticas Públicas de intervenção e prevenção, além de estudos das
violências.
entanto, corroboram com a opinião de que não é somente pelo fato do direito à Educação
estar claramente enunciado na Constituição que ele será garantido, pois
[...] no mais das vezes o que temos não é uma simples negação do direito à Educa-
ção; antes o contrário, a todo tempo se destacam os avanços. Ainda assim, um dos
problemas centrais do sistema educacional brasileiro parece ser a forma desigual
com que os alunos são tratados, ou seja, os recursos humanos e materiais são distri-
buídos de maneira desigual na sociedade, aumentando as oportunidades para alguns
grupos e reduzindo a oportunidade para os demais (VIEIRA; ALMEIDA, 2013, p. 13).
Olha. A gente está muito longe do que precisaria. Porque os APOIAs custam a dar
respostas. Então a gente passa como tu visses ali, tem aquele monte de alunos,
mais esse ano todos esses aqui que eu já perdi a conta [...]. Não sei quantos tem.
(Educadora 1)6.
Tem muitas divergências de opiniões entre os setores. Eu acho que ainda falta alguma
coisinha nesse meio. É que nem a gente comentando ali, de nós pro CT já falta, quem
5
Informação contida no Diário de Campo de 05 de julho de 2018.
6
Informação contida no Diário de Campo de 04 de julho de 2018.
272 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA
dirá nós escola pra Promotoria. Então é bem complicado. Nesses anos todos eu nun-
ca vi a presença do MP na escola. (Educadora 2)7.
[...] Então pensando Educação e Justiça relacionada ao APOIA é uma forma de (si-
lencio). É um canal que deveria estar interligado, mas não há não. Na real acho que
ainda não estamos nesse nível de maturidade (risos) eu achei a palavra. Então falta
o diálogo entre os atores ali, os três atores principais dentro do sistema APOIA: UE,
CT, MP. E falta a conscientização, de cada um saber o seu papel dentro pra de fato a
gente garantir a Educação e assim garantir também a Justiça porque é justo a criança
ter aceso a Educação. (MP 2)8.
Quando a Rede não se conecta como deveria interfere em todo o fluxo de um traba-
lho. No caso do Apoia, comprometendo o fluxo do Protocolo e do trabalho que potencialmen-
te poderia ser realizado no que diz respeito às causas da evasão. A dúvida da fidedignidade
dos dados estatísticos e o descumprimento dos prazos por parte de cada órgão responsável
pelo Protocolo comprometem possíveis mudanças no quesito das demandas sociais que
poderiam gerar processos e articulações culminando na construção de Políticas Públicas
voltadas para as infâncias.
Como bem narrado pelos sujeitos entrevistados, a informatização da plataforma foi
um avanço importante para que os setores da Educação e da Justiça se conectassem ra-
pidamente junto aos demais órgãos que compõem a Rede de Proteção. No entanto, não foi
suficiente para agilizar os processos e demandas oriundas do Protocolo. Indiscutivelmente,
a possibilidade de a Rede estar conectada de maneira constante é um avanço fundamental
para facilitar a garantia dos direitos das crianças, principalmente daquelas que se encontram
em situação de vulnerabilidade social. Hoje, mais do que nunca, esse canal direto de parti-
cipação e atuação político/social precisa estar aberto contra o risco eminente de fragilização
da nossa democracia.
Cabe aqui assinalar a importância da participação do trabalho da Assistência Social
nos casos, pois o MP realmente precisa antes da aplicação de medidas socioeducativas ou
penalidades estar atento às vulnerabilidades dessa população e com seu aparato técnico jun-
to aos aparatos da Assistência Social promover os cuidados e orientações às quais demanda
cada situação de vulnerabilidade. Nessa direção, seria possível diminuir a cultura punitiva e
acentuar a cultura de uma Educação e Justiça voltadas para inclusão de todos e todas.
Para que a Assistência Social atue nos casos de Apoia depende exclusivamente
da compreensão de cada promotor(a) sobre sua relevância na avaliação da vulnerabilidade
de cada caso. Como relata uma Assistente Social entrevistada, a sua atuação depende do
“chamado” do promotor responsável pelos casos Apoia:
7
Informação contida no Diário de Campo de 13 de agosto de 2018.
