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CONSELHO EDITORIAL

Ana Claudia Santano – Professora do Programa de do Programa de Mestrado e Doutorado em Sociologia


Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, do e Direito da mesma universidade.
Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Ligia Maria Silva Melo de Casimiro – Doutora em Direi-
Pós-doutora em Direito Público Econômico pela Ponti- to Econômico e Social pela PUC-PR. Mestre em Direito
fícia Universidade Católica do Paraná. Doutora e mestre do Estado pela PUC-SP. Professora de Direito Adminis-
em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de trativo da UFC-CE. Presidente do Instituto Cearense de
Salamanca, Espanha. Direito Administrativo - ICDA. Diretora do Instituto Bra-
Daniel Wunder Hachem – Professor de Direito Cons- sileiro de Direito Administrativo - IBDA e coordenadora
titucional e Administrativo da Universidade Federal do Regional do IBDU.
Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Luiz Fernando Casagrande Pereira – Doutor e mestre
Doutor e mestre em Direito do Estado pela UFPR. Co- em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coor-
ordenador Executivo da Rede Docente Eurolatinoame- denador da pós-graduação em Direito Eleitoral da Uni-
ricana de Derecho Administrativo. versidade Positivo. Autor de livros e artigos de processo
Emerson Gabardo – Professor Titular de Direito Admi- civil e direito eleitoral.
nistrativo da PUC-PR. Professor Associado de Direito Rafael Santos de Oliveira – Doutor em Direito pela Uni-
Administrativo da UFPR. Doutor em Direito do Estado versidade Federal de Santa Catarina. Mestre e gradua-
pela UFPR com Pós-doutorado pela Fordham University do em Direito pela UFSM. Professor na graduação e na
School of Law e pela University of California - UCI (EUA). pós-graduação em Direito da Universidade Federal de
Fernando Gama de Miranda Netto – Doutor em Direi- Santa Maria. Coordenador do Curso de Direito e editor
to pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. Pro- da Revista Direitos Emergentes na Sociedade Global e
fessor Adjunto de Direito Processual da Universidade da Revista Eletrônica do Curso de Direito da mesma
Federal Fluminense e membro do corpo permanente universidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626

Estado, política e direito: direitos fundamentais, democracia e


E79 políticas públicas [recurso eletrônico] / organização de
Reginaldo de Souza Vieira, Lucas Machado Fagundes, Rodrigo
Goldschmidt - Curitiba: Íthala, 2020.
v.8, 298p.: 22,5cm

Vários colaboradores
ISBN: 978-85-5544-201-8

1. Estado. 2. Direitos fundamentais. 3. Políticas públicas. I. Vieira, Reginaldo


de Souza (org.). II. Fagundes, Lucas Machado (org.). III. Goldschmidt,
Rodrigo (org.).

CDD 340.1 (22.ed)


CDU 340

Editora Íthala Ltda. Capa: Antonio Dias


Rua Pedro Nolasko Pizzatto, 70 Revisão: Julia Caetano
Bairro Mercês
80.710-130 – Curitiba – PR
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rização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido
pelo art. 184 do Código Penal.
Organizadores
REGINALDO DE SOUZA VIEIRA
LUCAS MACHADO FAGUNDES
RODRIGO GOLDSCHMIDT

ESTADO,
POLÍTICA
E DIREITO
DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

Volume VIII

EDITORA ÍTHALA
CURITIBA – 2020
APRESENTAÇÃO

Esta obra, que ora apresentamos, Estado, Política e Direito, faz parte de uma coletâ-
nea que chega ao seu oitavo volume e compreende o resultado das pesquisas desenvolvidas
no ano de 2019 por docentes e discentes integrantes dos grupos de pesquisa da Universi-
dade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), com destaque ao Núcleo de Estudos em Estado,
Política e Direito (Nuped/Unesc) – que completou, em 2020, 15 anos de existência. Também
com contribuições do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania (Nupec/Unesc)
e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (LADSSC/Unesc).
Os artigos desta coletânea estão em consonância e possuem alinhamento teórico
com as pesquisas realizadas pelos dois Programas de Pós-Graduação na área de Ciências
Sociais Aplicadas da Unesc. O primeiro e, mais antigo, é o Programa de Programa de Pós-
-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico (PPGDS/Unesc) – mestrado e doutorado,
cuja área de concentração é “desenvolvimento socioeconômico” e com linhas de pesquisa
em “trabalho e organizações” e “desenvolvimento e gestão social”. Já o Programa de Pós-
-Graduação em Direito (PPGD/Unesc), aprovado e recomendado pela Capes no ano de 2017,
possui como área de concentração “direitos humanos e sociedade” e com duas linhas de
pesquisa que dialogam diretamente com a temática desta obra, são elas “direitos humanos,
cidadania e novos direitos” e “Direito, Estado e Sociedade”.
Cabe destacar que esta edição traz a contribuição significativa de pesquisadores(as)
das seguintes instituições de ensino: Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas); do Programa de Pós-Gra-
duação em Dieito da Unochapecó; Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC); Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
de Santa Cruz do Sul (Unisc); e Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Vale do Itajaí (UFSC). A obra é constituída de 18 capítulos e foi organizada em três partes,
conforme os eixos teóricos centrais dos estudos apresentados.
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 5

A primeira parte trata de ESTADO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA. A se-


gunda parte, tem como eixo central: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS SOCIAIS.
Já a terceira e última parte é intitulada: ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CRIANÇA E
O ADOLESCENTE.
Por fim, agradecemos a todos(as) que contribuíram com a realização desta obra,
bem como a Unesc, que por meio de seu investimento em pesquisa oportunizou a realização
dos projetos, eventos, encontros e reuniões que sustentaram as discussões das pesquisas
aqui reunidas.
Boa leitura a todos e todas!

Reginaldo de Souza Vieira


Lucas Machado Fagundes
Rodrigo Goldschmidt
Organizadores
PREFÁCIO

O célebre intelectual da pedagogia brasileira, Paulo Freire, já afirmava que “não há


ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”. Nesse sentido, não há como pensarmos o
ensino no Brasil, sem o relacionarmos com a pesquisa, sendo que o inverso também é
verdadeiro. As palavras de Freire ecoam nas nações que prezam por um desenvolvimento
sustentável, elas têm na pesquisa um dos elementos necessários para encaminhar seus
investimentos, com o objetivo de um retorno para as suas populações no que se refere a
melhoria de renda e em qualidade de vida.
O Brasil, terra natal do saudoso pedagogo e objeto de inúmeras de suas pesquisas,
positivou, por meio do artigo 207, da Constituição Federal de 1988, o princípio da indisso-
ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como o tripé fundamental de constituição e
prática da universidade brasileira. Dessa forma, as ações das instituições de ensino superior
devem considerar seus investimentos de forma harmônica e em igualdade para a garantia da
manutenção do tripé formado pelo ensino, pesquisa e extensão.
Tal compromisso, com a produção e a socialização do conhecimento, por meio des-
se tripé constitucional, se vê consolidado nesta relevante obra do Programa de Pós-Gra-
duação em Direito (PPGD), nível de Mestrado, da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(Unesc), a qual tenho a honra de prefaciar, intitulada Estado, Política e Direito: direitos funda-
mentais, democracia e políticas públicas. Este livro que está em seu oitavo volume, é reflexo
das pesquisas organizadas pelo Programa, principalmente aquelas vinculadas ao Núcleo de
Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped), bem como da contribuição de pesquisadores
externos, com pesquisas alinhadas ao referido núcleo.
São artigos resultantes de pesquisas conduzidas por professores, mestres, mes-
trandos, doutores e egressos pesquisadores do PPGD da Unesc e de outras instituições de
Pós-Graduação da área de Ciências Jurídicas que colaboraram com a obra. É por meio des-
tas pesquisas desenvolvidas nesta renomada obra que vemos o comprometimento do PPGD
da Unesc com as atividades de ensino, pesquisa e extensão, articulando a teoria e a prática
na produção e socialização do saber para o desenvolvimento de pessoas capazes de atuar e
promover a transformação em realidades complexas e diversificadas.
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 7

Portanto, a iniciativa dos professores organizadores, Reginaldo de Souza Vieira, Lu-


cas Machado Fagundes e Rodrigo Goldschmidt, com o apoio do PPGD da Unesc, de elabora-
rem um oitavo volume do presente livro, demonstra o compromisso desses docentes com o
princípio da indissociabilidade e da tridimensionalidade do fazer universitário. Também repre-
senta o comprometimento dos pesquisadores com a formação de mestres com habilidades
para gerir sua atividade profissional e voltadas a garantir e implementar direitos, permitindo
reflexão e aprimoramento de habilidades, incorporando e criando novos conhecimentos que
estimulem espaços de transformação social.
Dessa forma, os organizadores da presente obra propõem a estruturação em três
partes, com dezoito capítulos no total, com ênfase na linha de pesquisa do Nuped – em
Estado, Políticas Públicas e Direitos Fundamentais. Nesse sentido, a primeira parte da obra
concentra seis capítulos que enfocam as premissas sobre Estado, Direitos Fundamentais e
Democracia, os quais se destaca a seguir.
A brilhante obra é iniciada pelo capítulo Do Contrato Social à Constituição Material:
de Hobbes a Rawls, de autoria do professor doutor, do Programa de Pós-Graduação em
Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (programa membro da Rede Bra-
sileira de Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos, da qual também participam a Unesc e
mais sete PPGDs representantes de todas as regiões do Brasil), Josué Mastrodi, o qual nos
proporciona uma análise sobre as possibilidades de aproximações entre o conceito hobbe-
siano de pacto social para instituição teórica da sociedade civil organizada e o conceito de
constituição material para organização democrática das sociedades modernas. O renomado
pesquisador parte da ideia de que um pacto entre todos pressupõe que os membros do pac-
to são livres para pactuar, mas também que são iguais entre si para realizar tal acordo. Dessa
forma, o autor pressupõe, por meio de sua pesquisa, que todo poder político emana desse
coletivo e que o Estado é formado para proteção e promoção dos interesses desse grupo.
O segundo capítulo, de Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos e Guilherme
Beckhäuser Wensing, ambos mestres em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direi-
to da Unesc e pesquisadores do Nuped/Unesc, com o título Demodiversidade, representação
e participação: análise do orçamento participativo de Porto Alegre, objetiva demonstrar a ne-
cessidade de efetivação de um processo democrático participativo, com a participação dos
titulares de direitos no debate, aliado ao processo representativo para que sejam alcançados
os direitos de todos. Por fim, os autores propõem uma descrição da experiência democrática
participativa do município de Porto Alegre, denominada Orçamento Participativo.
Fritz Loewenthal Neto e Alex da Rosa, ambos mestrandos em Direito no Programa
de Pós-Graduação em Direito da Unesc e o professor doutor Jackson da Silva Leal, docente
permanente do PPGD/Unesc – todos membros do Grupo Andradiano de Criminologia Crítica
e do Grupo de Estudos Avançados em Economia Política da Pena vinculado ao Instituto Bra-
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sileiro de Ciências Criminais, e do Nupec/Unesc, nos apresentam o capítulo com o título As


matrizes bélicas da política: guerra e democracia, por meio do qual analisam os resultados
legislativos referentes às eleições para a Câmara dos Deputados ocorridas em outubro de
2018, com objetivo de verificar as (in)compatibilidades entre os eleitos e a população, a
partir do tripé de gênero, raça e classe.
Os pesquisadores Hugo de Pellegrin Coan e Johana Cabral, o primeiro mestrando
e ela mestra em Direito, ambos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unesc e
pesquisadores do Nuped/Unesc, abordam em seu capítulo a Crise global e crise nacional:
uma análise sobre a migração venezuelana e o federalismo brasileiro. Os referidos autores
realizam um estudo sobre a atuação do Brasil na gestão do fluxo migratório venezuelano
sob o viés do federalismo brasileiro, com destaque para o federalismo cooperativo. Dessa
análise, destaca-se a percepção de que uma crise de âmbito mundial interfere nas relações
de poder locais entre as unidades da federação e que a gestão da crise migratória demanda
o compartilhamento de responsabilidades, nos âmbitos local e global.
Os autores, Alberto Cardoso Cichella, Leonardo Alfredo da Rosa, ambos mestran-
dos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unesc, juntamente, com o destacado
professor doutor Reginaldo de Souza Vieira, apresentam o capítulo Direito fundamental à
segurança pública: o papel da polícia militar no Estado Democrático de Direito, no qual
partem de observações sobre os problemas envolvendo a segurança pública no Brasil e o
papel desempenhado pela Polícia Militar como garantidora desse direito fundamental, cujo
papel se harmoniza com o Estado Democrático de Direito. Finalizando a primeira parte desta
obra, os mestrandos André Tavares e Renato Cechinel, em conjunto com o professor doutor
Reginaldo de Souza Vieira, tratam de uma temática atual na área pública: As transformações
da administração pública e de seus Sistemas de Controle Interno.
A segunda parte desta obra propõe agrupar as pesquisas que enfoquem a temática
relacionada ao Estado, Políticas Públicas e Direitos Sociais. Assim, essa segunda parte do
livro aglutina seis capítulos com o escopo na referida linha de pesquisa.
Isadora K. Lazaretti, mestra em Direito, e Giovanni Olsson, doutor em Direito, iniciam
a segunda parte desta obra, por meio da pesquisa que enfoca, O desenvolvimento no marco
da Agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibilidades do cooperativismo de plataforma
no mundo do trabalho. Os pesquisadores propõem uma análise do fenômeno da economia
do compartilhamento, impulsionada pela velocidade da internet, e retratada em uma onda
de negócios digitais espalhados pelo espaço global. Também discorrem sobre elementos
conflitantes entre os riscos de precarização das relações sociais e as possibilidades do
empreendedorismo e das oportunidades de trabalho flexíveis e adaptáveis.
A professora doutora do PPGD da UFSC, Grazielly Alessandra Baggenstos, e a mes-
tranda, Beatriz de Almeida Coelho, abordam em seu capítulo O valor social e econômico do
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 9

tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado.
Nele as autoras analisam a conexão entre a divisão sexual do trabalho e o tempo de trabalho
das mulheres em uma perspectiva sistêmica, como forma de compreensão da dinâmica
social, a partir dos espaços privados.
O professor doutor Rodrigo Goldschmidt, docente permanente do PPGD/Unesc, e o
professor Cristiano de Souza Selig discutem a vulnerabilidade do trabalhador da relação de
trabalho, no capítulo intitulado: O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a
questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Ismael de Córdova, professor mestre e Gladys Lenuzia Kestering, bacharela em Ad-
ministração, abordam o tema do Financiamento da política de assistência social em tempos
de austeridade fiscal: uma análise da emenda constitucional n. 95 e seus reflexos no BPC.
A proposta dos autores perpassa um estudo audacioso sobre as possibilidades de redução
das ações do Estado brasileiro em virtude do regime fiscal imposto, por meio da Emenda
Constitucional (EC) n. 95.
O professor mestre pelo PPGD da Unesc, Lucas de Costa Alberton, e a bacharela
em Direito, Patricia Rodrigues Oenning, apresentam o capítulo com o título Perspectivas da
transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Re-
gime Geral de Previdência Social (RGPS), no qual debatem sobre a concessão de benefícios
previdenciários aos transexuais no RGPS, uma vez que no Direito Previdenciário não existe
norma clara a respeito desse tema.
Com o tema A desjudicialização dos conflitos familiares, a partir da mediação como
metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo, a professora doutora, Silvia
Ozelame Rigo Moschetta, e a bacharela em Direito, Bárbara Maria Eidt, analisam se a media-
ção familiar encampada como metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo
propicia a desjudicialização dos conflitos familiares. A pesquisa observa os conflitos fami-
liares atendidos pelo Serviço de Mediação Familiar Extrajudicial – SMF/Unochapecó, com o
foco em compreender se a cultura da sentença está cedendo espaço para a desjudicialização
no âmbito dos conflitos familiares, traduzindo-se em prestação da tutela almejada pelos
mediados e garantindo segurança jurídica.
O sexto e último capítulo da segunda parte, de autoria do Prof. Dr. Clovis Demarchi
e da acadêmica de Direito, Elaine Cristina Maieski, intitula-se Estatuto da pessoa com defi-
ciência e alterações legislativas: garantia da dignidade humana. O referido capítulo aborda o
Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) e as consequentes alterações na
legislação brasileira, em especial no Código Civil e se propõe a verificar as consequências
dessas alterações para a efetivação ou não da Dignidade Humana.
Finalmente, a terceira parte desta obra apresenta cinco capítulos delineados na área
de pesquisa em Estado e Políticas Públicas para a Criança e o Adolescente, encerrando o
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eixo de trabalhos. O primeiro capítulo dessa terceira parte da obra propõe-se a analisar a
atuação dos poderes legislativo e judiciário, em relação ao suporte e garantia da efetivação
de direitos às crianças transexuais. Como elementos que balizam a referida análise dos
direitos às crianças e adolescentes transexuais, estão os direitos fundamentais garantidos a
eles, tais como liberdade, respeito e dignidade garantidos, por meio da Constituição Federal
de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. A referida pesquisa é de autoria
do Prof. Dr. em Direito, Ismael Francisco de Souza, docente do PPGD da Unesc, e do mes-
trando Pedro Henrique Cardoso Hilário, intitulada Transexualidade na infância: a omissão do
legislador brasileiro e a invisibilidade das crianças trans.
O Prof. Dr. em Direito, André Viana Custódio e a mestranda Fernanda Martins Ramos,
no segundo capítulo, desta última parte do livro, intitula-se O trabalho infantil doméstico no
Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adoles-
centes. Em seu texto abordam o trabalho infantil doméstico e analisam suas causas a partir
da teoria da proteção integral, discorrendo sobre o contexto do trabalho infantil doméstico,
analisam a proteção jurídica nacional e internacional contra o trabalho infantil e demonstram
as causas do trabalho infantil doméstico no Brasil.
Como terceiro capítulo, tem-se o texto que aborda a adoção internacional de crianças
brasileiras, por meio da atuação de organizações internacionais não governamentais, de
autoria da Prof. e doutoranda em Direito, Luciana Rocha Leme, e da Bacharel em Relações
Internacionais, Betani Hilgert. Convencionada no âmbito do direito internacional, a adoção
por estrangeiros é assunto de competência dos Estados, que podem executá-la a partir de
seu direito interno. Frente à ausência de harmonização dos procedimentos de adoção inter-
nacional, mesmo entre os Estados contratantes de convenções sobre o tema, a relação da
adoção ocorre com a participação de organizações internacionais não governamentais, que
trabalham de forma a viabilizar essa modalidade de adoção.
A mestranda do PPGD/Unesc, Gláucia Borges, apresenta o seu capítulo o tema Aco-
lhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade do servi-
ço. A pesquisa aborda o debate sobre o acolhimento de crianças e adolescentes afastados
do convívio familiar em serviços de família acolhedora e a função da sociedade civil nesse
contexto. A mestranda, a partir deste trabalho, objetiva demonstrar o protagonismo da so-
ciedade nos serviços de acolhimento familiar, visando exprimir o quanto o Estado necessita
desse auxílio, a fim de salvaguardar, entre outros, o Direito à Convivência Familiar e Comuni-
tária das crianças e adolescentes. Trata-se de uma pesquisa que verifica a disparidade entre
as responsabilidades da sociedade e do Estado, com relação às atribuições na garantia dos
direitos das crianças e adolescentes acolhidas.
Por fim, a mestranda em Direito do PPGDS/Unesc, Silvia Cardoso Rocha, apresenta
o último capítulo, da parte final desta renomada obra, com o título: Educação e sistema de
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 11

justiça: reflexões acerca das violências na infância. Nesse capítulo, a pesquisadora apresen-
ta uma reflexão sobre violências, infâncias e os movimentos presentes na elaboração das
políticas públicas para a temática. De maneira específica, a mestranda visa compreender, por
meio do Protocolo Apoia Online e seu fluxo dentro do Programa de Enfrentamento à Evasão
Escolar vinculado ao Ministério Público de Santa Catarina, como são construídas as aproxi-
mações entre Educação e o Sistema de Justiça.
A obra Estado, Política e Direito: direitos fundamentais, democracia e políticas pú-
blicas – Volume VIII certamente será de grande contribuição aos pesquisadores na área das
Ciências Jurídicas e correlatas, bem como aos operadores das diversas carreiras jurídicas.
Uma concretização do princípio da indissociabilidade e da tridimensionalidade do fazer uni-
versitário, à luz dos pressupostos freirianos e constitucionais.
Criciúma, 27 de abril de 2020.

Prof. Dr. Daniel Ribeiro Preve


Vice-reitor da Unesc
SUMÁRIO

PARTE I
ESTADO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA
CAPÍTULO I - DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL:
DE HOBBES A RAWLS.....................................................................................................16
Josué Mastrodi

CAPÍTULO II - DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO: ANÁLISE


DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE.....................................................33
Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos | Guilherme Beckhäuser Wensing

CAPÍTULO III - AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA: GUERRA E DEMOCRACIA............45


Fritz Loewenthal Neto | Alex da Rosa | Jackson da Silva Leal

CAPÍTULO IV - CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL: UMA ANÁLISE SOBRE A


MIGRAÇÃO VENEZUELANA E O FEDERALISMO BRASILEIRO..........................................61
Hugo de Pellegrin Coan | Johana Cabral

CAPÍTULO V - O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA


POLÍCIA MILITAR NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................................78
Alberto Cardoso Cichella | Leonardo Alfredo da Rosa | Reginaldo de Souza Vieira

CAPÍTULO VI - AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS


SISTEMAS DE CONTROLE INTERNO................................................................................89
Renato Cechinel | André Afonso Tavares | Reginaldo de Souza Vieira

PARTE II
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS SOCIAIS
CAPÍTULO VII - O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU:
UM OLHAR SOBRE AS POSSIBILIDADES DO COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA
NO MUNDO DO TRABALHO........................................................................................... 108
Isadora Kauana Lazaretti | Giovanni Olsson
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 13

CAPÍTULO VIII - O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE TRABALHO DAS


MULHERES: UMA ANÁLISE SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO NÃO REMUNERADO.... 123
Grazielly Alessandra Baggenstoss | Beatriz de Almeida Coelho

CAPÍTULO IX - O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO:


A QUESTÃO DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS..................... 134
Rodrigo Goldschmidt | Cristiano de Souza Selig

CAPÍTULO X - FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM


TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL: UMA ANÁLISE DA EMENDA CONSTITUCIONAL
95 E SEUS REFLEXOS NO BPC...................................................................................... 149
Gladys Lenuzia Kestering | Ismael de Córdova

CAPÍTULO XI - PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO


DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS AO TRANSEXUAL NO REGIME GERAL DE
PREVIDÊNCIA SOCIAL (RGPS)...................................................................................... 168
Lucas de Costa Alberton | Patricia Rodrigues Oenning

CAPÍTULO XII - A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR


DA MEDIAÇÃO COMO METODOLOGIA INTERVENTIVO-PARTICIPATIVA E DE
CARÁTER PREVENTIVO................................................................................................. 184
Bárbara Maria Eidt | Silvia Ozelame Rigo Moschetta

CAPÍTULO XIII - ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES


LEGISLATIVAS: GARANTIA DA DIGNIDADE HUMANA.................................................... 195
Clovis Demarchi | Elaine Cristina Maieski

PARTE III
ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE
CAPÍTULO XIV - TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA: A OMISSÃO DO LEGISLADOR
BRASILEIRO E A INVISIBILIDADE DAS CRIANÇAS TRANS............................................ 208
Ismael Francisco de Souza | Pedro Henrique Cardoso Hilário

CAPÍTULO XV - O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL: UMA


ANÁLISE DA PROTEÇÃO JURÍDICA E DAS CAUSAS DA EXPLORAÇÃO DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES....................................................................................... 222
André Viana Custódio | Fernanda Martins Ramos
14 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

CAPÍTULO XVI - ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS: A


ATUAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS NÃO GOVERNAMENTAIS................... 233
Betani Hilgert | Luciana Rocha Leme

CAPÍTULO XVII - ACOLHIMENTO FAMILIAR: O NECESSÁRIO PROTAGONISMO DA


SOCIEDADE CIVIL PARA A EFETIVIDADE DO SERVIÇO................................................. 250
Gláucia Borges

CAPÍTULO XVIII - EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA: REFLEXÕES ACERCA DAS


VIOLÊNCIAS NA INFÂNCIA............................................................................................ 263
Sílvia Cardoso Rocha

ROL DE AUTORES E ORGANIZADORES......................................................................... 279

ÍNDICE ALFABÉTICO...................................................................................................... 285


PARTE I
ESTADO, DIREITOS
FUNDAMENTAIS
E DEMOCRACIA
CAPÍTULO I

DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO


MATERIAL: DE HOBBES A RAWLS

JOSUÉ MASTRODI 1

Introdução
No âmbito do recém-criado programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), em especial nos estudos da disciplina
“Direito ao desenvolvimento nas ordens internacional e interna”, ficou evidente a necessi-
dade de retomar certos conceitos fundamentais da teoria do Estado e de todo o arcabouço
liberal que, a partir das concepções de pacto e de contrato social, têm estruturado a socie-
dade civil ocidental. Em que pese a pesquisa, em nosso programa de mestrado, se referir a
Direito e Desenvolvimento, sentimos necessidade de dar um passo atrás e consolidar alguns
fundamentos, que ora são apresentados na forma deste artigo.
A Teoria Geral do Estado, disciplina que passou a contar com certa autonomia desde
a publicação de obra homônima de Georg Jellinek (2000)2, tem por objeto de estudo os
pressupostos jurídicos da instituição e do desenvolvimento do Estado e, é claro, o conceito
e a dinâmica do que vem a ser (bem como do que deve ser) o Estado.
Não foi, certamente, a intenção de Jellinek separar sua disciplina, de modo absoluto,
do estudo de questões histórico-sociais que, em cada tempo e lugar, contribuíram para o
embasamento teórico da concepção ocidental do Estado.3 No sentido da teoria jurídica alemã

1
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUC-Campinas); no Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; e no Programa de
Pós-Graduação em Direito. E-mail: mastrodi@puc-campinas.edu.br.
2
Allgemeine Staatslehre. Heildelberg, 1900. Para preparo deste artigo, utilizou-se a versão espanhola de Fernando
de los Ríos, tradução desenvolvida a partir da segunda edição da obra de Jellinek, de 1911.
3
Contudo, isso acabou acontecendo, e acreditamos que tenha sido por conta do acatamento quase universal
da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Por força de tal teoria que isola a compreensão do Direito ao restrito
conceito de jurídico das demais ciências sociais, e que torna os conceitos de Direito e de Estado como indisso-
ciáveis entre si. Cf.: Kelsen (1998).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 17

do final do século XIX, Jellinek desenvolveu sua teoria buscando mais a conceituação teórica
dos poderes e deveres da Administração Pública que a limitação de tais poderes. O Estado,
assim, foi desenvolvido muito mais no plano do Direito Administrativo que no sentido fran-
cês ou norte-americano de limitação do Estado para o fim de preservar direitos e garantias
fundamentais (as chamadas liberdades públicas dos cidadãos).
Eis, portanto, a importância da teoria jurídica alemã para a categorização do que é
(ou do que deve ser) o Estado: em vez de desenvolver o Estado a partir de um espaço negati-
vo, conforme o modelo liberal, optou por bem descrever, conceituar e definir o Estado alemão
pelo preenchimento de um espaço positivo. Nesse aspecto, tal abordagem o aproxima de
Hobbes, o primeiro idealizador do Estado moderno, e o distancia de Locke (2003) ou mesmo
de Rousseau, autores muito mais interessados na liberdade dos indivíduos que nos deveres
decorrentes da associação sob a égide de um Estado.
Na França ou nos Estados Unidos, em que a matriz liberal foi marcante em todos
os ambientes sociais, o Estado foi sendo definido a partir dos espaços deixados em branco
pelas liberdades públicas. Não houve, naqueles dois modelos, a preocupação de definir o
que o Estado deveria ser ou fazer, ao contrário, importava determinar o que o Estado não
deveria ser e o que estava proibido de fazer. De igual modo, não houve por Jellinek qualquer
preocupação quanto à definição de quais seriam os direitos dos alemães perante o Estado,
desenhados de modo negativo, à sombra das prerrogativas estatais. O desenvolvimento de
uma Teoria dos Direitos Fundamentais só veio a ocorrer na Alemanha quatro ou cinco déca-
das mais tarde, após o término da Segunda Guerra Mundial.
Com o decorrer do tempo e de tantos conflitos de ordem dialética, esses dois pontos
de vista, de início tão antagônicos entre si, passam a ser complementares para pensar um
modelo de Estado adequado ao cumprimento de certas funções entendidas como essen-
ciais. Acreditamos que isso tudo seja verdadeiro ao menos no desenvolvimento, dentro da
cultura ocidental, do que se convencionou denominar Estado de Direito. Este, aliás, é um dos
recortes epistemológicos do presente trabalho.
Trataremos, enfim, da evolução das sociedades ocidentais a partir da correlata evo-
lução de seus modelos de Estado, desde o formulado por Hobbes até o imaginado por
Rawls. Ou seja, do Estado aplicado a sociedades de regime monárquico absolutista até o
Estado Democrático de Direito do liberalismo político, em que o pluralismo das decisões
democráticas confere ao Estado a necessidade de que um sentido seja sempre escolhido
em vez de determinado.
Os (talvez) principais comentadores da atualidade, David Boucher e Paul Kelly, ex-
põem que a teoria do contrato social, que nunca foi efetivamente deixada de lado na com-
preensão da sociedade ocidental, foi retomada com muito mais interesse pela comunidade
acadêmica após a publicação, por Rawls, de sua teoria da justiça. Concordamos com eles de
que não se pode considerar a existência de uma tradição monolítica, de que o contrato social
18 | JOSUÉ MASTRODI

seria algo único. Na verdade, o contrato social possui, dentro de várias tradições, caracterís-
ticas distintas e serve a finalidades específicas (BOUCHER; KELLY, 1994).
A conceituação hobbesiana ou jellinekiana de Estado ou de Administração Pública
é necessária para descrever os poderes e os deveres do ente estatal, assim como a defi-
nição do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais é igualmente necessária para
dar sentido a tais poderes e deveres. Se o Estado pode, efetivamente, ser compreendido
como uma entidade ou um instituto, segundo um aspecto eminentemente jurídico, de certa
forma isolado de valores apreendidos a partir de outras ciências sociais que não o Direito,
consideramos que tal compreensão somente seria válida se, em tal entendimento, estivesse
clara a noção da importância dos direitos fundamentais como o verdadeiro parâmetro para
a construção teórica do Estado.
A definição precisa de tais direitos fundamentais não é e nem pode ser jurídica. Não
obstante, por se tratar de direitos, a compreensão jurídica de Estado não pode deixar de
levá-los em conta, especialmente porque o estatuto de organização das funções do Estado
é o instrumento que confere juridicidade aos direitos fundamentais. Trata-se, sem dúvida
alguma, da Constituição.
Fosse o Estado um leviatã estático obediente à paralisia dos mandamentos consti-
tucionais relativos à organização sistemática de suas funções burocráticas, a Constituição
não seria mais que um mero estatuto. Não é difícil lembrar tempos, até mesmo na história
recente do Brasil, em que a Constituição não era efetivada, um estatuto sem força normativa.
A exemplo do modelo francês, as leis ordinárias eram válidas mesmo se dispostas em sen-
tido contrário a princípios constitucionais garantidores de direitos.
Por força do desenvolvimento da Teoria dos Direitos Fundamentais, tanto a Teoria
do Direito como a Teoria do Estado passaram a ser pautadas por bases diferentes daquelas
que conferiam à Constituição um caráter estatutário: as funções do Estado passam a ter um
sentido dinâmico, que envolve constante mudança: a proteção dos direitos fundamentais
dos cidadãos.
Se antes a Administração Pública podia ser lenta por conta do dever de cuidar da coi-
sa pública de modo minucioso, a velocidade aumenta para fazer frente às demandas sociais
cujas soluções passam a ser, obrigatoriamente, dever do Estado. A noção de coisa pública
(objeto da tutela estatal, geralmente definido em lei) é ampliada para abarcar a satisfação de
interesses sociais constitucionalmente assegurados.
Como já mencionado, os direitos fundamentais estão contidos na Constituição, mas
seu conteúdo não é passível de compreensão imediata. A descoberta da efetiva extensão de
um direito fundamental decorre da interpretação, em determinado tempo e lugar, do que a
sociedade como um todo considera que efetivamente deve ser aquele direito constitucional-
mente declarado como fundamental.
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 19

Se o Estado fora concebido, pelos adeptos da teoria contratualista, a partir de um


contrato social, a concepção atual de Estado não pode se dar senão por meio da compreen-
são da Constituição material que, a nosso ver, se apresenta como uma evolução da mesma
categoria do antes estático, agora dinâmico, Pacto Social. É sobre esse tema que pretende-
mos tecer algumas considerações.

1 Teoria contratualista: estado de natureza e estado civil


A noção de Pacto Social remonta ao ano de 1651 e ao Leviatã de Thomas Hobbes
(2003), primeira obra em que a noção de Estado foi modernamente desenvolvida. Claro
que há comparações com o Estado antigo. O próprio Hobbes, em sua introdução, remete à
civitas romana (2003). Não obstante, Hobbes é efetivamente o autor que permitiu o desen-
volvimento do conceito de Estado tal qual hoje conhecemos, tendo sido o precursor de vá-
rias considerações sobre o tema, especialmente por tê-lo representado como uma entidade
compreendida isoladamente do corpo social ou mesmo da pessoa do soberano, autônomo
e organicamente estruturado: um ser artificial ou, tal qual é atualmente denominado, uma
pessoa jurídica.
A criação do Estado, segundo Hobbes, decorre da necessidade de autopreservação
dos homens, em primeiro lugar, e, em segundo, da necessidade da existência de um poder
capaz de respeitar a todos. Isso é central no Leviatã, e ocupa praticamente todo o capítulo
XIII dessa obra: os homens nasceriam iguais por natureza, e seriam desconfiados uns dos
outros pela mesma natureza. A partir de tal consideração, Hobbes remete à possibilidade
racional, mas não histórica, de um momento no passado em que os homens não viviam em
sociedade, tal a desconfiança que um teria do outro, numa situação que se convencionou
chamar de Estado de Natureza:

[...] os homens não tiram prazer algum da companhia dos outros – e, sim, até, um
enorme desprazer –, quando não existe um poder capaz de manter a todos em respei-
to, pois cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se
atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação,
naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva –o que, entre os que não
têm um poder comum capaz de submeter a todos, vai suficientemente longe para
levá-los a destruir-se uns aos outros–, por arrancar de seus contendores a atribuição
de maior valor, causando-lhes dano e, por exemplo, expandindo o dano aos demais.

Na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a


competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros visando lucro. A segunda, a segurança.


A terceira, a reputação. Os primeiros praticam a violência para se tornar senhores das
20 | JOSUÉ MASTRODI

pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos dominados. Os segundos, para defendê-


-los. Os terceiros por ninharias [...]

Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder
comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condi-
ção a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os
homens. [...]

Tudo aquilo, portanto, que é válido para um tempo de guerra em que todo homem é
inimigo de todo homem, também é válido para o tempo durante o qual os homens
vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força
e própria invenção. Em tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é
incerto. Seguramente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das merca-
dorias que podem ser importadas pelo mar. Não há construções confortáveis, nem
instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força. Não há
conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras. Não
há sociedade. E o que é pior de tudo, há um constante temor e perigo de morte violen-
ta. A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. [...]

Pensa-se obviamente que nunca existiu tal tempo, nem uma condição de guerra como
esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente bem assim, no mundo inteiro (HOB-
BES, 2003, p. 97-99).

A liberdade que, para Hobbes, se trata de um direito natural dos homens4 é o que
permite a estes pactuarem a saída do Estado de Natureza e sua passagem para o Estado
Civil (para a convivência em sociedade). Os homens racionalmente concluiriam que essa
pactuação, em que pese a perda das liberdades, se dá em prol de outros bens considerados
mais valiosos, como a paz e a possibilidade de fazer planos ao longo de uma vida segura. O
contrato social é, assim, um pacto, cuja realização se dá pela necessidade de sobrevivência.
Dessa lei fundamental que ordena a todos os homens que procurem a paz deriva esta
segunda lei: que um homem concorde, conjuntamente com os outros, e na medida em que
tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito
a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade
que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Pois enquanto cada homem detiver
seu direito de fazer tudo quanto queira, a condição de guerra será constante para todos
(HOBBES, 2003).
Do pacto decorre, segundo Hobbes, a transferência de praticamente todas as liber-
dades à pessoa ou ao corpo daqueles a quem compete o exercício da soberania do Estado.
A única liberdade mantida pelos pactuantes, que ora ingressam na vida em sociedade, seria

4
O direito natural seria “um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão” (HOBBES, 2003, p. 101).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 21

aquela relativa a seu direito de defesa, “dado que é impossível admitir que através disso vise
a algum benefício próprio” (HOBBES, 2003, p. 103).5
Hobbes vem a definir seu Estado no capítulo XVII do Leviatã, uma nova pessoa sur-
gida “por intermédio de um pacto, isto é, artificialmente” (2003, p. 130), e é nessa parte
de sua obra que determina, até como consequência lógica de seus argumentos, que todo
o poder político dos indivíduos é, pelo pacto social, transferido para o Estado, especial e
principalmente para garantir a paz duradoura e evitar, assim, que se regresse ao anterior
(anterioridade que é lógica, e não histórica) Estado de Natureza:

A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das


invasões dos estrangeiros e das injúrias dos próprios comuneiros, garantindo-lhes
assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio trabalho e graças aos
frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a força e poder
a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas
vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale dizer: designar
um homem ou assembleia de homens como representante deles próprios, conside-
rando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que os
representa praticar ou vier a realizar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança
comuns. Todos devem submeter suas vontades à vontade do representante e suas
decisões à sua decisão. Isso é mais do que consentimento ou concórdia, pois resu-
me-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada
por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada
homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e transfiro meu direito de governar a mim
mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de que
transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.’
Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.

Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes –com toda a reverência– daquele
deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.

Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe atribuído o uso
de gigantesco poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar
as vontades de todos eles, no domínio da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua
contra os inimigos estrangeiros.

É nele que consiste a essência do Estado, que pode ser assim definida: ‘Uma grande
multidão instituiu a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para
em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da
maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.’

5
Esse tema é tratado com mais detalhes no capítulo XXI, Sobre a Liberdade dos Súditos. Cf.: Hobbes (2003,
p. 163).
22 | JOSUÉ MASTRODI

Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que o possui poder abso-
luto. Todos os outros são súditos (HOBBES, 2003, p. 130 e 131).

No capítulo XVIII do Leviatã há a última das características importantes do modelo


hobbesiano de Estado: os súditos não podem alterar a forma de governo, nem alterar a or-
ganização do Estado, tampouco privar o soberano de seu poder absoluto. Segundo Hobbes,
o pacto é realizado entre os súditos, e desse pacto o soberano não participa como parte,
senão como beneficiário. Assim, salvo na hipótese de o soberano atentar contra a vida dos
súditos, a situação pactuada é irretratável.
Esse ponto – o da irreversibilidade do pacto e da impossibilidade de resgatar o poder
junto do soberano – é bem criticado por Locke (2003) em sua obra de 1690, Two Treatises
of Government.6 Locke considera evidente que a monarquia absoluta seja incompatível com
a sociedade civil,

[...] não podendo ser considerada uma forma de governo civil, uma vez que o objetivo
da sociedade civil consiste em evitar e contornar os inconvenientes do estado de
natureza, frutos inevitáveis do fato de poder cada um ser juiz e executor em causa
própria, estabelecendo-se para tal uma autoridade reconhecida para a qual todos os
membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano sofrido ou controvérsia
que possa surgir, e à qual todos os membros têm de se submeter. Onde quer que as
pessoas não disponham de semelhante autoridade a que recorrerem para arbitrar nas
disputas entre elas, estarão elas no estado de natureza; e é essa condição em que
se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio
(LOCKE, 2003, p. 71).

Embora sem expressamente se referir à obra de Hobbes, o autor simplesmente não


concorda – e a nosso ver, acertadamente – com a premissa de que o soberano, represen-
tante da sociedade no Estado, não faz parte do pacto social. Ao contrário: todo súdito que
tivesse uma contenda com o soberano encontrar-se-ia, em verdade, em situação pior que a
de Estado de Natureza:

De fato, quer nas monarquias absolutas como em outros tipos de governo, os súditos
têm o direito de apelar para a lei e para os juízes, a fim de resolver as controvérsias
e restringir a violência que venha a ser praticada contra eles. [...] Entre um súdito e
outro, concederão, haverá medidas, leis e juízes que lhes garantam uma certa paz
e segurança; mas, quanto ao soberano, este deve ser absoluto e acima de todas as
circunstâncias, uma vez que têm poder para causar dano ou malefício, e têm razão
para praticá-los. Perguntar como poderia um súdito garantir-se contra o dano por

6
O termo government, da língua inglesa, poderia ter sido traduzido, cremos que mais adequadamente, nesse
contexto como Estado em vez de Governo (Segundo Tratado Civil sobre o Estado).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 23

parte daquele que tem condições de fazê-lo constitui, na prática, facção ou rebelião;
seria como se os homens que deixam o estado de natureza e entram em sociedade
concordassem em que todos eles, menos um, ficassem submissos à lei, mantendo-
-se aquele, contudo, toda a liberdade própria do estado de natureza, aumentada pelo
poder e tornada licenciosa pela impunidade (LOCKE, 2003, p. 73).

Na verdade, isso não se dá apenas na hipótese de monarquia absoluta: qualquer re-


presentante do poder político, no exercício das funções do Estado, não pode ser considerado
acima das obrigações pactuadas.
A aceitação da premissa de que todas as pessoas são livres para aceitarem pactuar
entre si para o fim de saírem do Estado de Natureza para o Estado Civil determina, obrigato-
riamente, a aceitação de outras duas considerações: (1) todos são iguais (caso contrário não
poderiam pactuar entre si), e (2) que todo poder estatal emana, democraticamente, do povo.
Hobbes, de fato, pressupôs que o soberano, um terceiro que não é igual aos pac-
tuantes, mas superior a eles, aceitaria o encargo de governar todos aqueles que, pelo pacto
social, declarassem por vontade própria assumir a posição de súditos. Talvez tenha sido o
empirismo de Hobbes que o levou a concluir que os aldeões confeririam sua liberdade aos
senhores feudais porque a estes competia proteger suas vidas, conforme as regras tradi-
cionais do “pacto estamental”7 entre nobreza e povo. Custa-nos, porém, acreditar nisso.
Hobbes bem sabia que, em seu modelo de Estado de Natureza, não havia nobres ou povo ou,
ainda, clérigos. Não havia sequer sociedade. Acreditamos que foram interesses próprios, e
não razão empírica, que guiou o raciocínio de Hobbes para permitir que sua teoria justificasse
o absolutismo político.
De toda sorte, por conta dessa irreversibilidade do pacto social hobbesiano, ele se
apresenta, a nosso ver, não só como uma tentativa racional de justificar o absolutismo mo-
nárquico mas, mais absurdamente que isso, como uma teoria da justificação democrática
do absolutismo político. A teoria do contrato social foi, sem dúvida, mais bem desenvolvida
por Locke que na mera referência aqui presente, bem como por outros autores, como Jean-
-Jacques Rousseau e Immanuel Kant (devemos, ainda, ao pontuar sobre a Constituição

7
Sobre estamentos e o trocadilho com “pacto estamental”, cabe transcrever a seguinte passagem, datada do
início do século XI: “A ordem eclesiástica compõe apenas um só corpo, mas a sociedade inteira está dividida
em três ordens. A par do já citado corpo, a lei reconhece outras duas condições (sociais): o nobre e o servo
não se regem pela mesma lei. Os nobres são os guerreiros, os protetores das igrejas. Defendem todo o povo,
assim os grandes como os pequenos, além de se protegerem a si próprios. A outra classe é a dos servos. Esta
raça de desgraçados nada possui sem sofrimento. A todos, fornecem eles provisões e vestuário, sem os quais
os homens livres pouco valem. Assim, pois, a cidade de Deus, tida como uma, é na verdade tríplice. Uns rezam,
outros lutam e outros trabalham. As três ordens vivem juntas e não sofreriam uma separação. Os serviços de
cada uma dessa ordens tornam possíveis atividades das duas outras. E cada qual, por sua vez, presta apoio às
demais. Enquanto esta lei esteve em vigor, o mundo teve paz. Mas, agora, as leis se debilitam e toda paz desa-
parece. Mudam os costumes dos homens e muda também a divisão da sociedade” (ADÁLBERO, 1978, apud
COMPARATO, 1999, p. 59-60).
24 | JOSUÉ MASTRODI

material, nos referir também a John Rawls8, considerado o último dos contratualistas da
modernidade). Parece-nos, no entanto, que os pontos mais relevantes sobre o pacto social,
bem como as duas conclusões supraindicadas a partir da lógica interna do contrato social,
serão suficientes para os fins deste artigo.

2 Estado e sociedade
A vida em sociedade, assim, pressupõe a preservação de certas liberdades. A de-
finição dessas liberdades, ao longo dos últimos trezentos anos, tem sido objeto de estudo
de inúmeras disciplinas. No âmbito do Direito, da Filosofia do Direito e da Teoria do Estado,
tais liberdades foram entendidas, principalmente, a partir de um modelo (não por acaso, o
modelo liberal) que elevou a privacidade e o direito de não interferência do Estado na esfera
individual a um plano quase que sagrado: o espaço privado passou a ser respeitado tanto
pelos indivíduos quanto pelo Estado.
Tais conclusões decorreram, racionalmente, do discurso advindo de pensadores
cujo interesse era, justamente, impedir o avanço do poder do soberano (à época, identi-
ficado na pessoa de um monarca absolutista) sobre a vida e o patrimônio dos demais. Ao
fim e ao cabo, aqueles que detinham certa capacidade de indústria e comércio sentiam-se
prejudicados pela possibilidade de confisco, o que impedia sua capacidade de produção e
de crescimento.9
Se, no Estado antigo, seja na civitas romana ou na polis grega, a liberdade se referia
à liberdade do Estado e não a dos indivíduos que dele eram membros, no Estado moderno
ocorre verdadeira inversão de sentido: a liberdade passa a ser dos membros do Estado. O
Estado passa a contar com cada vez mais limitações a seu poder, antes absoluto, agora
cada vez mais contido. À guisa de exemplo, cabem duas transcrições da obra de Benjamin
Constant (1985), escrita no início do século XIX:

8
Segundo Grcic (2007), o próprio Rawls se considerava dentro da tradição de Locke, Rousseau e Kant, mas
preferia não se pautar em Hobbes, porquanto isso levantaria problemas (entretanto, ele nunca especificou que
problemas seriam esses). Esse comentador considera que alguns desses problemas seriam a consideração
hobbesiana de indivisibilidade da soberania, sendo impossível a tripartição de poderes porquanto deveria sem-
pre, ao final, haver um soberano a decidir qualquer conflito; e que não haveria injustiça no exercício da soberania,
já que a definição de justiça estaria no próprio pacto social (GRCIC, 2007).
9
Cabe aqui uma consideração, ao menos para nós, curiosa: o desenvolvimento e a afirmação histórica dos di-
reitos fundamentais e das restrições ao poder do soberano não se iniciaram por razões humanitárias tampouco
sobre a prática ou a teoria do direito penal, ao menos não exclusivamente: os direitos fundamentais têm sua
origem, também, no direito tributário... no taxation without representation, ou, em português, que não deve haver
tributação sem que os contribuintes consintam por meio de seus representantes. A esse respeito, confira as
cláusulas 12 e 14 da Magna Carta de 1215 (excertos desse documento encontram-se em COMPARATO, 1999,
p. 69).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 25

A independência individual é a primeira das necessidades modernas. Consequente-


mente, não se deve nunca pedir seu sacrifício para estabelecer a liberdade política.

[...]

Pois bem, Senhores, não somos nem persas, submissos a um déspota, nem egípcios,
subjugados por sacerdotes, nem gauleses, que podem ser sacrificados por druidas,
nem enfim gregos ou romanos, cuja participação na autoridade social consolava da
privada. Somos modernos que queremos desfrutar, cada qual, de nossos direitos; de-
senvolver nossas faculdades como bem entendermos, sem prejudicar a ninguém; vi-
giar o desenvolvimento dessas faculdades nas crianças que a natureza confia à nossa
afeição, tão esclarecida quanto forte, não necessitando da autoridade a não ser para
obter dela os meios gerais de instrução que pode reunir; como os viajantes aceitam
dela os longos caminhos, sem serem dirigidos na estrada que desejam seguir. [...]

A liberdade individual, repito, é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a


sua garantia e é, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para sacrificar,
como os de antigamente, a totalidade de sua liberdade individual à liberdade política é
o meio mais seguro de afastá-los da primeira, com a consequência de que, feito isso,
a segunda não tardará a lhe ser arrebatada (CONSTANT, 1985, p. 19-21).

A propósito, Hobbes, no capítulo XXI de seu Leviatã, já havia igualmente explicitado a


diferença gritante entre o conceito de liberdade na Grécia Antiga e na Inglaterra do século XV:

A liberdade na qual se encontram tantas e tão honrosas referências nas obras de


história e filosofia dos antigos gregos e romanos, bem como nos escritos e discursos
dos que deles receberam todo o seu saber em matéria de política, não é a liberdade
dos indivíduos, porém a liberdade do Estado. [...] Eram livres os atenienses e roma-
nos, quer dizer, eram Estados livres. Não que qualquer indivíduo tivesse a liberdade
de resistir a seu próprio representante. Seu representante é que tinha a liberdade de
resistir a um outro povo ou de invadi-lo. Ainda se encontra escrita em grandes letras,
nas torres da cidade de Lucca, a palavra libertas; mas ninguém pode daí deduzir que
qualquer indivíduo lá possui maior liberdade ou imunidade em relação ao serviço do
Estado do que em Constantinopla. Seja o Estado monárquico, seja popular, a liberdade
é sempre a mesma. É fácil os homens se deixarem iludir pelo significativo nome de
liberdade e, por falta de capacidade de distinguir, tomarem por herança pessoal e
direito inato seu aquilo que é apenas direito do Estado (HOBBES, 2003, p. 161-162).

Se Hobbes apresentou um modelo de formação do Estado baseado na total transfe-


rência da liberdade dos súditos ao soberano, outros autores como Locke, Kant, Rousseau,
Constant e Rawls modificaram certas premissas do modelo contratualista original. Tais mu-
danças podem ter ocorrido a partir da seguinte frase proferida por Hobbes (2003, p. 163,
26 | JOSUÉ MASTRODI

grifos nossos): “é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em
que criamos um Estado”10.
Especialmente na França pós-1789 e nos Estados Unidos pós-Independência, as
condições históricas, culturais e econômicas conferiram o substrato social necessário para
a afirmação (ou melhor, a declaração) de certos direitos subjetivos (ou de certas liberdades)
contra os quais o Estado (ou o soberano, num regime não democrático) não teria poder de
ingerência. Nesse sentido, os direitos que tais autores consideraram transferidos no momen-
to da instituição do Estado têm sido cada vez menos amplos.
Em que pesem as declarações históricas afirmarem certos direitos subjetivos, a
primeira daquelas duas decorrências lógicas da instituição do Estado por pacto social11 (que
todos são iguais) não tem sido efetivamente aplicada. Embora todos sejam iguais, e embora
o poder político emane do povo12, esse poder político não tem sido exercido em benefício
de todos.
Aliás, há um terceiro pressuposto que, a exemplo dos dois anteriores, decorre logi-
camente do sistema político, e que, também a exemplo daqueles, tem sua aplicação prática
reiteradamente ignorada: (3) os atos estatais devem ser revertidos, democraticamente, em
favor de todos.13

3 Direitos fundamentais: função social do Estado


Dada a impossibilidade prática da democracia direta, o Estado moderno só pode
tomar seus rumos por meio da democracia representativa. Eis, aqui, o grande problema das
democracias atuais: com artifícios, como a redução da noção de povo à de nação e com
a identificação da vontade da nação com a vontade de seus representantes; com o direcio-
namento dos interesses dos grupos mais bem organizados como se esses fossem os inte-
resses de toda a sociedade; com a interpretação das normas de acordo com os interesses
organizados (confundidos com os da sociedade como um todo), é criado um ambiente de
déficit de legitimidade, haja vista que as funções do Estado são indevidamente empregadas
para benefício daqueles que controlam as instituições estatais, e não para a realização de fins
do interesse dos representados.

10
A citação completa é: “Quanto à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, das coisas que, embora ordenadas
pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direi-
tos que transferimos no momento em que criamos um Estado. Em outras palavras, qual a liberdade que a nós
mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações sem exceção do homem ou assembleia de quem fazemos
nosso soberano”. Os grifos não estão no original.
11
Trata-se do primeiro pressuposto, indicado ao final item 2 deste artigo, pelo qual todos são iguais, pois é por
meio do reconhecimento da igualdade que se permite a convivência em vez da subjugação.
12
Segundo pressuposto, pelo qual todo poder estatal emana do povo.
13
Para nos concentrarmos especificamente nesse tema, deixaremos de considerar quaisquer regimes políticos
que não os democráticos para eleição dos representantes políticos e dos administradores públicos.
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 27

Não há dúvida de que é impossível, simplesmente porque é impraticável, que um


Estado seja diretamente governado via assembleia popular. O artifício da representação se
apresenta, assim, como fundamental para que o Estado possa efetivamente funcionar. No
entanto, os representantes muitas vezes deixam de exercer seus mandatos em função de
interesses sociais de seus representados para, ao revés, procederem a representação de
outros interesses, em nada relacionados com os de seus mandantes políticos.
Importante lembrar que, justamente para o fim de limitar o poder do governante e dos
representantes populares, foi desenvolvido um sistema de freios e contrapesos (no âmbito
da common law, checks and balances). Nesse sistema se opera a separação do poder polí-
tico em ramos (branches) ou, mais propriamente, funções, de modo que os administradores
ou os representantes não detenham a totalidade do poder político. Importante, igualmente,
a criação e desenvolvimento de vários outros instrumentos visando a limitação dos poderes
estatais, como a prestação de contas e a necessidade de justificação dos motivos que levam
a administração a proceder seus atos. Em relação à limitação do poder dos representantes
legislativos, as únicas restrições têm sido o próprio jogo político e, com mais ênfase a partir
da segunda metade do século XX na Europa e Estados Unidos, a partir do início do século
XXI no Brasil, o advento da jurisdição constitucional visando à preservação e à promoção
dos direitos fundamentais.
Isso sempre foi questão ajurídica, objeto de estudo da ciência política ou da ciência
social, totalmente alheia ao Direito. As categorias e os conceitos de Direito Público e de Teo-
ria do Estado não são influenciados pela dinâmica das relações políticas de representação,
tampouco pela adequação ou não destas últimas.
Tal concepção tem sofrido radical mudança desde que o Estado passou a ser com-
preendido em função dos indivíduos (e da sociedade que formam, não mais das pessoas em
função do Estado), como tem ocorrido ao menos desde o início do século XX. Por força da
influência da teoria constitucional pós-1945, a função do Estado passou a ser de proteção
aos direitos fundamentais, o que lhe conferiu uma dinâmica até então inexistente.
Com a elevação, por declaração jurisdicional, dos direitos fundamentais ao status de
direitos constitucionais, a questão da legitimidade das normas jurídicas, especialmente as
relativas à organização e ao funcionamento do Estado, passa a ser objeto de estudo do Di-
reito e também, em especial, da Teoria jurídica do Estado. Assim, o déficit de representação
é assunto que também deve ser tratado pelos juristas.
A forma que entendemos mais adequada de encaminhar esse problema se dá por
meio da instrumentalização do Estado, ou seja, pela regulação dos recursos estatais a fim de
promover a concretização dos direitos considerados mais relevantes pela sociedade em de-
terminado tempo e lugar. Como os direitos a serem protegidos e promovidos são declarados
a partir da norma constitucional, o déficit de representação acaba sendo mitigado por conta
da presença, no jogo político, da jurisdição constitucional, exercida em última instância pelo
28 | JOSUÉ MASTRODI

poder judiciário e não mais pelo poder legislativo. Desse modo, os atos dos representantes
políticos passam a ser julgados com base na relação de adequação entre tais atos e os
direitos fundamentais dos representados.

4 Direitos fundamentais como fundamento da instituição do Estado


Se antes os direitos fundamentais eram dependentes de regulamentação, hoje são
considerados autoaplicáveis e de eficácia imediata. Com a única ressalva de que os direitos
fundamentais prestacionais, de status positivus, dependem de uma prestação positiva do
Estado ou da sociedade para que seu exercício seja pleno, não como ocorre com os direitos
de defesa, de status negativus, que dependem tão somente de uma abstenção do Estado e
dos demais terceiros para que seu exercício seja efetivo.14
Segundo a matriz liberal, esses direitos de defesa não são criados pela Constituição:
ao enumerar certos valores, ela apenas jurisdiciza valores fundamentais de seu povo. Antes
da efetividade jurisdicional da Constituição, os direitos fundamentais só tinham validade no
âmbito das leis. Com a efetividade da Justiça Constitucional, agora são as leis que só valem
no âmbito dos direitos fundamentais. A Constituição tem sido reinventada pela Jurisdição
Constitucional (SAMPAIO, 2002), em processos dialéticos de transformação dos valores
sociais relevantes de uma época em fundamento material do sistema normativo a partir da
Constituição.
A partir da segunda metade do séc. XX, começou-se a abandonar o positivismo lega-
lista e a crença na onipotência do legislador estatal. Em função da desconfiança que passou
a reger a relação entre homem, lei e Estado, o legalismo acaba sendo (aos poucos) substi-
tuído pela busca da legitimidade dos valores. O pluralismo cada vez maior das sociedades
industriais contribuiu para que a lei deixasse de se apresentar como um infalível comando
linear lógico-formal, tornando-se imprecisa, posto que resultante da acomodação de inte-
resses de grupos sociais divergentes. A lei se tornou o resultado de um pacto em que cada
grupo transaciona (negocia) interesses no parlamento, pois uma lei só vem a ser aprovada
se os grupos capazes de bloquear sua votação chegam a um acordo. Sujeita a inúmeras
pressões, a lei acaba sendo mal redigida de propósito, pois a utilização de conceitos vagos
ou indeterminados na sua elaboração torna-se, no mais das vezes, o meio de conformar
interesses divergentes e permitir a sua promulgação.
Nesse esteio, entendemos possível utilizar a Teoria Contratualista para desenvolver a
Teoria do Estado e considerar que os direitos fundamentais, base da Constituição, é também
o fundamento da instituição do Estado. Para tanto, partiremos da concepção de pacto social
formulada por John Rawls, iniciada em Uma Teoria da Justiça (RAWLS, 2000b) e realinhada
em sua pragmática obra O Liberalismo Político (RAWLS, 2000a).

14
Sobre a distinção entre direitos de defesa e direitos a prestações, cf.: Mastrodi (2008).
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 29

Com a publicação dessa nova obra, Rawls desconsiderou praticamente toda a ter-
ceira parte da Teoria da Justiça (2000a), substituída em suas funções pelo novo livro. Não
só isso, Rawls relativizou a abrangência da Teoria da Justiça e deixou de considerá-la como
algo universal, e passou a tratá-la como um discurso de construção de realidade conforme
a matriz de pensamento da modernidade. Assim, sua Justiça como Equidade passa a ser
apresentada como uma das formas do liberalismo político (2000a). A Teoria da Justiça, an-
tes de caráter eminentemente moral, passa a ter uma concepção mais voltada à concepção
de uma teoria política de justiça (ressaltando que uma teoria política sempre será uma teoria
moral, mas que sem dúvida esse é um novo aspecto da justiça como equidade). Desse
modo, a teoria de Rawls passa a ser aplicada não só conforme a razão pura, mas também
– e principalmente – segundo os critérios da razão prática. Houve uma leve reformulação
dos princípios de justiça (2000a), mas que, a nosso ver, não modificou o sentido de garantir
prioridade à liberdade e de conferir-lhe a mesma concepção igualitária de justiça. Tampouco
os pressupostos dos princípios da justiça mudaram. Eles servem para organizar a estrutura
básica de sociedades democráticas bem-ordenadas, sociedades que devem ser entendidas
como um sistema equitativo de cooperação.
Rawls desenvolveu a noção de overlapping consensus (consenso sobreposto), i.e.,
a exploração racional de alternativas plausíveis visando a criar a possibilidade de consenso.
Como obrigar ao cumprimento da Constituição, se todos podem divergir numa sociedade
pluralista? Não é possível determinar a obediência apenas pelo critério da maioria; dessa
problemática surge a concepção do consenso sobreposto, que é o acordo baseado não em
doutrinas abrangentes, mas num acordo político pelo qual, a partir do mínimo aceitável pela
sociedade, descobrem-se racionalmente outras posições a partir desse mínimo aceitável.
Por meio do desdobramento lógico desse mínimo, chega-se a resultados mais abrangentes:

Para se chegar a uma razão compartilhada, a concepção de justiça deve ser, tan-
to quanto possível, independente das doutrinas filosóficas e religiosas conflitantes e
opostas que os cidadãos professam. Ao formular tal concepção, o liberalismo político
aplica o princípio da tolerância à filosofia… Um objetivo, como disse, é especificar
a esfera política e sua concepção de justiça de tal forma que as instituições possam
conquistar o apoio de um consenso sobreposto. Nesse caso, os próprios cidadãos,
no exercício de suas liberdades de pensamento e consciência, e considerando suas
doutrinas abrangentes, vêem (sic) a concepção política como derivada de –ou con-
gruente com– outros valores seus, ou pelo menos não em conflito com eles (RAWLS,
2000a, p. 52 e 53).15

A hipótese da posição original (que é, em Rawls, o próprio pacto social, a represen-


tação da passagem do Estado de Natureza para Estado Civil), antes uma hipótese exclusi-

15
Ainda sobre overlapping consensus, cf. Rawls (2000a, p. 83, 190 e ss, 212 e 215).
30 | JOSUÉ MASTRODI

vamente racional, agora se torna um artifício de representação utilizado pelas partes para
almejar um acordo não só racional, mas também razoável: “O razoável, ou a capacidade
das pessoas de ter um senso de justiça, que aqui é sua capacidade de respeitar termos
equitativos de cooperação social, é representado pelas várias restrições às quais as partes
estão sujeitas na posição original, e pelas condições impostas à sua deliberação” (RAWLS,
2000a, p. 360).
A Teoria do Contrato Social, antes a-histórica e baseada em hipóteses lógicas, se
torna, no âmbito do Liberalismo Político de Rawls, a representação racional do jogo polí-
tico. O termo representação, aqui, não deve ser confundido com o sentido de democracia
representativa, embora ambos sejam, em verdade, complementares. Seria por meio desse
artifício de representação racional que os representantes políticos travariam suas discussões
até a obtenção do consenso.
Embora racional, o consenso sobreposto não é atingido por meio de raciocínio ló-
gico-formal no qual o resultado seria sempre o mesmo. Como o próprio Rawls (2000b)
concluíra em sua Uma Teoria da Justiça, ele deixa de ser visto como verdade para se tornar
apenas uma entre tantas possibilidades, tudo dependendo da força dos argumentos e da
relação destes com a promoção aos direitos fundamentais.
De igual modo, se tais procedimentos são úteis para renovar, a cada nova discussão,
a posição original no sentido de reacomodar as forças sociais em constante correlação
dialética, são também úteis para reconhecer e declarar quais são os valores que, em cada
tempo e lugar, dão conteúdo normativo aos direitos fundamentais. A partir desse reconheci-
mento é que Estado e sociedade são organizados.

5 Constituição material
Rawls, assim, se apresenta como o último contratualista da modernidade, a nosso
ver, o único que efetivamente correlaciona o conceito de pacto social com o de Constituição.
Julgamos que acertadamente, haja vista que ambos, seja o pacto social na Teoria do Estado,
seja a Constituição na Teoria Política ou mesmo no Direito, são marcos institucionais, o início
lógico e jurídico do Estado Moderno.
Evoluindo de sua posição original para a ideia de consenso sobreposto, Rawls vai
além: a partir de sua consideração segundo a qual o consenso se renova constantemente,
de modo dinâmico, para fundamentar o atual estágio em que a sociedade se encontra, Rawls
permite a correlação de sua posição original com a constituição material, conceito segundo
o qual a consciência jurídica de um povo se altera ao longo do tempo conforme os valores
sociais captados da sociedade.
A constante análise das condições sociais é o que, a nosso ver, permite verificar se
as atividades estatais são realizadas em consonância com o que os mandantes do poder
DO CONTRATO SOCIAL À CONSTITUIÇÃO MATERIAL | 31

político esperam delas. Nesse sentido, a definição do conteúdo dos direitos fundamentais
se torna um modo racional, por artifício de representação, de restabelecer a democracia
e a igualdade havida na instituição do Estado, igualdade seja política para a instituição do
primeiro consenso, seja jurídica para satisfação de seus direitos fundamentais. Aliás, é jus-
tamente a compreensão de constituição material que permite ao Poder Judiciário, no sistema
de checks and ballances, a correção de funções dos outros dois poderes, quando estes,
democraticamente eleitos, deixam de realizar suas funções segundo os pressupostos pelos
quais seu poder deriva do corpo social e que em nome deste e para satisfação dos interesses
deste é que devem exercer tal poder político.

Conclusão
Parece-nos, assim, no âmbito do liberalismo político, que o pacto social, objeto da
teoria contratualista de formação do Estado, pode ser mais propriamente compreendido se
representado pela Constituição. Mais ainda, se representado pela constituição material, o que
permite desenvolver uma dinâmica mais adequada para conformar as funções do Estado
à prática do que realmente interessa ser realizado: promover e tutelar os direitos funda-
mentais constantemente descobertos e declarados, no âmbito da constituição material, ora
pela sociedade pluralista, ora pelos representantes políticos, ora pelo processo de jurisdição
constitucional.
Nesse interminável retorno à posição inicial, em que a cada retorno uma nova con-
clusão é obtida por conta da mudança do substrato histórico e valorativo, a Constituição e os
direitos dela decorrentes evoluem no mesmo compasso de desenvolvimento da sociedade e
do Estado democrático de Direito. Acreditamos que a correlação entre Direito e democracia
sempre estará presente, mitigando o déficit de legitimidade, se as premissas de igualdade
não forem esquecidas em cada check-list na renovação do pacto social/constituição ma-
terial, mantendo que: (1) todos são iguais (caso contrário, não poderiam pactuar entre si);
(2) todo poder estatal emana, democraticamente, do povo; e (3) os atos estatais devem ser
revertidos, democraticamente, em favor de todos.

Referências
BOUCHER, David; KELLY, Paul. The social contract and its critics: an overview. In: BOUCHER, David;
KELLY, Paul (ed.). The Social Contract From Hobbes to Rawls. Routledge: Londres e Nova York,
p. 12-34, 1994.

COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.

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2. Porto Alegre: L&PM Editores, UNICAMP/UFGRS, p. 9-25, 1985.
32 | JOSUÉ MASTRODI

GRCIC, Joseph. Hobbes and Rawls on Political Power. Ethics & Politics, v. 9, n. 2, p. 371-392, 2007.

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou Matéria, forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de
Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003.

JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Tradução de Fernando de Los Ríos. FCE: Cidade do
México, 2000.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.

LOCKE, John. Segundo Tratado Civil sobre o Governo: Ensaio Relativo à Verdadeira Origem, Extensão
e Objetivo do Governo Civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003.

MASTRODI, Josué. Direitos Sociais Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

RAWLS, John. O Liberalismo Político. 2. ed. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática,
2000a.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2000b.

SAMPAIO, José Adercio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2002.
CAPÍTULO II

DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E
PARTICIPAÇÃO: ANÁLISE DO ORÇAMENTO
PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE

ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS 1


GUILHERME BECKHÄUSER WENSING 2

Introdução
Democracia é o regime político em que a soberania é exercida pelo povo. A palavra
democracia tem origem no grego demokratía que é composta por demos  (que significa
povo) e kratos (que significa poder). Nesse sistema político, o poder é exercido pelo povo por
meio do sufrágio universal. É um regime de governo em que todas as importantes decisões
políticas estão com o povo, que elege seus representantes por meio do voto. É um regime de
governo que pode existir no sistema presidencialista, no qual o presidente é o maior repre-
sentante do povo, ou no sistema parlamentarista, em que existe o presidente eleito pelo povo
e é o primeiro ministro quem toma as principais decisões políticas.
Democracia é um regime de governo que pode existir também, no sistema republi-
cano, ou no sistema monárquico, em que há a indicação do primeiro ministro que realmente

1
Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD-Unesc). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Formada em
Ciências Econômicas pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e em Direito pela Universidade do Sul
de Santa Catarina (Unisul). Pós-graduanda em Direito do Trabalho pela Unesc. Pós-graduada em Direito Consti-
tucional pela Universidade Damásio de Jesus. Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Urubici/SC. E-mail:
bethkonder@yahoo.com.
2
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD-Unesc). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Especialista em
Direito Processual Civil pelo LFG. Especialista em Direito Público pela FURB. Especialista em Prática Jurídica
pela Universidade Regional de Blumenau (Furb). Especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade
Anhanguera (Uniderp). Tabelião Titular no Tabelionato de Notas e Protesto de Títulos da Comarca de Urubici/SC.
E-mail: guilhermewensing@yahoo.com.br.
34 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING

governa. A democracia tem princípios que protegem a liberdade humana e baseia-se no


governo da maioria, associado aos direitos individuais e das minorias. Uma das principais
funções da democracia é a proteção dos direitos humanos fundamentais, como as liberda-
des de expressão, de religião, a proteção legal, e as oportunidades de participação na vida
política, econômica e cultural da sociedade. Os cidadãos tem os direitos expressos, e os
deveres de participar no sistema político que vai proteger seus direitos e sua liberdade.
O conceito de democracia foi evoluindo com o passar do tempo. Pode-se citar que
a partir de 1688, na Inglaterra, a democracia era baseada na liberdade de discussão dentro
do parlamento. De acordo com alguns filósofos e pensadores do século XVIII, a democracia
era o direito do povo de escolher e controlar o governo de uma nação. Em alguns países,
a evolução da democracia ocorreu de forma muito rápida, como nos casos de Portugal e
da Espanha. Apesar disso, essa rápida evolução criou uma insegurança política. Em países
como Inglaterra e França, uma evolução lenta da democracia teve como consequência o
desenvolvimento de estruturas políticas estáveis. Já a democracia no Brasil sofreu vários
ataques e foi instituída ou fortalecida em diferentes ocasiões. Existiram duas forças de de-
mocratização, uma em 1945 e outra em 1985.
Nesse linha, um sistema realmente democrático deve buscar a efetiva participação
do povo em suas decisões e essa participação não deve ser exercida apenas pelo voto e a
consequente representação. A participação de uma sociedade ativa deve ser efetivada para
que os direitos sejam alcançados. Isso significa que novas formas democráticas devem ser
estimuladas.
Um dos caminhos para o alcance de direitos é fortalecer a democracia para que
assim a população possa buscar suas demandas. Contudo, quando falamos em fortalecer a
democracia não podemos pensar de forma restritiva, entendendo que o exercício da demo-
cracia pelo cidadão se limita apenas pelo voto na escolha de seus representantes. Esse é um
importante ato democrático, mas longe de ser suficiente para efetivarmos direitos.
Governantes eleitos pelo povo de forma democrática exercem seus mandatos, mas
não conseguem alcançar todos os anseios daqueles que representam, por isso, faz-se ne-
cessário que a democracia representativa ande lado a lado com a democracia participativa.
Essa forma de ação democrática busca a participação de todos no debate e nasceu a partir
da teoria crítica, com argumentação racional, publicidade, ausência de coerção e igualdade.
A sua ausência compromete a legitimidade dos resultados em sociedades com tanta desi-
gualdade e dominação.
Na democracia participativa vemos uma atitude comunicativa da população pela qual
a opinião pública influencia e se transforma em ação. Deve haver inclusão efetiva de mais
pessoas ao debate público, ampliação das questões e área da vida sujeita ao controle de-
mocrático para que possam ser analisadas não apenas ideologias dominantes, mas também
demandas de grupos minoritários.
DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO | 35

O presente artigo analisará esse novo olhar para Democracia com a diversidade de
atitudes democráticas, resultado do fenômeno chamado demodiversidade. Para tanto, num
primeiro momento será apresentado o conceito clássico de Democracia. Em seguida, pre-
tende-se estudar a democracia representativa. Por fim, buscar-se-á conceituar democracia
participativa e verificar o exemplo adotado no município de Porto Alegre.

1 Democracia
De acordo com o grau de respeito à vontade do povo nas decisões estatais, os
regimes políticos podem ser classificados como democráticos e não democráticos. Demo-
cracia, palavra de origem grega que significa governo do povo, é o regime político em que
todo poder emana da vontade popular. Na definição clássica é o governo do povo, pelo povo
e para o povo.
O regime democrático pode ser exercido de forma direta, por representantes, com-
binando ambos os critérios. Na democracia direta as decisões são tomadas pelo próprio
povo em assembleias, na antigas cidades gregas os cidadãos julgavam e tomavam decisões
políticas importantes. Em alguns cantões suíços esse sistema de democracia direta ainda
sobrevive. Na democracia representativa ou indireta as decisões são tomadas por represen-
tantes livremente escolhidos pelo povo. Na democracia semidireta combinam-se ambas as
formas de democracia, é a democracia representativa, com alguns instrumentos de partici-
pação direta do povo na formação da vontade nacional.
O regime político adotado pela Constituição brasileira de 1988 é o de uma demo-
cracia semidireta e isso pode ser notado no art. 1º, parágrafo único: “Todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição”.
A Carta Magna apresenta como formas de participação direta o plebiscito, o refe-
rendo e a iniciativa popular. Em regimes não democráticos a característica comum é a não
prevalência da vontade popular na formação do governo. Vários são os conceitos de demo-
cracia encontrados na doutrina. O presente trabalho busca o estudo de uma visão ampla de
participação popular. Vejamos alguns conceitos de renomados doutrinadores.
Charles Tilly define: “democracia como um bem em si mesmo, na medida em que
em alguma extensão ela oferece à população de determinado regime o poder de determinar
seu próprio destino” (TILLY, 2013, p. 43). Já Norberto Bobbio defende que: “a democracia se
constitui de um conjunto de regras para a formação de maiorias, entre as quais valeria a pena
destacar o peso igual de votos e a ausência de distinções econômicas, sociais, religiosas e
étnicas na constituição do eleitorado” (BOBBIO, 1986, p. 50).
Ainda na visão de Bobbio:
36 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING

A democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade, isto é, da con-


cepção para a qual — contrariamente à concepção orgânica, dominante na idade
antiga e na idade média, segundo a qual o todo precede as partes — a sociedade,
qualquer forma de sociedade, e especialmente a sociedade política, é um produto
artificial da vontade dos indivíduos (Bobbio, 1986, p. 34).

Assim, notamos dois conceitos de democracia bem distintos. Bobbio pontua um


procedimento reduzido a um processo de eleição, no qual o cidadão escolhe seu represen-
tante. Nesse caso, o controle sobre o processo de decisão política e econômica está à frente
dos eleitos. Por outro lado, a definição apontada por Tilly é mais ampla, uma vez que inclui,
além da representação, a participação do povo como forma de ação democrática.
Diante da diferença de paradigma nas duas visões do que seria uma democracia,
faremos uma análise dos conceitos de democracia representativa e de democracia partici-
pativa.

1.1 Democracia representativa


O modelo de democracia representativa significa que o povo delega o seu poder de
decisão a outras pessoas, que deverão tomar decisões por eles. Esse modelo tem como
princípios o sufrágio universal, que é o direito ao voto total e irrestrito a todos os cidadãos,
igualdade de todos perante a lei e mandatos eletivos com temporalidade definida. No Brasil,
tal período é de quatro anos para cargos do Executivo e Legislativo, exceto para senadores,
que é de oito anos.
Numa democracia representativa, o instrumento utilizado é o voto. O objetivo prin-
cipal é que os cidadãos tenham o direito de escolher quem vai ocupar determinado cargo
eletivo. A cidadania, portanto, é exercida em grande parte por meio do voto universal, quan-
do todo e qualquer cidadão tem o direito de votar, independentemente de gênero, cor, credo,
idade, escolaridade.
Esse voto vai para um representante: uma pessoa que se dispõe a levar propostas,
soluções, discussões da sociedade para deliberação na Câmara de Vereadores ou para a
Câmara dos Deputados, por exemplo. Nesse sistema político, os cidadãos elegem represen-
tantes, que deverão compor um conjunto de instituições políticas dos poderes Executivo e
Legislativo.
Eles são encarregados de gerir a coisa pública, por meio de políticas, obras e ser-
viços públicos, além de estabelecer e executar leis. Logo, cada cidadão escolherá o seu
representante, de acordo com uma afinidade de propostas, de pautas que consideram im-
portantes e com a agenda que propõem ser discutida com a sociedade e com os outros
representantes, para ser colocada em prática na cidade, no estado, no país.
DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO | 37

O fator essencial para a valorização da democracia representativa é que quantitativa-


mente ela é capaz de permitir que toda a população de um país vote, a despeito de variáveis
socioeconômicas, de gênero, credo, cor, crença. Assim, pode ser considerada uma forma
abrangente de democracia.
Além disso, facilita a tomada de decisões em torno de leis e ações relativas ao meio
público: em vez de toda a população ter de participar do processo, um grupo muito menor
fará isso por ela. Isso otimiza o tempo de discussão e a logística para deliberar sobre um
tema, o que permite uma validação mais rápida de pautas, quando comparado a um sistema
democrático direto.

[...] por democracia entende-se uma das várias formas de governo, em particular
aquelas em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mas de todos,
ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a
monarquia e oligarquia (BOBBIO, 1988, p. 52).

O sistema eleitoral pode ser majoritário ou proporcional. No Brasil, o sistema majori-


tário é utilizado para eleger chefes do executivo, também senadores, e o mesmo ocorre em
outros países que também adotam o modelo de democracia representativa. Considerando
os votos válidos que um candidato recebe, será eleito aquele que receber mais da metade
dos votos.
O processo eleitoral precisa servir para que a sociedade se livre de maus governan-
tes e escolha bons representantes. O desempenho do governo deve ser monitorado e infor-
mado aos cidadãos. Os eleitores precisam ter instrumentos institucionais para recompensar
ou repreender governos por suas ações, e as eleições sozinhas não têm se mostrado como
o melhor mecanismo. A eleição acaba sendo uma análise de todo o governo e não de ações
particulares.
Os governos tomam milhares de decisões que afetam o bem-estar individual, e os
cidadãos têm apenas um instrumento para controlar essas decisões: o voto. Parece-nos
claro que a democracia representativa possui uma limitação ao restringir a participação ao
processo eleitoral. Contudo, isso não significa que esse modelo não nos ofereça rica susten-
tação para outros argumentos. Um deles é o de complementar a democracia representativa
com aspectos da democracia participativa.
Após verificado o conceito de democracia representativa, definida a sua importância
e reconhecida a necessidade de que seja complementada com outras ações democráticas é
preciso definir a democracia participativa para que o cidadão possa agir e participar na busca
e alcance de seus direitos.
38 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING

1.2 Democracia participativa


Segundo Alain Torraine (1997), democracia é o reconhecimento dos direitos hu-
manos fundamentais, que limita o poder do Estado, da Igreja e de outras instituições, é a
consciência da cidadania, a qual está vinculada à noção de pertencimento a uma coletividade
fundada no direito, é a representatividade dos dirigentes em face da pluralidade de atores
sociais na sociedade civil. Assim, a democracia não se reduz a procedimentos formais, ao
contrário, vislumbra-se como a condição para a criação do mundo por uma diversidade de
sujeitos, com capacidade de organização e de negociação, mesmo com interesses e valores
divergentes.
Nesse sentido, reconhecemos a diversidade e, por isso, os diversos anseios de uma
sociedade plural. Para que todos alcancem seus direitos humanos é preciso que sejam ou-
vidos, precisam ativamente participar de processos deliberativos e isso será alcançado ape-
nas por meio de uma democracia puramente representativa e formal, mas sim num processo
democrático participativo.
O Brasil foi, até os anos 1980, um país com baixa propensão participativa, fenô-
meno esse ligado às formas verticais de organização da sociabilidade política, tais como a
concentração do poder na propriedade da terra e a proliferação do clientelismo no interior
do sistema político na maior parte do século XX. Apesar da nossa baixa propensão participa-
tiva, percebe-se que nas últimas décadas a democracia tem sido influenciada por vertentes
deliberativas.
Nessa linha, Jürgen Habermas (1995) discute a participação de todos no debate,
com argumentação racional, publicidade, ausência de coerção e igualdade. Diante dos limi-
tes da democracia representativa, trabalhos como de Young (2006) e de Santos e Avritzer
(2002) vão propor que o modelo seja incrementado com elementos da democracia parti-
cipativa, cujo princípio fundamental é a participação dos cidadãos nas decisões políticas
a partir de uma ampliação dos canais interativos. Na democracia participativa, o processo
eleitoral, a organização partidária e a representação permanecem, mas o pilar estruturante
é a participação dos cidadãos de maneira mais ativa nas decisões políticas. A participação,
resgata Young (2006), é muito importante também no âmbito do governo representativo por-
que, dentro desse modelo, o povo e seus representantes precisam estar sempre conectados.
Young propõe que:

Quando os representantes se afastam dos eleitores, os cidadãos podem perder a


percepção de que exercem influência sobre a política e desanimarem da participação.
A representação é um relacionamento diferenciado entre eleitores e representantes,
em que a desconexão é sempre uma possibilidade e a conexão é mantida ao longo
do tempo por meio de antecipações e retomadas em momentos de autorização e
prestação de contas. Dessa forma, um processo representativo é pior, na medida em
DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO | 39

que a separação tende ao rompimento, e melhor, na medida em que estabelece e re-


nova a conexão entre os eleitores e o representante e entre os membros do eleitorado
(YOUNG, 2006, p. 152).

Assim, em uma democracia forte, os eleitores utilizam processos para convocar os


representantes a prestar contas para além do processo eleitoral. As democracias representa-
tivas devem ser aperfeiçoadas por meio de instituições participativas complementares como
conselhos, fóruns, comissões, audiências etc.
Com essa nova influência, surgiram em nosso país ações participativas que devem
ser mencionadas. Acerca do associativismo relativo à primeira experiência democrática no
país, apontam-se: associações comunitárias na cidade do Rio de Janeiro; práticas recrea-
tivas como no caso das Sociedade de Amigos de Bairro (SABs), em São Paulo, durante os
anos 1950; e associativismo comunitário mais organizado e menos clientelista na cidade de
Porto Alegre, com a Federação das Associações Comunitárias (Fracab).
A partir dos anos 1970, começa a ocorrer no Brasil o surgimento do que se conven-
cionou chamar de uma “sociedade civil autônoma e democrática”, sendo que tal fenômeno
foi atribuído a diferentes fatores, como: crescimento exponencial das associações civis, em
especial das associações comunitárias, uma reavaliação da ideia de direitos, a defesa da
ideia da autonomia organizacional em relação ao Estado, a defesa de formas públicas de
apresentação de demandas e de negociação com o Estado.
O crescimento das formas de organização da sociedade civil no Brasil foi um dos ele-
mentos mais importantes da democratização do país. Esses movimentos sociais apontam
para a definição de liberdade de expressão proposta por Robert Alan Dahl (2005), que garan-
te e assegura a qualquer indivíduo a possibilidade de se manifestar, sem constrangimentos,
sobre os mais diversificados assuntos.
Esse crescimento foi bastante concentrado nas grandes capitais das regiões Sul e
Sudeste, expandindo-se posteriormente para outras grandes cidades. Os principais tipos
de associações que cresceram nos anos 1980 foram as comunitárias e as profissionais,
predominantemente de caráter voluntário e democrático.
Os anos 1980 implicaram uma maior presença do associativismo e das formas de
organização da sociedade civil na cena política. O auge desse movimento foi o processo
constituinte. A constituinte brasileira aceitou as chamadas emendas populares com mais de
30 mil assinaturas. No final dos anos 1980, durante o processo constituinte, uma série de
formas híbridas (com a participação tanto da sociedade civil quanto do Estado) de participa-
ção foram criadas, especialmente nas áreas da saúde, assistência social, meio ambiente e
no que se refere à crianças e adolescentes.
40 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING

A Constituição de 1988 abriu espaço, por meio da legislação específica, para prá-
ticas participativas nas áreas de políticas públicas, em particular na saúde, na assistência
social, nas políticas urbanas e no meio ambiente. O próprio processo constituinte se tornou
a origem de um conjunto de instituições participativas que foram normatizadas nos anos
1990, tais como os conselhos de política e conselhos tutelares ou as formas de participação
em nível local.
As instituições que realmente influenciaram as políticas públicas no Brasil demo-
crático com participação do povo foram os conselhos de políticas e os orçamentos parti-
cipativos. Os conselhos de política são resultado das legislações, específicas ou infracons-
titucionais, que regularizam os artigos da constituição de 1988 sobre saúde, assistência
social, temas a respeito de crianças e adolescentes e políticas urbanas. Cada uma dessas
legislações estabeleceu a participação de maneira diferente, mas a partir dos anos 1990
todas essas formas de participação ficaram conhecidas como conselhos.
Os primeiros conselhos da época republicana foram: Patrimônio histórico (1937),
Conselho Nacional de Pesquisa, cuja sigla é CNPq (1950). Já haviam conselhos nos perío-
dos colonial e imperial. Em 1981 foi criado o Conselho Nacional do Meio Ambiente (1981).
Boaventura de Souza Santos (2002) entende que podemos definir conselhos como
instituições híbridas nas quais têm participação atores do executivo e atores da sociedade
civil relacionados com a área temática na qual o conselho atua. O formato institucional dos
conselhos em todas as áreas mencionadas é definido por uma legislação local, ainda que
os parâmetros para a elaboração dessa legislação sejam dados pela legislação federal. Os
conselhos podem ter um funcionamento exitoso em algumas cidades ou no caso do papel
desempenhado por alguns conselhos nacionais, como os da saúde e assistência social.
Nesse momento, vale citar o Orçamento Participativo (OP), que é uma forma de
balancear a articulação entre representação e participação ampla da população por meio da
cessão da soberania por aqueles que a detêm enquanto resultado de um processo eleitoral.
Sua criação não é decorrência direta da Constituição de 1988. Nota-se que essa forma de
democracia com a combinação entre representação e participação aconteceu em Porto Ale-
gre. A principal experiência de OP até o momento ocorreu a partir de 1990, e foi no estado do
Rio Grande do Sul que até 2004 estavam concentrados os casos mais fortes de OP.