8
Informação contida no Diário de Campo de 31 de agosto de 2018.
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 273
[...] não apenas o Judiciário, mas também os operadores jurídicos (Ministério Público,
Defensorias e Advogados de interesse público) têm sido muitas vezes pouco ousados
na formulação de pedidos e remédios para problemas complexos, pois miram mais
na concessão de um benefício do que na solução estrutural do problema. Não que
9
Informação contida no Diário de Campo de 31 de agosto de 2018.
274 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA
estes pedidos não possam e devam ser feitos, mas a discussão sobre a qualidade do
processo decisório pode ser mais proveitosa para que as instituições se qualifiquem,
estruturando as políticas públicas de forma a atender mais adequadamente as aspira-
ções constitucionais. (VIEIRA; ALMEIDA, 2013, p. 17-18).
Conclusão
As narrativas sobre o Programa Apoia evidenciam que o referido protocolo confi-
gura-se como um dispositivo regulador da família e da infância e atua como extensão do
Estado, regulando, mediante leis e normas, os comportamentos das famílias, de educado-
res(as) e dos adultos no cuidado com as crianças. Essa situação é decorrente da intensifi-
cação do complexo fenômeno da judicialização da vida, em que consequentemente ocorre
a judicialização da infância. O fenômeno de judicialização da infância cria um conjunto de
saberes voltados à formulação de leis e normas que amparam a entrada do Estado de ma-
neira intensa na vida das famílias em nome da defesa, da garantia e da proteção dos direitos
das crianças e dos adolescentes.
A Escola no contexto dos (des)encontros com os coparticipantes do Programa
acaba sendo, de maneira incongruente, colocada como delatora da família. Isso pode ser
comprovado nos desconfortos ocasionados na relação Escola e família. Os órgãos de Pro-
teção assumem, em relação às famílias da criança em situação de evasão, uma postura de
culpabilização, camuflando questões importantes que perpassam as relações construídas
no cotidiano escolar e também as responsabilidades do Estado quanto às Políticas Públicas
que poderiam (se construídas) atender ao bem-estar da população.
O Protocolo, ainda que nos documentos oficiais traga a narrativa de proteção inte-
gral da criança, carrega o peso da gramática analítica e jurídica que tipicamente atende as
dualidades vítima e agressor e a negatividade que carrega as noções de “pobre”, “menor”
e “periférico”. Dentro dos processos de judicialização da vida, o aumento da criação de
leis e normas altera as relações sociais, sendo que tais normas, leis e regulamentos criam
subjetividades e assujeitamentos sempre sustentados em nome da ordem e da segurança.
As narrativas dos sujeitos entrevistados apontam que a Rede de Proteção não se co-
necta como deveria comprometendo o fluxo do Apoia. A dúvida da fidedignidade dos dados
estatísticos e o descumprimento dos prazos, por parte dos órgãos responsáveis pelo Pro-
tocolo, comprometem possíveis mudanças no quesito das demandas sociais que poderiam
gerar processos e articulações que implicariam a construção de Políticas Públicas voltadas
para as infâncias. No entanto, a informatização da plataforma foi um avanço potente para
que os setores da Educação e da Justiça conectem-se rapidamente junto aos demais órgãos
que compõem a Rede de Proteção, embora não seja suficiente para agilizar os processos e
demandas oriundas do Protocolo.
Os atrasos no fluxo do Protocolo atrapalham o retorno das crianças infrequentes e
evadidas da Escola e por consequência contribui no agravamento das situações de vulne-
rabilidade nas quais se encontram alunos e alunas protocolados no Apoia. Não podemos
esquecer que a invisibilidade dada às minorias é uma invisibilidade produzida e que reflete as
perversidades cometidas pelo Estado. Entre tais perversidades está a má gestão de seus re-
276 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA
Podemos dizer que a distância que marca as relações entre Escola e Sistema de
Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como norma associada ao seu
conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regularidade e como determinação
de conduta. Ainda, a distância que marca os movimentos/relação entre Escola e MP – co-
nectados respectivamente à área da Educação e da Justiça – imerge nas situações de maus-
-tratos e violências invisibilizadas pelo Protocolo. Entre demoras e atrasos emergem marcas
indeléveis nas crianças e famílias que são vigiadas, reguladas, protocoladas e pouco ou
nada cuidadas e protegidas.