2 Orçamento participativo de Porto Alegre


Segundo Boaventura de Souza Santos (2002), os processos hegemônicos de glo-
balização têm provocado em todo mundo a exclusão social e a marginalização de grande
parcela da população. Esses processos estão sendo enfrentados por resistências, iniciativas
de base, inovações comunitárias e movimentos populares que procuram reagir à falta de
DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO | 41

proteção de direitos humanos àqueles excluídos socialmente. Nesse sentido nasce um es-
paço para a participação democrática. Essas iniciativas são pouco conhecidas, entretanto,
devem ser discutidas.
O orçamento participativo é um exemplo de ação democrática que se vale de uma
iniciativa urbana, visando a redistribuição dos recursos da cidade a favor dos grupos sociais
mais vulneráveis, que tem seus direitos humanos desrespeitados. O Orçamento Participativo
de Porto Alegre foi adotado em 1989.
O Brasil é uma sociedade com uma longa tradição de política autoritária. A predomi-
nância de um modelo de dominação oligárquico e patrimonialista resultou em uma formação
de Estado, um sistema político e uma cultura caraterizados pela marginalização política e so-
cial de algumas populações. Nesse sentido, a ideologia liberal, fingindo a existência de uma
democracia, fez nascer um país com vários olhares para os anseios da sociedade deixando
de lado os direitos humanos daqueles que não pertencem ao grupo hegemônico.
Essa desigualdade aumentou com a crise do Estado e problemas na economia e
com elas a população encontrou espaço para participação popular em governos municipais.
Tal participação foi possível em razão das forças políticas municipais estarem intimamente
relacionadas com a sociedade, elas vivenciam a realidade de fato.
Nesse contexto, surgem ações de participação popular no governo municipal, e a
experiência vivida em Porto Alegre foi muito bem-sucedida. É uma gestão eficaz e extrema-
mente democrática dos recursos urbanos. Foi escolhida pelas Nações Unidas como uma
das quarenta ações urbanas de todo o mundo, para ser apresentada na Conferência Mundial
sobre assentamentos humanos.
Em 1989, Porto Alegre estabeleceu uma nova modalidade de administração muni-
cipal que visava garantir a participação popular na preparação e execução do orçamento
municipal, e, portanto, na distribuição dos recursos e na definição das prioridades de inves-
timento. Porto Alegre é uma cidade com tradição democrática, uma sociedade civil forte e
organizada.
O orçamento de um município tem extrema importância no contrato político. Ao
definir os fundos públicos, mediante a fixação de impostos e outros meios, o orçamento
torna-se o mecanismo central de controle sobre o Estado. As decisões orçamentárias são
importantíssimas, entretanto, em uma sociedade comandada por uma visão patrimonialista
o orçamento não consegue expressar essa relação de contrato político.
O orçamento participativo é uma forma de administração pública que procura romper
com a tradição patrimonialista recorrendo à participação direta da população em diferentes
fases da preparação até a implementação orçamentária, com uma preocupação pela defini-
ção de prioridades para a distribuição dos recursos de investimento.
42 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING

A definição e aprovação do orçamento constitui uma prerrogativa legal da Câmara


de Vereadores, assim, a Prefeitura submete à Câmara a proposta orçamentária e esta é
livre para aprová-la, modificá-la ou rejeitá-la, entretanto, como o orçamento submetido pelo
executivo já foi analisado e aprovado pelas organizações e associações de cidadãos, ele se
torna um fato consumado, pois reflete a vontade dos cidadãos e das comunidades. No Or-
çamento Participativo todo cidadão tem o direito de participar e os recursos de investimento
são distribuídos por um método de escolha de prioridades.
Então, se o orçamento tem como possibilidade de investimento as áreas de: edu-
cação e lazer, saúde e assistência social, circulação e transporte, cultura, desenvolvimen-
to econômico e tributação e organização da cidade, desenvolvimento urbano e ambiental,
ocorrem Assembleias Regionais e Temáticas que estão abertas à participação individual de
qualquer habitante da cidade aos representantes das organizações e associações.
O objetivo dessas reuniões é reunir as exigências e as reinvindicações de cidadãos,
de movimentos populares de base e de instituições comunitárias, aqui verificam-se as exi-
gências da comunidade e se discutem prioridades. É nesse momento que o olhar se volta
para os direitos humanos violados não hegemônicos e que até então não tinham resposta.
Em 2002 a sociedade definiu três prioridades: a habitação, a educação e a pavi-
mentação. Assim, o orçamento foi realizado com a participação popular que mostrou seus
direitos violados que foram incluídos no orçamento e após a execução deste foi verificada a
efetivação de direitos até então desprotegidos.
Por fim, além de efetivar direitos humanos adormecidos o Orçamento Participativo
trouxe para a sociedade um aprendizado da importância da democracia participativa. Ele
conseguiu trazer para o cidadão a compreensão de que para termos uma democracia preci-
samos de representatividade e de participação, pois a representação pura está muito longe
do real significado do termo.

3 Demodiversidade
Por demodiversidade Boaventura de Souza Santos (2002) entende a coexistência pa-
cífica ou conflituosa de diferentes modelos e práticas democráticas. Nos anos 1960 parecia
existir apenas um modelo de democracia e a existência de um modelo único significa a perda
da demodiversidade. A Democracia tem um valor intrínseco e não pode ser considerado
mera utilidade instrumental de voto, faz-se necessária a ampliação do cânone democráti-
co. Para tanto o cidadão deverá transitar livremente entre as democracias participativa e
representativa. Para o exercício democrático real, devemos considerar que a complementa-
ridade dos dois modelos resulta em articulações sociais que fortalecem práticas locais por
se transformarem em elos de redes e movimentos mais amplos e com maior capacidade
transformadora.
DEMODIVERSIDADE, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO | 43

Esse modelo de articulações sociais pode ser visto no modelo participativo de Porto
Alegre. Naquele momento restou clara a demodiversidade, pois o cidadão votou, escolheu
seus representantes, os representantes elencaram setores que seriam abarcados por polí-
ticas públicas e a população diretamente atingida definiu suas prioridades para que estas
fossem colocadas na agenda do governo. O resultado de toda essa interação não poderia
ser diferente senão um cidadão satisfeito com o alcance de seus anseios e um representante
certo de estar trabalhando em prol de seus eleitores.
É necessário pontuarmos que essa ampliação e aprofundamento da democracia
depende do interesse de envolvimento de cada população. O exercício conjunto das demo-
cracias participativa e representativa deverá ser perseguido. A experiência do orçamento par-
ticipativo mostra possível sua coexistência e complementariedade. Essa coexistência implica
uma convivência das diferentes formas de procedimento: uma democracia representativa em
nível nacional, em que todos votam e escolhem seus representantes juntos, e concomitante-
mente acontece a democracia participativa, em nível local com ações diárias.
Por fim, restando demonstrado a importância da coexistência da participação e da
representação, essas novas democracias devem se transformar em movimentos sociais
para o alcance de direitos.

Conclusão
Apresentado o conceito de democracia representativa e participativa verifica-se que
o Orçamento Participativo de Porto Alegre resultou em ações que atingiram direitos da popu-
lação até então deixados à margem. Os processos estão cada vez mais intensos aumentando
a exclusão social de grande parcela da população. Há cada vez mais a marginalização de
pessoas que têm seus direitos violados. Essas pessoas não vislumbravam possibilidades
para serem ouvidas e com o surgimento dos movimentos sociais populares abriu-se espaço
para democracia participativa.
No município de Porto Alegre, uma sociedade organizada adotou uma estrutura e um
processo de participação comunitária baseado no princípio de que todos os cidadãos têm o
direito de participar das decisões que os atingem. Assim, surge o Orçamento Participativo,
uma estrutura em que os recursos de investimento são distribuídos de acordo com métodos
objetivos em que se verificam as demandas das comunidades locais.
Finalizado cada ano desse processo, pode-se notar o sucesso, por exemplo, de
ações efetivas para solucionar o problema da saúde no bairro de Humaitá, até então esqueci-
da. Com isso a conclusão a que se chega é de que a efetividade dos direitos está diretamen-
te relacionada com as práticas de democracia participativa e representativa, ou seja, com
o exercício da demodiversidade. Essa diversidade democrática fez com que o Orçamento
44 | ELISABETH BEATRIZ KONDER REIS CALIXTO DOS SANTOS | GUILHERME BECKHÄUSER WENSING

Participativo de Porto Alegre tenha sido capaz de definir um plano estratégico eficaz, com
critérios objetivos que conseguiram alcançar as demandas da população carente.
Por fim, constata-se que é preciso um novo olhar para democracia, razão pela qual
se invoca a importância da demodiversidade. A partir das contribuições de teóricos como
David Sánchez Rubio (2014) e Boaventura de Souza Santos (2002), nota-se a necessidade
de se criar ações sociais. É preciso fomentar uma nova racionalidade, mais atenta às reais
necessidades humanas e aberta à atuação dos movimentos populares.
Por isso, a importância de uma perspectiva democrática plural que permita o acesso
aos meios e instrumentos indispensáveis à construção das condições materiais e imateriais
necessárias à vida deve ser considerada.

Referências
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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986.

DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: EDUSP, 2005.

HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova: Revista de Cultura e Políti-
ca, São Paulo, n. 36, p. 39-53, 1995.

RUBIO, David Sánchez. Encantos e desencantos dos direitos humanos: de emancipações, libertações
e dominações. Tradução Ivone Fernandes Morcilho Lixa, Helena Henkin. Porto Alegre: Livraria do Ad-
vogado, 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia par-


ticipativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS,
Boaventura de Souza (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

TILLY, Charles. Democracia. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.

TORRAINE, Alain. Crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova: Revista de Cultura e
Política, São Paulo, n. 67, p. 139-190, 2006.
CAPÍTULO III

AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA:


GUERRA E DEMOCRACIA

FRITZ LOEWENTHAL NETO 1


ALEX DA ROSA 2
JACKSON DA SILVA LEAL 3

Introdução
Segundo Benjamin (2016), a história é um anjo de asas abertas que vê de cima as
ruínas da civilização e nada pode fazer senão observá-la, pois suas asas estão abertas e
um vento inexorável chamado progresso o impele à frente permanentemente. Esse exemplo
benjaminiano constitui o cerne da crítica a noção de progresso e história, como se o devir
histórico necessariamente possuísse um valor positivo capaz de hierarquizar as culturas e
os tempos.
Somando-se as contribuições de Benjamin, Foucault resgata Nietzsche ao propor
uma análise não linear da história, não necessariamente casuísticas ou com origens re-
montáveis a um ponto zero, mas sim, que assume o devir histórico como uma sucessão
de rupturas e continuidades, dando densidade à história e substitui a origem pela invenção
(FOUCAULT, 2015).

1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESC, membro do Grupo Andradiano de
Criminologia Crítica. E-mail: Fritz.loewenthal@gmail.com.
2
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESC, membro do Grupo Andradiano de Criminologia
Crítica e do Grupo de Estudos Avançados em Economia Política da Pena vinculado ao Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais. E-mail: alexdarosa@hotmail.com.br.
3
Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo-Sul Catarinense
(PPGD-UNESC), Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor de Crimi-
nologia (UNESC), coordenador do Grupo Criminologia Critica Latino-americana (UNESC), e co-líder do Grupo
Pensamento Jurídico Critico Latino-Americano (UNESC), membro da rede de pesquisa Grupo Brasileiro de Cri-
minologia Critica; desenvolve pesquisas e projetos tanto em nível de graduação quanto pós-graduação acerca
da questão criminal com foco na realidade latino-americana transitando por áreas como Direitos Humanos na
interface com a questão Criminal. E-mail: jacksonsilvaleal@gmail.com.
46 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL

Trabalhando sob esse prisma, a presente pesquisa versará sobre a democracia libe-
ral representativa contemporânea e sua máscara de paz sobre o rosto bélico. Não remontar
sua origem, mas entendê-la enquanto invenção que elide a guerra externa própria à consti-
tuição dos Estados numa guerra interna nomeada de democracia. Não obstante os conflitos
internos protagonizados pela atividade policial em decorrência dos conflitos com o crime, a
noção de guerra interna será aqui abordada a partir da democracia e o seu sistema repre-
sentativo enquanto método de conflito, dominação e disputa, apenas com outra roupagem.
Para isso, será feita uma análise dos resultados das eleições para câmara federal dos
deputados em três eixos: gênero, raça e classe, com fito de demonstrar que a desigualdade
não é acaso, mas sim disputa, guerra, luta dentro da sociedade entre setores e grupos so-
ciais que dão continuidade pela democracia e internalizam a guerra histórica.

1 A formação do Estado e da democracia representativa: o discurso


filosófico-jurídico da soberania
Resgata-se a formação dos Estados e da cidadania representada em sede de uma
democracia representativa que permitiu a centralização do poder jurídico político mediante o
discurso jurídico-filosófico em torno das noções de soberania. Nessa toada, acaba produ-
zindo o confisco da sociedade de seu agir político e jurídico e no monopólio das práticas e
instituições de guerra nas mãos dessa nova entidade (Estado) que vai apagando do tecido
social as relações de guerra entre homens e grupos no que se poderia chamar com Foucault
(2005) de “guerra cotidiana”.
Pretende-se apresentar os termos em que foram se dissolvendo a guerra por meio
de um discurso jurídico-filosófico da soberania, apagando os vestígios da esquecida guerra,
que se afirmava no discurso histórico-político. Tal discurso denuncia que a guerra não aca-
bou, que ela é continuada por outros meios, como a política, permitindo uma leitura do poder
e da democracia representativa em termos de guerra, de relações de força e de dominação.
A cidadania das sociedades modernas, que prevaleceu também na formação do Es-
tado moderno, consolidou a democracia representativa formal da qual há a nítida separação
entre sociedade civil, abstraída de sua capacidade política e jurídica, e sociedade política,
sendo esta a que se exerce predominantemente por meio do voto e da representação, dentro,
e pela instituição denominada Estado, restringindo e limitando a soberania da sociedade ou
do povo (VIEIRA, 2013).
Enquanto a cidadania antiga se exercia de forma plena nas deliberações e assem-
bleias, de forma direta, ela era possível somente a um número bastante restrito de integrantes
daquelas sociedades, o que apresenta a outra face histórica da cidadania: a de exclusão. Já a
cidadania moderna, num segundo momento, estende-se para uma parcela consideravelmen-
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 47

te maior, entretanto, ao mesmo tempo a limita drasticamente por intermédio da representa-


ção, dentro do marco Estatal. Em outras palavras, a modernidade progressivamente expande
a cidadania em termos quantitativos e ao mesmo tempo a restringe em termos qualitativos.
O surgimento do Estado e da cidadania representativa somente irá aparecer com
a desagregação do feudalismo que havia se iniciado com a lenta e gradual decadência da
sociedade escravista romana e a fragmentação da sociedade gentílica da Europa. Assim, a
figura do Estado enquanto entidade superior, com personalidade própria, abstrata e artifi-
cial, separada da sociedade e soberano em seu território é uma criação moderna (GROSSI,
2007). Suas bases jurídicas e políticas podem ser localizadas no período medieval tardio,
realizando-se inicialmente por meio dos Estados absolutistas (VIEIRA, 2013).
Com a desagregação do feudalismo entre os séculos XI e XV na Europa Ocidental
(e com ele o pluralismo administrativo, político e jurídico), impulsionada pelas crises na for-
mação social, nas formas de produção e de organização político-institucional, destaca-se a
transição de uma economia agrário-senhorial pra uma economia mercantil-assalariada. Com
ela, ocorreu o surgimento do capitalismo em sua fase mercantilista, e a necessidade de um
poder centralizado e burocrático que regulamentasse, controlasse e garantisse os intentos
da nascente burguesia comercial que demandava uma sistemática jurídica genérica e unitária
em contraposição a antiga estrutura descentralizada e plural, ou seja, o monismo jurídico
centrado na figura do Estado (WOLKMER, 2015).
A soberania é o elemento constitutivo por meio do qual se manifesta o poder absolu-
to da figura de um Estado unitário e centralizado em seu território, como afirma Grossi (2007,
p. 14), a soberania “é o cimento que solidifica a entidade política tipicamente estatal, forti-
ficando sua insularidade”. O discurso jurídico filosófico desde então se fará sobretudo em
torno do poder régio. Foucault (2005) dirá que o papel essencial da teoria do direito consiste
então em fixar a legitimidade do poder, o edifício jurídico ocidental vai ter como personagem
principal o rei, o problema central pelo qual se organiza então a teoria do direito é o problema
da soberania, seja para justificar e maximizar o monopólio do exercício de poder do soberano
ou ainda para fundamentar limitando.
A racionalização do poder estatal soberano encontrou fundamento na ficção con-
tratualista que em suas múltiplas concepções foi instrumentalizada de modo a servir aos
mais diversos interesses políticos. De todo modo, parte, em geral, de uma concepção se-
cularizada em que haveria um pacto social explícito ou implícito dando origem à sociedade
e ao poder político, assinalando assim o fim do estado natural e o início do estado social e
político da sociedade que erige a entidade chamada Estado para proteger os direitos. Direitos
esses que já existiam no estado de natureza, mas eram desprovidos de uma força que os
garantisse, ou para sua instituição a partir da constituição do soberano. Assim, justifica-se
o monopólio da força e a centralização do poder político-jurídico com base na segurança,
em uma paz, em uma ordem que solaparia a guerra da sociedade por meio de um suposto
consenso social (VIEIRA, 2013).
48 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL

A soberania que havia servido de fundamento para superação do pluralismo jurídico


medieval e para sedimentação da autoridade suprema dos reis em detrimento da Igreja e do
Império, contribuiu a fundação do Estado absolutista servindo aos ensejos da burguesia em
ascensão para garantir e promover o modo de produção econômico-social almejado por
meio de uma autoridade unitária e centralizada. Entretanto, quando se fez desvantajoso sua
manutenção, será oposto ao monarca o contratualismo em sua versão jusnaturalista legiti-
mando a consolidação da tomada do poder político e a constituição do Estado liberal pela
burguesia. Assinala-se então com sua efetiva operacionalização a passagem da soberania do
príncipe para a soberania da figura do Estado ou da Nação (WOLKMER, 2015).
A burguesia então, por meio das revoluções liberais, se colocará como contrária aos
privilégios da aristocracia, rompendo com aquela classe sob o discurso de um pacto entre
contratantes iguais, o que no entanto não passou de mero discurso retorico tendo em vista
que o poder político seria atribuído unicamente aos cidadãos proprietários. A superação do
absolutismo se fará então com uma dupla limitação: de um lado, inicialmente, a cidadania
seria atribuída unicamente aos burgueses proprietários que iriam compor o legislativo pro-
duzindo a matriz jurídica liberal burguesa, tida como fonte única e exclusiva de juridicidade
(monismo jurídico), expressando e desenvolvendo a estrutura jurídica e política e institucio-
nal comprometida com o projeto de defesa intransigente da propriedade privada tida como
direito natural supremo. De outro lado, a sociedade que havia sido abstraída de sua capaci-
dade jurídico-política por meio da ruptura dicotômica entre sociedade civil e política. Admite
somente a essa a capacidade política e ainda exclusivamente mediante a representação,
eliminando o exercício da cidadania em sua forma direta como era conhecida no período
democrático da polis grega ou da civitas romana.
A base de legitimação do projeto de modernidade burguês se situa na falácia de
uma sociedade unitária e consensual que conjura essa entidade denominada Estado para a
segurança e defesa de um suposto rol de valores universais. No entanto fica evidente que
sobre o discurso legitimador da constituição política do Estado, revestida de neutralidade
e imparcialidade e universalidade se encontra uma ampla desigualdade substancial assim
como o compromisso deste com a sua manutenção, e a constante aversão e desconfiança
liberal quanto à democracia plena e quanto à participação popular, sobretudo se pensadas
em seu exercício político direto.
Inobstante a distância histórica dos eventos narrados, bem como as posteriores
lutas e conquistas sociais que resultaram na extensão da cidadania em seus moldes liberais,
de forma representativa e, em grande medida, limitada ao votar e ser votado, o presente texto
busca provocar a reflexão do quão distante se situa a realidade de um período em que so-
mente homens, brancos e proprietários integravam o legislativo. Problematiza-se a manuten-
ção da limitação da participação da sociedade em sua forma direta por meio sedimentação
da democracia representativa desde a formação do Estado nacionais até os dias de hoje. Por
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 49

fim, vale refletir por meio de Foucault se não se trata do encobrimento da dominação e da
guerra por meio de uma suposta ordem e paz inscrita em um discurso jurídico legitimador
que sustenta uma democracia representativa, na qual a maioria dos cidadãos, enquanto
classe, raça e gênero, não se encontra ocupando espaço mesmo dentro dessa concepção
limitada da cidadania.

2 Eleições 2018: Gênero, raça e classe


A democracia liberal pauta-se num discurso de diminuir a distância entre a igualdade
formal e a material, de potência dos indivíduos em intervir na sociedade. Como se viu, essa
participação política se dá de maneira representativa, ou seja, a partir do voto são escolhidos
indivíduos cuja função será articular os interesses da coletividade no cenário político.
Todavia, embora o modelo democrático tenha se afirmado enquanto ideal às nações,
principalmente após os governos ditatoriais e totalitários do século XX, ainda está longe de
ser aquilo que sustenta discursivamente. O mito do consenso e da harmonia democrática se
desfaz face à realidade de dominação e opressão de alguns grupos para com outros dentro
do próprio sistema democrático.
O mito da representação em conexão com o monismo jurídico em si mesmos já
apresentam uma drástica contenção da participação popular nos assuntos que interessam à
sociedade, trata-se da manutenção daquela separação entre o público e o privado e o confis-
co da sociedade de sua capacidade jurídico-política em atuação direta, sem intermediários.
Ainda, os níveis de representatividade dos legisladores em relação à população pre-
cisam ser observados em sua desproporção, fato que revela a natureza de tal relação, a ser
estabelecida num campo de disputa de poder, de guerra, e não de consenso ou representa-
ção. Busca-se num primeiro momento uma aproximação em três pontos basilares que dão
condição ao funcionamento desigual das sociedades modernas, quais sejam: gênero, raça
e classe.

As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e or-


todoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É
preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe.
E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma
forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante
para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que
entre essas categorias existem relações que são mutuas e outras que são cruzadas.
Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras (KAMUGERE,
2011, on-line).
50 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL

A apresentação de dados relativos a última eleição que compôs a Câmara dos De-
putados servirá como parâmetro para verificar as desigualdades referentes a esses três
pontos. A relação (des)proporcional entre o número de mulheres e homens, brancos(as) e
negros(as), assim como a renda dos deputados face ao salário mínimo, busca demonstrar
essa tríplice sustentação.
Esses três elementos, longe de serem as únicas formas de dominação e opressão,
funcionam enquanto mecanismos que articulam circuitos maiores e colocam em funciona-
mento práticas e discursos, a ponto de constituírem grupos que, de maneira mais ou menos
insidiosa, investem sobre as instituições no sentido de tomá-la desse espaço privilegiado,
continuando a reproduzir desigualdades.
Como primeiro ponto, tem-se o elemento (1) raça. Considerando as contribuições
de Quijano naquilo que constrói enquanto colonialidade do poder, sobre como a imposição
violenta de uma ideia de raça instrumentalizou a formação dos Estados-nações, sobre como
a divisão racializada do trabalho – a própria criação do conceito de raça – permitiu não só
discurso, mas uma prática real de dominação de corpos (QUIJANO, 2005).
Preliminarmente, é necessário distinguir o racismo do preconceito racial e da dis-
criminação racial. Embora possuam forte relação entre si, não significam a mesma coisa,
enquanto os dois primeiros elementos situam-se no campo das ideias, ou a nível ético de
consciência, o último envolve a ação, a prática concreta daqueles (LIMA, 2016).
A ideia de raça serviu como reveste de legitimidade as relações de dominação im-
postas pela conquista colonial. A elaboração teórica construída sobre a raça implicava numa
divisão natural de superioridade/inferioridade entre os povos dominantes/dominados, o que
ensejava uma nova classificação social universal da população mundial (QUIJANO, 2005).
Assim também Foucault aponta para uma mutação no conceito de raça, de um sig-
nificado primário que representava a distinção entre povos europeus, contendo certa noção
de localidade geográfica e também a cultura de determinado povo, para um conceito que
passa a cindir o homem nele mesmo, assumindo um significado biológico, de hierarquização
(FOUCAULT, 2005). O racismo passa a ser uma classificação hierárquica entre os povos de
sustentação científica biológica. Essa divisão insere um recorte naquilo que deve viver e
morrer, não só em conflitos diretos, mas principalmente para legitimar as exclusões a partir
de um discurso vinculado a um darwinismo social eugenista.
Todavia, os avanços na área da ciência fizeram cair por terra a noção de racismo
baseado na biologia e passaram a expandir a significação do termo a mera desigualdade ou
injustiça, movimento que é inclusive perigoso ao relativizar a causa (MUNANGA, 2003). No
Brasil, com a tardia abolição (meramente formal) da escravidão, a hierarquia de raças esca-
moteou-se para um discurso de igualdade. Embora ainda não completamente desvinculada
de elementos biológicos, a alegação da desigualdade social dava-se a partir da “igualdade”
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 51

entre raças, desembocando em uma noção de meritocracia e impedindo a discussão por


um longo tempo de políticas de ação afirmativa no combate ao racismo (MUNANGA, 2003).
Assim construiu-se o mito da “democracia racial” baseado na falsa afirmação de
igualdade de distribuição de oportunidades às raças, o que implicaria em desigualdades na-
turais e exclusivamente atribuíveis a própria vontade do povo negro, visto que supostamente
todos estariam em condições de igualdade e não existiria racismo algum.
É a partir dessa mudança simbólica, marcadamente jurídica, que é promovida uma
homogeneização populacional baseada no conceito de nacionalidade e o desenvolvimento
de um estatuto civil que vem a cobrir com falso véu de igualdade a cartografia que demonstra
os espaços desiguais em que estão situados os indivíduos nas relações de poder (QUIIJANO,
2005). Observar a representatividade negra na Câmara dos Deputados visa localizar e enalte-
cer o “mito da democracia racial” no seu único sentido possível: de mito, enquanto fantasia
e ficção. A discrepância é latente quando observada a proporção entre a população negra
no Brasil e sua representação na Câmara, sendo ainda mais gravosa a não representação
dos indígenas e amarelos. Num cenário em que mais da metade da população é negra, ter
como representação 24% dos eleitos negros face à 75% de brancos é uma manifestação da
desigualdade (UOL, 201 8; ZANLORENSSI; ALMEIDA, 2018).
A respeito disso, é fundamental compreender as contribuições de Florestam Fer-
nandes e seu trabalho na desconstrução do mito da democracia racial, rebatendo ainda na
década de 1960 os apontamentos internacionais de que no Brasil não haveria racismo haja
vista a harmonia e alegria com que vivia o povo:

Não obstante, o que é uma democracia racial? A ausência de tensões abertas e confli-
tos permanentes, é, em si mesma, índice de “boa” organização das relações sociais?
Do outro lado, o que é mais importante para o “negro” e o “mestiço”: uma considera-
ção ambígua e disfarçada ou uma condição real de ser humano econômica, social e
culturalmente igual aos brancos? (FERNANDES, 1972, p. 21-22)

O mito da democracia racial seria sustentado por essa pacificidade das relações,
numa perspectiva de que a miscigenação das raças teria democratizado o acesso a opor-
tunidades na sociedade. Muito pelo contrário, Fernandes aponta que a miscigenação só
serviu para aumentar a massa dos considerados “de cor” e consequentemente a exclusão
operada sobre estes (FERNANDES, 1972, p. 28). A universalização do trabalho, a abertura ao
campo democrático, na prática, só significou a distribuição das melhores oportunidades de
emprego para os grupos melhor localizados, ou seja, uma concentração de renda e de poder
voltada às classes brancas (FERNANDES 1972, p. 29).
Além da desigualdade econômica herdada pela escravidão, o baixo número de le-
gisladores negros remete não só a aspectos financeiros promoção de campanhas e divul-
52 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL

gações, mas também ao racismo velado, não dito, cotidiano, que embora discursivamente
seja condenado na sua maneira explicita, permanece encoberto, dissimulado, a ponto de
construir o paradoxo “do preconceito de ter preconceito”, ou seja, da impossibilidade de
assumir a existência de um racismo (FERNANDES, 1972, p. 23).
Outro elemento que fundamenta a desigualdade democrática e que também enfrenta
uma discriminação real face a uma igualdade discursiva é a (2) questão de gênero e a re-
presentação das mulheres no congresso. Primeiramente, sobre o conceito:

Minha definição de gênero tem duas partes e diversas subconjuntos, que estão in-
terrelacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo da definição
repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento
constitutivo de relaçoes sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e
(2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.

As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudan-


ças nas representações do poder, mas a mudança não é unidirecional (MARQUES,
2019, p. 6 apud SCOTT, 1995, p. 86).

Consequência dessa distribuição diferenciada de posições de poder na sociedade a


partir do gênero é a divisão marcada entre os espaços públicos e privados, os primeiros per-
tencentes ao homem e os segundos à mulher. Contudo, mesmo dentro do espaço privado, a
posição da mulher estava relacionada a uma subordinação do homem, gestor, que espelharia
a sua vida pública, o se governo, na maneira com que governava a sua casa. Não obstante,
uma construção discursiva foi lentamente vinculando uma ideia estética, de ornamentação,
a uma noção de falsidade, assim como a própria ideia de cuidado, como características in-
trínsecas da mulher. Em síntese, uma série de elementos foram pejorativizados, negativados
e ligados à noção de feminilidade (FOUCAULT, 2014).
Esse divisão, quase que contratual, é o que Carole Pateman (1993) designa como
“contrato sexual”, imbricado ao contrato social, vinculado ambos aspectos e marcando em
duas dimensões os espaços possíveis da mulher: vida privada e posição de passividade
frente ao patriarcado. A participação das mulheres na vida política como uma luta, sobretudo
contra o patriarcado, está longe de constituir uma relação pacífica, devendo ser destacado
o aspecto da luta e dos esforços travados pelos movimentos feministas não só a partir do
século XX, mas durante toda história das mulheres (KAMUGERE, 2011).
Os estudos de Aline Fernandes Marques (2019) abordam a representação das mu-
lheres na legislatura 2014-2018 e aponta o índice de 10,53% de presença. O baixo nú-
mero aponta a pressão do patriarcado sobre o campo social e político, principalmente se
observados os esforços para manutenção dessa desproporção. Logo, mesmo com a Lei
n. 12.034/2009 – que estabelece uma cota mínima obrigatória de candidaturas de mulheres
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 53

nos partidos –, pouco progresso ocorreu, considerando toda uma tática dos partidos de
candidaturas fantasmas à boicote financeiro nas campanhas femininas (MARQUES, 2019).
O resultado das eleições de 2018 apontam quase três vezes menos representantes
mulheres na Câmara em comparação com a população. No Brasil, mulheres consistem em
51% da população, na Câmara dos Deputados representam 15% dos assentos. Há de se
apontar um significativo crescimento frente à última eleição, embora ainda extremamente
desigual e desproporcional: em torno de 5% mais mulheres foram eleitas e empossadas ao
cargo de Deputadas Federais (UOL, 2018; ZANLORENSSI; ALMEIDA, 2018).
Outro dado igualmente nefasto é o de que entre os partidos que lançaram candi-
daturas, nenhum dos trinta e seis teve mais de 40% de candidaturas femininas, situam-se
majoritariamente entre 30% e 35% (ZANLORENSSI; ALMEIDA, 2018).
Completando o tripé e entendendo a incidência de um elemento sobre o outro, con-
forme ensina Angela Davis (2016), o aspecto (3) classe será abordado a partir de um com-
parativo entre a renda média dos brasileiros, suas intersecções, e o patrimônio declarado
pelos legisladores da Câmara dos Deputados.
Segundo última pesquisa do IBGE em 2017, transcrita pela Agência Lupa (2017), a
renda média do brasileiro foi de R$ 2.112,00, diminuindo R$12 em relação ao ano anterior.
Não obstante, quando analisados a fundo, os dados apresentam grande variação como uma
diferença média de R$800,00 em relação às regiões Norte e Nordeste em comparação às
demais. Mais desproporcional ainda é a diferença salarial entre negros e brancos, cenário
em que negros ganham em média R$ 1.244,00 a menos do que os brancos, enquanto estes
ganham em média 29,2% a mais do que a média da população brasileira. Em desfavor às
mulheres a diferença é de em média R$542,00 em relação aos homens, ou seja, costumam
receber o equivalente à 77,5% do salário dos homens, comportando também variações por
região até 73% no Norte e Nordeste (LUPA, 2017).
Visualiza-se claramente a intersecção entre os elementos gênero, raça e classe, na
medida em que as opressões sistemáticas estruturam-se não só nos aparelhos estatais,
como também se comunicam com esses espaços e infiltram-se nas demais instituições.
Não só em espaços informais, elas vêm de maneira ascendente construindo desigualdades
e posicionando de maneira diferente nas malhas do poder os indivíduos segundo suas ca-
racterísticas.
Em contrapartida os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) referentes à última
eleição apontam que 47% dos deputados eleitos declararam patrimônio superior a um milhão
de reais. Hoje com 241 milionários, a Câmara vem num crescente – ligeiramente aplacada
em 2018 – desde 2002 com 116 milionários, em 2006 com 165, em 2010 contava-se 194
milionários e em 2014, 248 (REIS; OLIVEIRA, 2018).
54 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL

É evidente a discrepância da população brasileira em relação ao que se encontra na


Câmara de Deputados. Quando observados sob o prisma que comporta o gênero, raça e
classe, a incompatibilidade revela, além das desigualdades e violências estruturais, um limite
ao próprio sistema democrático representativo.

3 Guerra é Paz
Já nas primeiras páginas da obra 1984, de George Orwell (2016) encontra-se o
slogan do governo: “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”. Esse livro,
escrito em 1949, narra um conflito entre três grandes nações, conflito esse que remonta a
tempos imemoráveis e no qual jamais houve qualquer tipo de vencedor, embora recursos e
indivíduos sejam continuamente direcionados a tal impasse. A partir disso o autor realiza
uma reflexão que vai desembocar na primeira afirmação do slogan do governo, sobre a
utilidade da guerra.

A guerra, portanto, se julgada pelos parâmetros das guerras anteriores, não passa
de impostura. É como as lutas entre certos animais ruminantes cujos chifres estão
implantados num ângulo que impossibilita que um fira o outro. Ser irreal, porém, não
significa que ela não tenha significado. A guerra devora o excedente de bens e contri-
bui para preservar a atmosfera mental que convém a uma sociedade hierárquica. Hoje
a guerra é apenas, como veremos, um assunto propriamente interno. No passado,
os grupos dominantes de todos os países, mesmo reconhecendo seus interesses
comuns e com isso limitando a força destruidora da guerra de fato lutavam uns contra
os outros, e o vencedor sempre saqueava o vencido. Hoje eles não lutam entre si.
Absolutamente. A guerra se trava entre cada grupo dominante e seus próprios
súditos, o objetivo dela não é obter ou evitar conquistas de território, mas manter
inata a estrutura social. A própria palavra “guerra”, portanto, tornou-se ambígua.
[...] Uma paz que fosse de fato permanente seria idêntica a uma guerra permanente.
Esse – embora a imensa maioria dos membros do partido só compreenda de forma
superficial - é o significado profundo do lema do partido Guerra é Paz (ORWELL,
2016, p. 235-236, grifo nosso).

Esse exemplo ilustra com precisão as contribuições de Foucault (2005) tratando de


um certo paradoxo histórico quando investiga a tese de que a política seria a guerra continua-
da por outros meios em seu curso intitulado Em Defesa da Sociedade – 1975-76.
Seguindo Foucault (2005), grosso modo, com o desenvolvimento dos Estados ao
longo da Idade Média, as práticas e instituições de guerra passaram por uma evolução e
uma concentração nas mãos do poder central. Poder-se-ia falar em uma estatização da
guerra por meio da qual o monopólio dos instrumentos e da legitimidade do conflito vai se
fixando no Estado em sua atribuição profissional e técnica de um aparelho militar controlado;
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 55

por outro lado, vê-se o apagamento no corpo social das eternas relações guerreiras que
perpassavam a sociedade medieval. Assim, as práticas e instituições de guerra se mantêm
somente nas fronteiras, nos limites exteriores dos Estados em seus enfrentamentos com os
demais Estados.
O paradoxo aludido surge no mesmo período, ou logo depois desse monopólio es-
tatal da guerra, em que emerge um novo discurso, o histórico-político sobre a sociedade,
datado do século XVI. Nele se vê a guerra como fundamento das relações sociais e das
instituições de poder. Ele é novo porque se contrapõe à milenar estrutura do discurso fi-
losófico-jurídico que regeu por muito tempo a própria constituição ritualizada da história,
funcionalizada em torno da legitimidade e do reforço político da autoridade, sustentando em
geral que o poder político começa quando cessa a guerra, que as instituições, o direito e a
ordem são a pacificação que elidem a guerra.
No entanto, para o novo discurso:

[...] A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no
interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é
que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens,
faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz.
Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a
sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca
cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente
adversários de alguém (FOUCAULT, 2005, p. 59).

Não há espaço nesse discurso para a posição supostamente neutra, universal e


totalizadora do jurista ou do filosofo na posição tradicional de quem se coloca acima dos in-
teresses, no lugar da verdade. Nesse discurso histórico-político não se pode e nem se busca
a posição referida. A verdade que procura decifrar a guerra sob a paz é sempre a partir da
perspectiva da posição de combate que o sujeito reclama. É justamente o pertencimento a
um dos lados fraturados pelo discurso que se permite o vislumbre e a denúncia das ilusões
mascaradas pelos adversários que tentam convencer todos de que o Estado, a lei, o direito,
as instituições, representam ordem, paz, democracia e consenso (FOUCAULT, 2005).
Foucault então vai se referir ao novo discurso como uma contra-história. Neste não
haverá identificação do povo com o seu monarca, entre a nação e o seu soberano, a sobe-
rania não vai realizar a unidade que constitui o discurso tradicional, aqui se verá não a união,
mas a subjugação, é a história dos vencidos que se encontrava na sombra do confisco pro-
duzido pelo postulado de que a história dos fortes carrega a história dos fracos, é a quebra
da unidade em torno da soberania que rompe com a construção narrativa da continuidade
da glória (FOUCAULT, 2005).
56 | FRITZ LOEWENTHAL NETO | ALEX DA ROSA | JACKSON DA SILVA LEAL

O papel desse discurso histórico-político será então o de desencobrir a dominação:


de mostrar que as leis enganam, que os reis mentem. É a formação de um instrumento de
luta, um saber que se opõe ao poder constituído que é essa história sempre parcial e rei-
vindicatória. Contesta, portanto, o papel que a teoria do Direito desde a Idade Média tem se
centrado em torno da soberania, expulsando a dominação e a guerra, visto que:

[...] o discurso e a técnica do direito tiveram essencialmente como função dissolver,


no interior do poder, o fato da dominação, para fazer que aparecessem no lugar dessa
dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos
legítimos de soberania, de outro, a obrigação legal de obediência (FOUCAULT, 2005,
p. 31).

Seria possível objetar que na verdade se tratariam de relações de força e não de guer-
ra, entretanto, as relações de força podem passar em seu caso extremo pelo ponto de tensão
máxima, pelo momento da nudez das relações de força. De um lado, é possível encontrar
no fundo da paz e da ordem supostamente igualitárias da democracia representativa liberal
hegemônica que solapa as participações populares diretas, bem como não representa os
grupos que a compõe. De outro lado, é possível vislumbrar a guerra em sua nudez também
no local em que pode aparecer de forma mais exacerbada: diante do poder punitivo.
Nesse que foi o instrumento fundamental para a centralização que confiscou o exer-
cício dos poderes locais que atravessavam o modelo feudal, a pratica punitiva e o confisco
do conflito das partes foi um dos aparelhos mais importantes para substituição dos exer-
cícios de justiça e poderes locais (ANITUA, 2008). A interiorização da guerra encoberta
pelo discurso jurídico legitimador talvez se faça mais clara nesse aspecto, em que se vê
claramente a sua continuidade pelo exercício da repressão, vigilância, encarceramento e
eliminação propriamente dita de grupos histórico e politicamente subjulgados e condenados
a uma posição de subalternidade social.
Nesse sentido é sintomático que no século XX, conforme estimativa mediana en-
tre os dados de Wayne Morrison e Rudolph J. Rummel referida por Zaffaroni (2013), os
Estados produzam mais cadáveres por meio do poder punitivo e seus massacres do que
por intermédio de guerras (em termos oficiais e declarados somados). No caso brasileiro,
o Estado é o que mais mata no mundo, por intermédio das forças policiais, contando com
os instrumentos jurídicos que autorizam tais execuções sob o véu da legitima defesa e da
resistência (autos de resistência). Entretanto, Orlando Zaccone D’elia Filho (2015), em pes-
quisa doutoral, investiga e expõe que o risco de vida do agente ou a resistência propriamente
dita não são os elementos fundamentais para o encerramento da investigação; o elemento
central tem sido a identificação enquanto traficante, o que se dá eminentemente mediante o
estereótipo constituído pela juventude negra e pobre das periferias e bairros marginalizados.
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 57

É pela produção política interna dos Estados que, por exemplo, se operará a interio-
rização da guerra, a transposição do conflito externo para a criação de um inimigo social por
meio da constituição de um bode expiatório que se alimenta das características dos grupos
econômico-socialmente marginalizados (ZAFFARONI, 2013).
A criação de um inimigo social interno, como o terrorista ou o traficante, é chave que
permite ver que a paz só se sustenta pela guerra, e que revela um conflito de grupos sobre
outros, que perpassa todas as camadas da sociedade. Mesmo em seu aspecto mais visível,
qual seja, a morte, a guerra é reconstituída em seu nível político.
O poder político então não começa quando cessa a guerra no seu sentido real de luta
armada, de sangue e das batalhas. Por certo, a guerra constitui o nascimento do Estado,
do Direito, das leis, da estrutura jurídico-política do poder, mas esses não significam o en-
cerramento definitivo da guerra, ela constituiu ainda o motor das instituições e das relações
sociais, ela permanece no interior dessa “paz civil”, a guerra ainda reinsere nas instituições
e nas desigualdades sociais e econômicas o desequilíbrio de forças.
Se por um lado as posições de privilégio são ocupadas por um grupo que secular-
mente tem sido composto pelo homem branco proprietário-burguês, se beneficiando dos
bens positivos (patrimônio, posições de comando e de poder político jurídico), por outro,
a distribuição dos bens negativos também é seletiva e dirigida aos grupos constantemente
subjulgados, (criminalização, estereotipia, repressão e eliminação). Ambos podem ser vistos
como sintoma de uma guerra contínua e permanente que não cessa de produzir efeitos nas
instituições jurídico-políticas.
Por um lado, a repressão, segregação, eliminação seletiva dos grupos historicamen-
te subjugados; de outro, uma democracia representativa liberal em ligação com um monismo
jurídico que restringe e confisca a participação direta da sociedade na produção normativa
reguladora, impondo um sistema político no qual, além da representação que em si mesma é
a continuidade da dominação de um grupo social, apresenta como sintoma das relações de
dominação uma severa desproporção entre os grupos representantes e os grupos represen-
tados como se buscou demonstrar.
Nesse sentido a análise em termos de guerra instiga o desvelamento das domina-
ções que se encontram encobertas sobre o discurso de legitimação permitido pelo direito e
pelas instituições que se arrogam na posição de neutralidade e imparcialidade, universalida-
de, consenso, mas que em sua operacionalidade não conseguem esconder o posicionamen-
to político, sobretudo em momentos de crise e de nudez da guerra. Ainda, se não há posição
imparcial ou neutra, incentiva-se então o posicionamento nessa guerra permanente.
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Conclusão
Procurou-se analisar a democracia representativa contemporânea como sintoma de
uma permanente e secular guerra entre grupos sociais. A guerra como matriz de análise do
Estado, da lei, das instituições e, de maneira geral, das relações sociais permite o desve-
lamento da constituição de discursos, saberes, e dinâmicas que até a contemporaneidade
mantém as relações de guerra encobertas sob um discurso filosófico-jurídico que serviu e
serve aos interesses burgueses.
A reconstituição da formação do Estado e a centralização jurídico-política em torno
deste por meio do monismo jurídico, bem como a separação entre sociedade civil e política
com a limitação desta nos moldes determinados pela democracia liberal representativa apre-
sentam uma correspondente funcionalidade para a constituição e sedimentação da ordem
burguesa. Sendo sempre uma preocupação da classe e seus intelectuais liberais a restrição
da democracia e da cidadania com os perigos que representa o poder político nas mãos das
classes populares para a manutenção das relações socioeconômicas de desigualdade que
beneficiam os primeiros.
Buscou-se demonstrar que a cidadania antiga das sociedades grega e romana, em
seus períodos republicano-democrático, se exercia de modo direto, no entanto apenas um
delimitado grupo tinha acesso a tal exercício, a modernidade burguesa na constituição do
Estado liberal expande-a em termos quantitativos (em sua maioria por pressões populares),
mas reduz drasticamente o seu exercício que fica de modo geral limitado à representação e
assim ao voto periódico.
O resgate de um tempo em que somente os homens brancos proprietários tinham
assento nos cargos legislativos em comparação com a composição recente da câmara fe-
deral demonstra que não se está muito longe da tal realidade, o que foi abordado então como
sintoma de uma guerra entre grupos sociais. Nessa disputa os subjulgados não encontram
espaço nem mesmo dentro do marco representativo em comparação com a população geral
de mulheres, negros e proletários ou de classe baixa em termos econômicos.
Por fim a projeção dos elementos discursivos de uma abordagem resgatada por Fou-
cault permite lançar luz sobre a dominação e a guerra encoberta sobre os discursos jurídicos
legitimadores que tem mantido nas sombras o conflito silencioso que se mantém sob um su-
posto cenário de ordem, paz e consenso, submetendo os grupos historicamente dominados
em uma posição subalterna. Com isso, instiga-se o resgate da visualização dessa guerra e
o afastamento dos discursos e saberes que se prestam à manutenção da dominação sob o
véu da imparcialidade e da universalidade, impulsionando as insurgências.
AS MATRIZES BÉLICAS DA POLÍTICA | 59

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CAPÍTULO IV

CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL: UMA ANÁLISE


SOBRE A MIGRAÇÃO VENEZUELANA E O
FEDERALISMO BRASILEIRO

HUGO DE PELLEGRIN COAN 1


JOHANA CABRAL 2

Introdução
A crise humanitária que atinge a Venezuela já fez aproximadamente 4 milhões de
pessoas a se deslocarem forçadamente do território venezuelano em busca de uma vida
digna, ou aqueles que migraram diante da possibilidade de amparar e assistir aos familiares
e amigos que não puderam deixar a Venezuela e que, portanto, permanecem expostos a uma
situação de grave crise política e econômica do país. Tal crise se reflete na dificuldade para
aquisição de alimentos, assistência médica adequada, falta de medicamentos para trata-
mento, fome, ameaças, violências, dentre outras questões violadoras dos direitos humanos
(UNHCR, 2019b; SARTA, 2019).
Os migrantes e refugiados venezuelanos têm procurado amparo ao redor do mundo,
principalmente nos países latino-americanos e caribenhos, especialmente nos da América

1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/UNESC). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/UNESC). Possui in-
teresse nas áreas de Direito Constitucional, colisão de princípios, crise institucional e neoconstitucionalismo.
Assessor em gabinete da 1ª Vara Cível de Criciúma, no Poder Judiciário de Santa Catarina. E-mail: hugocoan@
hotmail.com.
2
Doutoranda no Programa da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com
bolsa Prosuc Capes Modalidade I. Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universi-
dade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/UNESC). Especialista em Direito Civil e em Direito Processual Civil pela
Universidade Anhanguera – UNIDERP. Especialista em Direito da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas
pela UNESC. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do
Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado
e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: jcabral@mx2.unisc.br.
62 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL

do Sul, como Colômbia, Peru, Chile, Equador, Argentina e Brasil (UNHCR, 2019b; EGAS,
2018). “Todos os dias, cerca de 5 mil pessoas deixam a Venezuela – o que configura o
maior movimento populacional da história recente da América Latina” (EGAS, 2018, p. 32).
No Brasil, o ingresso se dá pelos estados da região Norte, notadamente pelas cidades de
Pacaraima e Boa Vista (Roraima), as quais, em razão da proximidade fronteiriça, tornam-se
local de destino ou passagem para milhares de migrantes venezuelanos.
A diáspora venezuelana em direção ao Brasil impactou fortemente as cidades do
norte do país, as quais, no afã de conter o fluxo migratório na região, buscaram, na justiça,
uma tentativa de bloqueio das fronteiras do Brasil com a Venezuela, bem como de obtenção
de recursos junto à União. A Ação Civil Originária (ACO 3121/RR - STF), ajuizada pelo go-
verno de Roraima em 13 de abril de 2018, é reflexo do impacto desses deslocamentos na
sociedade brasileira (BRASIL, 2018e).
O presente artigo pretende, portanto, analisar a atuação do governo brasileiro na
gestão do fluxo migratório venezuelano, abarcando especialmente os movimentos do Estado
brasileiro relativos ao compartilhamento de responsabilidades, tanto a nível internacional
(com os demais Estados) quanto interno (entre os entes da federação). Objetiva, também,
aprofundar a temática sob o viés do federalismo brasileiro, tentando enxergar a gestão da
migração sob a ótica local, do equilíbrio de forças entre a União e os estados, materializada
com a Ação Civil Originária (ACO 3.121/RR-STF).
Por fim, abordará a intervenção federal no Estado de Roraima, decretada em dezem-
bro de 2018, sob justificativa de pôr termo a um grave comprometimento da ordem pública.
Trata-se de uma reflexão sobre a crise venezuelana, a proteção da pessoa humana e os
conceitos de soberania, federalismo e intervenção federal.

1 Delineamentos sobre a situação político-econômica da Venezuela


A República Bolivariana da Venezuela tem enfrentado a maior crise de sua história,
o que tem impactado significativamente a conjuntura dos países latino-americanos e caribe-
nhos, os quais vêm recebendo diariamente migrantes e refugiados venezuelanos. Referida
crise não é apenas política ou econômica, pois já ganha o alcance de verdadeira crise hu-
manitária, sem precedentes (MILESI; COURY; ROVERY, 2018), uma vez que a Venezuela é
reconhecida historicamente como um país que recebe migrantes (SILVA; ABRAHÃO, 2018).
De acordo com o relatório Global Trends: forced displacement in 2018, emitido em
2019 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR, a migração
venezuelana pode ser considerada o maior êxodo na história recente da região e uma das
maiores crises de deslocamento no mundo. O Global Trends: forced displacement in 2019,
por sua vez, noticiou que 4,5 milhões de venezuelanos foram deslocados do seu local de
origem, sendo que 3,6 milhões deles enfrentam riscos de proteção (UNHCR, 2019a; UNHCR,
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 63

2020). A situação do país vizinho reclama, portanto, um olhar apurado para os deslocamen-
tos forçados da atualidade e para as causas estruturais desses deslocamentos, principal-
mente porque crises políticas e econômicas têm sido a tônica não só na Venezuela, como
também em outras nações do mundo, reveladoras, na verdade, de uma crise mais profunda,
que é a crise do capital.
Antes de analisar o contexto da migração venezuelana para o Brasil, importa demar-
car os aspectos gerais da situação da Venezuela, especialmente em termos políticos e eco-
nômicos. Isso porque as questões econômicas intensificaram os desentendimentos políticos
no país e, de igual modo, as questões políticas afetam o campo econômico.
A Venezuela encontra-se imersa em um acalorado conflito político. O presidente, Ni-
colás Maduro, eleito em 2013 e mantenedor do projeto político do presidente anterior, Hugo
Chávez (o qual falecera naquele ano, vítima de câncer), assume o governo em uma situação
econômica já desfavorável. Com a crescente piora da economia, Maduro passou a enfrentar
uma forte oposição, liderada por Juan Guaidó.
A dissensão política na Venezuela não é situação exclusiva do governo de Maduro.
Os atritos remontam à década de 1990, quando o presidente Carlos Andrés Perez, no seu se-
gundo governo, foi duramente criticado por militares (dentre eles, Hugo Chávez) em razão da
adoção de um plano de austeridade fiscal para a Venezuela, bem como por uma acusação de
corrupção. Perez sofreu impeachment em 1993 e, nesse tempo, Hugo Chávez estabelecia-se
no cenário político até chegar à presidência do país no ano de 1998, com uma proposta de
redistribuição de renda e ampliação dos direitos da população. Contudo, Chávez também
sofrera um golpe de Estado (em 2002), retomando o poder dois dias depois, fato que marca
o início da dissensão entre chavistas e opositores.
Essa dissensão se intensifica nos últimos anos, colocando em cheque o governo do
atual presidente Nicolás Maduro. A evidência maior da instabilidade política de Maduro está
na propositura, por Juan Guaidó, seu opositor, da antecipação da eleição presidencial no
país, claramente resistida pelo atual presidente (GOODMAN, 2019b).
Economicamente, a Venezuela dispõe das maiores reservas petrolíferas do mun-
do, cabendo destacar que, de acordo com o Banco Mundial, quando o ex-presidente Hugo
Chávez ingressou no poder, em 1998, o barril do petróleo custava US$ 13, valor este que
aumentou em 2008 (custando US$ 96,00), até chegar nos US$ 104,00, em 2014, o que
trouxe, para o país, a melhoria nos índices relativos à saúde e educação (FIGUEIRA, 2017;
SILVA, 2018).
No entanto, Silva (2018) alerta que: a vantagem da Venezuela é, ao mesmo tempo,
sua limitação, pois implica um perigoso desestímulo na estruturação de outras iniciativas
econômicas, fazendo com que a estabilidade econômica do país esteja atrelada aos preços
das commodities. A autora aduz, por exemplo, que a Venezuela produz apenas 60% dos
alimentos que consome. Ou seja, 40% da necessidade alimentar fica a cargo da importação
(SILVA, 2018).
64 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL

A reversão econômica foi sentida na Venezuela a partir de 2014, quando o preço


do barril despencou até chegar ao valor de US$ 32,00, em fevereiro de 2016. Descontado
o custo do barril (que em janeiro de 2016 era de US$ 18,00), verifica-se a privação por que
passou e passa a economia venezuelana. Referida queda atinge não só o Produto Interno
Bruto (PIB) do país, como também as reservas internacionais, o poder de aquisição, a dívida
externa, a inflação, a capacidade de suprimento interno, a empregabilidade, dentre outras
questões que afetam o dia a dia da população, gerando insatisfação e polarização política
(FIGUEIRA, 2017).
O relatório BP Statistical Review of World Energy 2019 (BP, 2019), assevera que o
ano de 2018 foi uma montanha-russa para os mercados de petróleo, com os preços osci-
lando entre aumento (chegando a US$ 85 por barril em outubro de 2018) e queda no último
trimestre do ano referido (US$ 50 por barril). O documento aponta o aumento da produção
dos Estados Unidos e registra acentuada queda na produção venezuelana (-580,000 barris/
dia). Embora o preço do barril de petróleo venha apresentando melhoras (no dia 05/07/2019,
pela bolsa britânica Brent, fechado em US$ 64,47), a produção na Venezuela ainda está
abaixo do necessário. De maneira geral, “[o]s insucessos da economia venezuelana são
motivo de perplexidade quando se considera que as rendas petrolíferas, mesmo oscilantes,
são potencialmente benéficas” (FIGUEIRA, 2017, p. 16-17). Tal perplexidade, contudo, é
amenizada quando são consideradas as sanções impostas pelos Estados Unidos à indústria
petrolífera da Venezuela, com a finalidade de forçar a renúncia do presidente Nicolás Maduro
(GOODMAN, 2019a).
A situação econômica na Venezuela encontra-se, portanto, em um grau preocupante.
O governo venezuelano (especialmente o seu Banco Central) não tem divulgado muitos da-
dos sobre a condição econômica do país. Em 2016, houve uma publicação revelando que a
taxa de inflação em 2015 fora de 180% (cento e oitenta por cento). Passados três anos sem
qualquer divulgação do colapso econômico, em maio de 2019 sobreveio nova publicação:
em 2018, a taxa de inflação fechara em 130.060% (cento e trinta mil e sessenta por cento) –
a maior registrada em toda a história recente da Venezuela. Contudo, a divulgação oficial se
distancia da afirmada pela Comissão de Finanças da Assembleia Nacional, que estimou uma
taxa de cerca de 1.700.000% (um milhão e setecentos mil por cento), a qual se aproxima
da estimativa feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), também para o ano de 2018, o
qual apresentara uma estimativa de 929.789% (novecentos e vinte e nove mil, setecentos e
oitenta e nove por cento) de aumento inflacionário (VALERY, 2019).
Fato é que a população venezuelana tem sentido diariamente o aumento da inflação,
a deterioração da sua moeda e qualidade de vida, em meio à efervescência política. Eles
“vêm experimentando uma generalizada ausência de proteção do Estado e violação dos seus
direitos fundamentais. Faltam alimentos, remédios e atendimento de saúde. A hiperinflação
diminui drasticamente o poder de compra da população” (MILESI; COURY; ROVERY, 2018,
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 65

p. 54). Além das carências diversas, há ameaças, perseguições, intimidações no trabalho,


prisões arbitrárias, violências e torturas que atingem os civis e também os militares. A opo-
sição tem feito protestos violentos e o governo, respondido com mais violência ainda.
Após visita técnica ao país, realizada em março de 2019 , a chefe do Alto Comissa-
riado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Michelle Bachelet, constatou
de perto a violenta atuação do Estado venezuelano e as graves violações aos direitos huma-
nos. O relatório final, publicado pelo ACNUDH, aponta a progressiva militarização estatal, o
expressivo registro de mortes em protestos, a ocorrência de detenções arbitrárias (acompa-
nhadas de maus-tratos e tortura contra os críticos do governo), o uso excessivo da força na
repressão às manifestações, a violência sexual e de gênero que ocorrem no país.
Além disso, os povos originários estão perdendo suas terras para gangues crimi-
nosas, forças militares e grupos armados. Para Bachelet, a única saída para a crise está na
união e no diálogo (JOHNSON, 2019). Todas essas violações, que compreendem violência,
fome e escassez generalizada, motivaram a saída forçada de milhares de venezuelanos, que
não viram mais condições de permanência no país.

2 A migração venezuelana para o Brasil e a política migratória imple-


mentada para o acolhimento e a integração dos migrantes e refugiados
venezuelanos
Embora o Brasil não configure a primeira opção de destino dos migrantes venezue-
lanos (posição que é liderada, na América do Sul, pela Colômbia, seguida do Equador e do
Peru), a migração venezuelana para o Brasil vem sendo sentida, especialmente a partir do
ano de 2016. Os ingressos se dão, sobretudo, pela fronteira norte do Brasil, com os estados
de Roraima e do Amazonas (MILESI; COURY; ROVERY, 2018; SILVA, 2018). Assim, “[d]e
2016 até o final de 2017, durante dois anos, o governo estadual e os municípios roraimenses
de Pacaraima e Boa Vista se depararam com uma dramática intensificação do movimento
imigratório” (RUSEISHVILI; CARVALHO; NOGUEIRA, 2018, p. 58). O fluxo migratório aumen-
tou cada vez mais e, em novembro de 2018, chegou-se a uma média de 400 a 500 migrantes
e refugiados venezuelanos ingressando diariamente no Brasil, com urgente necessidade de
recebimento de assistência humanitária (ACNUR-IOM, 2019).
O último relatório do Departamento de Polícia Federal do Brasil, intitulado Imigração
Venezuela/Brasil (BRASIL, 2019a), com dados retirados do Sistema de Tráfego Internacional
(STI), do período entre janeiro de 2017 e abril de 2019, aponta a entrada de 394.897 (tre-
zentos e noventa e quatro mil, oitocentos e noventa e sete) migrantes venezuelanos. Para o
mesmo período, verifica-se a saída de 245.245 (duzentos e quarenta e cinco mil, duzentos e
quarenta e cinco) venezuelanos, restando um saldo de 149.652 (cento e quarenta e nove mil,
66 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL

seiscentos e cinquenta e dois) venezuelanos. Somente pela cidade de Pacaraima, ingressa-


ram 262.307 (duzentos e sessenta e dois mil, trezentos e sete) migrantes, o que demonstra
que a região Norte é a porta de acesso para o fluxo venezuelano no Brasil. Ainda que boa
parte fique na região, muitos seguem viagem em direção a outros Estados do Brasil, ou para
outros países do Cone Sul (MILESI; COURY; ROVERY, 2018).
Ainda de acordo com o relatório da Polícia Federal, as solicitações de refúgio ativas,
de venezuelanos, computadas até o dia 30 de abril de 2019, correspondem a 99.858 (no-
venta e nove mil, oitocentos e cinquenta e oito), o que demonstra que muitos deles buscam
proteção, no Brasil, pelo instituto do refúgio (BRASIL, 2019a). Esse instituto é regido pelo
Direito Internacional dos Refugiados e visa a proteção de pessoas que tiveram de deixar os
seus países de origem em virtude de perseguição ou de temor de perseguição por motivos
de raça, religião, nacionalidade, opinião política, pertencimento a determinado grupo social
ou então por grave e generalizada violação dos direitos humanos, que não podem ou, em vir-
tude desse temor, não querem voltar ao país de origem. Portanto, “[o] incremento no número
de migrantes de origem venezuelana gerou a celeuma sob qual instituto, ou enquadramento
jurídico, seria o mais adequado para a realidade desta migração” (SILVA, ABRAHÃO, 2018,
p. 643-644). Importa ressalvar que, no começo de 2017, ainda não havia qualquer indicativo
oficial do tratamento a ser dispensado aos venezuelanos.

Além do envolvimento de organizações internacionais como o Acnur e a OIM com o


tema, o significativo aumento dessa circulação de pessoas e das questões trazidas
por ele fez com que diversos órgãos públicos e instituições da Sociedade Civil tam-
bém desenvolvessem ações em relação à temática. Além de visitas ao estado de Ro-
raima, notadamente Boa Vista e Pacaraima para visualizar a realidade no local, esses
órgãos começaram a realizar uma série de ações no sentido de conferir um mínimo
de gestão migratória e de garantias de direitos e proteção aos migrantes (SILVA, 2018,
p. 644-645).

Com a letargia do governo brasileiro em gerir o alto fluxo de migrantes venezuelanos,


sobreveio uma recomendação, formulada em fevereiro de 2017 pelo Ministério Público Fe-
deral (MPF), pela Defensoria Pública da União (DPU) e pelo Ministério Público do Trabalho
(MPT), encaminhada ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg), solicitando, ao órgão, o
protagonismo e a adoção de medidas humanitárias no Estado de Roraima. O documento
continha a assinatura de outras instituições, com expressiva representatividade e atuação
na temática migratória e na defesa dos direitos humanos (SILVA, 2018), o que aponta a
urgência da ação.
Assim, a opção feita pelo CNIg, ainda sob a égide do revogado Estatuto do Estrangei-
ro e em resposta à chamada de responsabilidade feita pelos organismos aqui mencionados,
foi a de lançar, em 03 de março de 2017, a Resolução n. 126, concedendo a nacional de
país fronteiriço, que tenha ingressado no território brasileiro por via terrestre, a residência
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 67

temporária pelo prazo de até dois anos. A resolução foi considerada de baixa efetividade, pois
teve pouca divulgação, além de fazer restrição ao considerar a medida apenas para os que
ingressavam no Brasil por via terrestre, excluindo, assim, os migrantes que chegavam pelas
vias aéreas, fluvial ou mesmo marítima (SILVA, 2018).
Em maio de 2017 é instituída a nova Lei de Migração, que modifica o paradigma da
política migratória brasileira, adotando uma perspectiva mais humana, que reconhece os
migrantes como sujeitos de direitos. A Lei n. 13.445/2017 estabeleceu os princípios e as
garantias da política migratória brasileira, elencando, dentre as hipóteses para a concessão
do visto temporário, a acolhida humanitária (BRASIL, 2017a).
A despeito da grande contribuição advinda da nova lei, a situação da migração vene-
zuelana no estado de Roraima somente se modifica a partir de 2018 quando, em fevereiro,
o presidente interino Michel Temer realiza uma reunião com a governadora de Roraima. A
partir desse encontro, ocorrido em Boa Vista, uma série de medidas e ações são tomadas
para a melhoria da gestão migratória na região. Dentre elas, destacam-se: a publicação do
Decreto n. 9.285, em 15 de fevereiro de 2018, o qual “reconhece a situação de vulnerabilida-
de decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária na República Bolivariana
da Venezuela” (BRASIL, 2018a); a Medida Provisória n. 820, também de fevereiro, conver-
tida posteriormente na Lei n. 13.684/2018, a qual “dispõe sobre medidas de assistência
emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo
migratório provocado por crise humanitária”; o Decreto n. 9.286, de 15 de fevereiro de 2018,
o qual “define a composição, as competências e as normas de funcionamento do Comitê
Federal de Assistência Emergencial [...]” (BRASIL, 2018b); a criação, em março de 2018,
do Subcomitê Federal para a interiorização dos imigrantes que se encontram no Estado de
Roraima (com destaque para o desenvolvimento da Operação Acolhida, no mesmo mês); a
organização de novos abrigos em Roraima; o repasse emergencial de verbas para Pacarai-
ma; a concessão de crédito extraordinário para o Ministério da Defesa, dentre outras medidas
(RUSEISHVILI; CARVALHO; NOGUEIRA, 2018).
Verifica-se que o governo brasileiro reconheceu a migração venezuelana como de-
corrente de crise humanitária, concedendo-lhes o acolhimento e a assistência emergencial
necessárias. A Lei n. 13.684/2018 dispõe, no artigo 5º, que as medidas de assistência
emergencial visam à ampliação das políticas públicas, como as de proteção social, saúde e
garantia dos direitos humanos. Além do mais, tais medidas requerem a articulação de ações
integradas pelos governos federal, estaduais, distrital e municipais, por meio de adesão a
instrumento de cooperação federativa, em que serão estabelecidas as responsabilidades dos
entes envolvidos (BRASIL, 2018d).
De maneira geral, a resolução de crises migratórias dessa magnitude requere a coo-
peração interna e internacional. A Organização das Nações Unidas (ONU) tem trabalhado
para melhorar, no âmbito global, a gestão das crises migratórias, chamando os Estados não
só ao compartilhamento de responsabilidades, como também à intensificação na implemen-
68 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL

tação das políticas migratórias em seus territórios. Nesse sentido, o Pacto Global para Migra-
ção Segura, Ordenada e Regular, bem como o Pacto Global sobre Refugiados são exemplos
da busca de obtenção de acordos internacionais para a ordenação adequada dos desloca-
mentos de migrantes e refugiados, visando não só a proteção dos migrantes e refugiados,
como também o auxílio aos países de origem, trânsito e destino. Embora os pactos não
possuam poder vinculativo, a abordagem cooperativa é reputada como essencial para uma
resposta mais forte e justa aos fluxos migratórios da atualidade (ONU, 2018a; ONU, 2018b).
Em que pese o esforço das Nações Unidas em amenizar a crise migratória a partir
de acordos globais de proteção, o Brasil anunciou, em janeiro de 2019, sua saída do Pacto
Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, retomando o discurso securitário que
embasara o revogado Estatuto do Estrangeiro. Em sua conta pessoal do Twitter, o ministro
das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou: “tem de haver critérios para garantir a se-
gurança tanto dos migrantes quanto dos cidadãos no país de destino” e que “[a] imigração
deve estar a serviço dos interesses nacionais”, em evidente retrocesso, diante dos princípios
e das diretrizes adotados pela Lei de Migração (MIGRAMUNDO, 2019).

3 O estado de Roraima e os refugiados: uma análise de viés federalista


O estado de Roraima é o mais afetado pela migração maciça de venezuelanos, pois
grande parte dos migrantes que ingressa pelo estado de Roraima opta por permanecer no
estado, por se tratar de região próxima ao seu país de origem ou por não dispor de recur-
sos para viajar até outras regiões do Brasil (SILVA, 2018). Ocorre que a referida unidade
federativa não estava preparada para tamanho aumento populacional, o que ensejou que
a tensão internacional chegasse ao nível local, conforme demonstra a Ação Civil Originária
(ACO 3.121/RR-STF), em tramitação no Supremo Tribunal Federal, ingressada pelo Estado
de Roraima em face da União Federal, com pedido de tutela antecipada consistente em: (a)
compelir a União a adotar medidas administrativas nas áreas de controle policial, saúde e
vigilância sanitária, na divisa entre o Brasil e a Venezuela; (b) transferência de recursos da
União para o Estado de Roraima diante dos gastos com os refugiados; e (c) obrigar a União
a fechar temporariamente a fronteira entre o Brasil e a Venezuela ou limitar o ingresso de
imigrantes venezuelanos no Brasil (BRASIL, 2019b).
A Ministra Rosa Weber, relatora da ação, negou o pedido de tutela antecipada de
fechamento da fronteira, entendendo que essa prerrogativa é do Presidente da República e
também que se trata de exercício de soberania de alçada da União Federal. Aqui é preciso
relembrar que a temática das fronteiras diz respeito a um ato de soberania, tratado como um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso I, da CF/88) e seu exer-
cício é da União, ao passo que as unidades políticas que compõem a União detêm apenas
autonomia política.
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 69

Aliás, essa é uma distinção entre federação e confederação. Zimmermann (2005)


observa que os membros de uma confederação não perdem seu patamar de Estados sobe-
ranos, ao passo que os membros de uma federação são apenas autônomos para determi-
nados fins constitucionalmente dispostos, bem como que os primeiros são ligados por um
tratado ou outro instrumento de direito internacional e os segundos, por uma Constituição.
Outro aspecto relevante é que em uma federação, as decisões de órgãos centrais são com-
pulsórias, diferentemente de uma confederação, na qual há o direito de nulificação para fins
de oposição ao órgão central.
Portanto, uma vez que o Brasil se constitui como uma República Federativa, é in-
viável que uma fronteira seja fechada por determinação de somente uma unidade federada,
ato tipicamente executivo e de soberania, razão pela qual nem o Supremo Tribunal Federal
poderia interferir no mérito dessa questão, pois a relação com o estado estrangeiro é de
atribuição exclusiva do Presidente da República, por força do artigo 84, inciso VII, da Cons-
tituição Federal (BRASIL, 1988).
Essa não é a única abordagem federalista que se extrai da ACO n. 3.121, pois no bojo
dessa ação, a União pleiteou a suspensão do Decreto Estadual n. 25.681-E/2018, formula-
do pelo Governo do Estado de Roraima, com o dificultar do acesso aos serviços públicos
oferecidos, condicionando o atendimento à necessidade de apresentação de passaporte vá-
lido, salvo indivíduos oriundos do Paraguai, Uruguai e da Argentina, em razão do acordo do
Mercosul, conforme o parágrafo único do artigo 3º da referida legislação (RORAIMA, 2018).
O decreto menciona ainda em seu artigo 5º:

[...] aqueles cidadãos estrangeiros que praticarem atos contrários aos princípios e
objetivos dispostos na Constituição Federal e Constituição do Estado de Roraima,
inclusive a violação de direitos fundamentais assegurados aos cidadãos brasileiros,
tais como direito à vida, à integridade física, à propriedade, dentre outros, estão su-
jeitos às normas legais cabíveis, devendo a autoridade policial responsável adotar as
providências necessárias para procedimentos de deportação ou expulsão, conforme
o caso (RORAIMA, 2018).

A Ministra Rosa Weber suspendeu a eficácia desse Decreto por razões processuais,
vislumbrando eventual interferência inadequada da legislação no estado de fato e no direito
em debate nos autos da ACO n. 3.121. Porém, nitidamente, há aqui uma das tensões mais
clássicas do federalismo: a repartição de competências.
Essa dialética entre a União e os Estados marcou a própria nação na qual o fede-
ralismo se formou: os Estados Unidos da América (EUA). Como explica Baggio (2006), a
constituição norte-americana consagrou, em um primeiro momento, o federalismo dual, cujo
alicerce era a distribuição de competências, com as atribuições legislativas e executivas da
União expressamente dispostas no texto constitucional, enquanto aos estados restariam as
competências residuais.
70 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL

Evidentemente, essa construção foi se modificando ao longo do tempo, mas o que


importa destacar no presente momento é que a Constituição do Brasil, de 1988 manteve
certos aspectos desse federalismo dual, sobretudo com a enumeração das competências
legislativas da União, valendo destacar o artigo 22, que assim dispõe: “[c]ompete privativa-
mente à União legislar sobre: [...] XV - emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão
de estrangeiros” (BRASIL, 1988).
Dessa forma, sendo de competência privativa da União legislar sobre entrada, extra-
dição e expulsão de estrangeiros, o Estado de Roraima extrapolou sua atribuição legislativa,
ensejando uma nítida inconstitucionalidade formal orgânica, uma vez que invadiu uma com-
petência privativa da União, a qual só pode ser delegada, por intermediação de Lei Comple-
mentar, conforme disposição do parágrafo único do artigo 22 da referida norma (BRASIL,
1988).
O decreto também cria uma situação de negação de direitos e de garantias fun-
damentais ao estrangeiro, no sentido de que a este é negado o acesso a certos serviços
públicos, criando uma distinção não expressa no texto constitucional.
Assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem jurisprudência consolidada na direção
de que aos estrangeiros, independente da residência no Brasil, são resguardados as garan-
tias e os direitos do brasileiro, nato ou naturalizado, conforme se pode extrair de vários pre-
cedentes. Para os fins da presente pesquisa, foram selecionados apenas dois casos como
representativos desse posicionamento.
O primeiro deles é o Habeas Corpus n. 94.477, impetrado pela Defensoria Pública
da União (DPU), julgado em 06 de setembro de 2011, em favor de paciente estrangeiro cuja
substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos foi negada pelo Tribunal
Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao argumento
de que o artigo 5°, caput, da Constituição não contempla os estrangeiros não residentes no
Brasil. Entretanto, o voto do relator Gilmar Mendes foi pelo entendimento de que a dignidade
da pessoa humana é universal, não podendo um fator como a nacionalidade restringi-la, ra-
zão pela qual o fato de o estrangeiro não possuir residência no país, não ensejaria a adoção
de um tratamento não isonômico (BRASIL, 2011).
Cumpre frisar que nem só as garantias individuais foram asseguradas ao estrangeiro
pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como também os direitos sociais, conforme decidi-
do no Recurso Extraordinário n. 587.9703 , cuja relatoria coube ao Ministro Marco Aurélio,
resultando na extensão ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) aos estrangeiros resi-
dentes no Brasil, com deficiência, desde que idosos e mediante a comprovação de que não

3
“ASSISTÊNCIA SOCIAL – ESTRANGEIROS RESIDENTES NO PAÍS – ARTIGO 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL – ALCANCE. A assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal beneficia
brasileiros natos, naturalizados e estrangeiros residentes no País, atendidos os requisitos constitucionais e le-
gais” (BRASIL, 2017c).
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 71

possuem meios de prover a própria manutenção ou de ter o sustento provido por sua família,
cumpridos os demais requisitos legais (BRASIL, 2017b).
Existem outros julgados no sentido da extensão de garantias e direitos aos estrangei-
ros residentes ou não no Brasil, mas esses foram escolhidos pela sua representatividade e
por tratarem de direitos diversos, bem como para destacar que, dentro da sistemática de um
Estado Federado, o respeito às decisões da Corte Superior é de suma importância, servindo
até mesmo como equilíbrio federativo.
Zimmermann (2005) aduz que o controle judicial das normas é imprescindível em
um sistema político descentralizado, sobretudo para evitar o arbítrio do poder federal sobre
as unidades federadas. De outro norte, o Poder Judiciário também defende a Constituição
e a unidade nacional, possuindo grande capacidade moderadora dos conflitos federativos.
Em verdade, os aspectos discutidos na ACO n. 3.121 indicavam uma profunda crise e inca-
pacidade de lidar com ela, seja por parte do Estado de Roraima ou mesmo da União, mas a
análise dessa situação sob o viés federalista ainda ganharia um novo episódio, a ser tratado
no tópico seguinte.

4 A intervenção federal e o federalismo cooperativo


A Ação Civil Originária (especificamente a ACO 3.121/RR-STF), além dos pedidos
já analisados anteriormente, conta com dois pedidos interessantes, a saber: a adoção, pela
União Federal, de medidas administrativas nas áreas de controle policial, saúde e vigilância
sanitária, na divisa entre o Brasil e a Venezuela; e o repasse de recursos da União para o
Estado de Roraima, em razão das despesas com os refugiados.
Embora não haja pronunciamento definitivo na ACO n. 3.121 pelo Supremo Tribu-
nal Federal, os pedidos supramencionados merecem ser analisados sob a perspectiva do
federalismo cooperativo. É preciso rememorar alguns aspectos históricos e conceituais do
federalismo cooperativo para sua melhor compreensão no momento brasileiro atual.
Baggio (2006) explica que a crise econômica de 1929 que afetou sobremaneira os
Estados Unidos da América e ensejou a necessidade de uma intervenção cada vez maior
da União Federal sobre os estados. Essa série de medidas do executivo federal foi chamada
New Deal, medida que marcou significativamente a decadência do federalismo dual clássi-
co. A expansão do governo federal efetivou-se a partir da regulamentação do comércio, do
poder de tributar e das subvenções, cujo custo foi a diminuição do poder político das demais
entidades federativas, em troca de ajuda financeira.
Lewandowski (2018) explica que o federalismo cooperativo é uma evolução do fe-
deralismo dual, no qual há um entrelaçamento das competências entre os diferentes níveis
políticos, com predomínio da União. De outro lado, Zimmermann (2005) expõe que o fe-
deralismo cooperativo pode encerrar em um autoritarismo por parte da União. Porém, se
72 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL

conjugado com a axiologia democrática, servirá ao cidadão, o qual poderá exercitar seus
direitos de cidadania frente às várias esferas de poder político, sendo que o respaldo dessa
construção política surgiria de um pacto político materializado por uma Constituição.
Baggio (2006) sustenta que a Constituição Federal de 1988 possui traços do fede-
ralismo cooperativo, sobretudo em seu artigo 23, o qual dispõe sobre as ações administra-
tivas comuns entre os entes da federação, o que denota uma tentativa de harmonização das
relações federativas. Por sua vez, o artigo 24 do mesmo diploma legal enumera matérias
nas quais caberá à União a edição de normais gerais e aos Estados a prolação da legislação
suplementar.
Nesse contexto, além de a União ser responsável pela execução dos serviços de
polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras (artigo 21, inciso XXII, CF/88), muitos são
os dispositivos constitucionais que, sob o espírito do federalismo cooperativo, autorizariam
tanto um atendimento de partes dos pleitos da ACO n. 3.121, quanto uma ação política de
atendimento ao migrante, sendo o principal deles a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil e, como observa Silva (2006) ao abordar os fundamentos do Estado brasileiro, trata-
-se de um valor superior que condensa o sentido de todos os direitos fundamentais da pes-
soa humana, dele decorrendo certos comandos como a existência digna dentro da ordem
econômica, a realização da justiça na ordem social, a educação e o exercício de cidadania.
Para Rabenhorst (2001), sob ponto de vista filosófico, a ideia de dignidade da pes-
soa humana parte do pressuposto de que a humanidade compartilha da mesma origem
tendo, portanto, o mesmo valor, constituindo no mundo ocidental atual um patrimônio da
moralidade democrática, compondo uma ética civil indispensável a uma sociedade plural e
verdadeiramente igualitária. Outros dispositivos constitucionais justificariam uma ação coo-
perativa da União, tanto sob o aspecto das desigualdades regionais, quanto na responsabi-
lidade compartilhada da saúde, mas, em vez disso, o Poder Federal decidiu por se valer do
instituto da intervenção federal.
Lewandowski (2018) expõe que um Estado Federal repousa sobre um frágil equilíbrio
de forças, sendo a intervenção federal uma das técnicas constitucionais para a coesão da
federação, objetivando a preservação dos laços de União. A natureza jurídica deve obedecer
aos ditames constitucionais, com controle de legalidade do Judiciário e controle político
pelo Congresso, mas com ampla discricionariedade, pois é ato de governo. A intervenção
significa a invasão em competência alheia, por isso deve ser sempre limitada no intuito de
preservar a federação.
No mesmo sentido, Zimmermann (2008) aventa que a regra é de não haver inter-
venção de uma unidade política e que esta possui caráter eminentemente político, sendo
necessário para sua consecução que se especifique o interventor, a amplitude e os prazos
da intervenção. Assim, a decretação de intervenção federal no Estado de Roraima, em 08
de dezembro de 2018, por meio do Decreto n. 9.602/2018, se deu sob a alegação de se pôr
CRISE GLOBAL E CRISE NACIONAL | 73

termo à grave comprometimento da ordem pública. Sabe-se que a regra em uma federação
é de que não haja intervenção de um ente político sobre outro, salvo em casos excepcionais,
tendo a decretação, nesse caso, pretenso fundamento no artigo 34, inciso III, da Constitui-
ção Federal de 1988 (BRASIL, 2018c).
Sobre o tema, Silva (2006) expõe que a intervenção federal só deve ser manejada em
situações críticas que ponham em risco o equilíbrio federativo, a segurança e as finanças do
Estado e a ordem constitucional. Zimmermann (2005) entende que, em se tratando do artigo
36, inciso III, da CF/88, o decreto de intervenção está sujeito somente à verificação dos mo-
tivos que lhe deram causa. Por seu turno, Lewandowski (2018) assevera que a perturbação
da ordem há de ser fora do comum, algo extraordinário e que independa de autorização pré-
via do Congresso Nacional. Contudo, a exorbitância dos poderes pode levar à caracterização
de crime de responsabilidade por parte do Presidente da República.
Assim, o Executivo Federal usou de uma medida excepcional dentro de um Estado
Federado, nomeando um interventor que não está sujeito às normas estaduais que confli-
tarem com as medidas necessárias à execução da intervenção (artigo 3º, § 1º, do Decreto
n. 9.602/2018) e afastando o governador em exercício. Curiosamente, o governador eleito
no pleito de 2018 e o interventor são a mesma pessoa: Antonio Oliverio Garcia de Almeida,
mais conhecido como Antonio Denarium – caracterizando uma antecipação de mandato.
Uma perspectiva democrática mostra o desencontro dessa medida, cuja efetividade
é altamente contestável até mesmo pelo curto espaço de tempo de duração (23 dias), ao
passo que, dentro da sistemática do federalismo cooperativo poderia haver: o apoio das
forças armadas, o incremento dos repasses financeiros, a distribuição célere dos refugiados
para as demais unidades federativas, esta última medida tendo demorado a se concretizar.
Outro aspecto relevante é que houve um verdadeiro adiantamento da medida já que
o governador que tomaria posse assumiu como interventor, havendo, portanto, até mesmo
discussões sobre inelegibilidade quando da sua eventual candidatura à reeleição, algo a se
conferir futuramente. O uso ordinário da intervenção federal ensejará a vulgarização do ins-
tituto e, consequentemente, um revés democrático, pois essa técnica deve ser excepcional,
reservada a momentos de instabilidade no equilíbrio federativo, sob pena de violar a federa-
ção e a própria democracia.

Conclusão
A crise na Venezuela, motivada por questões políticas, econômicas e sociais, já le-
vou ao deslocamento forçado de 4 milhões de venezuelanos, os quais, expostos a uma
severa situação de violência, fome e escassez generalizada, não tiveram outra alternativa, a
não ser deixar a Venezuela em busca de uma vida digna e segura para si e para a sua família.
Como apresentado, os países latino-americanos e caribenhos têm recebido consi-
derável número de migrantes venezuelanos, especialmente a Colômbia, o Equador e o Peru.
74 | HUGO DE PELLEGRIN COAN | JOHANA CABRAL

Por uma questão de proximidade, em razão das fronteiras na região Norte, o Brasil está na
rota de trânsito ou destino dos migrantes venezuelanos. Assim, de acordo com os dados
da Polícia Federal, no período entre janeiro de 2017 e abril de 2019, registrou-se a entrada
de milhares de venezuelanos, os quais buscam, pelo instituto do refúgio e/ou pela Lei de
Migração, a permanência no país.
Tal situação representou uma problemática a ser enfrentada pelo Estado de Roraima,
responsável pelo recebimento imediato de milhares de migrantes. A Ação Civil Originária
n. 3.121 que, dentre outros pedidos, pugnava pelo fechamento da fronteira com a Venezuela
(algo incompatível com o texto constitucional brasileiro) é um indicativo de que a gestão da
crise migratória demanda não só ação estratégica, como também o compartilhamento de
responsabilidades, a nível internacional e interno.
Na ACO n. 3.121, depreende-se que a União Federal lançou mão de uma medida ex-
cepcional, a intervenção federal, a qual põe em xeque o próprio equilíbrio federativo, sem ter
trazido resultados efetivos no enfrentamento da situação atípica. Portanto, o que se observa,
é que o Brasil, uma República que se assenta na dignidade da pessoa humana, tem falhado
(especialmente com a recente saída do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Re-
gular). Isso tanto como protagonista da América do Sul em dar uma resposta efetiva aos mi-
grantes, como na questão do equilíbrio de forças internas com o manejo de um instrumento
autoritário como a intervenção federal, no lugar de uma gestão a partir da cooperação entre
os entes. Uma situação continental acabou por explicitar o desequilíbrio de forças locais,
ensejando uma reflexão sobre a federação brasileira e sobre como a centralidade do poder
federal ainda predomina no Brasil.

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ZIMMERMANN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
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CAPÍTULO V

O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA


E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO

ALBERTO CARDOSO CICHELLA 1


LEONARDO ALFREDO DA ROSA 2
REGINALDO DE SOUZA VIEIRA 3

Introdução
Um dos reflexos advindos da violência em suas várias manifestações e da crimina-
lidade é o surgimento de insegurança que se estende de forma generalizada na maioria dos
estratos sociais no Brasil. Existem vários fatores que influenciam a criminalidade, inclusive a
omissão estatal em realizar políticas públicas de inclusão social e de geração e renda, sendo
um fenômeno multifacetado.
Ante esse contexto, com amparo no prescrito na Constituição da República Fede-
rativa do Brasil de 1988 acerca do direito fundamental social à segurança, as instituições
que atuam nessa seara, a exemplo das Polícias Militares estaduais, têm procurado formas
variadas de realizar com eficácia a missão de preservação da ordem pública, tanto na forma
reativa quanto preventiva.


1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc).
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped). E-mail: betocichella@gmail.com.

2
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estremo Sul Catarinense, UNESC.
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped). E-mail: leonardorosa1979@gmail.com.
3
Mestre e Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (PPGD/UFSC). Professor, pesquisador e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradua-
ção em Desenvolvimento Socioeconômico (mestrado e doutorado) da Unesc. Coordenador do Núcleo de Estu-
dos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc) e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (LADSSC/
Unesc). Membro da Rede Ibero-americana de Direito Sanitário. Membro e coordenador da Rede Brasileira de
Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos. Advogado. E-mail: prof.reginaldovieira@gmail.com.
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 79

Tendo em vista a construção constante do Estado de Direito e da Democracia, evi-


denciado pelos debates internacionais na direção de um mundo mais humano e participativo,
tem-se procurado pautar as ações das polícias militares nos princípios do Estado Democrá-
tico de Direito. É nessa esfera que este estudo aborda o papel da Polícia Militar no Estado
Democrático de Direito, considerando a visível necessidade de, cada vez mais, uma aproxi-
mação e uma integração da instituição de Polícia Militar Estadual com outros organismos,
públicos e privados, e com a comunidade.
Insurge, então, o objetivo deste estudo: compreender o papel da Polícia Militar no
cumprimento do disposto na CRFB/1988 acerca do direito fundamental à segurança pública
à luz dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. A pesquisa foi desenvolvida tendo
por amparo o método dedutivo e as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.