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dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm. Acesso em: 28 mar. 2021.
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l9394.htm. Acesso em: 28 mar. 2021.
BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e
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278 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA
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Educação. São Paulo: Saraiva, 2013.
ROL DE AUTORES E ORGANIZADORES
Alex da Rosa
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESC, membro do Grupo Andradiano de
Criminologia Crítica e do Grupo de Estudos Avançados em Economia Política da Pena vinculado ao
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E-mail: alexdarosa@hotmail.com.br.
Betani Hilgert
Pós-graduada em MBA de Gestão de Projetos pela Universidade Positivo. Graduada em Relações Inter-
nacionais pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail: betanihilgert@gmail.com.
Clovis Demarchi
Doutor em Ciência Jurídica. Professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Professor do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (PPGD/Univali). E-mail: demarchi@
univali.br.
Giovanni Olsson
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor e pesquisador do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Unochapecó. E-mail: golsson71@gmail.com.
Gláucia Borges
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul
Catarinense (Unesc). Especialista em Direito Civil e Processo Civil e graduada em Direito pela Unesc.
Integrante do Núcleo de Pesquisa em Estado, Política e Direito (Nuped) e do Núcleo de Pesquisa em
Direito da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas, da Unesc. Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc). E-mail: glauciaborges@icloud.com.
Ismael de Córdova
Doutorando no PPGDS/Unesc. Pesquisador do Núcleo em Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/
Unesc). Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico Unesc/SC. E-mail: cordovaismael@hotmail.com.
Johana Cabral
Doutoranda no Programa da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC),
com bolsa Prosuc Capes Modalidade I. Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/UNESC). Especialista em Direito Civil e em Direito
Processual Civil pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Especialista em Direito da Criança e do
Adolescente e Políticas Públicas pela UNESC. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos
de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do
Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC). E-mail: jcabral@mx2.unisc.br.
Josué Mastrodi
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Pontifícia Uni-
versidade Católica de Campinas (PUC-Campinas); no Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas;
e no Programa de Pós-Graduação em Direito. E-mail: mastrodi@puc-campinas.edu.br.
Renato Cechinel
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/Unesc). Especialista em Prática Jurídica pela Escola Superior de Magistratura do Estado de San-
ta Catarina (Esmesc/Unesc). Especialista em Direito Administrativo e especialista em Direito Processual
Moderno ambas pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Unesc. Membro do Núcleo de
Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Advogado. Servidor Público Municipal no cargo
de Analista de Controle Interno. E-mail: advrenatoc@gmail.com.
284 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
Rodrigo Goldschimidt
Pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da Graduação e do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Pesquisa-
dor permanente do PPGD/Unesc. Coordenador da linha de pesquisa Direito, Sociedade e Estado do
PPGD/Unesc. Membro pesquisador do Nuped/Unesc. Juiz do Trabalho Titular do TRT da 12ª Região/SC.
E-mail: rodrigo.goldschmidt@trt12.jus.br.