1 A segurança pública no estado democrático de direito


As definições clássicas sobre segurança pública vão desde o conjunto de institui-
ções, órgãos, instalações, meios humanos, materiais, e a normativa penal e administrativa
a ela relacionada, até o conjunto de conhecimentos relativos a essa atividade (SILVA, 2008).
Notam-se, no Brasil, duas concepções principais sobre o tema: a primeira dá conta que se
trata de um assunto exclusivo das forças policiais, com base no enfrentamento; e a outra, de
serviço público prestado pelo Estado ao cidadão.
Na primeira, percebe-se uma visão estreita e exclusivamente policial da segurança,
com a adoção de estratégias centradas exclusivamente policiamento reativo (enfrentamen-
to), ou seja, nos atendimentos de ocorrências de emergência. A segunda concepção, mais
humanística, sustenta que segurança pública é um serviço público prestado pelo Estado e
que o destinatário desse serviço é o cidadão (SOUZA NETO, 2007).
Com base nesse conceito, o policiamento reativo é substituído pela prevenção, pela
integração com políticas sociais, por medidas administrativas de redução dos riscos e pela
ênfase na investigação criminal. A decisão de usar a força passa a considerar não apenas os
objetivos específicos a serem alcançados pelas ações policiais, mas também, e fundamen-
talmente, a segurança e o bem-estar da população envolvida.
De todo modo, o foco da Segurança Pública deve ser prevenir, reduzir e combater a
violência, proporcionando aos(às) cidadãos(ãs) a proteção aos direitos individuais e ao exer-
cício da cidadania. Nesse sentido, Santos (2006) explica que numa sociedade democrática,
a segurança pública deve garantir a proteção dos direitos individuais e o exercício da cida-
dania plena. Por isso, ela não se contrapõe à liberdade, fazendo parte de várias e complexas
vias que levam à qualidade de vida das pessoas.
80 | ALBERTO CARDOSO CICHELLA | LEONARDO ALFREDO DA ROSA | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

A responsabilidade pela Segurança Pública no Brasil, normalmente, é direcionada às


forças policiais. No entanto, ela deve ser analisada como um serviço público prestado pelo
Estado, sendo o cidadão o destinatário e, ao mesmo tempo, protagonista das ações estatais.
O combate à criminalidade deve focar a prevenção, por meio da integração de polí-
ticas sociais, bem como medidas administrativas de redução dos riscos e ênfase na inves-
tigação criminal (SOUZA NETO, 2007). Os objetivos específicos a serem alcançados pelas
ações policiais devem estar calcados na segurança e no bem-estar da população envolvida.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 formou um modelo político,
jurídico e normativo que alterou profundamente a forma de compreensão da temática de
segurança pública. Antes da Carta Magna a segurança era pautada pelo paradigma da segu-
rança nacional, manutenção da ordem e segurança interna nos Estados, cujo objetivo central
estava na proteção das fronteiras, soberania nacional e garantia dos poderes constituídos.
A Segurança Pública, pós-1988, tem foco na proteção das pessoas e da comunida-
de, conforme explica Marcineiro (2009) ao esclarecer que ela é exercida por servidores pú-
blicos que garantem aos cidadãos seus direitos civis e políticos por intermédio de ações do
governo. A segurança pública, portanto, é uma ferramenta utilizada pelo Estado para garantir
um código de convivência social materializado pelas leis que lhe dão legitimidade, as quais
são elaboradas pelo Poder Legislativo, cujos integrantes são eleitos(as) como representantes
do povo para esse fim.
Um conceito de segurança pública adequado à Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 é aquele que está diretamente em conformidade com o princípio demo-
crático, com os direitos fundamentais e com a dignidade de todos, inclusive dos policiais.
Nesse sentido, o sistema de segurança pública deve estar alicerçado em concepções demo-
cráticas, tendo todos os órgãos alertas na observância efetiva dos princípios constitucionais.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) reservou um
capítulo específico para tratamento “da segurança pública”, dentro do título “Da Defesa do
Estado e das Instituições Democráticas”, em seu art. 1444 (BRASIL, 1988). Nessa linha,

4
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preserva-
ção da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia
federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e
corpos de bombeiros militares. § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e
mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e
social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas
públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija
repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respecti-
vas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer,
com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente,
organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento os-
tensivo das rodovias federais. § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela
União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. 
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 81

o texto constitucional preceitua que a segurança pública é um dever do Estado e direito e


responsabilidade de todos(as), devendo ser exercida para a preservação da ordem pública e
da incolumidade das pessoas e do patrimônio (BRASIL, 1988).
No que tange à criminalidade, a concepção que advém do texto constitucional reflete
o entendimento de que ela não é apenas uma escolha individual, mas deve ser compreendida
à luz um contexto coletivo que envolve outros fatores (PATUSSI, 2016).
Nesse caminho, para o Estado cumprir com o seu dever constitucional, a CRFB/1988
estabeleceu um rol de órgãos responsáveis pela segurança pública, que são: a polícia fe-
deral, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis estaduais, as
polícias militares e os corpos de bombeiros (BRASIL, 1988). Esses órgãos, em conjunto,
praticam seis modalidades de atividade policial em prol da segurança pública, quais sejam:
polícia ostensiva, polícia de investigação, polícia judiciária, polícia de fronteiras, polícia marí-
tima e polícia aeroportuária (SOUZA NETO, 2007). A polícia ostensiva exerce as funções de
prevenir e de reprimir de forma imediata a prática de delitos, sendo essa atividade desempe-
nhada exclusivamente pelas polícias militares estaduais (BRASIL, 1988).
A polícia de investigação é a que trabalha para solucionar a autoria dos delitos. Entre
outras medidas, para a investigação criminal ela ouve testemunhas e requisita documentos.
Essa atividade no Brasil, quando relacionada aos crimes comuns, é exercida pelas polícias
civis estaduais, por competência residual, e à Polícia Federal nas infrações penais contra a
ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas
entidades autárquicas e empresas públicas, e infrações que tenham repercussão interesta-
dual ou internacional. Já investigações de crimes militares são conduzidas pelas próprias
instituições militares (BRASIL, 1988).
A polícia judiciária na União é executada, com exclusividade, pela Polícia Federal e
nos estados são realizadas pelas policias civis, todas com a função de executar as diligên-
cias solicitadas pelos órgãos judiciais, exceto as relacionadas a crimes militares, que são
de competência das respectivas instituições, a nível Estadual ou Federal (BRASIL, 1988). A
polícia de fronteiras, polícia marítima e de polícia aeroportuária, são atividades atribuídas à
Polícia Federal, com a obrigação de controlar a entrada e a saída de pessoas e mercadorias
no território nacional.

§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da
União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias
militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além
das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.§ 6º - As polícias militares
e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as
polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 7º - A lei disciplinará a or-
ganização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência
de suas atividades.§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus
bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.§ 9º A remuneração dos servidores policiais integrantes
dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39” (BRASIL, 1988).
82 | ALBERTO CARDOSO CICHELLA | LEONARDO ALFREDO DA ROSA | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

Embora não sejam formalmente instituídas para promover a segurança e a ordem pú-
blica, há outras instâncias que são parte do processo para a harmonia social. Essas institui-
ções que, segundo Marcineiro (2009), formam as instâncias informais de segurança pública
são: a família, a igreja, a mídia, a escola, as diversas organizações não governamentais etc.
As instituições de segurança pública e a sociedade civil como um todo estão dire-
tamente submetidas ao Estado Democrático de Direito, no qual o respeito aos princípios da
legalidade e democrático são requisitos centrais e vinculativos e, portanto, o arbítrio dos
organismos estatais e dos(as) cidadãos(ãs) não é ilimitado.
Streck e Morais (2006, p. 98-99, grifo nosso) em relação ao Estado Democrático de
Direito, desenvolvem os seguintes princípios:

a. Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Cons-


tituição como instrumento básico de garantia jurídica;
b. Organização democrática da sociedade;
c. Sistema de direitos fundamentais e individuais e coletivos [obrigações negati-
vas e positivas], [...] pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-
-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade;
d. Justiça social como mecanismos corretivos das desigualdades;
e. Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, com articu-
lação de uma sociedade justa;
f. Divisão dos poderes ou funções;
g. Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio
de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e proce-
dimentos que excluem o arbítrio e a prepotência;
h. Segurança e certezas jurídicas.

Sobre o Estado Democrático de Direito, Vieira (2013, p. 187) também discorre que:

Portanto, o Estado Democrático de Direito pode ser considerado como uma evolução
ou transformação das matrizes do Estado de Direito Liberal e do Estado Social de
Direito, pois não os nega, mas os incorpora a partir de uma leitura que reconhece que
somente as garantias por eles estabelecidas são insuficientes para a concretização
de uma concepção de justiça social e de ampliação da cidadania. Deste modo, ele
concretiza a democracia para além das meras regras procedimentais e eleitorais, pois
vislumbra a importância da democracia como fundamental, tanto nos resultados obti-
dos quanto nos meios utilizados para o alcance desses resultados.

Acerca da democracia, José Afonso da Silva (2001) esclarece tratar-se de um con-


ceito histórico. Não se trata de um valor-fim, mas um meio para a realização dos valores
tidos como essenciais para a convivência humana, pautados nos direitos fundamentais do
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 83

ser humano. O princípio básico a ser respeitado nesse regime político está estritamente
relacionado com a vontade do povo. Por isso, a democracia não é um mero conceito, mas
um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais conquistados
ao longo da história.
Assim a CRFB/1988 sedimentou formalmente a concepção de que o ser humano é o
ponto principal de qualquer organização política democrática no Brasil, com preceitos impe-
rativos de que todas as estruturações devem promover a sua dignidade. Em contraposição
às restrições de outrora, consagrou um extenso rol de garantias, individuais e coletivas (na
qualidade de direitos humanos inseridos no textos constitucional como direitos fundamen-
tais), com natureza de cláusulas pétreas que são insuscetíveis de supressão.
Nesse sentido, considerando que o ser humano é titular de direitos invioláveis em
todas as suas dimensões de valores (destacando-se valores como da cidadania, da dignida-
de, do trabalho e da livre iniciativa ou capital; considerando ainda direitos inalienáveis: como
à vida, à liberdade, à igualdade, à personalidade etc.), a sua proteção é uma das diretrizes
centrais do Estado Democrático de Direito.
Esses valores quando positivados na Constituição são tratados como direitos fun-
damentais que, conforme Paulo e Alexandrino (2010), surgiram com a necessidade de se
impor limites e controles aos atos praticados pelo Estado e suas autoridades constituídas.
Os direitos fundamentais são os bens em si mesmos considerados, e assim decla-
rados nos textos constitucionais. Como instrumentos de proteção tem-se as garantias5,
que possibilitam aos indivíduos fazer valer, frente ao Estado, os seus direitos fundamentais.
(PAULO; ALEXANDRINO, 2010).
À luz da CRFB/1988, o direito à segurança foi prescrito, juntamente com outros tidos
como cláusulas pétreas conforme o seu art. 5º, caput, como parte integrante do título “dos
direitos e deveres individuais e coletivos”. Cumpre reforçar que esse dispositivo preceitua
que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberda-
de, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988).
Conforme se pode verificar, o direito à segurança foi referenciado no mesmo patamar
de importância dos demais delineados no caput do art. 5º da CRFB/1988 (BRASIL, 1988).
Além disso, é importante esclarecer que esse direito não atinge somente o indivíduo, mas
toda a sociedade de forma global, o que determina a sua inclusão como um direito social.
(COSTA, 2008).

5
Exemplos de direitos fundamentais são o direito à liberdade de locomoção, o direito à vida e o direito à manifesta-
ção do pensamento. Como garantias fundamentais, nesse contexto, é possível citar o Habeas Corpus, a vedação
à pena de morte e a proibição da censura.
84 | ALBERTO CARDOSO CICHELLA | LEONARDO ALFREDO DA ROSA | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

Nesse sentido o art. 6º da CRFB/88, que expressa os direitos sociais no capítulo


II, preceitua que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).
A Segurança Pública é um direito que tem como missão proteger a própria cidadania,
a dignidade, a integridade psicofísica e a vida humana, sendo, portanto, uma garantia do
exercício de outros direitos, tendo por referência o respeito ao princípio da dignidade humana
(SANTOS, 2006).

2 A polícia militar no âmbito da segurança pública: reflexões à luz do


princípio da dignidade da pessoa humana e do estado democrático
de direito
Ao se esforçar para criar um conceito de dignidade da pessoa humana, Grecco
(2012) explica que esta deve ser entendida como uma qualidade que integra a própria condi-
ção humana, ou seja, é algo inerente ao ser humano, um valor que não pode ser suprimido,
em virtude da própria natureza doo ser.
Seguindo esse raciocínio, parte-se para a definição de ser humano. Em breves pala-
vras Santos (2006) expõe que o ser humano é pré-constituído de corpo, alma e sentimento.
É titular de um direito universal, supranacional e de suprema norma moral, ética e espiritual.
O princípio da dignidade da pessoa humana condiciona o significado do ser humano
como um fim em si mesmo, não podendo ser concebido como meio ou para uso arbitrário de
uma vontade qualquer, oriunda ou não do Poder Público. Todo ato do Estado que recaia sobre
um indivíduo e não tenha como fim satisfazer uma necessidade, respeitando sua liberdade e
seus direitos, assim como os direitos coletivos, será inconstitucional, por ferir sua dignidade
como ser humano, colocando em risco a própria democracia.
Dessa forma, o princípio deve ser respeitado por todos os agentes públicos, princi-
palmente quando no cumprimento da missão constitucional de preservação da ordem públi-
ca, em respeito ao destinatário das ações do Estado: o ser humano. A dignidade da pessoa
humana antecede a existência do Estado, prescindido até mesmo de previsão normativa.
Nessa seara, com o fortalecimento e importância do tema, a Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil de 1988 contemplou em seu artigo 1º esse princípio como
fundamento da existência do Estado Democrático de Direito, o qual orienta todas as demais
normas, inclusive as constitucionais (BRASIL, 1988)6. A exemplo do que ocorre nos estatu-

6
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa
humana” (BRASIL, 1988).
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 85

tos das Polícias Militares de outros Estados da Federação, o princípio da dignidade da pessoa
humana foi previsto no art. 29 da Seção II do Título II, do Estatuto dos Policiais Militares do
Estado de Santa Catarina7.
Vê-se, então a necessidade do(a) profissional de Segurança Pública, nesse caso o(a)
Policial Militar, agir dentro dos limites definidos em lei, alinhado(a) com o propósito firme
de ser um(a) agente defensor(a) da dignidade da pessoa humana. Os esforços do trabalho
devem ser na defesa da sociedade por meio da proteção das pessoas, até mesmo o(a) infra-
tor(a). Isso implica, necessariamente, em ver o(a) cidadão(ã) como detentor(a) dos direitos
e garantias fundamentais, inseparáveis da sua condição de ser humano.
Atualmente, ainda, os investimentos em Segurança Pública são, normalmente, pau-
tados em aparatos de repressão, que claramente se mostram ineficientes para reverter o
crescimento da criminalidade. É necessário, que os órgãos policiais busquem uma aproxi-
mação com a comunidade, para juntos enfrentarem essa empreitada.
Em muitas instituições policiais militares, ainda, o trabalho basicamente é realizado
por meio da solicitação do(a) cidadão(ã) ao Centro de Emergência 190. O procedimento
adotado pelos(as) policiais nesses casos são sempre os mesmos: tomam ciência da ocor-
rência, comunicam-se com a central sobre o que fazer, encaminham as partes aos canais
competentes, encerram e vão embora. Tudo isso contribui para o afastamento entre a Polícia
e a Sociedade (BEATO FILHO, 2000).
Esse modelo reativo de policiamento afasta o Estado (polícia) dos cidadãos, tor-
nando a polícia um órgão estatal estranho e distante da comunidade. Assim, mesmo que os
esforços para a segurança se desenvolvam em sua intensidade máxima vão redundar “em
lugar nenhum”, visto que a intervenção será quando o crime já ocorreu, favorecendo uma
sensação de impotência das forças policiais. Assim, por mais investimentos públicos que se
tenha em segurança pública, as práticas e métodos adotados acabam por não surtir efeitos
(ROLIM, 2006).
Em vez de se desenvolver o trabalho policial como um serviço ambulatorial, as preo-
cupações devem ser pautadas principalmente em conhecer as necessidades locais, assim,
o Policial Militar nos seus deslocamentos deve dialogar com as pessoas, fazer-se visível
dentro da comunidade, obter o respeito dos habitantes e atendê-los(as) em serviços não
emergenciais (SKOLNICK; BAYLEY, 2002).
Dessa forma, serão capazes de ajudar na autoproteção coletiva e individual, bem
como antecipar os problemas que futuramente poderiam surgir, apreciando as preocupações
da comunidade, explicando os serviços da polícia com precisão e analisando informações

7
“Art. 29. O sentimento do dever, o pundonor policial-militar e o decoro da classe impõem a cada um dos inte-
grantes da Polícia Militar, conduta moral e profissional irrepreensível, com a observância dos seguintes preceitos
de Ética Policial-Militar: [...] III Respeitar a dignidade da pessoa humana; [...]”. (SANTA CATARINA, 1983).
86 | ALBERTO CARDOSO CICHELLA | LEONARDO ALFREDO DA ROSA | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

que levem a prisões de infratores(as) em potencial. Para mudar e encurtar a distância entre
a comunidade e a Polícia é preciso estabelecer estratégias para que a segurança pública se
torne mais eficiente.
As organizações policiais devem levar em conta o relacionamento com o público
num contexto de democratização e buscar estratégias mais eficientes para lidar com o pro-
blema da criminalidade, dentre essas, atuações descentralizadas que possibilitem lidar com
problemas e soluções locais. Com isso, o desenvolvimento de instrumentos mais precisos
para a análise dos registros de ocorrências contribui para o desenvolvimento de ações para
casos específicos de violência (BEATO FILHO, 2000). O rompimento com o modelo reativo se
configurou com a estruturação de uma concepção de polícia comunitária, entendida como:

Uma filosofia e uma estratégia organizacional que proporcionam uma nova parceria
entre a população e a polícia. Baseia-se na premissa de que tanto a polícia quanto a
comunidade devem trabalhar juntas para identificar, priorizar e resolver problemas
contemporâneos, tais como: crime, drogas, medo do crime, desordens físicas e mo-
rais e, em geral, a decadência do bairro, com o objetivo de melhorar a qualidade geral
da vida na área (TROJANOWICZ; BUCQUEROUX, 2003, p. 4)

Dias Neto (2003), nessa linha, ensina que o policiamento deve ser caracterizado por
uma concepção mais ampla da função policial que abrange a variedade de situações não cri-
minais que levam o público a invocar a presença da polícia. Considerando, dessa forma, uma
descentralização dos procedimentos de planejamento e prestação de serviços, para que as
prioridades e estratégias policiais sejam definidas de acordo com as especificidades de cada
localidade e uma maior interação entre policiais e cidadãos, visando ao estabelecimento de
uma relação de confiança e cooperação.

Conclusão
Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Brasil deu um
grande passo, ao menos formalmente, para o Estado deixar de ser um fim em si mesmo e,
gradativamente, focar seus esforços na satisfação dos legítimos interesses da sociedade.
O cidadão passa a ter consciência de seu papel e de importância no contexto social,
numa postura ativa, com possibilidade de exigir a concretização e preservação de seus direi-
tos e garantias, sejam individuais, coletivos ou difusos. Nesse cenário, imposições arbitrá-
rias, apoiadas exclusivamente na vontade da autoridade, não são mais aceitas como outrora.
O Brasil, ao cumprir com o seu dever constitucional, estabeleceu na CRFB/1988 o
rol de órgãos responsáveis pela segurança pública, que são: a polícia federal, a polícia ro-
doviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis estaduais, as polícias militares
O DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA PÚBLICA E O PAPEL DA POLÍCIA MILITAR... | 87

e os corpos de bombeiros. Mesmo assim, o texto constitucional, dentro da perspectiva fun-


damental do Estado Democrático de Direito, atribui a responsabilidade da segurança pública
a todos(as).
No Estado Democrático de Direito, é importante que as políticas de segurança pú-
blica estejam em sintonia com os ditames estabelecidos nos fundamentos da CRFB/1988,
que pressupõe uma intervenção regrada e limitada pela lei, mas com possiblidades cogentes
da participação dos(as) cidadãos(ãs). Esta, quando respaldada pelo modelo supracitado,
ao definir os crimes e as regras processuais, legitimará o poder público na prevenção e
intervenção punitiva tendo por fim a proteção dos bens jurídicos tidos como relevantes pela
sociedade.
Por conseguinte, a atividade da Polícia Militar, com nítida natureza de ato administra-
tivo, deve atuar na proteção da dignidade humana e na garantia de legitimidade da atuação
estatal. Os(As) policiais militares, como profissionais de Segurança Pública, devem agir den-
tro das balizas dos princípios da legalidade, da democracia e da dignidade humana, alinhan-
do-se sempre com o propósito firme de ser um instrumento de defesa de direitos e garantias
fundamentais.
Por fim, para que o serviço policial esteja adequado ao Estado Democrático de Direito
há a necessidade de políticas públicas integradas, capazes de apresentar caráter: comuni-
tário, no sentido de manter um diálogo com a sociedade civil; e preventivo, sendo que para
isso deve haver uma integração entre as agências do governo responsáveis por outras polí-
ticas públicas como de saúde, educação, transporte, entre outras (interagencialidade). Além
disso, há a necessidade de que o serviço policial seja desburocratizado e transparente para
garantir maior eficácia e ser socializado na medida em que alcança toda a população, pois
qualquer proposta que leve em conta a consolidação dos direitos da cidadania deve partir da
inclusão de uma política mais ampla de conteúdo social e econômico.

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CAPÍTULO VI

AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


E DE SEUS SISTEMAS DE CONTROLE INTERNO

RENATO CECHINEL 1
ANDRÉ AFONSO TAVARES 2
REGINALDO DE SOUZA VIEIRA 3

Introdução
A forma como o Estado é organizado no sentido de administração da coisa pública
está em constante evolução e é possível identificar três modelos ou fases distintas de admi-
nistração Estatal, a saber: patrimonial, burocrático e gerencial. O modelo patrimonial é mar-
cado pela confusão entre o Estado e o soberano, ou seja, o soberano era a personificação do
Estado, assim não existindo a coisa pública no sentido contemporâneo, sendo comum o uso
indevido da máquina pública para fins pessoais, corrupção e nepotismo.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/
Unesc). Especialista em Prática Jurídica pela Escola Superior de Magistratura do Estado de Santa Catarina
(Esmesc/Unesc). Especialista em Direito Administrativo e especialista em Direito Processual Moderno ambas
pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Unesc. Membro do Núcleo de Estudos em Estado,
Política e Direito (Nuped/Unesc). Advogado. Servidor Público Municipal no cargo de Analista de Controle Interno.
E-mail: advrenatoc@gmail.com.
2
Mestrando Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc).
Membro do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Especialista em Direito Público e em
Auditoria Governamental. Graduado em Direito e em Ciências Contábeis. Graduando em Engenharia de Software.
Advogado. Contador. E-mail: afonsotavares.andre@gmail.com.
3
Mestre e doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (PPGD/UFSC). Professor, pesquisador e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradua-
ção em Desenvolvimento Socioeconômico (mestrado e doutorado) da Unesc. Coordenador do Núcleo de Estu-
dos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc) e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (LADSSC/
Unesc). Membro da Rede Ibero-americana de Direito Sanitário. Membro e Coordenador da Rede Brasileira de
Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos. Advogado. E-mail: prof.reginaldovieira@gmail.com.
90 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

O modelo burocrático rompe com o patrimonialismo, pautado pela reestruturação


e reorientação das práticas administrativas que passam a ser vinculadas a regras legais e
operacionais previamente definidas e marcado pela impessoalidade e o profissionalismo. Por
fim a administração pública evolui para o modelo gerencial, uma transição, visando corrigir
o formalismo exagerado, a desconsideração do cidadão e as constantes decisões distantes
da realidade que o modelo burocrático provocou.
O modelo gerencial é marcado pela flexibilização da gestão, atendimento às neces-
sidades do cidadão de forma eficiente e eficaz e a busca por uma máquina administrativa
barata e ágil. Esse modelo está em constante evolução e até o momento apresenta três
estágios: o primeiro denominado gerencialismo puro, que tem suas bases na administração
de empresas, buscando respostas às constantes crises fiscais do Estado e visa prestar ser-
viços por meio de uma estrutura estatal mais eficiente, sendo o usuário do serviço público
um financiador do sistema; o segundo denominado de Administração gerencial, que foca na
qualidade/eficácia do serviço público, passando à redução de gastos a ser limitada por essa
necessidade de qualidade e o usuário do serviço público passa a ser tratado como cliente;
e o terceiro denominado modelo gerencial orientado ao serviço público que supera os mo-
delos anteriores quanto às ideias de usuários financiadores e clientes dos serviços públicos,
passando a valorizar a participação do cidadão e da sociedade nas ações do Estado e nas
decisões públicas, agregando à administração os princípios relacionados à cidadania, ao re-
publicanismo e à democracia utilizando-se de conceitos como accountabillity, transparência,
participação política, equidade e justiça.
Ao que concerne aos Sistemas Controle Interno (SCI), órgão da própria administra-
ção pública que visa salvaguardar a legalidade, eficiência e eficácia das ações administrati-
vas, também está em constante evolução, inicialmente atuando na verificação dos aspectos
formais e legais dos atos administrativos, passando a atuar sobre o trinômio da orientação,
prevenção e correção, por fim alcançando a avaliação dos resultados quanto a sua eficácia.
Cabe destacar que um estágio não exclui o outro, os controles internos apresentam uma
soma de suas atribuições nesse processo de evolução, sendo que os estágios se comple-
mentam.
No Brasil, o SCI é obrigatório à toda a administração pública, em todos os seus
poderes e para todos os membros da federação, por imposição constitucional, competindo
a cada um regulamentar a atuação de seus SCI. A legislação brasileira quanto aos SCI apre-
senta todos os estágios da moderna concepção de controle interno. Ocorre que na prática
esses controles apresentam características puramente burocráticas, no sentido de atuarem
estritamente na verificação da formalidade e legalidade dos procedimentos administrativos,
demonstrando uma falha do Estado, que não consegue controlar a si mesmo e, como re-
flexo, inviabiliza o controle por parte da sociedade, pois as informações produzidas são
escassas e não possuem qualidade substancial.
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 91

Assim, este estudo propõe um aprofundamento no tema da evolução do SCI fazendo


uma comparação com a evolução dos modelos de administração pública, buscando fazer
uma reflexão crítica quanto à necessidade de aperfeiçoamento do SCI enquanto instituição,
para que passe a contribuir com o aprimoramento da administração pública, suas políticas e
das informações disponibilizadas aos cidadãos e a sociedade. Para fins de realização desta
pesquisa fez-se uso do método dedutivo e das técnicas de pesquisa bibliográfica e docu-
mental.

1 A evolução da Administração Pública


A Administração Pública é a organização do aparelhamento estatal, é o poder de ges-
tão do Estado sobre a coisa pública na busca de seus objetivos, visando sempre a prestação
de serviços públicos aos administrados. Conforme Meirelles et al. (2010, p. 60), o estudo
da Administração Pública compreende “a sua estrutura e as suas atividades, deve partir
do conceito de Estado, sobre o qual repousa toda a concepção moderna de organização e
funcionamento dos serviços públicos a serem prestados aos administrados”
Para Junquilho (2010, p. 16), “definir o conceito de Administração Pública não é
fácil, dada a sua amplitude e complexidade”, dessa forma se pode analisar a administração
pública por dois vieses. Primeiro, em sentido amplo, pela totalidade de seus órgãos de go-
verno (função política) e de seus órgãos administrativos; e segundo, em sentido estrito, em
que a administração pública é vista pela soma dos órgãos, entidades e agentes públicos que
exercem as funções tipicamente administrativas do aparelho estatal (JUNQUILHO, 2010).
A forma como os Estados vêm sendo administrados está em constante evolução
e, como já mencionado, atualmente se identificam três modelos de administração estatal:
patrimonialista, burocrático e gerencial. Trata-se de um processo de constante aperfeiçoa-
mento dos serviços prestados pelo Estado, tendo como escopo de cada modelo suprir as
deficiências do anterior.
O Modelo Patrimonialista é marcado pela confusão entre Estado e Soberano. Con-
fusão entre o que era público (coisa pública, patrimônio do povo) e o que pertencia ao So-
berano (patrimônio do monarca). O Soberano era a personificação do Estado, ambos eram
um e, dessa forma, a “res publica se confundia com a res pricipis, facilitando o uso indevido
da máquina administrativa, através da corrupção e do nepotismo” (CHARLES, 2015, p. 43).
No mesmo sentido leciona Fernando José Gonçalves Acunha (2013, p. 26):

No patrimonialismo, não é possível afirmar que existe coisa pública em sentido con-
temporâneo, uma vez que o próprio Estado se confunde com patrimônio do soberano,
sendo mera extensão daquilo que lhe pertence. O interesse perseguido é sempre o
de quem detém o aparelho de Estado em suas mãos, não se podendo falar, nesse
92 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

momento, de institutos básicos da moderna Administração Pública, como a ideia de


supremacia e indisponibilidade do interesse público, separação do servidor de seu
cargo, entre outros.

Conforme Paludo (2012, p. 50) “tudo que existia nos limites territoriais de seu “reina-
do” era tido como domínio do soberano, que podia utilizar livremente os bens sem qualquer
prestação de contas à sociedade”.
O modelo de administração burocrática substituiu o modelo patrimonialista, e se
orienta pelo cumprimento às normas, à formalidade e pelo profissionalismo, ou seja, a ideia
de igualdade por meio de regras formais. Para Paludo (2012, p. 56), o modelo burocrático:

[...] trouxe novos conceitos à Administração Pública: a separação entre a coisa pú-
blica e a privada, regras legais e operacionais previamente definidas, reestruturação
e reorientação da administração para atender ao crescimento das demandas sociais
e aos papéis econômicos da sociedade da época, juntamente com o conceito de
racionalidade e eficiência administrativa no atendimento às demandas da sociedade.

O modelo burocrático tem como premissa a desconfiança prévia nos Administrado-


res Públicos. Esse modelo é voltado para o estrito cumprimento das normas e um controle
rigoroso nas ações dos administradores. Voltado para coibir os abusos, com controles fo-
cados na legalidade da admissão de pessoal, das aquisições públicas e do atendimento das
demandas (BRASIL, 1995).
Há uma mudança no núcleo que emana o poder estatal, antes proveniente do sobera-
no. Nesse novo modelo, o poder do Estado passa a emanar das normas legalmente instituí-
das e das instituições formalmente estabelecidas dentro do Estado, estando os governantes
adstritos à obediência das normas e convívio harmônico entre as instituições. Secchi (2009,
p. 351) esclarece que “a partir desse axioma fundamental derivam-se as três características
principais do modelo burocrático: a formalidade, a impessoalidade e o profissionalismo”.
Junquilho (2010, p. 49) definiu essa mudança do núcleo de poder de “dominação
legal” da seguinte forma:

Na dominação legal a legitimação das relações de mandato e obediência se estabele-


ce pela crença em ordenamentos, regras e estatutos legais, formais e impessoais. Ou
seja, a obediência não é exercida em relação a um senhor por uma tradição institucio-
nalizada, mas sim por meio de regulamentos de caráter racional.

Por esse ângulo, Paludo, (2012, p. 61) reforça:


AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 93

A legitimidade facilita o exercício do poder pelos Governos, na medida em que mais


facilmente os governados se dispõem a aceitar esse poder, na forma de obediência às
ordens recebidas (cumprindo as normas definidas pelos governos); por outro lado, o
poder que estiver destituído de legitimidade encontrará fortes resistências e tenderá
a desaparecer.

Paludo (2012, p. 63-64) destaca as dificuldades encontradas na aplicação do mo-


delo burocrático como sendo: “apego exagerado às regras e regulamentos internos”; “for-
malismo exagerado e excesso de papelório”; “resistência a mudanças”; “desconsideração à
pessoa do servidor (despersonalização)”; “rigidez e falta de flexibilidade”; “desconsideração
do cidadão”; “decisões distantes da realidade”.
O modelo burocrático passou a ser caracterizado como ineficiente e incapaz de re-
solver os problemas da administração pública e insuficiente para atender às necessidades
dos cidadãos. São esses os principais fatores que demonstraram o esgotamento do modelo
burocrático à frente da administração pública, que, embora fundamental para expurgar o mo-
delo patrimonialista, acabou ficando conhecido pela sua “lentidão, o inchaço, emperramento,
a inflexibilidade e a ineficiência do Estado. Dito de outro modo, a má governança estatal”
(JUNQUILHO, 2010, p. 58).
A partir da constatação dessa ineficiência do modelo burocrático, mostrou-se ne-
cessária a implementação de um novo modelo que trouxesse qualidade ao serviço público e
maior agilidade no atendimento ao cidadão, para Silva (1994, p. 7):

O Estado então passa a buscar o atendimento das necessidades tanto de regulação


quanto dos serviços de seus clientes ou cidadãos, através de incentivos a programas
de flexibilização da gestão pública, tornando sua máquina administrativa mais barata,
ágil e receptiva à inovação gerencial e a autonomia administrativa.

O modelo gerencial pretendeu corrigir os problemas apresentados pelo modelo bu-


rocrático, e privilegia a inovação, com mecanismos de gestão que valorizam o usuário pú-
blico, com o objetivo de fornecer serviços com qualidade, sendo baseado “em valores de
eficiência, eficácia e competitividade” (SECCHI, 2009, p. 354). Este modelo gerencial passou
também a ser conhecido como “nova administração pública”, Bresser-Pereira e Spink (1998,
p. 6) esclarecem que:

[...] parte do reconhecimento de que os Estados democráticos contemporâneos não


são simples instrumentos para garantir a propriedade e os contratos, mas formulam e
implementam políticas públicas estratégicas para suas respectivas sociedades tanto
na área social quanto na científica e tecnológica. E para isso é necessário que o
Estado utilize práticas gerenciais modernas, sem perder de vista sua função eminen-
temente pública.
94 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

Chaves e Silva (2010, p. 3) destacam que a Administração Pública Gerencial “cons-


titui uma evolução na história da administração pública, por enfocar aspectos de eficiência e
eficácia, da necessidade de se reduzir o custo da máquina do Estado e aumento da qualidade
dos serviços públicos”. O principal aspecto está na mudança do foco de controle que deixa
de focar nos procedimentos e passa a se concentrar nos resultados. Assim a eficiência que
se traduz nos meios utilizados e nos recursos disponíveis fica em segundo plano, devendo o
núcleo de interesse ser a eficácia compreendida por meio do binômio: resultados previstos
versus resultados alcançados (CHAVES; SILVA, 2010).
O modelo gerencial passa por três estágios distintos, motivados pelos objetivos dos
administradores e anseios dos administrados, sendo: o Gerencialismo Puro ou Managearia-
lism, a Administração Gerencial ou Consumerism, e o modelo gerencial orientado ao serviço
público ou Public Service Orientation.
O primeiro estágio, denominado Gerencialismo Puro ou Managearialism, tem suas
bases na administração de empresas privadas e surge como resposta às constantes crises
fiscais do Estado. Esse primeiro modelo é marcado pela busca da eficiência na administra-
ção pública. Para Paludo (2012, p. 72), o Estado, ao introduzir técnicas de gerenciamento,
pretendia:

[...] tornar a Administração Pública mais ágil no atendimento das demandas sociais,
ao mesmo tempo em que pretendia devolver ao Estado a capacidade de investir, me-
diante a contenção da dívida pública e a redução do custo dos serviços prestados.
Foi trazido da iniciativa privada para o setor público o conceito de produtividade (fazer
mais com menos), e iniciaram-se as grandes privatizações.

Esse primeiro modelo gerencial tem o objetivo de reorganizar a Administração Públi-


ca, tendo como meta principal a redução de despesas para alcançar a eficiência, de forma
que “o usuário do serviço público é tido somente como o financiador do sistema” (PALUDO,
2012, p. 72).
O segundo estágio é denominado Administração Gerencial ou Consumerism, e foca
no usuário do serviço público como cliente, passando a qualidade do serviço público a ser
relevante. Sobre isso Paludo (2012, p. 73) explica que:

Nesse segundo estágio (meados da década 1980, na Inglaterra e Estados Unidos), o


foco da administração passa a ser o cliente-usuário dos serviços públicos, e a quali-
dade é tida como a satisfação de suas necessidades. A ideia de “redução de custos
e eficiência a qualquer preço” é incompatível com os valores democráticos e com as
necessidades dos usuários: agora a questão do custo está subordinada à avaliação
do destinatário dos serviços, o cliente-cidadão.
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 95

Nesse segundo modelo, embora a redução de custos continue fazendo parte da efi-
ciência do Estado, ela deve estar acompanhada da qualidade do serviço prestado, passando
a reconhecer o cidadão como cliente dos serviços prestados pelo Estado, tendo como prio-
ridade a satisfação desse cliente. (PALUDO, 2012). Os elementos desse estágio, conforme
Bento (2003, p. 91), são:

(1) administração orientada para o mercado; utilização de mecanismos de mercado


— os paramercados — como forma de alocação de recursos; (2) mudança da gestão
hierárquica do tipo comando e controle para a gestão por contrato; flexibilização de
procedimentos e avaliação por metas; (3) horizontalização (downsizing) na adminis-
tração, com redução das instâncias e graus de hierarquia; (4) descentralização admi-
nistrativa, vale dizer, desconcentração; (5) separação entre um núcleo formulador de
estratégias e a parte operacional, ou de implementação; (6) parcerias entre o setor
estatal e o setor privado não lucrativo, mediante contratos de gestão; (7) opinião do
usuário como forma de feedback; preocupação com a qualidade e a excelência do
serviço.

O terceiro estágio, atualmente vigente, é o modelo gerencial orientado ao serviço pú-


blico ou Public Service Orientation (PSO). Esse modelo supera a ideia de tratar os adminis-
trados como clientes, passando a valorizar a participação do cidadão nas ações do Estado e
da sociedade nas decisões públicas, agrega à administração pública os princípios relaciona-
dos à cidadania (PALUDO, 2012). Abrucio (1997, p. 26) destaca que “toda a reflexão realiza-
da pelos teóricos do PSO leva aos temas do republicanismo e da democracia, utilizando-se
de conceitos como accountability, transparência, participação política, equidade e justiça”.
O termo cidadão, que substitui o de cliente, traz à tona no âmbito da administração
pública as noções de bem comum e de tratamento isonômico, ou seja, a busca pela equida-
de no tratamento aos cidadãos. Ainda, esse termo possui duplo sentido, pois além de con-
ferir direitos por meio dos serviços prestados pelo Estado, também lhe impõe obrigações,
devendo o cidadão fiscalizar a coisa pública e cobrar a prestação de contas por parte dos
governantes por seus atos praticados (accountability) (PALUDO, 2012).
Dernhardt e Dernhardt (2003, p. 181-184) resumem bem o que significou o Public
Service Orientation:

1º o Estado serve a cidadãos e a não clientes, devendo focar seus esforços no sentido
da construção de relações de confiança e colaboração com os cidadãos, encorajan-
do a assunção de suas responsabilidades como tais, trabalhando conjuntamente na
construção de uma cidadania ativa; 2º - a ação administrativa deve estar orientada à
identificação do que seja o interesse público; 3º - o Estado deve valorizar a cidadania
e o serviço público mais do que o empreendedorismo; 4º - a ação administrativa deve
ser concebida estratégica e democraticamente, como caminho de potencialização de
96 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

seus resultados positivos; 5º - a accountability deve ser reconhecida como desafio à


prática administrativa; 6º - o papel do Estado não é dirigir a cidadania – mas servi-la,
priorizando o desenvolvimento das relações de colaboração e solidariedade; e 7º - a
ação estatal deve estar orientada à valorização das pessoas – e não da produtividade.

Assim, a maneira como o Estado percebe o cidadão completou um ciclo, passando


de financiador à cliente e transformando-se em cidadão participativo das ações estatais.

2 Os sistemas de controle interno da Administração Pública


Segundo Conti e Carvalho (2011, p. 202), é possível vislumbrar a ideia de controle da
administração pública já na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 que:

[...] previa, já àquela época, o direito de pedir a prestação de contas ao agente públi-
co, demonstrando a preocupação e a importância do controle das atividades e das
finanças do governo. Surgiu inicialmente em razão da necessidade de controle sobre
a arrecadação tributária, dado que, antigamente, era extremamente pessoal a relação
entre contribuinte e Fisco. O Fisco, na realidade, era representado na personificação
estatal da figura do arrecadador, o que facilitava a malversação dos recursos públicos
e a corrupção dos agentes imbuídos dessa função.

A literatura especializada brasileira também formula conceitos para os controles ad-


ministrativos. Bento José Bugarin (1994, p. 12) define controle como sendo “a faculdade de
vigilância, orientação e correção que um poder, órgão ou autoridade exerce sobre os atos
praticados por outro, de forma a verificar-lhes a legalidade e o mérito e assegurar a conse-
cução dos interesses coletivos”.
Conti e Carvalho (2011, p. 202-203) destacam que a concepção de controle da
Administração Pública é apontada pelos estudiosos como diversa nos países latinos e an-
glo-saxões:

[...] no primeiro caso, é sinônimo de “verificação ou exame”, consoante se pode


constatar dos conceitos ora mencionados; já no segundo, de “guia, impulso corre-
tivo”, demonstrando a ideia de proatividade na prática anglo-saxã, pois se preocupa
mais em prevenir erros do que apenas julgar ou condenar após o seu cometimento.
Os doutrinadores dessa seara ligam a função de controle com o planejamento gover-
namental, de forma que serviria como um instrumento de aferição da boa condução
dos objetivos delimitados. Constata-se ser esta última a direção para a qual se en-
caminha a moderna noção de controle, e para a qual estão sendo direcionadas as
atividades dos órgãos que o exercem.
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 97

Assevera-se que é possível visualizar, ainda que timidamente, nos países latinos,
dentre eles o Brasil, os controles internos passando a atuar para a verificação dos atos ad-
ministrativos sob o trinômio: prevenção, orientação e correção (CONTI, CARVALHO, 2011).
Roberto Piscitelli (1998, p. 74) traz uma definição tida como moderna ao definir os
quatro principais objetivos dos Controles Internos: “revisão e/ou verificação das operações
sob o aspecto eminentemente contábil, formal e legal”; “eficiência, que concerne aos meios
empregados, aos recursos utilizados para a consecução dos objetivos”; “a eficácia, a verifi-
cação do produto, dos programas, dos fins perseguidos”; e “a avaliação dos resultados, ou
seja, o julgamento da própria administração”.
Deve-se asseverar que Piscitelli (1998), ao elaborar o que entende como moderno
conceito de controle interno, traz como primeiro objetivo a necessidade de manutenção da
avaliação dos aspectos formais e de legalidade já consolidados como prática, mas destaca
que atualmente o controle interno necessita ir além. Assim, este deve alcançar principal-
mente os aspectos da eficiência e eficácia, ou seja, o controle sobre os procedimentos e
resultados, e destaca como atribuição dar subsídios para o controle vertical (sociedade).
As diretrizes da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores
(INTOSAI) para Padrões de Controles Internos para o Setor Público (2004, p. 6) definem
controle interno como:

[...] um processo fundamental efetuado por todos em uma entidade, projetado para
identificar riscos e fornecer garantia razoável de que, ao se buscar cumprir a mis-
são da entidade, os seguintes objetivos gerais serão atingidos: executar operações
de forma organizada, ética, econômica, eficiente e eficaz; cumprir as obrigações de
accountability; estar em conformidade com as leis e os regulamentos aplicáveis; sal-
vaguardar recursos contra perda, abuso e dano.

Sobre essa nova forma de se entender os controles, Conti e Carvalho (2011, p. 203)
esclarecem que este vem se modificando com o tempo e “começa a ganhar outros ares,
indo além do mero controle burocrático, promovendo-se um verdadeiro controle gerencial”.
Spinelli (2009, p. 32) destaca que há caráter de accountability horizontal no controle
interno “por se configurar como uma instância pertencente ao ambiente estatal com capa-
cidade de monitorar e controlar seus próprios atos administrativos”, assim havendo uma
separação de funções da administração pública, em que a função executora passa a ser
policiada pela função controladora.
Para Juan Eduardo Toledo Cartes (2003, p. 1-2), necessário destacar que o controle
interno seja descentralizado, com um órgão permanente e possuir independência funcional,
com “unidades de controle interno deliberadas, representativas de uma capacidade de ob-
98 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

servação independente das linhas executoras, e de apoio efetivo às autoridades das institui-
ções públicas”. O controle passa a ser relevante como instrumento de apoio da autoridade
administrativa, assessorando-a na fiscalização, controle e orientação da coisa pública.
Ainda nessa linha de raciocínio Conti e Carvalho (2011, p. 210) destacam:

Além da função fiscalizatória, também são abarcadas pelo controle interno a preven-
ção e a orientação. Trata-se de importante instrumento para que a Administração
Pública alcance a eficiência, sinônimo de otimização na atuação governamental de
gestão de recursos públicos. Para isso, o controle interno deve, ao mesmo tempo,
integrar o órgão a que pertence e ter autonomia e independência suficientes para
exercer livremente suas atribuições, que abrangem, em função da sua competência,
a apuração de irregularidades, apontamento de falhas, orientação da atuação dos
gestores e indicação das melhores práticas de gestão.

O controle interno “é necessário para avaliar, medir e controlar as atividades do órgão


da Administração Pública, de forma independente, prestando assessoria à alta administra-
ção” (CONTI; CARVALHO, 2011, p. 207). Ainda segundo Conti e Carvalho (2011, p. 207), o
controle interno possui a finalidade de:

[...] constatar a eficiência, efetividade, eficácia, legalidade e legitimidade das ativi-


dades administrativas e financeiras exercidas pelos diversos componentes do órgão
em questão, realizando o acompanhamento das políticas traçadas pelo gestor, e dar
subsídios para correções, ajustes e aperfeiçoamentos voltados a atingir as metas,
além de fornecer informações úteis e necessárias para a tomada de decisões.

O controle interno no âmbito administrativo se consolidou e evoluiu com o tempo,


atualmente abrangendo os aspectos formais, mas também e principalmente abarcando a
avaliação dos procedimentos quanto a sua eficiência e dos resultados quanto a sua eficácia,
além de suas informações subsidiarem o controle social.