A
Acolhimento familiar como garantia ao direito à convivência familiar e comunitária: uma
perspectiva histórica e conceitual....................................................................................................251
Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade do
serviço. Gláucia Borges..................................................................................................................250
Administração Pública brasileira. Os sistemas de controle interno......................................................98
Administração pública e de seus sistemas de controle interno. As transformações............................89
Administração Pública. A evolução....................................................................................................91
Adoção e as doutrinas jurídicas de proteção à infância no Brasil......................................................236
Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações internacionais não
governamentais. Betani Hilgert. Luciana Rocha Leme......................................................................233
Adoção internacional. A atuação das ONGs nos procedimentos.......................................................242
Agenda 2030 da ONU. O novo marco civilizatório do desenvolvimento.............................................114
Agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibilidades de cooperativismo de plataforma no
mundo do trabalho. O desenvolvimento no marco...........................................................................108
Agenda neoliberal. A participação social como resistência...............................................................154
Alberto Cardoso Cichella. Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira. O direito
fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de direito...........78
Alex da Rosa. Jackson da Silva Leal. Fritz Loewenthal Neto. As matrizes bélicas da política:
guerra e democracia.........................................................................................................................45
André Afonso Tavares. Reginaldo de Souza Vieira. Renato Cechinel. As transformações da
administração pública e de seus sistemas de controle interno............................................................89
André Viana Custódio. Fernanda Martins Ramos. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma
análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adolescentes........................222
Apresentação. Reginaldo de Souza Vieira. Lucas Machado Fagundes. Rodrigo Goldschmidt................ 4
286 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
B
Bárbara Maria Eidt. Silvia Ozelame Rigo Moschetta. A desjudicialização dos conflitos familiares a
partir da mediação como metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo...................184
Beatriz de Almeida Coelho. Grazielly Alessandra Baggenstoss. O valor social e econômico do
tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado.............123
Benefício de prestação continuidada – BPC. Dados sobre................................................................162
Benefícios da desjudicialização no âmbito do divórcio extrajudicial..................................................190
Benefícios previdenciários do RGPS e sua concessão aos transexuais.............................................175
Benefícios previdenciários do RGPS................................................................................................175
Betani Hilgert. Luciana Rocha Leme. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de
organizações internacionais não governamentais.............................................................................233
BPC. Dados sobre o benefício de prestação continuidada................................................................162
Brasil e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Regime Geral de Previdência
Social (RGPS). Perspectivas da transexualidade..............................................................................168
Brasil e a política migratória implementada para o acolhimento e a integração dos migrantes e
refugiados venezuelanos. A migração venezuelana............................................................................65
Brasil. A adoção e as doutrinas jurídicas de proteção à infância.......................................................236
Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adolescentes.
O trabalho infantil doméstico...........................................................................................................222
C
Capítulo I. Do contrato social à constituição material: de Hobbes a Rawls. Josué Mastrodi.................16
Capítulo II. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo de
Porto Alegre. Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos. Guilherme Beckhäuser Wensing........33
Capítulo III. As matrizes bélicas da política: guerra e democracia. Fritz Loewenthal Neto. Alex da
Rosa. Jackson da Silva Leal..............................................................................................................45
Capítulo IV. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o
federalismo brasileiro. Hugo de Pellegrin Coan. Johana Cabral...........................................................61
Capítulo IX. O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a questão da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais. Rodrigo Goldschmidt. Cristiano de Souza Selig.......................134
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 287
Capítulo V. O direito fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado demo-
crático de direito. Alberto Cardoso Cichella. Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira.....78
Capítulo VI. As transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno.
Renato Cechinel. André Afonso Tavares. Reginaldo de Souza Vieira...................................................89
Capítulo VII. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as
possibilidades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho. Isadora Kauana
Lazaretti. Giovanni Olsson.............................................................................................................. 108
Capítulo VIII. O valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres: uma análise
sobre o trabalho doméstico não remunerado. Grazielly Alessandra Baggenstoss. Beatriz de
Almeida Coelho.............................................................................................................................. 123
Capítulo X. Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal:
uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC. Gladys Lenuzia Kestering.
Ismael de Córdova......................................................................................................................... 149
Capítulo XI. Perspectivas da transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários
ao transexual no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Lucas de Costa Alberton. Patricia
Rodrigues Oenning......................................................................................................................... 168
Capítulo XII. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodo-
logia interventivo-participativa e de caráter preventivo. Bárbara Maria Eidt. Silvia Ozelame
Rigo Moschetta.............................................................................................................................. 184
Capítulo XIII. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia da dignidade
humana. Clovis Demarchi. Elaine Cristina Maieski........................................................................... 195
Capítulo XIV. Transexualidade na infância: a omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das
crianças trans. Ismael Francisco de Souza. Pedro Henrique Cardoso Hilário.................................... 208
Capítulo XV. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas
da exploração de crianças e adolescentes. André Viana Custódio. Fernanda Martins Ramos........... 222
Capítulo XVI. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações interna-
cionais não governamentais. Betani Hilgert. Luciana Rocha Leme................................................... 233
Capítulo XVII. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a
efetividade do serviço. Gláucia Borges........................................................................................... 250
Capítulo XVIII. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância.
Sílvia Cardoso Rocha..................................................................................................................... 263
Clovis Demarchi. Elaine Cristina Maieski. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações
legislativas: garantia da dignidade humana..................................................................................... 195
Concessão dos benefícios previdenciários aos transexuais............................................................. 177
Conclusão. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia
interventivo-participativa e de caráter preventivo............................................................................. 192
Conclusão. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a
efetividade do serviço.................................................................................................................... 260
288 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
D
Dados sobre o benefício de prestação continuidada – BPC..............................................................162
Decisões judiciais acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações
trabalhistas.....................................................................................................................................143
Delineamentos sobre a situação político-econômica da Venezuela.....................................................62
Democracia participativa...................................................................................................................38
Democracia representativa................................................................................................................36
Democracia......................................................................................................................................35
Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo de Porto Alegre.
Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos. Guilherme Beckhäuser Wensing.............................33
Demodiversidade..............................................................................................................................42
Desenvolvimento histórico do instituto da adoção............................................................................234
Desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibilidades de coope-
rativismo de plataforma no mundo do trabalho. Isadora Kauana Lazaretti. Giovanni Olsson..............108
Desjudicialização das relações familiares........................................................................................188
Desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia interventivo-
participativa e de caráter preventivo. Bárbara Maria Eidt. Silvia Ozelame Rigo Moschetta..................184
Dignidade da pessoa humana e do estado democrático de direito. A polícia militar no âmbito da
segurança pública: reflexões à luz do princípio..................................................................................84
Dignidade humana. Considerações sobre........................................................................................196
Dignidade humana. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia...............195
Direito brasileiro. A transexualidade e seu reconhecimento...............................................................169
Direito da criança à liberdade, respeito e dignidade. A teoria da proteção integral.............................209
Direito fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de
direito. Alberto Cardoso Cichella. Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira.....................78
Direito Internacional. A regulamentação da adoção..........................................................................239
Direitos fundamentais - definição.....................................................................................................138
290 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
E
Econômico do trabalho doméstico. O valor......................................................................................130
Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância. Sílvia Cardoso Rocha...263
Educação, sistema de justiça e políticas públicas............................................................................270
Eficácia horizontal dos direitos fundamentais...................................................................................138
Elaine Cristina Maieski. Clovis Demarchi. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações
legislativas: garantia da dignidade humana......................................................................................195
Eleições 2018: Gênero, raça e classe............................................................................................... 49
Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos. Guilherme Beckhäuser Wensing. Demodiver-
sidade, representação e participação: análise do orçamento participativo de Porto Alegre................. 33
Emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC. Financiamento da política de assistência social
em tempos de austeridade fiscal: uma análise.................................................................................149
Empregado: a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. O poder empregatício e
a vulnerabilidade.............................................................................................................................134
Empregatício e a vulnerabilidade do empregado. O poder.................................................................135
Estado civil. Teoria contratualista: estado de natureza....................................................................... 19
Estado de Roraima e os refugiados: uma análise de viés federalista.................................................. 68
Estado democrático de direito. A polícia militar no âmbito da segurança pública: reflexões à luz
do princípio da dignidade da pessoa humana.................................................................................... 84
Estado e políticas públicas para a criança e o adolescente. Parte III.................................................207
Estado e sociedade.......................................................................................................................... 24
Estado, direitos fundamentais e democracia. Parte I......................................................................... 15
Estado, políticas públicas e direitos sociais. Parte II.........................................................................107
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 291
F
Familiares. A desjudicialização das relações....................................................................................188
Federalismo brasileiro. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana........61
Federalismo cooperativo. A intervenção federal.................................................................................71
Federalista. O estado de Roraima e os refugiados: uma análise de viés..............................................68
Fernanda Martins Ramos. André Viana Custódio. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma
análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adolescentes........................222
Filosófico-jurídico da soberania. A formação do Estado e da democracia representativa: o discurso...46
Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal: uma análise da
emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC. Gladys Lenuzia Kestering. Ismael de Córdova.....149