3 Os sistemas de controle interno na Administração Pública brasileira


A instituição dos sistemas de controle interno na estrutura administrativa estatal
surge no Brasil após o golpe militar de 1964, momento em que a administração pública é
marcada por um aprofundamento do burocratismo, não somente na concepção teórica de
tecnicidade das instituições, mas também de hierarquização e controle da estrutura admi-
nistrativa, trazendo para o executivo um forte controle orçamentário e financeiro, um modelo
determinantemente capitalista, visando construir uma organização forte e longeva (PONTES,
2014).
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 99

Os controles internos, à época, foram instituídos por meio da Lei n. 4.320/1964


prevendo que o controle ocorresse pela legalidade, pela fidelidade funcional dos agentes
(controle sobre os agentes públicos) e pelo cumprimento de programas de trabalho (controle
pelo resultado) nos órgãos públicos (CONTI; CARVALHO, 2011).
Em 1967 pela primeira vez aparecia o termo “controle interno” em uma constituição,
na qual se estabeleceu a responsabilidade ao controle interno sobre a fiscalização financeira
e orçamentária da União estabelecendo dentre as atribuições avaliar os resultados alcança-
dos pelos administradores e verificar a execução dos contratos. Assim a Lei n. 4.320/1964
e posteriormente a Constituição de 1967 possibilitou ao controle interno brasileiro ir além do
controle de formalidade, podendo atuar sobre o controle de resultados (CALIXTO, VELAS-
QUEZ, 2005).
O viés autoritário do governo colocou o controle interno a trabalhar pelo desenvol-
vimento de seus interesses ao passo que o controle externo passou a ter um caráter ba-
sicamente figurativo (PONTES, 2014). Após a redemocratização do país foi promulgada a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/1988, ficando claro na cons-
tituição um controle administrativo bipartido, um controle interno inserido em cada poder e
um externo desempenhado pelo poder legislativo com auxílio do Tribunal de Contas, agora,
órgão autônomo, sem subserviência ao Poder Executivo (CASTRO, 2008).
O Controle Interno na CRFB/1988 aparece em três artigos:

Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal,
mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo
Municipal, na forma da lei.
[...]
Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da
União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legiti-
midade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exer-
cida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle
interno de cada Poder.
[...]
Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada,
sistema de controle interno com a finalidade de: I - avaliar o cumprimento das metas
previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamen-
tos da União; II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia
e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e enti-
dades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por
entidades de direito privado; III - exercer o controle das operações de crédito, avais e
garantias, bem como dos direitos e haveres da União; IV - apoiar o controle externo no
exercício de sua missão institucional (BRASIL, 1988, grifo nosso).
100 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

Da leitura do art. 74 da CRFB/1988 é possível correlacionar o sistema de controle


interno com a qualidade dos gastos públicos, visto que se atribui à administração pública
por meio de seus sistemas de controle interno a obrigatoriedade de realização da avaliação
do efetivo cumprimento das metas estabelecidas, bem como da eficiência da gestão orça-
mentária (BRASIL, 1988), assim “a qualidade, então, pode ser medida por determinados
indicadores que levam em conta os desideratos em determinada política pública” (CONTI,
CARVALHO, 2011, p. 213). Assim, citando como exemplo quando a constituição determina
que a União aplique 18% e os Estados, Municípios e Distrito Federal 25% das suas receitas
de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino, cabe aos sistemas de controle
interno além de verificar a correta aplicação do montante de recursos, averiguar a qualidade
das políticas públicas desenvolvidas com esses recursos, ou seja, se os procedimentos são
eficientes e os resultados são eficazes.
Ainda, no art. 70, a CRFB/1988 estabelece como atribuição dos sistemas de controle
interno a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da admi-
nistração pública quanto à legalidade, legitimidade, economicidade. Embora tal dispositivo
traga um rol taxativo de categorias para controle, este não está adstrito apenas a essas,
possuindo suas atribuições gerais definidas pelo art. 74 (BRASIL, 1988).
Não há ainda uma uniformidade em como se instituirá o controle interno devido à
abrangência do texto constitucional, entretanto, há quem defenda que o sistema de controle
interno é responsável pelo controle dos atos administrativos dos três poderes conjuntamen-
te, mas a maior parte dos estudiosos aponta para uma estrutura de sistema de controle
interno para cada poder. Quanto aos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e
Municípios) cada um deve instituir e regulamentar seus próprios sistemas de controle interno
(CONTI, CARVALHO, 2011). A título de exemplo o controle interno é regulamentado na esfera
federal pela Lei n. 10.180/2001 que “organiza e disciplina os Sistemas de Planejamento e
de Orçamento Federal, de Administração Financeira Federal, de Contabilidade Federal e de
Controle Interno do Poder Executivo Federal” (BRASIL, 2001).
A Lei Complementar Federal n. 101, de 04 de maio de 2000, denominada Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), tem por escopo fundamental o equilíbrio das contas públicas
e demonstra claramente ser imprescindível a existência do Controle Interno na estrutura
administrativa estatal, conforme dispõe o artigo 59 da LRF dispõe:

Art. 59. O Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas,
e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público, fiscalizarão o
cumprimento das normas desta Lei Complementar, com ênfase no que se refere a:
I - atingimento das metas estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias; II - limites e
condições para realização de operações de crédito e inscrição em Restos a Pagar; III
- medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite,
nos termos dos arts. 22 e 23; IV - providências tomadas, conforme o disposto no art.
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 101

31, para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respec-
tivos limites; V - destinação de recursos obtidos com a alienação de ativos, tendo em
vista as restrições constitucionais e as desta Lei Complementar; VI - cumprimento do
limite de gastos totais dos legislativos municipais, quando houver (BRASIL, 2000).

As normas brasileiras de contabilidade aplicadas ao setor público, mais especifica-


mente as Normas Básicas de Contabilidade - T 16.8 (CONSELHO FEDERAL DE CONTABILI-
DADE, 2012, p. 33), estabelece quanto à abrangência dos controles internos, que além dos
controles formais de legalidade possuem as atribuições de “contribuir para a promoção da
eficiência operacional da entidade” e “auxiliar na prevenção de práticas ineficientes e antieco-
nômicas, erros, fraudes, malversação, abusos, desvios e outras inadequações”.
Mesmo a legislação brasileira tendo adotado o moderno conceito de controle interno
quanto ao acompanhamento concomitante dos atos e controle dos resultados avaliando a
sua eficácia, art. 74 da CRFB/1988 e legislação esparsa, o que se denota da realidade é
que no Brasil os controles internos têm se desenvolvido sob o enfoque do primeiro objetivo
proposto por Piscitelli (que citamos no item anterior). Ou seja, controles altamente formais,
visando a revisão e a verificação dos aspectos de legalidade dos atos administrativos, prin-
cipalmente os procedimentos contábeis, não se visualizando as demais formas de controle
quanto à eficiência dos procedimentos e eficácia dos resultados. Essa ineficácia dos contro-
les internos é fator propulsor de um Estado que não consegue controlar a si mesmo e como
efeito reflexo não possibilita que a sociedade possa controlar o Estado, pois as informações
disponibilizadas pelo Estado são escassas e não possuem qualidade substancial (JARDIM,
1995; SANCHEZ, 2003).
O tempo passou desde a implantação da reforma administrativa no Brasil, durante
a década de 1990, que adotou o modelo gerencial de administração pública, os ambientes
das instituições, em uma velocidade cada vez mais aceleradas, passam por transformações
profundas. A administração pública embora tenha uma tendência ao modelo gerencialista é
constantemente alvo de incompetência, impropriedades, nepotismo, fraudes e malversação
de dinheiro público, o que põe em descrédito a confiança dos administrados em relação à
administração pública. São essas situações que demonstram a fragilidade dos sistemas de
controle interno das instituições públicas expondo suas “deficiências que os impedem de
garantir de forma razoável a economicidade, eficiência, eficácia e qualidade na prestação de
serviços pelos órgãos públicos”; são esses fatores que levam a crer que “os atuais sistemas
de controle não acompanharam ou não estão conseguindo acompanhar as constantes e
rápidas transformações características da nova economia” (DAVIS, BLASCHEK, 2006, n.p.).
Os controles internos brasileiros que possuem predominância de verificação dos
atos administrativos após sua realização sob a análise de aspectos eminentemente formais
102 | RENATO CECHINEL | ANDRÉ AFONSO TAVARES | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA

são marcados por uma atuação repressiva e punitiva, o que demonstra a falta de uma cultura
de acompanhamento das fases de execução dos atos administrativos (PESSOA, 1998). Essa
característica dos controles internos de um trabalho de correição a posteriori prejudica a
atuação dos órgãos de controle interno como instrumento de aprimoração da administração
pública, as atividades puramente coercitivas têm sua abrangência limitada, pois o ato já foi
consumado, assim são menos tempestivas em relação à garantia da segurança jurídica
(ROCHA, 2002).
Nesse momento em que as instituições estão voltadas para o futuro e preocupadas
em acompanhar as constantes mudanças, os controles internos apresentam limitações e
falta de sincronia, com uma predisposição para o presente e para o passado, sem foco para
o futuro. Essa obsolescência provém de um projeto ultrapassado formulado no passado para
uma forma de controle das atividades que talvez não sejam mais relevantes (MCNAMEE,
SELIM, 1999).
Por isso o controle interno não deve ocorrer somente após o ato, pois uma inefi-
ciência já ocorrida dificilmente poderá ser desfeita. Desse modo, o controle interno para
ser eficaz deve acompanhar a execução e identificar a ineficiência antes do momento da
ação. Significa dizer que objetivos, planos, políticas e padrões preestabelecidos devem ser
compreendidos antes de sua realização e ter acompanhamento concomitante, ocorrendo um
controle prévio, sendo possível aos responsáveis nortear as políticas, corrigi-las a tempo,
para que estas apresentem resultados eficazes (WELSCH, 1996).
Deve o controle estar interligado, de forma a acompanhar, no tempo e espaço, to-
das as fases de desenvolvimento da ação em andamento, identificando as situações que
causam a ineficiência e orientando para que sejam adotadas medidas compensatórias e/ou
alterações nos processos para reduzi-las, assim alcançando a máxima eficiência possível
(PESSOA, 1998; ABRAMO, 2004).
Portanto, os Sistemas de Controle Interno (SCI) devem acompanhar os processos de
evolução da administração pública e se fortalecerem como instituição, passando a cumprir
com autonomia e isenção sua missão constitucional de acompanhar o desenvolvimento de
políticas públicas, orientando os gestores das ineficiências verificadas visando corrigi-las
antes do resultado ineficaz. Mesmo assim continua o controle a posteriori quanto à legalida-
de e sua característica punitiva quando necessário, contudo, agora imprescindível garantir a
eficiência da atuação administrativa e demonstrar se as políticas públicas desenvolvidas pelo
Estado apresentam resultados eficazes, garantindo ao cidadão e à sociedade informações
seguras e confiáveis acerca da atuação estatal.
AS TRANSFORMAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE SEUS SISTEMAS... | 103

Conclusão
Demonstrou-se que a Administração Pública tem evoluído constante, iniciando o
estudo pelo modelo patrimonialista, passando para o burocrático e, por fim, o gerencial,
abordando os estágios desse último modelo, sendo que o estágio atual denomina-se modelo
gerencial orientado ao serviço público.
Ao passo que os Sistemas de Controle Interno (SCI), segmento da própria admi-
nistração pública que visa salvaguardar a legalidade, eficiência e eficácia das ações admi-
nistrativas, também evoluíram, sendo instituídos originalmente como órgãos de atestação
da conformidade legal dos procedimentos burocráticos da administração, passando para o
trinômio da orientação, prevenção e correção de ações, para, por fim, abarcarem a avaliação
dos resultados com a finalidade de atestar sua eficácia real.
Observou-se que a evolução da administração e dos SCI deve se dar de forma
concomitante, devendo o SCI ser instrumento de auxílio da evolução do Estado enquanto
propulsor de políticas públicas, pautando-se pelos princípios relacionados à cidadania, re-
publicanismo e democracia utilizando-se de conceitos como accountabillity, transparência,
participação política, equidade e justiça.
Constatou-se que a legislação brasileira adota o moderno entendimento de SCI for-
mado pelo conjunto de atribuições que abarcam a verificação dos aspectos formais e le-
gais aliados à orientação, prevenção, correção e avaliação quanto à eficácia dos resultados.
Porém, verificou-se que na prática esses controles apresentam características puramente
burocráticas, no sentido de atuarem estritamente na verificação da formalidade e legalidade
dos procedimentos administrativos, demonstrando uma falha do Estado que não consegue
controlar a si mesmo e que, como reflexo, inviabiliza o controle por parte da sociedade, pois
as informações produzidas são escassas e não possuem qualidade substancial.
Assim traz este estudo a reflexão quanto à importância do avanço concomitante dos
SCI com o da administração pública estatal, sendo necessário o aperfeiçoamento da insti-
tuição de controle interno como meio de auxiliar o aprimoramento da administração pública,
suas políticas e as informações disponibilizadas aos cidadãos e à sociedade como um todo.

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PARTE II
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS
E DIREITOS SOCIAIS
CAPÍTULO VII

O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030


DA ONU: UM OLHAR SOBRE AS POSSIBILIDADES
DO COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA
NO MUNDO DO TRABALHO

ISADORA KAUANA LAZARETTI 1


GIOVANNI OLSSON 2

Introdução
O presente artigo aborda a temática do desenvolvimento sustentável da Agenda 2030
da Organização das Nações Unidas (ONU), com base na análise do cooperativismo de pla-
taforma como instrumento de desenvolvimento na sociedade contemporânea. Trata-se de
um tema complexo e contemporâneo, porque enfrenta situações que estão ocorrendo em
tempo real na nossa sociedade, reflexos do fenômeno da globalização e, especialmente, dos
avanços tecnológicos que tomaram conta das mais diversas relações sociais.
O objetivo geral deste estudo consiste em analisar as potencialidades do cooperati-
vismo de plataforma como um instrumento de desenvolvimento sustentável pluridimensional
na Agenda 2030 da ONU. Especificamente, tem-se a tarefa de compreender o mundo do
trabalho e seus desafios no cooperativismo de plataforma; a de estudar o desenvolvimento
sustentável pluridimensional e a Agenda 2030 da ONU como um novo marco civilizatório; e,
por fim, verificar se o cooperativismo de plataforma pode vir a ser considerado um instru-
mento de desenvolvimento sob a ótica da Agenda 2030 da ONU.

1
Doutoranda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade Co-
munitária da Região de Chapecó – Unochapecó. Advogada. E-mail: isadoralazaretti@unochapeco.edu.br.
2
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Unochapecó. E-mail: golsson71@gmail.com.
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 109

A revolução tecnológica das últimas décadas tem sido rotineiramente compreendida


como uma das causas da flexibilização e destruição do trabalho. A emergência das platafor-
mas virtuais ou digitais provocou mudanças profundas no mundo do trabalho. Os modelos
tradicionais de trabalho empregatício e as estruturas de trabalho passaram a ser vistos como
incompatíveis com transformações tecnológicas implementadas pela nova economia. Diante
desse novo modelo, justifica-se a presente investigação pela extrema importância e atualida-
de, na medida em que, nos próximos anos, a tecnologia modificará completamente a forma
de interação entre tomadores e prestadores de serviços nos segmentos mais tradicionais,
como comércio e transporte de passageiros e cargas, por exemplo.
Para explorar a temática dentro do recorte proposto, o trabalho desdobra-se em
três tópicos sucessivos. No primeiro, aborda-se o mundo do trabalho e seus desafios no
cooperativismo de plataforma, no sentido de situar o leitor nesse conceito emergente e nas
mudanças ocasionadas pelo fenômeno da globalização e os avanços tecnológicos nas re-
lações de trabalho. Em segundo lugar, busca-se estudar o conceito de desenvolvimento
sustentável pluridimensional da Agenda 2030 da ONU enquanto um novo marco civilizatório
a ser observado e alcançado pelos países, preocupados com o futuro da humanidade. Nesse
ponto, aborda-se o desenvolvimento sustentável enquanto categoria conceitual redefinida
pela Agenda 2030 da ONU e suas principais características e intenções. Por fim, no terceiro
tópico, discute-se a análise das possibilidades das novas plataformas figurarem como ins-
trumento de desenvolvimento, buscando demonstrar alguns referenciais que possam con-
tribuir para a efetivação desse paradigma de desenvolvimento pluridimensional da Agenda
2030.
Os procedimentos metodológicos adotados para a realização desta pesquisa con-
sistiram no método dedutivo, sendo a pesquisa de caráter qualitativo, tendo sido adotada a
técnica de pesquisa bibliográfica para sua elaboração. Trata-se, assim, de uma investigação
necessária que, apesar de estar distante de produzir alguma certeza, pode vir a mostrar
algumas possibilidades dentro das plataformas digitais de trabalho e da garantia do trabalho
decente, anunciado como um objetivo a ser alcançado pela Agenda 2030.

1 O mundo do trabalho e seus desafios no cooperativismo de plataforma


No presente artigo, utiliza-se como marco teórico, ao tratar de trabalho, a abordagem
que se refere especificamente ao trabalho humano, isto é, aquele produtivo que corresponde
ao indivíduo que o realiza, vendendo sua energia pessoal e sua força de trabalho, de forma
onerosa, em troca de uma contraprestação, para garantir a concretização de sua própria
condição de humanidade existencial.
Sabe-se que o trabalho sempre configurou uma condição de existência da pessoa
humana, porque está diretamente ligado com a necessidade do homem de buscar os meios
110 | ISADORA KAUANA LAZARETTI | GIOVANNI OLSSON

garantidores de sua subsistência, tendo, assim, se tornado uma necessidade humana. Des-
de o surgimento das relações de trabalho no mundo, inúmeras foram as transformações
ocorridas nesse campo, especialmente pelo avanço da sociedade e, mais recentemente, pela
emergência do fenômeno da globalização.
A globalização reconfigurou diversas esferas da vida em sociedade, por exemplo, no
campo das comunicações, transportes, informática, telemática, alimentação, e, em especial,
as relações de trabalho, uma vez que todos esses campos passaram a depender cada vez
mais da tecnologia, da criatividade, das indústrias e das inovações. Trata-se, assim, nas
palavras de Ianni (2007, p. 9), de “[...] um processo de amplas proporções” que envolve
“nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais,
economias e sociedades, culturas e civilizações”.
Passou-se a verificar o surgimento de nova economia, que transformou as relações
de trabalho a partir do deslocamento do poder do Estado para, em especial, as gigantescas
empresas transnacionais. Os mercados passaram a se integrar numa velocidade surpreen-
dente, resultando na circulação cada vez maior e mais rápida de bens e serviços, assim
como de capital, informação e tecnologia em escala global como nunca tinha se visto (FA-
RIA, 1999).
As operações de capital passaram a envolver montantes elevados e com maior mo-
bilidade (CHESNAIS, 1998). Essas modificações, consequentemente, geraram grande re-
percussão sobre os empregos e a política social, inclusive, com a flexibilização dos direitos
trabalhistas em uma espécie de “corrida para baixo”, em que os Estados reduzem os seus
padrões de proteção social (e, em paralelo, de proteção ambiental e de taxação de tributos),
na tentativa de ampliar a atração de investimentos externos.
Nesse sentido, pode-se mencionar que a globalização, na perspectiva de Faria (1999,
p. 75), relaciona-se com a “progressiva conversão das ciências exatas, biomédicas e huma-
nas em técnicas produtivas”, em razão da reunião da tecnologia nos processos produtivos
ao longo dos anos. Com base nessas mudanças, emergiu, assim, um novo modelo de pro-
dução que envolve a divisão do trabalho e a própria organização empresarial, a exemplo do
fordismo e do taylorismo (OLSSON, 2006). Esses modelos de produção são considerados
por Faria como uma espécie de “produção em massa de produtos homogêneos” que fazem
uso da “tecnologia rígida da linha de montagem com maquinário especializado e rotinas de
trabalho padronizadas por métodos tayloristas” (1999, p. 76).
A utilização da ciência enquanto uma técnica voltada para a produção resultou num
conjunto de transformações técnicas e científicas decorrentes da “cooptação do conheci-
mento científico pelo capital”. Albuquerque (2006) menciona como exemplos o fordismo e
o toyotismo, utilizando-se, ainda, da concepção de Faria (1999) para descrever essas novas
formas de organização do trabalho produtivo.
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 111

O fordismo “procurou fundir a força de trabalho num todo orgânico, formando um


genuíno trabalhador coletivo, em que a contribuição produtiva de cada indivíduo e cada grupo
dependia da contribuição de cada um dos outros” (FARIA, 1999, p. 78). O toyotismo, por sua
vez, causou maior impacto pela revolução técnica e pela capacidade de expansão desse mo-
delo produtivo, visto como um “padrão de superação do fordismo” diante das consequên-
cias que acarreta no mundo do trabalho (ALBUQUERQUE, 2006, p. 39). Esse sistema de
organização da produção exige muito mais do trabalhador do que exigia no sistema fordista,
porque houve a intensificação da exploração do trabalho, em razão da exigência de que os
trabalhadores operassem simultaneamente várias máquinas.
Com isso, o aparato produtivo, assim como as próprias relações de trabalho foram
“flexibilizadas”. Com o capitalismo expandindo-se a todo e a qualquer custo, a ociosidade
da força de trabalho passou a ser evitada, especialmente pelo objetivo primordial das empre-
sas de acumular, cada vez mais, e de aumentar os níveis de lucratividade (ALBUQUERQUE,
2006).
Como exemplo, emergiram e se consolidaram as empresas transnacionais, con-
sideradas como o resultado da expansão da atividade econômica no modo de produção
capitalista difundido por todo o globo e já descoladas de vínculos de nacionalidade. São
vistas como agentes garantidores da reestruturação da economia e compõem o núcleo de
uma rede produtiva e comercial de nível global. As empresas transnacionais exercem pro-
tagonismo e poder no cenário mundial, na medida em que dominam as tecnologias e os
principais segmentos do mercado, além de agregarem uma constelação de grandes, médias
e pequenas empresas em uma complexa rede de cadeias produtivas (DE FAZIO, 2014).
Podem ser consideradas como os exemplos mais concretos do desenvolvimento
econômico capitalista e de seu estágio supremo (BEDIN, 2001). Korten atenta que a atuação
das empresas transnacionais se direciona, especificamente, para a obtenção de lucros a
partir da utilização de instrumentos que permitem a centralização do aumento dessa lucrati-
vidade. Para o autor, elas “surgem de uma combinação de competição de mercado, da de-
manda dos mercados financeiros e dos esforços dos indivíduos dentro delas para promover
suas carreiras e aumentar seus ganhos” (1996, p. 69).
A atuação dessas empresas, somada aos reflexos da globalização e da intensifi-
cação do capitalismo, resultou na precarização das relações trabalhistas, uma vez que os
novos postos de trabalho que surgem diante das inúmeras inovações tecnológicas não ofe-
recem, em muitos casos, as garantias trabalhistas conquistadas ao longo de anos de luta
de reivindicações.
Desemprego, informalidade e a redução dos níveis de proteção trabalhista são re-
sultados dessas modificações resultantes do fenômeno globalizante. Até então, a empresa
contratava o empregado, formando-se um vínculo estável e duradouro de relacionamento
jurídico, econômico e social. Hoje, porém, há contratação de prestação de serviços com o
112 | ISADORA KAUANA LAZARETTI | GIOVANNI OLSSON

intuito de diminuir o custo do trabalho e aumentar a lucratividade da empresa, preferindo-se


a maximização dos lucros em detrimento da estabilidade social e econômica do tomador, e,
nessa esteira, de sua família e do tecido social em que se inserem.
Essa transformação alcança os processos de trabalho em vários aspectos: desde a
força de trabalho aos produtos dele resultantes. Para Braverman (2015, p. 149), na medida
em que as mudanças atingiram o campo das relações de trabalho, emergiu a tendência,
de forma cada vez mais acentuada, para uma maior produtividade, isto é, “o esforço para
encontrar modos de incorporar até mesmo quantidades menores de tempo de trabalho em
quantidades cada vez maiores de produto”, resultando, assim, no aumento do faturamento.
Com isso, amplifica-se a apropriação da mais-valia, mas ao custo de instabilizar e precarizar
o vínculo social e de humanidade da relação.
No mundo do trabalho, os avanços tecnológicos provocaram impactos diretos. Os
tempos atuais demonstram, como define Scholz (2016, p. 10): “uma nova economia, mais
inteligente e dinâmica”, em que as relações de trabalho e as estruturas comerciais, influen-
ciadas pela velocidade da internet, encontram-se cada vez mais precarizadas.
Novos métodos de organização do trabalho têm surgido, a partir da transformação
do sistema econômico, os quais passaram a exigir novas ferramentas daquelas já existen-
tes atualmente para proteger os indivíduos que vivem e dependem de seu trabalho. Com o
avanço das novas tecnologias de informação e comunicação, verificou-se uma redução na
privacidade dos trabalhadores, especialmente diante do monitoramento por computadores,
câmeras, GPS e redes sociais e aumento da jornada de trabalho, seja ela prestada diretamen-
te ao trabalhador ou em sua residência, por meio de teletrabalho, por exemplo. Todas essas
mudanças resultam do aumento do poder de vigilância e controle dos empregadores sobre
os trabalhadores (SIGNES, 2017).
É nesse contexto que surge a economia de “compartilhamento”, também chamada
de “economia dos bicos” ou “economia em pares”. Trata-se, assim, de “uma economia sob
demanda que foi iniciada para monetizar serviços que antes eram privados” (SCHOLZ, 2016,
p. 17-18), ocupando espaços até então inexplorados e momentos do tempo do mundo da
vida fragmentados e descontínuos. Configura uma nova era de novos negócios que se utili-
zam da internet para conectar consumidores e trabalhadores com provedores de serviços.
A economia do compartilhamento configura um novo tipo de negócio, caracterizado como
“uma mistura afetiva de comércio e causa no mundo digital” (SLEE, 2017).
Para Slee, “a economia do compartilhamento está propagando um livre mercado
inóspito e desregulado em áreas de nossas vidas que antes estavam protegidas” (2017,
p. 23). Trata-se, em verdade, de uma nova onda de relações de negociação que se utilizam
da internet para interligar os consumidores com os fornecedores de serviços, tanto no mun-
do digital, como no mundo físico. Aí estão envolvidos milhares de trabalhadores em espaços
fragmentados e em tempos fragmentados, e, naturalmente, com contraprestações igualmen-
te fragmentadas e descontínuas.
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 113

Falar em economia do compartilhamento, portanto, é falar sobre o cooperativismo


de plataforma. Atualmente, as relações de trabalho estão se tornando cada vez mais “ube-
rizadas”. Em verdade, não irá demorar para que a sociedade passe a enfrentar o fim das
profissões por conta do crescimento dos construtores de pontes digitais (SCHOLZ, 2016).
Como exemplo dos principais líderes das plataformas de trabalho estão o Uber e o Airbnb,
que se projetam de maneira desenfreada e servem de base na perspectiva de logística e ex-
ploração no mundo moderno. Observa-se a força global das duas corporações homônimas
que, apesar de oferecerem serviços diferentes, se sustentam da mesma forma, por meio de
aplicativos de celular, plataformas e páginas na internet.
As plataformas estão, cada vez mais, sendo utilizadas como fontes de renda de tra-
balho. Aplicativos de serviços, cujo acesso é possibilitado por meio da internet, tornaram-se
novas formas de trabalho, mas ainda há poucos estudos científicos detalhados quantificando
sua real dimensão. Segundo dados recentes do Jornal Estado de S. Paulo (GAVRAS, 2019),
aproximadamente 4 milhões de trabalhadores autônomos utilizam as plataformas como meio
de trabalho. Isso demonstra que tais plataformas de serviços, além de representarem mu-
danças na oferta de serviços aos consumidores, resultaram em transformações significati-
vas nas relações de trabalho.
Nesse sentido, Signes (2017) afirma que as novas tecnologias estão afetando os tra-
balhadores de tal forma que eles estão desaparecendo. Para ele, “as empresas estão dando
um passo para uma balconização do mercado” (SIGNES, 2017, p. 28), de modo que apenas
contratam os trabalhadores mais imprescindíveis, e seu modelo de negócio consiste em
colocar o demandante do serviço com o provedor deste, que, geralmente, é um autônomo
independente.
A utilização das plataformas virtuais permite a conexão entre empregador, cliente e
trabalhador. O trabalho é realizado por meio das plataformas virtuais (aplicativos), nos quais
os usuários conectam-se por meio da internet com uma série de trabalhadores disponíveis
para a prestação de trabalho, quando previamente cadastrados nessas plataformas (TRILLO,
2018).
As plataformas virtuais criam uma infraestrutura invisível que conecta oferta e de-
manda, facilitando a interação entre os prestadores de serviços e os usuários. Contudo, o
triunfo dessas plataformas depende do aproveitamento de uma legislação menos protetora
para os autônomos independentes, bem como uma liberdade de fixação de preços, isto é,
leilão pelo menor preço (SIGNES, 2017).
Instabilidade e insegurança são traços marcantes dessas novas relações de trabalho.
Emerge, segundo Antunes (2018, p. 23), “um novo sonho do empresariado global”, consis-
tente numa espécie de trabalho sem contrato, sem previsão de cumprimento de horas e sem
direitos trabalhistas assegurados. A prestação do trabalho por meio das plataformas consis-
te num simples chamado, em que os trabalhadores devem estar on-line para que possam
114 | ISADORA KAUANA LAZARETTI | GIOVANNI OLSSON

atender essa demanda intermitente. Com isso, as corporações se aproveitam, expandindo a


uberização e ampliando a pejotização, criando uma nova modalidade de trabalho que Antu-
nes denomina de “trabalho escravo digital” (ANTUNES, 2018, p. 23).
Nesse contexto, e exposto o panorama desafiador do mundo do trabalho e seus de-
safios no cooperativismo de plataforma, passa-se ao estudo do desenvolvimento sustentável
na Agenda 2030 da ONU como um novo marco civilizatório.

2 O novo marco civilizatório do desenvolvimento na Agenda 2030 da ONU


O debate envolvendo o desenvolvimento vem se tornando cada vez mais recorren-
te, especialmente após o lançamento da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas
(ONU), que constitui um novo marco civilizatório a ser observado e alcançado. A Agenda
2030 expressa o desenvolvimento enquanto um projeto novo que se preocupa com o cres-
cimento econômico e com o meio ambiente, por certo, mas também introduz outras dimen-
sões nessa equação, no objetivo de promover integralmente a pessoa humana, em qualquer
lugar e sob qualquer protagonismo.
A definição de desenvolvimento sustentável passou a se concentrar menos nas ne-
cessidades intergeracionais e mais na dinâmica holística, de equilíbrio de dimensões. Até
então, a concepção de desenvolvimento sustentável esteve historicamente interligada com
debates envolvendo a proteção ambiental enquanto um aspecto limitador para o crescimento
da economia, pensada em termos meramente quantitativos. Contudo, essa visão hoje está
ultrapassada, porque, com o advento da Agenda 2030 da ONU, a noção de desenvolvimento
sustentável é concebida como um tripé (ou prisma) de dimensões, consideradas integradas
e indivisíveis: a dimensão social, a econômica e a ambiental, todas derivadas de implemen-
tação por ações da dimensão político-institucional.
Spangenberg (1995), por exemplo, inaugurou a ideia de triângulo da sustentabilida-
de, que logo se transformou em prisma da sustentabilidade, representando graficamente o
desenvolvimento sustentável enquanto um processo de articulação de elementos sociais,
econômicos, ambientais e político-institucionais. Meadowcroft (2000, p. 373), na mesma
linha, considerou o desenvolvimento sustentável como “[...] um conceito ponte – como uma
ideia que poderia desenhar em conjunto domínios políticos aparentemente distintos, e unir
diferentes interesses em torno de uma agenda comum”, isto é, um “meta-objetivo político
potencialmente unificador”.
A Agenda 2030 da ONU foi anunciada em setembro de 2015, quando os 193 Esta-
dos-membros acordaram o documento intitulado Transformando Nosso Mundo: a Agenda
2030 para o Desenvolvimento Sustentável” O referido documento é composto de uma de-
claração com 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODSs) e 169 metas. A agenda
representa, segundo Sachs (2017), o ápice da incorporação do desenvolvimento sustentável
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 115

pluridimensional, e a realização do ambicioso projeto perpassa boas práticas de governança


pelos Estados. Por meio de seus objetivos e metas, a Agenda 2030 busca concretizar e ga-
rantir os direitos humanos de todos, a partir da adoção de medidas transformadoras que se
mostram urgentemente necessárias para tornar o mundo sustentável e resiliente.
Nesse sentido, e para que se possa mapear a extensão e a profundidade desse
projeto importa elencar os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODSs): acabar com
a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; acabar com a fome, alcançar a
segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável; assegurar
uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades; assegurar a edu-
cação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao
longo da vida para todos; alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e
meninas; assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos;
assegurar a todos o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia;
promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e
produtivo e trabalho decente para todos; construir infraestruturas resilientes, promover a
industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação; reduzir a desigualdade dentro
dos países e entre eles; tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros,
resilientes e sustentáveis; assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis; tomar
medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos; conservar e usar
sustentavelmente os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento
sustentável; proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres,
gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degra-
dação da terra e deter a perda de biodiversidade; promover sociedades pacíficas e inclusivas
para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir
instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis; e fortalecer os meios
de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável (ONU,
2015).
Esses objetivos, por certo, possuem natureza global e aplicabilidade universal, as-
sim estipulados com o propósito de “não deixar ninguém pra trás”. A Agenda 2030 veicula,
em vários momentos, a necessidade de as ações serem sempre pautadas pelos níveis de
desenvolvimento, pelas políticas, prioridades e realidades nacionais, regionais e locais. Além
disso, levando em consideração o raio alcançado pelos ODSs, esse plano de ação recomen-
da que os objetivos sejam buscados e alcançados por meio de uma “parceria global revitali-
zada”, de que façam parte os governos, a iniciativa privada, a sociedade civil, o Sistema das
Nações Unidas, além de outros atores (ONU, 2015, p. 13). Isso tudo constitui uma novidade
revolucionária no estudo do desenvolvimento sustentável.
Na visão tradicional, a ideia de desenvolvimento sustentável era estudada a partir da
preocupação de um desenvolvimento da sociedade atual que não prejudique as futuras gera-
ções. Essa preocupação foi inicialmente destacada pelo filósofo alemão Hans Jonas, a partir
116 | ISADORA KAUANA LAZARETTI | GIOVANNI OLSSON

da proposição da “ética da responsabilidade”, uma vez que, no mundo hodierno, diante dos
grandes avanços tecnológicos das últimas décadas, ao homem tornou-se possível destruir
com facilidade a natureza e prejudicar as futuras gerações, de modo que se faz necessária
a prática de uma ética para a humanidade, focada no princípio da responsabilidade (MAR-
QUES; BARBOSA; ARAÚJO, 2017). Na verdade, a contribuição da Agenda 2030 não é no
sentido de abandonar as principais premissas da visão tradicional, mas sim de incorporar
novas dimensões, articulá-las e introduzir novos atores no debate, o que criou um projeto
não apenas mais completo e complexo, como substancialmente mais ambicioso.
Para Silva (2010), o termo “desenvolvimento sustentável” configura um conceito
multifacetado, e considera que sua definição não é pacífica, na medida em que seria possível
distinguir mais de sessenta significados. Contudo, para a autora, apesar da existência de
uma diversidade de significados, o desenvolvimento sustentável trouxe de novo “uma refle-
xão teórica que incorporou novas dimensões, tais como ecologia, equidade, justiça social”
(SILVA, 2010, p. 407).
A noção de desenvolvimento sustentável se transformou em uma categoria-chave,
que nos últimos anos passou a ser amplamente divulgada, constituindo um campo em que
transitam diferentes grupos sociais e de interesses, como economistas, políticos, ecologis-
tas, profissionais do setor público e privado, e empresas, dentre outros (LEITE; CAETANO,
2010).
Com a instituição da Agenda 2030 e com a premissa de que a realização desse pro-
jeto demanda boas práticas de governança, a promoção do desenvolvimento em nome des-
sa “boa governança” ocupou o centro dos debates sobre as políticas de desenvolvimento.
Segundo Chang (2004, p. 124), “todos os países devem adotar um conjunto de ‘instituições
boas’ [...]”, a partir da outorga aos países de um prazo mínimo de transição para mudanças.
Apesar da iniciativa, não se sabe quando os Estados e a humanidade avançarão no
cumprimento e no alcance dos objetivos e metas de desenvolvimento sustentável da Agenda
2030. Todavia, algumas práticas se apresentam, desde logo, como potenciais aliadas para
esse fim, como, em destaque, o direito ao trabalho decente e as possibilidades de as novas
plataformas constituírem instrumentos de desenvolvimento, cuja análise será realizada no
próximo tópico.

3 As possibilidades das novas plataformas como instrumentos de


desenvolvimento
A emergência do fenômeno da 3ª Revolução Industrial nas últimas décadas, e, mais
recentemente, da chamada 4ª Revolução foi marcada por uma série de inovações e avanços
tecnológicos que geraram importantes reflexos no mundo do trabalho. As descobertas nos
campos da microeletrônica, microinformática, robotização e telecomunicações fizeram com
que trabalhadores passassem a desenvolver atividades não apenas de simples manipulação
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 117

de materiais, mas aquelas que exigiam o controle de máquinas complexas, especialmente no


setor industrial (PORTO, 2009).
Assim como entende Antunes (1999), as modificações no campo das relações tra-
balhistas nos últimos anos são verificadas a partir de cinco fatos, que o autor denomina de
“tendências”. A primeira seria a redução em escala mundial do operariado manual, fabril,
estável, isto é, aquele típico do taylorismo e fordismo; a segunda tendência seria marcada
“pelo enorme aumento do assalariamento e do proletariado precarizado em escala mundial”
(1999, p. 202), decorrente do aumento do número de trabalhadores homens e mulheres
em regime de tempo parcial e trabalhos temporários; a terceira, por sua vez, se verificaria a
partir do aumento expressivo do trabalho feminino, seja na indústria ou no setor de serviços;
a quarta tendência consistiria na enorme expansão dos trabalhadores assalariados de super-
mercados, do setor bancário e turístico; e, por fim, a quinta tendência se traduziria pela ex-
clusão de trabalhadores jovens e velhos, em que os jovens, ainda que qualificados por seus
cursos superiores, não possuiriam espaço no mercado de trabalho, enquanto que os velhos,
considerados pelo autor como aqueles com mais de 40 anos de idade, se desempregados
não retornariam mais ao mercado de trabalho.
Somado a essas mudanças e fruto do impacto da revolução da eletrônica, principal-
mente da cibernética, o teletrabalho passa a ocupar cada vez mais espaço a partir da década
de 80, notadamente por novos modelos de negócios cujas atividades podem ser facilmente
realizadas a distância, denominadas de empresas virtuais (FRANCO FILHO, 1998).
Além do desemprego tecnológico, ocorreu o que se conhece por “descentralização
do capital”, pelo qual as grandes empresas passaram a utilizarem-se de trabalhadores autô-
nomos, temporários e pequenos empresários, no alcance de uma maior lucratividade com o
menor custo, sem a garantia de direitos sociais e trabalhistas, diminuindo, consequentemen-
te, os postos de empregos formais. Mais do que isso, pelo advento da difusão da internet
em larga escala e acessível praticamente de qualquer lugar do mundo, toda a sociedade
foi remodelada, de e o homem tem a seu dispor a tecnologia para resolver problemas que
assolaram a humanidade por séculos (SLEE, 2017).
Emerge, assim, o fenômeno que Signes denomina “on-demand economy”, isto é,
economia sob demanda. A terminologia faz referência a um novo modelo de negócio, no
qual as novas tecnologias permitiram a criação de plataformas virtuais que dispõem de vá-
rios grupos de prestadores de serviços, que aguardam chamados dos consumidores e são
acionados conforme a demanda, se e quando estas existirem. Esse tipo de negócio contraria
a tradicional concepção de trabalho formal que foi a base do trabalho humano por mais de
um século (SLEE, 2017).
Slee considera esse tipo de economia uma “mistura afetiva de comércio e causa
no mundo digital” (2017, p.24). Ele reconhece que existem muitas discussões a respeito
do tema, inclusive, sobre qual seria a terminologia mais adequada para se referir a essa
118 | ISADORA KAUANA LAZARETTI | GIOVANNI OLSSON

nova onda de negócios: economia do compartilhamento, economia sob demanda, consumo


colaborativo, plataformas igual-para-igual, economia dos bicos, economia da viração ou ser-
viços de concierge, são todos termos cada vez mais usados (2017).
As plataformas digitais estão introduzindo novos freios e contrapesos. Essa nova
economia revela “uma força global e massiva em favor de ‘construtores de pontes digitais’
que se inserem entre as pessoas que oferecem serviços e as pessoas que estão procurando
por tais serviços, imbricando assim processos extrativos em interações sociais” (SCHOLZ,
2016, p. 27). Esse modelo resulta numa série de mudanças nas relações de trabalho, nos
dois polos. Há mudança da figura do empregado tradicional, que trabalha em média quarenta
horas semanais e possui um valor fixo de salário, por um trabalhador mais contingente, free-
lancer ou autônomo. Isso indica que os trabalhadores perdem a garantia do salário mínimo,
horas extras e, principalmente, a proteção das leis trabalhistas. Além disso, os empregadores
também não se obrigam mais a contribuir com seguro desemprego, sindicatos e contribui-
ções sociais para os trabalhadores (SCHOLZ, 2016).
A economia do compartilhamento envolve, portanto, o trabalho prestado por meio
de aplicativos. Acessados por smartphones diretamente da palma da mão, “o prestador de
serviços e o consumidor identificam oferta e demanda, o trabalho é executado em face de
uma necessidade apresentada e é feito o pagamento após a finalização do trabalho” (KALIL,
2017, p. 148). O aplicativo mais conhecido desse modelo é a Uber, cujas atividades são
direcionadas para o setor de transportes. Nele o usuário solicita um carro para realizar uma
viagem e o motorista que estiver disponível, conectado e localizado mais próximo do local
do usuário que solicitou o trabalho, é quem aceita a demanda.
A economia do compartilhamento e a instituição dessas novas plataformas de tra-
balho pode ser considerada como um evento recente, mas a forma como está evoluindo
merece ser explorada. Apesar da existência de críticas a esse novo modelo, especialmente
relacionadas à ausência de uma regulamentação específica do ponto de vista da relação
trabalhista em si, este estudo tem como objetivo apresentar horizontes de esperança, a fim
de verificar como essas plataformas podem configurar um instrumento para a promoção do
desenvolvimento.
As formas de trabalho que se desenvolvem por meio das plataformas digitais apre-
sentam uma variedade de novidades que ainda precisam ser melhor exploradas para que seja
possível compreender de forma plena essa nova realidade. Ao mesmo tempo, não se deve
idealizar as inovações contatadas, mas também não é razoável ignorá-las. Não se está diante
de uma reconfiguração total do mundo do trabalho, mas esse cenário deve ser encarado
de forma adequada diante das mudanças que estão ocorrendo, a fim de que seja possível
identificar os reflexos positivos para a sociedade em geral (KALIL, 2017).
A economia do compartilhamento colocou desafios no mundo do trabalho que não
podem ser vistos apenas como desregulamentação ou diminuição da proteção dos direitos
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 119

dos trabalhadores. Deve ser analisada do ponto de vista que se tratam de inovações que
podem, em alguma medida, melhorar a vida das pessoas, desde que os avanços implemen-
tados por esse novo cenário não ocorram às custas da piora das condições de trabalho.
Nesse viés, a Agenda 2030 da ONU elenca que um de seus objetivos é a promoção
do crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo
e o trabalho decente para todos, de modo que as plataformas de trabalho podem ser con-
sideradas como um instrumento de efetivação do desenvolvimento sustentável, na medida
em que essa nova economia estimula o empreendedorismo, erradica o trabalho forçado e as
formas análogas a do trabalho escravo, garantindo a todos o alcance de seu potencial e de
suas capacidades (ONU, 2015).
De igual modo, considerando que as plataformas digitais de trabalho se tornaram
acessíveis para um número indeterminado de pessoas, ainda que não se trate de um em-
prego formal com a garantia de direitos trabalhistas assegurados pela legislação de cada
Estado nacional, essa atividade pode configurar um meio de melhorar a vida daqueles que a
exercem, permitindo auferir uma fonte de renda. Segundo a ONU (2015), globalmente, mais
de 700 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 1,90 por dia, e mais da metade da
população global vive com menos de US$ 8,00 por dia. Esses dados são fornecidos para
justificar o primeiro objetivo a ser alcançado pela Agenda 2030, que consiste na erradicação
da pobreza e redução das desigualdades sociais.
Nesse viés, a economia do compartilhamento, verificada por meio das novas plata-
formas, pode vir a ser uma “estrada que sinaliza um futuro do trabalho melhor” (SCHOLZ,
2017, p. 19), contribuindo, inclusive, para a inclusão social e erradicação da pobreza. Exem-
plos como o do Airbnb, na mesma linha, apontam para a possibilidade de ocupação de espa-
ços urbanos ociosos e a complementação de renda dos proprietários dos imóveis, o que, de
alguma forma, pode contribuir para o seu sustento. É certo que essas plataformas, com seus
modelos de negócios disruptivos, atingem em cheio outros modelos tradicionais, como os
do setor de hotelaria. Contudo, a extensão e a profundidade das transformações e impactos
precisam ser analisadas em todo o contexto social, e não apenas da perspectiva de empre-
sas já estabelecidas em um ou outro modelo, como uma reação meramente concorrencial.
Além disso, a utilização das novas plataformas pode tornar a vida mais acessível,
conveniente e eficiente, além de que suas práticas são, muitas vezes, mais benéficas para o
meio ambiente do que os modelos tradicionais mostraram ser. Exemplo disso são as empre-
sas que adaptaram suas atividades de logística, ao adotar o uso de frotas compartilhadas,
reduzindo além de custos de transporte, o consumo de combustíveis, melhorando a mobili-
dade, e contribuindo para a redução da emissão de gases de efeito estufa.
Por fim, considerar as plataformas como instrumentos à efetivação do desenvolvi-
mento não significa ignorar ou abandonar a perspectiva do alcance de formas de trabalho
mais dignas. Pelo contrário, essa análise é feita de forma crítica, de modo a contribuir com
120 | ISADORA KAUANA LAZARETTI | GIOVANNI OLSSON

a construção de novas formas de organização social e econômica. Para Scholz, a economia


do compartilhamento pode ser pensada sem ingenuidade, e retratada como um possível
caminho “para o capitalismo ecologicamente sustentável” (2016, p. 22).

Conclusão
A partir da realização do presente estudo, foi possível verificar que o cenário atual
está marcado pelo desenvolvimento tecnológico e científico, pela transnacionalização das
fronteiras, pela globalização e pelo livre acesso de informações, ampliando, assim, os deba-
tes que envolvem os direitos humanos, e, especificamente, o trabalho digno. Com o marco
da Agenda 2030 da ONU, que configurou um novo projeto civilizatório a ser observado, o
debate envolvendo o desenvolvimento sustentável se tornou recorrente. Esse plano de ação
conta com objetivos e metas que se preocupam com o crescimento econômico, com o meio
ambiente e com a pessoa humana, em qualquer lugar e sob qualquer protagonismo.
Verificou-se, assim, que, com o advento da globalização e das inovações tecnológi-
cas, várias foram as mudanças ocasionadas à sociedade como um todo. Em especial, des-
tacam-se as relações de trabalho, que estão em constante transformação, proporcionadas
pelo surgimento das plataformas virtuais de serviços. A princípio, o desemprego, a informa-
lidade das relações de trabalho e a redução dos níveis de proteção trabalhista foram vistos
como resultados do fenômeno globalizante, na medida em que, atualmente, a prestação de
serviços por trabalhadores autônomos reduz o custo de trabalho e aumenta a lucratividade
das grandes corporações. Contudo, a utilização das plataformas digitais pode configurar um
instrumento de promoção do desenvolvimento.
Por exemplo, dentre os objetivos elencados pela Agenda 2030 da ONU, está o obje-
tivo de promover o crescimento econômico e sustentado, inclusivo e sustentável, além do
emprego pleno e produtivo e o trabalho decente para todos. A partir desse objetivo, é possí-
vel considerar que as plataformas de trabalho estimulam o empreendedorismo, contribuindo,
de alguma forma, para a erradicação do trabalho forçado, permitindo a todos o alcance
de seu potencial e de suas capacidades, especialmente porque as plataformas digitais são
facilmente acessíveis.
Ainda que não se trate de um emprego formal, e que se discuta a garantia e a pro-
teção dos direitos trabalhistas, o exercício dessa modalidade de atividade configura uma
forma de oportunizar renda a uma massa de trabalhadores já excluídos do mercado formal,
vindo a contribuir para a inclusão social, redução de desigualdades e erradicação da pobreza,
objetivos que fazem parte do plano de ação descrito na Agenda 2030 da ONU. Nessa esteira,
não se trata de endossar o modelo econômico ou de estimular a sua expansão, mas de tentar
compreender melhor seus limites, e, em especial, as possibilidades que pode oferecer no
contexto contemporâneo.
O DESENVOLVIMENTO NO MARCO DA AGENDA 2030 DA ONU | 121

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CAPÍTULO VIII

O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE


TRABALHO DAS MULHERES: UMA ANÁLISE SOBRE
O TRABALHO DOMÉSTICO NÃO REMUNERADO

GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS 1


BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO 2

Introdução
O cenário é o seguinte: é domingo e a família se reúne à mesa para almoçar a comida
feita pela mãe. Todos comem. Os homens sentam no sofá. Elas devem guardar a comida que
restou e lavar as louças sujas. Segundo a última pesquisa do IBGE, as mulheres trabalham,
em média, 20,9 horas semanais nos afazeres domésticos, enquanto os homens trabalham
apenas 11,1 horas. Outra pesquisa3, de 2015, constatou que 82% das tarefas domésticas
ainda são realizadas por elas. Engana-se, portanto, quem pensa que essa estrutura ficou no
passado. É só parar para pensar como acontece nas casas dos brasileiros.
Muito além dos dados, a proposta é ultrapassar os números para perguntar: o as-
sunto está sentado na sala da sua casa? Em algum momento de sua vida, uma mulher fez
o seu jantar, lavou sua roupa e te proporcionou usar o tempo para estudar, trabalhar e se

1
Doutora em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra em Direito,
Estado e Sociedade (UFSC). Doutoranda em Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Humano. Professora
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atuante em Graduação e em Pós-Graduação em Direito, nas
disciplinas de Direito e Feminismos, Hermenêutica Jurídica, Prática Jurídica e Metodologias do Ensino Jurídico e
da Pesquisa. Pesquisadora Líder do Grupo de Pesquisa/CNPq Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminis-
mos pesquisa sobre sistemas sociais, epistemologias críticas e análise discursiva jurídica. E-mail: grazyab@
gmail.com.
2
Mestra do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), na
área de Historicismo, Conhecimento Crítico e Subjetividade. Graduada em Direito (CESUSC). Pesquisadora do
Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos Lilith. E-mail: almeidacoelhobeatriz@gmail.com.
3
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/mulheres-trabalham-7-5-horas-a-mais-do-que-os-
-homens-devido-a-dupla-jornada. Acesso em 10/07/2019.
124 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO

desenvolver pessoalmente? Porque é na vida que nos encontramos: quem lê, quem pesquisa
e quem escreve. Como disse Angela Davis (2016), por mais impressionante que qualquer
estatística possa parecer, ela não é sequer uma estimativa da atenção constante e impossível
de ser quantificada que as mães precisam dar às suas crianças. Assim como as obrigações
maternas de uma mulher são aceitas como naturais, o infinito esforço como dona de casa
raramente é reconhecido no interior da família.
Por essa razão, Marcia Tiburi (2018) sugere que não podemos pensar na questão
das mulheres sem pensar no trabalho, principalmente porque o trabalho é uma necessidade
que a civilização capitalista impõe. A problematização da conexão entre gênero e trabalho
nos permite questionar “categorias e métodos que aprendemos a considerar neutros” (SOU-
ZA-LOBO, 1991, p. 149).
Nessa perspectiva, precisamos analisar onde, como e quando as mulheres traba-
lham. Porque não é exagerado se falarmos que, desde o nascimento, uma menina está con-
denada a um tipo de trabalho que se parece muito com a servidão e que, em tudo, é diferente
do trabalho remunerado, ou, dependendo da classe social a qual pertence, o trabalho que se
pode escolher (TIBURI, 2018).
Em diferentes contextos, lugares, países e culturas, mulheres em idades distintas
trabalharão para homens de sua família. Serão, apenas por serem mulheres, submetidas ao
trabalho doméstico. Desde a infância, entre panelinhas cor-de-rosa e bonecas para alimentar,
as mulheres são educadas para os enlaces romantizados dessas tarefas. Apresentam-lhes
o casamento como plano único de sucesso e não como uma possibilidade de vida. Ainda,
mesmo quando, mais tarde, tiverem um emprego fora de casa, a maior parte das mulheres
trabalhará mais do que os homens, em decorrência do trabalho remunerado e do não re-
munerado. Com pouco ou nenhum tempo para desenvolverem outros aspectos da própria
vida. A questão central está também em acreditar que isso é natural, como se fosse uma
predisposição biológica que acompanha as mulheres (TIBURI, 2018).
Há uma exploração que se efetiva porque o trabalho doméstico é realizado por mu-
lheres. Contudo, isso não significa que a exploração seja aplicada nas mesmas condições
a todas as mulheres. Isso porque a divisão sexual do trabalho dita as regras ao trabalho do-
méstico, mas o faz de maneiras distintas e afeta as mulheres de forma e em graus desiguais,
levando em consideração os fatores de classe e raça.
Por essa razão, Saffioti (2013, p. 133) destaca a concentração de renda como com-
ponente incontornável das hierarquias: “se as mulheres da classe dominante nunca puderam
dominar os homens de sua classe; puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da
força de trabalho de homens e mulheres da classe dominada”.
É que as mulheres são impactadas de maneiras distintas pela atribuição distinta das
responsabilidades. A ideia de que as mulheres “entraram no mercado de trabalho” nas últi-
O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE TRABALHO DAS MULHERES | 125

mas décadas não se aplica àquelas mulheres que nunca tiveram a possibilidade de não fazer
parte dele. Ainda que isso significasse uma antecipação da problemática atual de acúmulo
de trabalho doméstico com trabalho mal remunerado (BIROLI, 2015). Entre as camadas mais
pobres da sociedade, há muito o trabalho fora de casa representava mais uma estratégia
familiar de sobrevivência das mulheres do que norma de gênero.
Nesse contexto, o documentário Babás, produzido e dirigido por Consuelo Lins, traz
a foto de um bebê branco no colo de sua ama de leite. A informação se constata sem nada
dizer, porque para ter direito à foto, a mulher certamente amamentou a criança desde os
primeiros dias de vida. O menino se apoia nela com afeto e intimidade. Provavelmente, ela
transferiu a ele o amor pelos filhos, que lhe foram tirados para que pudesse ser ama de leite.
“Talvez por isso a dureza no olhar que confronta a câmera. Quase todo Brasil cabe nessa
foto”, afirmou o historiador Luiz Felipe Alencastro no documentário. Não sabemos se quase
todo Brasil cabe nessa imagem, mas da história de muitas famílias brasileiras certamente
faz parte.
O ponto aqui é que as desvantagens que atingem as mulheres não são suficientes
para que se constitua um grupo de interesses homogêneos. O gênero não se configura de
maneira independente em relação à classe e à raça. Entretanto, também não é apenas um
acessório irrelevante da equação.
É nesse panorama que se pretende analisar a conexão entre a forma como é feita a
divisão sexual do trabalho e o tempo de trabalho das mulheres. Questiona-se, portanto, qual
é o valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres.
Partindo-se de tal objetivo, será brevemente abordada a divisão sexual do trabalho
no centro da dinâmica de opressão das mulheres e da produção do gênero. Tudo isso a se
verificar o real valor social do trabalho doméstico não remunerado.
Na sequência, passa-se a discutir a intersecção da produção do gênero com ques-
tões de classe e raça, especificamente em relação a esse tipo de trabalho. Depois, expõe-se
brevemente uma pesquisa que busca demonstrar o valor econômico do trabalho doméstico
se fosse remunerado e contabilizado. Por fim, avança-se na discussão, que conecta a divi-
são sexual do trabalho à produção das vulnerabilidades que constrangem estruturalmente as
possibilidades de vida das mulheres.

1 O valor social do trabalho doméstico não remunerado


Ao contar a história do trabalho revela-se a construção histórica e determinante da
divisão sexual do trabalho. Pode-se começar com o limite do direito das mulheres de traba-
lhar fora de casa, restringindo-se apenas à “produção” para auxiliar seus maridos. Qualquer
trabalho feito por mulheres era considerado um “não trabalho”. Não possuía valor econômi-
co, mesmo quando voltado para o mercado (FEDERICI, 2017).
126 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO

O passo seguinte foi definir todo trabalho feminino, quando realizado em casa, como
“tarefa doméstica”. Mesmo quando realizado fora de casa, era dado-lhe um valor menor do
que o atribuído ao trabalho masculino. Nunca era remunerado o suficiente para que as mu-
lheres pudessem sobreviver dessa renda (FEDERICI, 2017). A produção foi transferida para
as fábricas, minas e escritórios. Nesses lugares, foi considerada “econômica” e remunerada
com salários em dinheiro. A reprodução social, por outro lado, foi relegada “à família”, em
que foi feminizada e sentimentalizada, definida como “cuidado” (em oposição à “trabalho”)
e realizada por “amor”, em oposição ao dinheiro (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER,
2019).
Em decorrência da dependência financeira, o casamento virou a carreira das mulhe-
res, e o contrato de casamento um contrato de trabalho. O contexto aqui é da mulher branca
e de classe média ou alta, possivelmente europeia. Nesse caso, tornar-se esposa implica tor-
nar-se dona de casa; ou seja, a esposa é alguém que trabalha para seu marido de forma não
remunerada no lar conjugal (PATEMAN, 1993). Quando se adicionam as atividades sexuais
como “atribuições” da mulher casada, diz-se que “se um homem se casa com sua emprega-
da doméstica ou com uma prostituta, o mesmo trabalho e a mesma mulher repentinamente
se tornarão não remunerados e improdutivos” (BIROLI, 2016, p. 8).
Contudo, no contexto do pensamento anglocentrado, ao longo do tempo a família
assumiu diferentes formas. A partir do surgimento de demandas por força de trabalho, o sis-
tema capitalista interferiu na manutenção do sistema patriarcal. As mulheres tiveram que sair
de casa para trabalhar e suprir essa necessidade. Contudo, foi a privatização do trabalho das
mulheres – imposta pelo sistema patriarcal – que tornou a mão de obra feminina mais barata,
se comparada a dos homens. Assim surgiram as duplas ou triplas jornadas das mulheres,
que se mantiveram responsabilizadas pela vida doméstica (WALBY, 1990).
Nesse contexto surge a crise da reprodução social. O trabalho de reprodução social
não tem seu valor reconhecido e é tratado como uma “dádiva” gratuita e inesgotável. Pre-
sume-se que sempre haverá energia suficiente para produzir seres humanos, que por sua
vez serão mão de obra e sustentarão as relações sociais das quais a produção econômica
depende. Porém, a forma atual, neoliberal de capitalismo está mostrando exatamente o con-
trário: ao expor suas principais provedoras a longas e cansativas jornadas de trabalho mal
remuneradas, está esgotando sistematicamente as capacidades individuais e coletivas para
reconstituir os seres humanos e para sustentar os laços sociais (ARRUZZA; BHATTACHAR-
YA; FRASER, 2019).
À primeira vista, essa estrutura pode parecer estar destruindo a divisão de gênero
entre mão de obra produtiva e reprodutiva. Proclama-se o novo ideal de “família com dois
salários”. Porém, esse ideal é fraudulento. É verdade que uma pequena parte das mulheres
O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE TRABALHO DAS MULHERES | 127

extrai algum benefício do neoliberalismo quando ingressa em profissões de prestígio, mas a


maioria é exposta a algo diferente: trabalho precário e mal remunerado. Inclusive, o trabalho
das mulheres é sempre menos remunerado que o dos homens. Outra consequência é a
comoditização de parte do trabalho de reprodução que antes era realizado sem remuneração
(ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019).
Contudo, todas essas consequências, por certo, não emancipam as mulheres. Pelo
menos, não em sentido coletivo. A maioria das mulheres ainda é exposta ao trabalho de
reprodução social, só que agora em um segundo turno. Ademais, o trabalho assalariado
feminino não é libertador. Por ser mal remunerado, este não é suficiente para pagar a auto-
nomia e autorrealização das mulheres. O que esse trabalho oferece, de fato, é a exposição
e a vulnerabilidade ao abuso e ao assédio (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019):
Descobrimos que o macacão de trabalho não nos dá mais poder do que o avental
– muitas vezes, ainda menos, porque agora nós temos que vestir ambos e, por isso, nos
sobrou menos tempo e energia para lutar contra as opressões (FEDERICI, 2019). Por isso é
que se diz que a família é institucionalização do trabalho não remunerado e da dependência
financeira que as mulheres têm em relação aos homens. Ou seja, é a institucionalização da
divisão desigual do trabalho que disciplina as mulheres, e também os homens na condição
de provedores da família.
Uma situação emblemática é o caso de Luo, mãe taiwanesa que abriu um processo
em 2017 contra seu filho, reivindicando uma indenização pelo tempo e pelo dinheiro que ela
investiu na criação dele. Luo criou os dois filhos sozinha, tendo sido responsabilizada por
todos os aspectos da vida deles, inclusive os custos da faculdade de odontologia de ambos.
Em troca, esperava que os filhos cuidassem dela na velhice. Quando um dos filhos não
satisfez sua expectativa, ela o processou. Em decisão inédita, a Suprema Corte de Taiwan
determinou que o filho pagasse 967 mil dólares à mãe como custo de sua criação.
O caso de Luo ilustra três aspectos fundamentais sobre o trabalho doméstico, trazi-
dos pelas autoras Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser em Feminismo para os
99%: um manifesto. O primeiro é o pressuposto universal humano que o capitalismo prefere
ignorar e esconder: o de que são necessários muitos recursos e muito tempo para dar à
luz, cuidar e manter seres humanos. Em segundo lugar, que muito desse trabalho de criar e
manter seres humanos ainda é feito por mulheres. Por último, expõe que, no curso normal,
a sociedade capitalista não confere nenhum valor a esse trabalho, mesmo dependendo dele.
Desse modo, a história enfatiza um imperativo com elementos que estão entrelaçados e, ao
mesmo tempo, em lados opostos: o trabalho para obtenção de lucros não poderia existir sem
o trabalho não remunerado de produção de pessoas, ao qual se atribui pouco ou nenhum
valor (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019).
128 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO

2 Reprodução social e o capital


O trabalho de produção de pessoas é o que se denomina de reprodução social, que
abrange todas as atividades que sustentam os seres humanos como seres que possuem
corpos e que não precisam apenas comer e dormir, mas também criar suas crianças, cuidar
de suas famílias e manter comunidades. Tudo isso enquanto perseguem esperanças para o
futuro (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019).
Silvia Federeci (2019) distingue o trabalho de produção de pessoas – em relação aos
outros tipos de trabalho que são remunerados – pelo fato de que ele foi imposto às mulhe-
res e transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas. Ele foi
transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho. Só assim o
capital encontrou justificativas para convencer as mulheres a trabalharem sem remuneração.
É justamente essa condição não remunerada do trabalho que tem sido a arma mais poderosa
para fortalecer o senso comum de que trabalho doméstico não é um trabalho, de modo a
impedir que as mulheres lutem contra essa concepção.
Assim, o capital “matou dois coelhos com uma cajadada só”: primeiro obteve gran-
de quantidade de trabalho quase de graça e assegurou que as mulheres procurariam esse
trabalho como fosse o sentido de suas vidas; ao mesmo tempo, disciplinou os homens a
tornarem “suas mulheres” dependentes do trabalho e do salário do provedor, aprisionando
ambos nessa disciplina. Toda vez que um homem pensar em sair dessa condição terá que
lembrar que é por meio dela que consegue o sustento de toda família. Criou-se, portanto, um
dos atributos da masculinidade tóxica, que é a necessidade de o homem ser o provedor da
casa (FEDERICI, 2019).
É imprescindível, ainda, reforçar que o capital explorou a capacidade reprodutiva do
corpo da mulher negra. A partir de um sistema de propriedade privada, esses corpos que
foram escravizados, eram considerados mercadorias, o que consolidou as relações capita-
listas de classe (COLLINS, 2000).
Nesse sentido, no contexto pátrio, Gonzalez (1984) traz que, para a consolidação
dos sistemas do capital, as relações familiares dos corpos escravizados foram rasgadas
a partir do desmembramento de diversas famílias e pela violência de imposição de novos
nomes e novas línguas às pessoas escravizadas, o que promovia a facilitação do controle
dos corpos ao sistema que era implantado. Mesmo após a abolição da escravatura, dentre
outros fatores, e a exemplo do que Davis (2016) ensina, houve o controle dos corpos das
mulheres negras com a oferta de trabalho doméstico e de ama de leite, em situação análoga
à escravidão.
Embora isso não resulte em um salário às mulheres, o trabalho de reprodução social
resulta no produto mais precioso que existe no mercado capitalista: a força de trabalho.
O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE TRABALHO DAS MULHERES | 129

Muito mais do que limpar a casa, serve-se os trabalhadores remunerados de forma física,
emocional e sexual, preparando-os para o trabalho dia após dia. Cuida-se das crianças,
que são os trabalhadores do futuro. Amparando-as desde o nascimento, garantindo que os
desempenhos escolares estejam de acordo com o que se espera. Esse é um trabalho oculto
(FEDERICI, 2019).
Esses constrangimentos materiais que constituem as escolhas feitas pelas mulheres
devem ser situados na dinâmica social em que são produzidos, e não explicados numa
perspectiva individual. Isso porque as motivações dessas escolhas se apresentam às mu-
lheres como desdobramentos das estruturas em que estão configuradas (PATEMAN, 1993).
A divisão sexual do trabalho tem um caráter estruturante.
Daí porque a produção dos modelos de trabalho doméstico não remunerado, pautada
na divisão sexual do trabalho, é a base fundamental sobre a qual se assentam as hierarquias
de gênero. O trabalho que as mulheres desempenham no cotidiano das atividades domés-
ticas e na criação/manutenção de seres humanos libera os homens para que se engajem
no trabalho remunerado. Por trás do empregado de sucesso ou do pesquisador produtivo
existe uma mulher que mantém suas necessidades de pessoa corporificada: que cozinha o
alimento para matar a forme, que limpa a sujeira, que lava a roupa suja. Muitas vezes, essa
mulher não tem uma carreira profissional, e quando a tem, produz menos, porque divide o
tempo de produção com as tarefas relativas à reprodução social. O capital leva em conta
o quanto menos a mulher produz, mas não leva em consideração o tempo que gasta nas
atividades domésticas.
É comum nos depararmos com argumentos de que essa estrutura ficou para trás;
que é coisa do passado. De fato, a nova consciência associada ao movimento feminista
contemporâneo encorajou um número crescente de mulheres a reivindicar que seus com-
panheiros ofereçam algum auxílio no trabalho doméstico. Muitos homens já começaram a
colaborar com suas parceiras em casa, alguns deles (ainda que poucos) até devotando o
mesmo tempo que elas aos afazeres domésticos. Contudo, a questão principal é: quantos
desses homens se libertaram da concepção de que as tarefas domésticas são “trabalho de
mulher”? Quantos deles não caracterizariam suas atividades de limpeza da casa como uma
“ajuda” às companheiras?
A explicação pode estar no conceito de carga mental. Se compararmos a família
com uma grande empresa, veremos que são as mulheres, na grande maioria das vezes,
que gerenciam e planejam as tarefas. Por mais que os homens realizem tarefas domésticas,
planejar e garantir que todas as tarefas se encaminhem é responsabilidade da mulher. Fazer a
lista da feira, verificar se falta arroz para o almoço, conferir o tamanho das roupas dos filhos,
agendar consultas médicas... são tarefas atribuídas exclusivamente às mulheres.
130 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO

3 O valor econômico do trabalho doméstico


Com efeito, as regulamentações legais, os aparelhos estatísticos e, em muitos ca-
sos, a literatura científica limitam o conceito de trabalho ao trabalho remunerado, que é
exercido a título de atividade profissional. Nessa perspectiva, o valor do tempo restringe-se
exclusivamente ao tempo de trabalho associado à produção. Isto é, àquelas tarefas que são
trocadas por capital. Quando se remunera com dinheiro (PERISTA, 2002). Por consequência,
uma parte significativa do trabalho, sobretudo do trabalho das mulheres, se torna invisível
para a sociedade, para as estatísticas e para as contas nacionais. Logo, todo o trabalho em
que não há troca por dinheiro; associado à reprodução, à execução de tarefas domésticas e
de prestação de cuidados; tarefas às quais não é atribuído um valor social, quiçá econômico,
e que, normalmente, sequer são reconhecidas como trabalho (PERISTA, 2002) .
Não é à toa que se diz que as tarefas domésticas são praticamente invisíveis. Nin-
guém as percebe, exceto quando não são feitas. Nota-se a cama desfeita, mas não o chão
varrido. Porém, se analisado de forma econômica, quanto, afinal, valeria uma dona de casa?
A pesquisa realizada pela demógrafa Jordana Cristina de Jesus – baseada na Pes-
quisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2013 – demonstrou que se as tarefas
domésticas fossem remuneradas e incorporadas à renda as mulheres ganhariam mais do
que os homens. A análise baseou-se no salário médio de um empregado doméstico e che-
gou à conclusão de que todo trabalho doméstico realizado no Brasil geraria 580 bilhões de
reais. O que significa 10,4% do Produto Interno Bruto do Brasil no ano da pesquisa. Note-se
que apenas para 2,02% desse trabalho é atribuído valor econômico e, portanto, remunerado.
Tendo a divisão sexual do trabalho caráter estruturante, ela não é a expressão das
escolhas de homens e mulheres, mas constitui uma base a partir da responsabilização desi-
gual pelo trabalho doméstico. Denote-se que o ciclo é favorável à reprodução. Veja-se: essas
estruturas correspondem às possibilidades de atuação, na medida em que constrangem as
hipóteses com base em argumentos ligados à natureza – em aptidões que são inerentes aos
homens e às mulheres – e fundamentam as formas de organização da vida.
E os efeitos são ciclos viciosos, que se reforçam mutuamente. Como o capitalismo
atribui o trabalho reprodutivo sobretudo às mulheres, isso interfere no acesso das mulheres
ao tempo livre e ao tempo de desenvolvimento pessoal. A capacidade de participar plena-
mente do trabalho produtivo é restrita. O resultado é simples: a maioria das mulheres acaba
em empregos mal remunerados, insuficientes para sustentar uma família. Inclusive, a depen-
dência financeira pode explicar a dificuldade de saírem de relacionamentos abusivos. Há aqui
a violência ambivalente: primeiro, a dependência de relações pessoais e, em segundo lugar,
a dependência aos promotores do capital. O sistema é todo interligado: as mulheres têm
menores chances de assumirem posições de alta relevância social e, consequentemente, de
influenciar decisões e produzir normas que as afetem diretamente. Continuando o sistema
O VALOR SOCIAL E ECONÔMICO DO TEMPO DE TRABALHO DAS MULHERES | 131

cíclico, esses obstáculos contribuem para a manutenção do status quo, visto que, dessa
forma, é mais difícil para as mulheres se libertarem dessas correntes.
A família permanece, portanto, como fator principal da produção do gênero e da
opressão às mulheres, a partir da manutenção das vulnerabilidades. Há, sem dúvidas, uma
conexão entre essas vulnerabilidades e a divisão sexual do trabalho, que constrange estrutu-
ralmente as possibilidades que são apresentadas às mulheres.
O que se vê é que a divisão sexual do trabalho é a base para a opressão das mulhe-
res: o gênero é produzido na forma da exploração do trabalho e da vulnerabilidade relativa
que é concebida. Isto é, as diferenças que definem a dicotomia feminino-masculino, embora
supostamente sejam codificadas como correspondentes ao sexo biológico, decorrem da
atribuição distinta de habilidades e tarefas construídas aos homens e às mulheres. Essas
diferenças são utilizadas para justificar as desvantagens econômicas das mulheres (WIL-
LIAMS, 2010).
A divisão sexual do trabalho está ancorada na naturalização de relações de autoridade
e subordinação, que são justificadas por teorias biológicas. Em ato contínuo, são ensinadas
restrições definidas pelo gênero, pela raça e pela classe social, que fazem as escolhas serem
conformadas. Dessa forma, distribui-se desigualmente as responsabilidades: incentivam o
acesso a determinadas ocupações, enquanto dificultam o acesso a outras (BIROLI, 2016).
Ainda, as restrições se estabelecem na forma de opressões cruzadas, na conver-
gência entre gênero, classe e raça. Sem que se leve em conta as relações de gênero, é
impossível explicar porque as vulnerabilidades são maiores entre as mulheres ou mesmo
compreender porque as mulheres estão em posições assimétricas nas hierarquias sociais
(BIROLI, 2016).

Conclusão
Em uma perspectiva sistêmica, a análise do que se passa nos espaços privados e
domésticos é significativa para entender a dinâmica social. Se as relações de poder nesses
espaços destoam de valores de referência igualitários, os quais são buscados na esfera
pública, existe um problema. Recorrendo à expressão de Carole Pateman, a “tolerância à
subordinação” compromete as democracias mesmo que corresponda a esferas bem deter-
minadas (BIROLI, 2015).
A análise de como se organiza a divisão sexual do trabalho – dimensão fundamental
das relações de poder – permite levar em conta que os espaços domésticos são produtos
sociais, efeitos destas. É importante ter em conta que o entendimento sobre as relações de
poder perpassa diferentes esferas. Isto é, as relações de poder domésticas ultrapassam os
espaços privados e atingem ao público (BIROLI, 2015).
132 | GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS | BEATRIZ DE ALMEIDA COELHO

Dois ou três desfechos são fundamentais para entender a questão da divisão sexual
do trabalho: a) a divisão sexual do trabalho não pode ser explicada no âmbito da individua-
lidade, como se fossem escolhas voluntárias particulares; b) a divisão sexual do trabalho
estrutura identidades e alternativas das mulheres, sendo aplicada por instituições e políticas
públicas, que atingem a esfera privada e são aplicadas desde à infância; c) a divisão sexual
do trabalho constitui privilégios e restrições que interferem diretamente nas condições de
acesso ao tempo livre, à renda e no reconhecimento de competências e habilidades.
Por último, verifica-se que a desvalorização do trabalho doméstico serve à manu-
tenção da forma de produção do capital. Isso porque o trabalho para obtenção de lucros
não pode existir sem o trabalho não remunerado de produção de pessoas. Da forma como
foi institucionalizado o trabalho doméstico dentro dos lares, o capital não precisa pagar (ou
pagar muito) por esse trabalho desempenhado pelas mulheres.
Então, a posição das mulheres nas democracias é melhor entendida se aceitarmos,
de partida, que muito mudou. O percurso que marcou as conquistas de direitos das mulhe-
res teve grande impacto na organização das novas relações sociais. Contudo, ao mesmo
tempo, o controle de corpos das mulheres não se esgotou, apenas tomou novas formas,
mais complexas.
A divisão sexual do trabalho tem caráter estruturante nas relações interpessoais: ela
não é a expressão das escolhas de homens e mulheres, mas constitui estruturas consolida-
das a partir da responsabilização desigual pelo trabalho. Ainda, a responsabilização, nesse
ponto, deve ser entendida de forma sistêmica, porque ela está vestida com novos trajes.
Trajes esses mentais e invisíveis, em um ciclo favorável à reprodução. Especialmente porque
somente a partir dessa configuração é possível manter a dinâmica de exploração do trabalho
produtivo, que é o objetivo do capital.

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CAPÍTULO IX

O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO


EMPREGADO: A QUESTÃO DA EFICÁCIA HORIZONTAL
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

RODRIGO GOLDSCHMIDT 1
CRISTIANO DE SOUZA SELIG 2

Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), em seu artigo
5º, §§ 1º e 2º, dispõe que os direitos e garantias fundamentais estabelecidos no texto cons-
titucional, bem como aqueles aceitos por seu sistema ou decorrentes dos princípios por ela
adotados, possuem eficácia imediata (BRASIL, 1988)3.
Pelo que, a priori, poder-se-ia dizer que os direitos fundamentais previstos no artigo
5º, a exemplo do direito ao respeito, à honra, à integridade moral, à integridade física, o
direito de comunicação e de informação, e todas as garantias decorrentes da dignidade da
pessoa humana, que, aliás, não é um simples direito, mas um atributo inerente à pessoa4,
aplicam-se também às relações trabalhistas.

1
Pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Doutor em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Pesquisador permanente do PPGD/
Unesc. Coordenador da linha de pesquisa Direito, Sociedade e Estado do PPGD/Unesc. Membro pesquisador do
Nuped/Unesc. Juiz do Trabalho Titular do TRT da 12ª Região/SC. E-mail: rodrigo.goldschmidt@trt12.jus.br.
2
Especialista em Direito Constitucional pela Unisul/LFG. Professor das disciplinas de Direito Constitucional e
direitos difusos e coletivos da Unisul. Analista Processual do Ministério Público Federal. E-mail: csselig@
hotmail.com.
3
“Artigo 5º, § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
4
Segundo Marcelo Novelino, “a dignidade da pessoa humana não é um direito em si, mas um atributo a todo
o ser humano, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social, ou qualquer outro requisito. O
ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a função de proteger e promover este valor.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 135

Por outro lado, também é forçoso reconhecer que os princípios constitucionais da


livre iniciativa do empresário (empregador) e da propriedade privada da empresa5 (BRA-
SIL, 1988) que conferem ao empregador poderes de gestão, contratação de pessoas e fi-
nalização de vínculos de trabalhistas também se aplicam às relações trabalhistas. Desse
modo, a problemática reside justamente no fato de o empregador possuir poder de gerência
e comando de sua empresa, podendo estabelecer normas de disciplina e resolver contratos
trabalhistas ao seu livre talante, o que acarretaria, inevitavelmente, numa suposta fraqueza
ou vulnerabilidade do trabalhador na relação de emprego. Assim, o problema a que se chega
é o seguinte: os direitos fundamentais previstos na Constituição servem para limitar o poder
empregatício do empregador?
O tema é de relevância, porque versa a respeito de dois dos pilares da República
Federativa do Brasil e da ordem econômica brasileira, consoante artigo 1º, inciso IV, da CR-
FB/19886, quais sejam: os valores sociais do trabalho humano e a livre iniciativa (BRASIL,
1988). Ademais, a pesquisa é necessária e de grande valia, porque servirá para orientar a
comunidade acadêmica acerca do campo de abrangência dos direitos fundamentais, nomea-
damente a eficácia horizontal desses direitos no âmbito da relação de trabalho, como forma
de balizar o poder empregatício ante a vulnerabilidade do empregado.
O objetivo geral é analisar a incidência dos direitos fundamentais nas relações traba-
lhistas privadas, tendo por objetivos específicos: aferir análises acerca do poder empregatí-
cio e da vulnerabilidade do trabalhador; fazer incursões nos planos da eficácia dos direitos
fundamentais, suas dimensões e definições; e, por fim, apresentar julgados relativos à apli-
cação dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas.
No que tange à estrutura, o presente artigo apresenta cinco tópicos, o primeiro intro-
dutório, os três seguintes atinentes aos objetivos específicos do estudo e o último trata da
conclusão a que se chegou com a pesquisa.

1 O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado


O artigo 1707 da CRFB/1988 estabelece, dentre outras, duas grandes bases da or-
dem econômica, a primeira, denominada de fundamento, qual seja, a livre iniciativa, e a

O reconhecimento da dignidade como fundamento impõe aos poderes públicos o dever de respeito, proteção e
promoção dos meios necessários a uma vida digna” (NOVELINO, 2010, p. 340).
5
Artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios
[...] II – propriedade privada da empresa”.
6
Artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa;”
7
Art. 170 “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional; II - propriedade privada; III- função social da propriedade”.
136 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG

outra, denominada de princípio, o princípio da propriedade privada (BRASIL, 1988). Por livre
iniciativa, entende-se, segundo Celso Ribeiro Bastos, a liberdade do empresário de lançar-
-se na atividade econômica, sem sofrer restrições pelo Estado (BASTOS, 2002), ou seja, o
empresário tem a plena liberdade de aventurar-se no setor econômico, sem que o Estado
lhe imponha vedações. Já no que diz respeito ao princípio da propriedade privada da empre-
sa, inicialmente, é preciso buscar no direito civil o conceito de propriedade. Nesse sentido,
segundo Maria Helena Diniz, “a propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem,
dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de uma coisa corpórea ou incorpórea,
bem como reivindicar de quem injustamente a detenha” (DINIZ, 2009, p. 847).
Logo, adaptando para a propriedade privada da empresa, tem-se que o seu proprietá-
rio tem o poder de usar e gozar de sua empresa da forma que melhor lhe aprouver, dispondo
de liberdade, inclusive, no que diz respeito à contratação, desligamento e subordinação de
seus empregados.
Nesse compasso, o Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, Consolidação das
Leis do Trabalho, em seu artigo 2º estabelece que empregador é aquele que, “assumindo
os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”
(BRASIL, 1943). Na sequência, o mesmo Decreto dispõe que empregado “é toda a pessoa
física que presta serviço não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante
salário” (BRASIL, 1943).
Assim, conjugando os dispositivos constitucionais com os dispositivos da CLT, ine-
vitavelmente, a conclusão a que se chega é que o empregador é dotado, legalmente, do
poder empregatício, ao qual, por sua vez, está subordinado o empregado, a parte vulnerável
da relação.
A respeito do poder empregatício, Rúbia Zanotelli de Alvarenga leciona que o “poder
nas relações entre capital e trabalho somente pode ser estudado a partir do conceito de su-
bordinação jurídica”. A professora, aduz, ainda, que “na relação empregatícia, o empregador
detém os poderes para dirigir, regulamentar, fiscalizar e aplicar penalidades ao trabalhador”
(ALVARENGA, 2019, n.p.), sendo por intermédio da subordinação jurídica que o poder do
empregador se exterioriza.
No que tange à vulnerabilidade do empregado, em verdade, ela é uma decorrên-
cia da disformidade da relação trabalhista, na qual uma das partes detém grande poder de
condução da relação, enquanto à outra, resta, apenas, a concordância (ou não) com regras
e penalidades impostas. Em contraponto, e com mesmo status normativo que as normas
constitucionais que alavancam o poder empregatício, o constituinte fixou algumas limitações
a esse poder. Tais limitações foram apresentadas no próprio artigo 170, quais sejam, “a
valorização do trabalho humano, a finalidade de assegurar a todos a existência digna, e a
função social da propriedade” (BRASIL, 1988).
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 137

José Afonso da Silva, quando trata da valorização do trabalho humano, aduz que
“embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre
todos os demais valores da economia de mercado” (SILVA, 2000, p. 766). Depreende-se
então que, em que pese tenha o proprietário da empresa todo um poder legal decorrente de
sua apropriação privada (entre eles o poder empregatício), ele está vinculado à necessidade
de valorizar o trabalho humano.
A valorização do trabalho humano em detrimento da propriedade privada da empresa
também pode decorrer da leitura do texto constitucional (BRASIL, 1988). Isso porque, por
uma simples vistada na Constituição, pode-se perceber que o constituinte elaborou a Consti-
tuição trazendo, de antemão, as matérias mais importantes. Assim, ao analisar o artigo 1708
da CRFB/1988, pode-se verificar que a valorização do trabalho humano precede ao princípio
da propriedade privada. Ademais, a valorização do trabalho humano é fundamento, enquanto
que a propriedade privada é princípio, o que denota um maior peso à valorização do trabalho
humano. Desse modo, pode-se concluir que a valorização do trabalho humano é de superior
importância, se comparada com a propriedade privada da empresa.
Nesse compasso, a livre iniciativa e a propriedade privada da empresa também so-
frem limitações pelo princípio da dignidade da pessoa humana, isso porque, o próprio artigo
170 da CRFB/88 determina que a “ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos
a existência digna”, consagrando, assim, logicamente, o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana em superioridade à propriedade privada da empresa (BRASIL, 1988).
Sarlet, Marinoni e Mitidiero ensinam que “no momento em que a dignidade é guinda-
da à condição de princípio estruturante e fundamento do Estado Democrático de Direito, é o
Estado que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das
pessoas” (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 263).
O poderio do empregador também encontra limites na função social da propriedade,
que precisa ser lida como função social da empresa empregadora. Segundo Araújo e Nunes
Júnior, “a noção de cumprimento da função social da propriedade privada, na seara eco-
nômica, implica a observância dos fins da ordem econômica (propiciar dignidade a todos,
segundo os ditames da justiça social)” (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2003, p. 418).
No mesmo sentido, José Afonso da Silva aduz que:

8
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V -
defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o
impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das
desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas
de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.
138 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG

O artigo 170, III, ao ter a função social da propriedade como um dos princípios da
ordem econômica, reforça essa tese, mas a principal importância disso está na sua
compreensão como um dos instrumentos destinado à realização da existência digna
de todos e da justiça social (SILVA, 2000, p. 792).

Ainda no que diz respeito à função social da propriedade da empresa, Gilmar Mendes
e Gonet Branco assinalam que “como acentuado pela Corte alemã, a faculdade confiada ao
legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a compatibilizar o espaço de liberdade
do indivíduo no âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade” (MENDES;
GONET BRANCO, 2018, p. 347).
Desse modo, postas as premissas supracitadas, pode-se afirmar que o constituinte
previu que a atividade empresarial, realizada mediante a contratação de pessoas, estaria
revestida de diversas garantias constitucionais, contudo limitou as garantias do empresário
(livre iniciativa e propriedade privada da empresa) à valorização do trabalho humano e ao
respeito à dignidade da pessoa humana.
Com isso, as relações trabalhistas, além da limitação estabelecida em todo arcabou-
ço normativo infraconstitucional trabalhista, também sofrem limitações pelos direitos funda-
mentais, que incidem diretamente nas relações de emprego. Essa possibilidade de incidência
direta da constituição (direitos fundamentais) nas relações sociais (entre elas, as relações
laborais), convencionou-se denominar eficácia horizontal dos direitos fundamentais, assunto
que será abordado no próximo tópico.

2 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais


Antes de adentrar no tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, abordare-
mos, brevemente, a definição desses direitos e de suas dimensões históricas.

2.1 Direitos fundamentais - definição


A tarefa de conceituar direitos fundamentais é um pouco árdua, porque parte da
doutrina constitucional clássica, a exemplo de José Afonso da Silva e Celso Ribeiro Bastos,
extrai o conceito de direitos fundamentais a partir da análise de diversas outras expressões
correlatas, tais como liberdades públicas, liberdades individuais, direitos positivos, direitos
humanos, direitos do homem, direitos subjetivos, enfim, inúmeros conceitos, para se chegar
à expressão direitos fundamentais.
No ponto, a despeito das expressões correlatas, assim como o fez o constituinte
brasileiro, adotar-se-á, apenas, a expressão direitos fundamentais. Nesse sentido, Dirley da
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 139

Cunha Júnior os conceitua como “posições jurídicas que investem o ser humano de um con-
junto de prerrogativas, faculdades e instituições imprescindíveis a assegurar uma existência
digna, livre, igual e fraterna de pessoas” (CUNHA JÚNIOR, 2017, p. 494).
De forma um pouco parecida, também o faz Uadi Lammêgo Bullos, segundo o qual,
direitos fundamentais “são o conjunto de normas, princípios prerrogativas, deveres e insti-
tuições inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna e igualitá-
ria, independentemente de credo, raça, origem, cor condição econômica ou status social”
(BULOS, 2017, p. 526).
Flávio Martins Nunes Júnior, a respeito dos direitos fundamentais, aduz que “em
sentido material, são os direitos decorrentes da dignidade da pessoa humana, pretensões de
certos grupos ou povos, decorrentes da evolução histórica e de novas necessidades que se
apresentam” (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 606). Noutra concepção, direitos fundamentais são:

Todas as posições jurídicas concernentes às pessoas (naturais ou jurídicas, consi-


deradas em sua perspectiva individual ou transindividual) que, do ponto de vista do
direito constitucional positivo formal, expressa ou implicitamente, estão integradas à
constituição e retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, bem
como todas as posições jurídicas que, por seu conteúdo e significado, possam lhes
ser equiparadas, tendo ou não, assento na constituição formal (SARLET; MARINONI;
MITIDIERO, 2017, p. 223, 324).

Acerca da definição apresentada por Sarlet, no livro citado e publicado em parceria


com Marinoni e Mitidieiro, percebe-se que a expressão “posições jurídicas retiradas da es-
fera de disponibilidade dos poderes constituídos” demonstra que os direitos fundamentais
são cláusulas de respeito estabelecidas nas Constituições, que devem ser observadas pelo
próprio Estado.
No ponto, no que diz respeito à última definição, o destaque vai para a ampliação
apresentada pelos autores no que tange à titularidade dos direitos fundamentais, de forma
que o elastecem também às pessoas jurídicas. Além disso, extrai-se das definições apre-
sentadas que os direitos fundamentais são as prerrogativas ou vantagens estabelecidas nas
Constituições, que servem de limitação à atuação do poder público com relação às pessoas,
tanto físicas, quanto jurídicas.
Nesse primeiro momento, logrou-se verificar que os direitos fundamentais servem
de limites apenas à atuação do Estado em face das pessoas, ou seja, apresentam-se numa
relação vertical. Contudo, o objetivo da pesquisa é, justamente, verificar uma outra possi-
bilidade, qual seja a incidência dos direitos fundamentais como limites na atuação de um
particular em face de outro particular, com destaque às relações trabalhistas.
140 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG

Não obstante, antes de atingir o fim proposto, é preciso, ainda que de forma breve,
apresentar considerações acerca das dimensões históricas dos direitos fundamentais, com
objetivo de melhor contextualizar e compreender as possibilidades de eficácia e incidência
desses direitos nas relações privadas.