Financiamento do Sistema Único de Assistência Social...................................................................152
Formação do Estado e da democracia representativa: o discurso filosófico-jurídico da soberania.......46
Fritz Loewenthal Neto. Alex da Rosa. Jackson da Silva Leal. As matrizes bélicas da política: guerra
e democracia....................................................................................................................................45
Função social do Estado. Direitos fundamentais................................................................................26
G
Gênero como um direito fundamental. Diversidade..........................................................................213
Gênero, identidade de gênero e transexualidade. Breves apontamentos sobre..................................169
Gênero, raça e classe. Eleições 2018................................................................................................49
Giovanni Olsson. Isadora Kauana Lazaretti. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU:
um olhar sobre as possibilidades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho...............108
Gladys Lenuzia Kestering. Ismael de Córdova. Financiamento da política de assistência social em
tempos de austeridade fiscal: uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC......149
Gláucia Borges. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a
efetividade do serviço.....................................................................................................................250
Grazielly Alessandra Baggenstoss. Beatriz de Almeida Coelho. O valor social e econômico do
tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado.............123
292 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
H
Hobbes a Rawls. Do contrato social à constituição material.............................................................. 16
Hugo de Pellegrin Coan. Johana Cabral. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a
migração venezuelana e o federalismo brasileiro............................................................................... 61
I
Identidade de gênero e transexualidade. Breves apontamentos sobre gênero....................................169
Instituição do Estado. Direitos fundamentais como fundamento........................................................ 28
Instituto da adoção. O desenvolvimento histórico.............................................................................234
Intervenção federal e o federalismo cooperativo................................................................................ 71
Interventivo-participativa e de caráter preventivo. A desjudicialização dos conflitos familiares a
partir da mediação como metodologia.............................................................................................184
Introdução. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia
interventivo-participativa e de caráter preventivo..............................................................................185
Introdução. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade
do serviço.......................................................................................................................................250
Introdução. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações interna-
cionais não governamentais............................................................................................................233
Introdução. As matrizes bélicas da política: guerra e democracia...................................................... 45
Introdução. As transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno...... 89
Introdução. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o
federalismo brasileiro....................................................................................................................... 61
Introdução. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo
de Porto Alegre................................................................................................................................ 33
Introdução. Do contrato social à constituição material...................................................................... 16
Introdução. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância....................263
Introdução. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia da dignidade
humana..........................................................................................................................................195
Introdução. Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal:
uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC...................................................149
Introdução. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibili-
dades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho........................................................108
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 293
J
Jackson da Silva Leal. Fritz Loewenthal Neto. Alex da Rosa. As matrizes bélicas da política:
guerra e democracia.........................................................................................................................45
Johana Cabral. Hugo de Pellegrin Coan. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a
migração venezuelana e o federalismo brasileiro................................................................................61
Josué Mastrodi. Do contrato social à constituição material: de Hobbes a Rawls.................................16
L
Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira. Alberto Cardoso Cichella. O direito funda-
mental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de direito...................78
Liberdade, respeito e dignidade. A teoria da proteção integral e o direito da criança..........................209
Lucas de Costa Alberton. Patricia Rodrigues Oenning. Perspectivas da transexualidade no Brasil
e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Regime Geral de Previdência
Social (RGPS).................................................................................................................................168
Lucas Machado Fagundes. Rodrigo Goldschmidt. Reginaldo de Souza Vieira. Apresentação................ 4
Luciana Rocha Leme. Betani Hilgert. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de
organizações internacionais não governamentais.............................................................................233
294 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
M
Matrizes bélicas da política: guerra e democracia. Fritz Loewenthal Neto. Alex da Rosa. Jackson
da Silva Leal.....................................................................................................................................45
Mediação na perspectiva de metodologia interventivo-participativa..................................................186
Migração venezuelana e o federalismo brasileiro. Crise global e crise nacional: uma análise sobre.....61
Migração venezuelana para o Brasil e a política migratória implementada para o acolhimento e a
integração dos migrantes e refugiados venezuelanos.........................................................................65
Mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado. O valor social e econômico
do tempo de trabalho......................................................................................................................123
Mundo do trabalho e seus desafios no cooperativismo de plataforma..............................................109
N
Novas plataformas como instrumentos de desenvolvimento. As possibilidades................................116
Novo marco civilizatório do desenvolvimento na Agenda 2030 da ONU............................................114
O
ONGs nos procedimentos de adoção internacional. A atuação.........................................................242
Orçamento participativo de Porto Alegre............................................................................................40
Ordenamento jurídico brasileiro frente a uma realidade social. A transexualidade na infância: a
omissão..........................................................................................................................................215
Organizações internacionais não governamentais. Adoção internacional de crianças brasileiras:
a atuação........................................................................................................................................233
P
Parte I. Estado, direitos fundamentais e democracia..........................................................................15
Parte II. Estado, políticas públicas e direitos sociais.........................................................................107
Parte III. Estado e políticas públicas para a criança e o adolescente.................................................207
Participação social como resistência à agenda neoliberal................................................................154
Patricia Rodrigues Oenning. Lucas de Costa Alberton. Perspectivas da transexualidade no Brasil
e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Regime Geral de Previdência
Social (RGPS).................................................................................................................................168
Pedro Henrique Cardoso Hilário. Ismael Francisco de Souza. Transexualidade na infância: a
omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das crianças trans...............................................208
Perspectivas da transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários ao
transexual no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Lucas de Costa Alberton. Patricia
Rodrigues Oenning..........................................................................................................................168
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 295
R
Rawls. Do contrato social à constituição material: de Hobbes............................................................16
Referências. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia
interventivo-participativa e de caráter preventivo..............................................................................193
Referências. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade
do serviço.......................................................................................................................................261
Referências. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações internacionais
não governamentais........................................................................................................................246
Referências. As matrizes bélicas da política: guerra e democracia.....................................................59
Referências. As transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno...103
Referências. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o
federalismo brasileiro........................................................................................................................74
Referências. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo
de Porto Alegre.................................................................................................................................44
296 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
S
Segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de direito. O direito
fundamental......................................................................................................................................78
Segurança pública no estado democrático de direito..........................................................................79
Serviço de acolhimento. O protagonismo da sociedade civil na efetividade.......................................255
Serviço de Mediação Familiar Extrajudicial. Os conflitos familiares atendidos...................................188
Sílvia Cardoso Rocha. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância...263
Silvia Ozelame Rigo Moschetta. Bárbara Maria Eidt. A desjudicialização dos conflitos familiares a
partir da mediação como metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo...................184
Sistema de justiça e políticas públicas. Educação............................................................................270
Sistema Único de Assistência Social. Financiamento.......................................................................152
Sistemas de controle interno da Administração Pública.....................................................................96
Sistemas de controle interno na Administração Pública brasileira.......................................................98
Sistemas de controle interno. As transformações da administração pública.......................................89
Social e o capital. Reprodução........................................................................................................128
Sociedade brasileira. O reconhecimento do transexual.....................................................................172
Sociedade civil para a efetividade do serviço. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo.......250
T
Teoria contratualista: estado de natureza e estado civil.......................................................................19
Teoria da proteção integral e o direito da criança à liberdade, respeito e dignidade............................209
Trabalhistas. Decisões judiciais acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas
relações..........................................................................................................................................143
Trabalho doméstico não remunerado. O valor social e econômico do tempo de trabalho das
mulheres: uma análise sobre...........................................................................................................123
Trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas da exploração
de crianças e adolescentes. André Viana Custódio. Fernanda Martins Ramos..................................222
Trabalho infantil doméstico. Causas.................................................................................................228
Trabalho infantil. Contexto...............................................................................................................223
Transexual pela sociedade brasileira. O reconhecimento..................................................................172
298 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores
V
Valor econômico do trabalho doméstico..........................................................................................130
Valor social do trabalho doméstico não remunerado........................................................................125
Valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho
doméstico não remunerado. Grazielly Alessandra Baggenstoss. Beatriz de Almeida Coelho..............123
Venezuela. Delineamentos sobre a situação político-econômica.........................................................62
Violências em (con)textos...............................................................................................................266
Violências na infância. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca...........................................263