2.2 Direitos fundamentais em suas dimensões históricas


A história do surgimento dos direitos fundamentais deu-se de forma gradativa,
acompanhando a própria evolução da sociedade em matéria de direitos. Ou seja, os direitos
foram surgindo e sendo catalogados à medida que as pessoas – pelo menos aquelas que
tinham força de mobilização – clamavam por direitos. No ponto, Flávio Martins Nunes Júnior
afirma que a “evolução histórica dos direitos fundamentais se confunde com a evolução do
constitucionalismo”9 (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 608).
Segundo, Paulo Bonavides:

O lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês10, expri-
miu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais,
profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização:
liberdade, igualdade e fraternidade” (BONAVIDES, 2017, p. 576-577).

Nesse compasso, ainda com fundamento na obra de Bonavides, o autor menciona a


respeito da lição de Karel Vasak11 em uma aula inaugural, em Estrasburgo, em 1979, onde
se mencionou, pela primeira vez, a nomenclatura dos direitos de primeira, segunda e terceira
dimensões (BONAVIDES, 2017). Por direitos de primeira dimensão, Lenza aduz “que eles
marcam a passagem de um Estado autoritário para um Estado de Direito e, neste contexto,
o respeito às liberdades individuais, em uma verdadeira perspectiva de absenteísmo estatal”
(LENZA, 2015, p. 1142).
Da mesma forma, Araújo e Nunes Júnior afirmam que os direitos de primeira di-
mensão “são direitos de defesa do indivíduo perante o Estado. Sua preocupação é a de de-
finir uma área de domínio do Poder Público, simultaneamente a outra de domínio individual,
na qual estaria forjado um território absolutamente inóspito a qualquer inserção estadual”
(ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2003, p. 93). Para Bonavides, os direitos de primeira dimensão

9
Segundo Marcelo Novelino “a versão mais conhecida de constitucionalismo se identifica com a Separação dos
Poderes desenvolvida por Kant e Montesquieu – como forma de impedir o seu uso arbitrário. Contrapõe-se,
assim, à ideia de concentração do exercício do poder. Mais do que uma simples técnica constitucional, o cons-
titucionalismo é uma técnica de liberdade que assegura direitos fundamentais aos cidadãos de modo a impedir
sua violação por parte do Estado” (NOVELINO, 2010, p. 51-52).
10
Emmanuel Joseph Sieyés (1748-1836).
11
Karel Vasak, jurista tcheco-francês (1923-2015).
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 141

“entram na categoria do Status Negativo da classificação de Jellinek12, e fazem ressaltar na


ordem dos valores políticos a nítida separação entre a sociedade e o Estado” (BONAVIDES,
2017, p. 578).
No que tange à segunda dimensão dos direitos fundamentais, Bulos ensina que tal
dimensão “compreende dos direitos sociais, econômicos e culturais, os quais visam asse-
gurar o bem-estar e a igualdade, impondo ao Estado uma prestação positiva, no sentido de
fazer algo de natureza social em favor do homem” (BULOS, 2017, p. 529).
Ainda sobre a segunda dimensão, Flávio Martins Nunes Júnior afirma que “ao con-
trário dos direitos de primeira dimensão, aqui, o Estado tem o dever principal de fazer agir, de
implementar políticas públicas que tornem realidade os direitos constitucionalmente previs-
tos” (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 626).
Relativamente à terceira dimensão de direitos fundamentais, Luiz Alberto Araújo e
Vidal Serrano Nunes Júnior afirmam que:

Depois das preocupações em torno da liberdade e das necessidades humanas, surge


uma nova convergência de direitos, volvida à essência do ser humano, sua razão de
existir, ao destino humanidade, pensando o ser humano enquanto gênero e não adstri-
to ao indivíduo ou mesmo a uma coletividade determinada. A essência desses direitos
se encontra em sentimentos como a solidariedade e a fraternidade, constituindo mais
uma conquista no sentido de ampliar os horizontes de proteção e emancipação dos
cidadãos (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2003, p. 94).

No que tange às dimensões ou gerações de direitos, não obstante existam teorias


que levam até uma sexta dimensão, a presente pesquisa limitou-se às três primeiras. Na
sequência, para fechar esse tópico, tratar-se-á do plano eficacial dos direitos fundamentais.

2.3 Plano da eficácia dos direitos fundamentais – vertical e horizontal


Segundo Gilmar Mendes e Gonet Branco “a história aponta o Poder Público como o
destinatário precípuo das obrigações decorrentes dos direitos fundamentais”, sendo que a
finalidade para os quais foram pensados era justamente “estabelecer um espaço de imunida-
de dos indivíduo em face dos poderes estatais”, consagrando, assim, uma eficácia vertical
de incidência dos direitos fundamentais, ou seja, uma aplicação de direitos fundamentais em
uma relação verticalizada entre as pessoas privadas e o Estado (MENDES; GONET BRANCO,
2018, p. 176).

12
Georg Jellinek, jurista alemão (1851-1911). Autor da Teoria dos Quatro Status, relativa à posição que o indivíduo
assume perante o Estado: Passiva, Ativa, Negativa e Positiva.
142 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG

Ocorre, contudo, que, no campo teórico, se passou a pensar na necessidade de


ampliação desse espaço de imunidade às relações privadas. Foi daí que, consoante Uadi
Lammêgo Bulos surgiu a “teoria da eficácia externa, teoria da eficácia entre particulares ou,
ainda, teoria da eficácia em relação a terceiros, na Alemanha, entre 1955 e 1960” (BULOS,
2017, p. 541).
No ponto, acrescenta Dirley da Cunha Júnior:

No entanto, a complexidade das relações sociais, agravada pela crescente e lamen-


tável desigualdade entre os homens, a doutrina dos direitos humanos começou a
perceber que a opressão das liberdades não decorria apenas do Estado, mas também
do próprio homem em sua relação com seu semelhante. Daí a necessidade de se
estender a eficácia dos direitos fundamentais às relações havidas entre os homens,
com fim de proteger o homem da prepotência do próprio homem, em especial, de
pessoas, grupos e organizações privadas poderosas (CUNHA JÚNIOR, 2017, p. 554).

No âmbito do direito constitucional português, a teoria da eficácia horizontal dos


direitos fundamentais encontra previsão expressa na Constituição Política da República Por-
tuguesa de 1976, que, ao tratar da força jurídica de seus preceitos, em seu artigo 18, declara
que: “Os preceitos constitucionais respeitante aos direitos e garantias são diretamente (sic)
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas” (PORTUGAL, 1976).
Nesse sentido, o professor Ingo Wolfgang Sarlet, para exemplificar a aplicação direta
e vinculante das entidades públicas, o faz citando o português, José Carlos Vieira de Andra-
de13, que assim aduz:

Uma substancial convergência de opiniões no que diz com o fato de que também
na esfera privada ocorrem situações de desigualdades geradas pelo exercício de um
maior ou menor poder social, razão pela qual não podem ser toleradas discriminações
ou agressões à liberdade individual que atentem contra o conteúdo em dignidade da
pessoa humana dos direitos fundamentais, zelando-se de qualquer modo, pelo equi-
líbrio entre estes valores e os princípios da autonomia privada e da liberdade negocial
e geral, que, por sua vez, não podem ser completamente destruídos (SARLET; MARI-
NONI; MITIDIERO, 2017, p. 378).

Já no âmbito do direito constitucional brasileiro, não se verifica comando semelhante


ao da Constituição de Portugal, contudo, na esteira do pensamento ampliativo, doutrina e
jurisprudências brasileiras passaram a aceitar, de forma pacífica, a incidência dos direitos
fundamentais nas relações privadas, assim como esclarece o professor Sarlet:

13
José Carlos Vieira de Andrade. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde
prestou provas de Doutoramento e de Agregação na área das Ciências Jurídico-Políticas. Entre as suas obras,
cita-se: Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 143

De qualquer modo, para além dessas e de outras considerações que aqui poderiam
ser tecidas, constata-se que no direito constitucional brasileiro tem prevalecido a tese
de que, em princípio, os direitos fundamentais geram uma eficácia direta prima facie
na esfera das relações privadas, sem se deixar de reconhecer, todavia, que o modo
pelo qual se opera a aplicação dos direitos fundamentais às relações jurídicas entre
particulares não é uniforme, reclamando soluções diferenciadas (SARLET; MARINO-
NI; MITIDIERO, 2017, p. 379-380).

No ponto em que Sarlet esclarece que a aplicação dos direitos fundamentais no


âmbito das relações privadas não é uniforme, reclamando soluções diferenciadas, o fez, a
toda evidência, porque, alguns dos direitos fundamentais não se coadunam com relações
privadas, a exemplo do direito fundamental à assistência jurídica e integral aos que compro-
varem insuficiência de recursos.
Finalizando o tópico, e rememorando preceitos de Dirley da Cunha Júnior: “a doutri-
na dos direitos humanos começou a perceber que a opressão das liberdades não decorria
apenas do Estado, mas também do próprio homem em sua relação com seu semelhante”
(CUNHA JÚNIOR, 2019. p. 562). De fato, esse é o argumento que justifica a incidência dos
direitos fundamentais nas relações trabalhistas, visto que nessas relações, por força de lei, o
empregador tem o direito de dirigir, comandar e punir os seus empregados, os quais se sub-
metem a tal relação. Em face disso, são necessários mecanismos jurídicos aptos a limitar o
eventual excesso ou abuso do poder empregatício.
Essa relação trabalhista, diferenciada se comparada com as demais relações priva-
das, justamente pelo fato de haver um grande poder concentrado nas mãos do empregador,
o professor chileno Sérgio Contreras14, citado por Flávio Martins Nunes Júnior (NUNES JÚ-
NIOR, 2018), passou a denominá-la de relação diagonal. Eis que o empregador está abaixo
do Estado, mas acima do horizonte do empregado, falando-se, então, em uma aplicação
diagonal dos direitos fundamentais.

3 Decisões judiciais acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais


nas relações trabalhistas
Antes de adentrar nas decisões que aplicaram direitos fundamentais nas relações
trabalhistas, será apresentado um caso julgado no Tribunal Constitucional Alemão, consi-
derado o julgamento paradigma para o espraiamento da aplicação dos direitos fundamen-
tais nas relações privadas. Tal caso paradigmático foi o denominado Caso Lüth15, julgado

14
Sérgio Gamonal Contreras. Professor de Direito do Trabalho da Universidade Adolfo Ibánez do Chile.
15
Erich Lüth (1902-1989). Jornalista alemão e ex-combatente da II Guerra Mundial. Promoveu boicote nacional
contra o filme de Harlan, em razão de seu passado nazista. Os protestos ocorreram em vários cinemas, e os
produtores do filme Amada Imortal processaram Lüth.
144 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG

em 1958, pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha16. Segundo colhe-se do livro


de Gonet Branco e Gilmar Mendes, Lüth fez uma campanha para boicotar um filme de Veit
Harlan17, pois ele teria produzido um filme contra Judeus durante a II Guerra Mundial. Assim,
os produtores do filme ajuizaram ação judicial contra Lüth, postulando indenização pelos
danos causados pela campanha difamatória do filme, sendo Lüth condenado na instância
superior. Lüth, então, recorreu ao Tribunal Constitucional Federal, que anulou a decisão, do
Tribunal Superior, porque ofendia o direito fundamental à livre manifestação do pensamento
(MENDES; GONET BRANCO, 2018, p. 176).
No Brasil, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, tem-se o Recurso Extraordinário
n. 161.243-618, cuja parte envolvida era a empresa de aviação Air France. Colhe-se do caso
que a empresa em questão concedia maiores vantagens aos empregados franceses do que
aos empregados brasileiros. Com isso, um trabalhador de nacionalidade brasileira ajuizou
uma demanda contra a empresa, postulando a equiparação aos trabalhadores franceses, sob
o argumento de que a conduta da empresa ofenderia o princípio da igualdade entre trabalha-
dores , insculpido no artigo 7º, XXXIV, da CRFB/88. Em decisão, o STF reconheceu a ofensa
ao princípio da igualdade e fez incidir diretamente a Constituição em uma relação privada,
afastando, desse modo, de forma parcial, a autonomia (decorrente do direito de propriedade)
da empresa em suas relações trabalhistas (BRASIL, 1996).
Outro caso de relevância, que promove a incidência direta dos direitos fundamentais
nas relações trabalhistas, foi o Agravo de Instrumento no Recurso de Revista nº: 1556-
82.2012.5.18.010119, julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, relativo ao procedimento

16
Localizado na cidade de Karlusruhe.
17
Veit Harlan, Produtor de filmes alemão (1899-1964). Produziu Amada Imortal.
18
Recurso Extraordinário n. 161.243-6. Supremo Tribunal Federal. Relator Ministro Carlos Velleso. Julgado em
29.10.1996. Recorrente: Joseph Halfin e Recorrido: Compagnie Nationale Air France. Conhecido e Provido. I. –
Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado
o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao
empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988,
art. 5º, caput). II. – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indi-
víduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag
110.846 (AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. – Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes
no caso. IV. – R.E. conhecido e provido (BRASIL, 1996).
19
Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº: 1556-82.2012.5.18.0101. Relator: Luiz Philippe Vieira de
Mello Filho. 1. A realização do procedimento denominado “Barreira Sanitária”, mediante trânsito coletivo dos
trabalhadores em trajes íntimos pelos vestiários da empresa, traduz-se em inadmissível exposição do corpo e,
por consequência, da intimidade dos trabalhadores aos seus colegas de profissão, constrangimento passível de
reparação por dano moral. 2. No caso dos autos, ficou registrado que os locais destinados a banhos, situados
entre um vestiário e outro, não tinham portas, de modo que a dinâmica de trocas de uniformes imposta pela em-
presa implica exposição desnecessária de partes do corpo de trabalhadores, situação particularmente agravada
em caso de uso dos chuveiros, quando os trabalhadores ficam totalmente despidos. 3. A exigência sanitária deve
ser cumprida pelas empresas do ramo alimentício de forma consentânea com a preservação dos direitos fun-
damentais dos trabalhadores no ambiente de trabalho, visto que as normas do Ministério da Agricultura devem
ser cumpridas de forma harmônica com as normas do Ministério do Trabalho e Emprego e, sobretudo, com as
disposições superiores da Constituição Federal, que tutelam a dignidade humana dentro e fora do ambiente de
trabalho. Recurso de revista conhecido e provido.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 145

denominado de barreira sanitária nas empresas de alimentos, em que os empregados eram


obrigados a se despirem, permanecendo em trajes íntimos, para realização de uma espécie
de higienização, para troca de roupas. Ocorre que tudo acontecia de forma coletiva, expon-
do os corpos dos trabalhadores uns aos outros, sem nenhuma forma de preservação da
intimidade corporal. Assim, o Tribunal Superior do Trabalho, julgando o caso, deu aplicação
horizontal ao comando constitucional e decidiu que a barreira sanitária, mesmo que prevista
em atos normativos do Ministério da Agricultura, deve ocorrer de forma a não constranger
ou expor a intimidade dos trabalhadores, direito fundamental previsto no artigo 5º, X, da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Semelhante ao julgado mencionado é Recurso de Revista nº: 10998-23.2015.5.
12.0008, também do Tribunal Superior do Trabalho, em que se reconheceu a incidência de
dano moral no procedimento de troca de uniforme coletiva para transpor barreira sanitária,
porque tal conduta viola o direito à intimidade e privacidade do trabalho, nos termos em que
proclama o artigo 5º, X da CRFB/88.
Outro fato de grande lesividade ao trabalhador, que foi e vem sendo aparado em razão
da aplicação direta de comandos constitucionais fundamentais nas relações trabalhistas,
é o que diz respeito à restrição ao uso do banheiro, imposta pelo empregador aos seus
empregados. Cite-se um precedente relativo à conduta em questão, o Recurso de Revista
nº: 1002145-82.2015.5.02.072020. Nas vezes em que o judiciário trabalhista (TST) se de-
bruçou sobre a questão, consignou-se que a dignidade da pessoa humana - norma jurídica
constitucional, dotada de força normativa (GOLDSCHMIDT, 2009), o respeito à honra e às
necessidades fisiológicas da pessoa, que na realidade integram o leque da dignidade huma-
na, salvaguardam as pessoas humanas em todas as suas relações, sejam elas públicas ou
privadas (BRASIL, RR nº: 224700-65.2007.5.18.0008).
Concluindo o ponto relativo às decisões judiciais que promovem a incidência di-
reta de direitos fundamentais nas relações trabalhistas, tem-se o Recurso Extraordinário
nº: 160.222/RJ21, relativo à revista íntima de trabalhadoras. No caso, consignou-se ofensiva

20
RECURSO DE REVISTA Nº: 1002145-82.2015.5.02.0720. Relator Márcio Eurico Vitral Amaro. 8ª Turma TST. I -
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA - REGÊNCIA PELA LEI Nº 13.015/2014 - INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS. VALOR ARBITRADO. Constatada violação do artigo 5º, X, da Constituição Federal, merece
provimento o agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista. II - RECURSO DE
REVISTA - REGÊNCIA PELA LEI Nº 13.015/2014 - INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESTRIÇÃO AO USO
DO BANHEIRO. A restrição ao uso de banheiro expõe indevidamente a privacidade do empregado, ofendendo sua
dignidade, visto que não se pode objetivamente controlar a periodicidade da satisfação de necessidades fisioló-
gicas que se apresentam em diferentes níveis em cada indivíduo. Tal procedimento revela abuso aos limites do
poder diretivo do empregador, passível de indenização por dano moral. Recurso de revista não conhecido. INDE-
NIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. VALOR ARBITRADO. O valor fixado à indenização por dano moral, R$ 15.000,00
(quinze mil reais), afigura-se bastante elevado à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e
ainda em face do tratamento que a jurisprudência desta Corte vem dispensando à matéria. Em atenção a tais
princípios, conhece-se do recurso por violação do art. 944, caput , do Código Civil, para, no mérito, reduzir para
R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a indenização. Recurso de revista conhecido e provido.
21
RECURSO EXTRAORDINÁRIO nº: 160222/RJ. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento: 11/04/1995.
Recorrentes: Ana Paula Muniz dos Santos e outros; Recorrido: Nahum Manela. I. Recurso extraordinário: legi-
146 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG

à intimidade das trabalhadoras a conduta em que, ao término do expediente, com vistas à


defesa do patrimônio da empresa (propriedade privada desta), o empregador promovia uma
revista íntima em suas empregadas (BRASIL, 1995).
Do exposto, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no âmbito das relações
de trabalho no Brasil é reconhecida e efetivada não só pelos Tribunais Trabalhistas, mas
também pelo Supremo Tribunal Federal, como forma de estabelecer limites ao poder em-
pregatício, protegendo o trabalhador vulnerável em face de possíveis comandos abusivos
do empregador.

Conclusão
Ao concluir a presente pesquisa, classificada como artigo científico, chega-se à
conclusão de que os comandos constitucionais veiculadores dos direitos fundamentais pre-
cisam estar presentes em todas as relações sociais, sejam elas relações com o Estado –
relação verticalizada –, sejam relações privadas – relação horizontalizada –, aquelas em que
o Estado não se faz presente.
Dentre as relações privadas, maior destaque deve ser destinado às relações traba-
lhistas, porque são nelas que a vida acontece; é no ambiente de trabalho, que as pessoas
passam a maior parte de seu tempo, constroem amizades, amores, e auferem a renda ne-
cessária para desenvolvimento de seus projetos pessoais. Nesse compasso, pode-se afirmar
que, nessas bases, o constituinte brasileiro estabeleceu a valorização do trabalho humano
como fundamento da República Federativa do Brasil e também da ordem econômica, o que
conduz, com naturalidade, à afirmação da plena eficácia horizontal dos direitos fundamentais
no campo laborativo.
Obviamente, não se pode olvidar que nem todos os direitos fundamentais encontram
espaço nas relações trabalhistas, se pensados como trunfos22 contra o Estado. Não obstan-
te, os comandos constitucionais que servem para garantir a plena dignidade do trabalhador
precisam ser levados e garantidos no setor laborativo, como pugnam a doutrina a jurispru-
dência pesquisadas e debatidas nesta pesquisa.

timação da ofendida - ainda que equivocadamente arrolada como testemunha -, não habilitada anteriormente,
o que, porém, não a inibe de interpor o recurso, nos quinze dias seguintes ao término do prazo do Ministério
Público, (STF, Sums. 210 e 448). II. Constrangimento ilegal: submissão das operárias de indústria de vestuário
a revista intima, sob ameaça de dispensa; sentença condenatória de primeiro grau fundada na garantia cons-
titucional da intimidade e acórdão absolutório do Tribunal de Justiça, porque o constrangimento questionado a
intimidade das trabalhadoras, embora existente, fora admitido por sua adesão ao contrato de trabalho: questão
que, malgrado a sua relevância constitucional, já não pode ser solvida neste processo, dada a prescrição super-
veniente, contada desde a sentença de primeira instância e jamais interrompida, desde então.
22
Cf.: NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora/Revista dos
Tribunais, 2006. Disponível em: http://esmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais-Trun-
fos-contra-a-maioria.pdf. Acesso em: 03 set. 2019.
O PODER EMPREGATÍCIO E A VULNERABILIDADE DO EMPREGADO | 147

Referências
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BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº: 1002145-82.2015.5.02.0720. Relator


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148 | RODRIGO GOLDSCHMIDT | CRISTIANO DE SOUZA SELIG

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
CAPÍTULO X

FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA


SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL:
UMA ANÁLISE DA EMENDA CONSTITUCIONAL
95 E SEUS REFLEXOS NO BPC

GLADYS LENUZIA KESTERING 1


ISMAEL DE CÓRDOVA 2

Introdução
Antes de adentrarmos no tema financiamento precisamos esclarecer o termo “Auste-
ridade” que é sinônimo de “Retrocesso”, dedicado à análise da política fiscal e das finanças
públicas no Brasil, como foco de frear todos os gastos públicos. Entretanto essa agenda
governamental tem como consequência a violação de muitos direitos, sejam eles humanos
ou sociais.

A austeridade também pode ser compreendida tanto pela filosofia, que “buscava
transpor, sem mediação, virtudes individuais (sobriedade, parcimônia, prudência)
para o plano público” como pela dimensão econômica, em que “é a política de ajuste
fundada na redução dos gastos públicos e do papel do Estado em suas funções de
indutor do crescimento econômico e promotor do bem-estar social” (ROSSI, 2017,
n.p.).

1
Bacharel em Administração, acadêmica do Curso de Especialização em Sistema Único de Assistência Social
(Suas) e o Trabalho Interdisciplinar. Secretária Municipal de Assistência Social de Sideropólis/SC. E-mail: gla-
dys_glk@hotmail.com.
2
Doutorando no PPGDS/Unesc. Pesquisador do Núcleo em Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc).
Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico Unesc/SC. E-mail: cordovaismael@hotmail.com.
150 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

Para tanto cabe ressaltar que, persistindo essa agenda de austeridade, a Constitui-
ção Federal de 1988 de certa forma sofre e sofrerá uma deterioração no que se refere aos
direitos já garantidos à custa da oposição dos movimentos sociais nas décadas anteriores de
1970/1980. Com a Carta Magna um grande pacto social é assinado em nome do bem-estar
e da proteção social. Nele são reconhecidos direitos sociais como a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Sendo o Estado o
detentor e responsável pela sua aplicação. Nesse novo pacto social, transfere-se a respon-
sabilidade para o mercado no fornecimento de bens sociais. Trata-se de um processo que
transforma direitos sociais em mercadorias (ROSSI, 2017).
No entanto com a lógica proposta na Emenda Constitucional n. 95, impõe-se o rom-
pimento desse pacto social preestabelecido, uma vez que esse pacto social que estabelece
direitos sociais ao cidadão e deveres ao Estado estaria sendo refeito. O marco dessa mudan-
ça de orientação no papel do Estado é a Emenda Constitucional (EC) n. 95, decorrente do
Projeto de Emenda Constitucional (PEC 241). Sendo assim, além de gerar retração econô-
mica, a austeridade ainda pode piorar a situação fiscal. Considerando essas possibilidades,
o presente estudo buscará entender se essas medidas poderão ter como consequência a
redução da cobertura e ampliação da vulnerabilidade de renda de idosos e de pessoas com
deficiência no país caso efetivadas.
Quanto aos procedimentos metodológicos, este estudo possui uma abordagem
quantitativa e de caráter documental. As pesquisas quantitativas são aquelas embasadas em
dados numéricos e a busca em documental se dá por meio da análise secundária de “dados
que não foram coletados para o seu próprio projeto de pesquisa” (FLICK, 2013, p. 124).

1 Consequências da austeridade fiscal


Em uma determinada economia, há momentos de crise a austeridade pode gerar um
círculo vicioso no qual o corte de gastos reduz o crescimento, o que deteriora a arrecadação
e piora o resultado fiscal, que por sua vez leva a novos cortes de gastos (figura 1). Ocorrendo
a redução do crescimento econômico, as mais afetadas são as populações que vivem em
extrema pobreza, considerando que se a economia vai mal, várias famílias adentram a linha
da pobreza, tornando cada vez mais vulneráveis as políticas sociais. Ou seja, em um con-
texto de crise econômica, a austeridade é ainda mais contraproducente e tende a provocar
queda no crescimento e aumento da dívida pública, resultado contrário ao que se propõe
(AUSTERIDAE..., 2018).
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 151

FIGURA 1 – Ciclo vicioso da austeridade.

Fonte: Adaptado de (AUSTERIDADE..., 2018, p. 18).

A figura explicita que a redução dos investimentos públicos em políticas públicas e a


racionalidade economicista não levam em conta que reduzir gastos com saúde e educação
também reduzirá o crescimento econômico do país, considerando o possível adoecimento
da população por falta de atendimento e o surgimento de enfermidades ou mesmo o rea-
parecimento de doenças que até então estavam erradicadas, colocando com isso o país na
linha de descrédito no mercado estrangeiro e consequentemente levando à diminuição das
receitas.
A austeridade fiscal como cerne de políticas governamentais caracteriza-se por es-
colhas que exigem grandes sacrifícios da população, seja porque aumentam a carga tributá-
ria, seja pela implementação de medidas que restringem a oferta de benefícios, bens e ser-
viços públicos em razão de cortes de despesas e/ou da realização de reformas estruturais,
afetando de forma significativa os estratos mais vulneráveis da população (ROSSI, 2017).
O balanço fiscal pode ser ampliado não só cortando despesas, mas no aumento de
receitas. O que não foi pensado quando proposta a emenda a fim de reduzir o papel do Esta-
do cortando gastos nas políticas públicas sem se preocupar com o aumento de receitas. Tal
postura compõe um cenário muito preocupante, pois, se a população está tendo um aumen-
to na longevidade aliado ao baixo poder aquisitivo e à redução de gastos e se isso implica
que essa população tenha seus direitos garantidos, a pergunta que se faz é: onde se quer
chegar? O propósito de reduzir o papel do Estado, reduzindo políticas públicas, reduzindo
direitos... só fará aumentar as diferenças sociais, aumentando a concentração de renda em
um grupo pequeno e o que era direito passará a ser visto como um favor para as pessoas. O
direito será a troca de serviços prestados, o que é um retrocesso.
152 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

Para a execução dos serviço, programas e projetos existe a necessidade estabe-


lecida no pacto da União no financiamento, como por exemplo o financiamento da política
de assistência social que é responsabilidade compartilhada pelos entes federados, confor-
me estabelece a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Assistência Social – Loas (Lei
8.742/1993), entre essas corresponsabilidades existe uma denominada de Cofinanciamento.
Segundo Draibe (2015), para o financiar a execução de uma determinada política pública,
os recursos são originários de diversas fontes, porém as políticas públicas estais tem como
fonte os impostos, contribuições sociais, doações e empréstimos internacionais, em espe-
cial no caso da assistência social é financiada exclusivamente pelos impostos, considerando
que são de acesso universal.
Para tanto a pesquisa buscará em sua análise contextualizar essas possibilidades,
redemocratizando um olhar criterioso quanto ao assunto em questão. O debate de enfrenta-
mento do déficit público decorrente da crise econômica por meio da minoração das políticas
sociais tanto pelo corte dos gastos, como de seu escopo e abrangência, conforme o estudo
buscará mostrar, baseado em pesquisas que apontam para esse desfecho. O presente es-
tudo defende que o debate terá que ser feito pelos movimentos sociais aliados às esferas
de governo em que acontecem as políticas sociais em contraponto com os defensores do
projeto hegemônico do neoliberalismo e das políticas de austeridade fiscal.
Será uma disputa constante da sociedade: Por um lado, existem argumentos con-
sistentes para defender a criação de políticas públicas sociais e econômicas em direção a
uma sociedade mais solidária, na qual os resultados dessas iniciativas fortaleçam o que é
de interesse comum da população. Noutro viés, os que defendem esse campo contra-he-
gemônico representam os desafios de enfrentamento do neoliberalismo, com resistência e
formulação de saídas viáveis.

2 Financiamento do Sistema Único de Assistência Social


Conforme exposto, a garantia de cofinanciamento prevista pela Lei n. 8.742/1993 em
seu art. 28 apresenta que o financiamento dos benefícios, serviços, programas e projetos
estabelecidos nessa Lei Federal far-se-á com os recursos da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, das demais contribuições sociais previstas no art. 195 da Consti-
tuição Federal, além daqueles que compõem o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).
Já no que compete ao parágrafo terceiro da mesma legislação, retrata que o financiamento
da Assistência Social no Sistema Único de Assistência Social - Suas, deve ser efetuado
mediante cofinanciamento dos 3 (três) entes federados, devendo os recursos alocados nos
fundos de assistência social ser voltados à organização, prestação, aprimoramento e via-
bilização dos serviços, programas e projetos e benefícios dessa política (Incluído pela Lei
n. 12.435 de 2011).
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 153

Não se pode também deixar de citar a Constituição Federal, em seu art. 204 – em
que propõe que as ações governamentais na área de Assistência Social serão realizadas com
recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes.
No que tange às novas mudanças podemos perceber que com a Emenda Constitucional 95,
que ficou conhecida como a “PEC da Morte” (PEC 241/2016), há um rompimento com o
pacto supracitado. Essa austeridade econômica defendida pelo governo, interrompe o que
vinha sendo implantado, enfraquecendo e limitando os investimentos em políticas sociais,
fragilizando toda a rede de proteção social. A proposta brasileira de implementação do teto
para os gastos públicos federais, objeto da PEC 241/2016, foi aprovada em 16 de dezembro
de 2016, consolidando-se na Emenda Constitucional de número 95, que instituiu um novo
regime fiscal para vigorar nos próximos 20 (vinte) anos, valendo, portanto, até 2036.
Essa proposta de emenda foi alvo de intensos protestos pela sociedade civil; vários
movimentos sociais ligados a universidades em todo o país fizeram manifestos, o que não
impediu, contudo, sua aprovação. Nessa nova regra, o gasto primário do governo federal fica
limitado por um teto definido pelo montante gasto no ano anterior, reajustado pela inflação
acumulada, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

[...] Além da ausência de diálogo com a sociedade civil, os protestos foram motivados
pela oposição a um discurso oficial falacioso da necessidade de um novo regime
fiscal, por meio da limitação de gastos e investimentos públicos, especialmente nos
serviços de natureza social, como única medida capaz de retomar o crescimento da
economia, que teria sucumbido diante de um suposto comportamento fiscal irrespon-
sável do governo anterior (MARIANO, 2017, p. 259).

Portanto as regras do novo regime não permitem, com isso, o crescimento das
despesas totais e reais do governo acima da inflação, nem alterações se a economia estiver
bem, diferentemente de outros países que adotaram esse corte do teto dos gastos públicos.
Somente será possível aumentar os investimentos em uma área caso sejam feitos cortes
em outras. As novas regras desconsideram, portanto, as taxas de crescimento econômico,
como também as demográficas pelos próximos 20 (vinte) anos, o que poderá levar ao suca-
teamento das políticas sociais, especialmente nas áreas da saúde, educação e assistência
social, pondo em risco a qualidade de vida da população brasileira, além do retrocesso nas
conquistas dos direitos sociais.
A Emenda Constitucional n. 95, de 2016 é a radical expressão normativa da denomi-
nada “política de austeridade” cujo objetivo seria enfrentar a crise fiscal. Ela alterou o Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), para instituir o Novo Regime Fiscal, cujo
núcleo é a imposição, por vinte anos, de limites individualizados para as despesas primárias,
em âmbito federal, de órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e das funções
essenciais à justiça (Ministério Público da União; Conselho Nacional do Ministério Público;
Defensoria Pública da União).
154 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

3 A participação social como resistência à agenda neoliberal


Os movimentos sociais são uma forma de manifestação popular para protestar e
lutar por direitos e mudanças sociais, sendo importantes para que seja respeitada a demo-
cracia. É de fundamental importância que as ideologias dos grupos de movimentos sociais
sejam organizadas de forma coesa para que exista uma coerência de quais são as causas
defendidas e quais são os objetivos a serem alcançados. Gohn (2012, p. 14) descreve os
movimentos sociais da seguinte forma:

Os movimentos sociais propriamente ditos, criados e desenvolvidos a partir de gru-


pos da sociedade civil, têm nos direitos a fonte de inspiração para a construção de
sua identidade. Podem ser distintos individuais ou coletivos. Os direitos individuais in-
serem-se no rol dos direitos humanos fundamentais dos seres humanos, direitos vis-
tos em suas múltiplas dimensões social econômica, civil/política e cultural, ética etc.

Os anos 1980 foram marcados pelo domínio dos movimentos sociais no campo da
política brasileira, protagonistas da luta contra a ditadura militar e pela democratização do
país, exigiam do Estado não apenas participação política no processo decisório das políticas
públicas, mas também o responsabilizavam pela situação de precariedade em que vivia a
maioria da população. As passeatas, greves, caravanas, entre outros eram meios utilizados
para pressionar o Estado por direitos sociais. As políticas públicas eram concebidas como
dever do Estado e direito do cidadão, e a transformação da sociedade capitalista era presente
nesses debates.
Ao longo da década de 1980, o Brasil presenciou uma efervescência política com
grandes mobilizações populares, greves, conflitos e extensos debates públicos que culmi-
naram em um amplo acordo político: a Constituição Federal de 1988 (CF/1988). A chamada
Constituição Cidadã sela um pacto social no Brasil que oferece uma ampla garantia dos
direitos individuais e coletivos e o mais completo conjunto de direitos sociais que o país
conheceu, além de uma ampla cobertura da seguridade social, tendo sido um dos maiores
programas de proteção social de todo o mundo. Um exemplo dessa proteção social garan-
tida pela Constituição está no art. 230, inciso V, assim descrito: a garantia de um salário
mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem
não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, con-
forme dispuser a lei.
Na década de 1990 o cenário se modifica: o neoliberalismo adentrou a seara dos
movimentos sociais com raríssimas exceções modificando não apenas suas formas de luta,
mas principalmente sua disposição para a luta. Entram em cena as Organizações Não Go-
vernamentais (ONGs) que vêm “colaborar” com o Estado naquilo que ele como detentor não
consegue realizar. Sendo substituída pela participação nos projetos do governo sem nenhu-
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 155

ma crítica às estruturas de dominação da sociedade capitalista. Estas tinham à condição


de agentes de mediação entre o Estado e a população, principalmente a mais empobrecida.
A participação da sociedade civil foi mascarada de certa forma no Estado trazendo
para si a função de executoras de políticas públicas, apoiando as várias formas de privati-
zação dos serviços públicos. Infelizmente na década de 1990 a maioria dos movimentos
sociais não manteve a característica de luta e resistência de 1980, apesar de as péssimas
condições de vida não terem sido amenizadas.
O engajamento desses movimentos sociais é que fará frente às reformas que estão
sendo traçadas, tanto pelo governo anterior com a EC 95, quanto pelo atual governo por meio
da reforma da previdência, que são políticas econômicas neoliberais, sendo que a Política
de Assistência Social é a que sofrerá diretamente os impactos da EC 95, uma vez que dife-
rentemente da Saúde e Educação, ainda não possui um mínimo percentual da arrecadação
pactuado para cada esfera de governo.
Nessa conjuntura, foi com os movimentos sociais contraditórios e dispostos a lu-
tar por melhorias que a política de assistência social foi se materializando, juridicamente e
como um sistema único, reclamável pela população. Essa trajetória incorporou um processo
que evidencia os ganhos possíveis no campo da política social na sociedade capitalista,
bem como aponta as determinações históricas que asseguram a contenção da população à
ótica das determinações do processo de acumulação capitalista. O Estado como principal
articulador de políticas sociais deve continuar investindo na sociedade para que esta possa
aquecer a economia, aumentando a quantidade de emprego e a arrecadação de impostos,
influenciando diretamente na redução das desigualdades e na construção de um caminho
para sair da crise econômica.
Vale ressaltar que cabe aos movimentos populares exigirem políticas estatais vol-
tadas para as suas necessidades. Diante disso, aliada a essa crise restritiva orçamentária
a crise de representatividade política dos movimentos sociais também é preocupante. Do
mesmo modo, não se deve aceitar interferências na organização interna destes. Isso não
significa defender a democracia como valor universal, acreditando-se que paulatinamente
se transforma o Estado capitalista, pelo contrário, as lutas sociais e a participação política,
encaminhadas pelos movimentos populares, devem figurar como um processo, no sentido
de apontar os limites estruturais do Estado capitalista.
Conclui-se que o aumento das desigualdades sociais contribui para o enfraqueci-
mento dos movimentos sociais, colocando limites para que a democracia cumpra o papel
de representar os direitos da maioria e garantir a livre manifestação do contraditório. Ou
seja, suprime-se, por meio de uma regra, direitos conquistados ao longo de muitas lutas e
reproduz uma lógica de determinação das políticas semelhantes às que existiam em períodos
não democráticos.
156 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

4 Reflexo da austeridade na política pública de assistência social


Falar em assistência social é falar de diversos programas, serviços e projetos de
reconhecido papel no combate à pobreza e à desigualdade. Um exemplo é o Programa Bolsa
Família (PBF), que atende 13,8 milhões de famílias pobres e extremamente pobres no país
(121.306 famílias no Estado de Santa Catarina e 225 famílias no município de Siderópolis/
SC), e o Benefício da Prestação Continuada (BPC), que garante um salário mínimo mensal a
idosos e pessoas com deficiência que estão em condição de extrema pobreza e que atual-
mente atendem cerca de 110 pessoas, entre pessoas com deficiência e idosos no município
referido.
Milhões e milhões de pessoas estão sendo afetadas pela maior crise econômica que
o Brasil já enfrentou em toda a sua história. Desemprego, fome e os cortes nas políticas
públicas estão levando o país a um retrocesso, fazendo com que setores importantes da
população voltem à miséria. Como exemplificado pela Emenda Constitucional 95 que redu-
ziu os recursos para a saúde e educação pública e de outras políticas sociais por 20 anos,
medidas foram aprovadas no Congresso Nacional, tornando inviável a garantia de vários
direitos, penalizando ainda mais crianças, adolescentes, jovens, mulheres e idosos, indo
totalmente contra todo o trabalho que vem sendo executado para enfrentar a desigualdade
social no país.
Para as famílias brasileiras, um dos maiores problemas é o aumento do desemprego,
em boa parte decorrente do efeito recessivo das políticas de austeridade econômica. Sendo
assim, cada vez mais famílias dependem das transferências do governo como principal fonte
de renda, tanto as previdenciárias quanto as assistenciais, que também são ameaçadas pe-
las políticas de corte permanente de gastos e a reforma trabalhista e da previdência e pelos
atuais pacotes de corte de gastos que estão sendo implementados pelo atual governo com
cortes de benefícios e desvinculação do salário mínimo.

Ao contrário do suposto, as experiências históricas têm mostrado que a austeridade


é contraproducente e gera exatamente o contrário do que busca remediar: provoca
uma queda do crescimento econômico e um aumento da dívida pública. Ademais,
a austeridade é seletiva, pois prejudica principalmente os mais vulneráveis (ROSSI;
OLIVEIRA; ARANTES, 2017, p. 1).

A piora na qualidade dos serviços públicos é uma perspectiva bem concreta avaliado
o efeito do congelamento dos gastos em serviços públicos pelos próximos vinte anos, con-
forme instituiu a PEC do teto dos gastos (PEC 241/2016). Com menos recursos do governo
federal orçados para educação, saúde, previdência e assistência social, é fácil imaginar uma
queda na qualidade de vida da população periférica. Destaque-se que não se leva em conta
que a população mais pobre paga mais tributos do que a mais rica, uma vez que os tributos
incidem mais sobre o consumo e não sobre a renda.
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 157

A assistência social nos Municípios, dentro dessa perspectiva, será cada vez mais
ausente com o congelamento do orçamento, tornando maior a influência de iniciativas
particulares, ONG’s, Igrejas que, amparando a população conforme seus critérios, ou
até sendo apenas referência de quem ajuda na “necessidade”, acabariam por exercer
um efeito destrutivo na noção de cidadania nas periferias, principalmente por conta
da não universalidade dessas ações, além de tornar esses territórios mais vulnerá-
veis para a instalação de relações de poder por meio do clientelismo. Isso seria um
retrocesso às lutas pela política de assistência social como Direito. [...] não pretende
atingir o Estado mínimo, mas reconstruir um Estado que mantém suas responsabilida-
des na área social, acreditando no mercado, do qual contrata a realização de serviços,
inclusive na própria área social (BEHRING, 2008, p. 172).

Dessa forma, pretende-se achar uma saída para a crise econômica que assola o
país, desresponsabilizando o Estado em detrimento de transferência de responsabilidades a
sociedade. Nessa esteira, surgem os discursos governamentais sobre a privatizações, a in-
tervenção mínima do Estado, que corroboram com a desproteção social. Ademais, a volta de
práticas clientelistas, sem considerar as questões sociais trazidas por um estado neoliberal,
fragiliza os direitos sociais.
Vale lembrar que foi a partir da Constituição de 1988 e principalmente com a Lei
Orgânica de Assistência Social (Loas) que a assistência passou a ser um direito, como
política universal, de todo cidadão que dela necessitar. Tais leis apontam para a centralidade
do Estado na garantia da prestação de serviços sociais qualificados, que promoveriam um
padrão de cidadania garantido pela lei.

Apoiada por décadas na matriz do favor, do clientelismo, do apadrinhamento e do


mando, que configurou um padrão arcaico de relações, enraizado na cultura política
brasileira, esta área de intervenção do Estado caracterizou-se historicamente como
não política, renegada como secundária e marginal no conjunto das políticas públicas
(COUTO; YAZBEK; RAICHELIS, 2012, p. 55).

Esse resquício de cultura protagonizou um forte debate sobre as possibilidades de


explicitar na vida de parte da população brasileira, a que representava “aqueles que dela
necessitam”, acesso universal a direitos sociais. Assim também entendemos que existem
ainda desafios a serem enfrentados na área da assistência social como política pública de
direito e não mais como assistencialismo. Foram décadas de clientelismo que consolidaram
essa cultura tuteladora que não favoreceu o protagonismo e nem a emancipação dos usuá-
rios da assistência social na nossa sociedade (YAZBEK, 2004).
O assistencialismo faz dessa transferência uma relação de poder que subalterniza
quem tem a necessidade: passa “a dever um favor”, criando com isso uma relação de
158 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

dependência. Os programas de transferência de renda no país ainda são programas de go-


verno e não políticas estatais de direito, portanto pode-se concluir que se tratam de políticas
assistencialistas em que se impõe condicionalidades de permanência nos programas e não
o nível de pobreza para que os necessitados tenham o mínimo para viver.
A falta de investimento do Estado nesse setor deixa mais distante a perspectiva de
universalização da assistência, colocando direitos constitucionalmente afiançáveis no cam-
po do favor e da solidariedade, em uma relação que, sob aparência da inclusão, reitera a
exclusão, pois inclui de forma subalternizada e oferece como favor o que na verdade é um
direito. Nesse mesmo sentido, o assistencialismo engendraria uma dupla segregação dos
assistidos, reduzindo-os a dependentes de caridade ao mesmo tempo em que dificulta ou
impede a noção de cidadania entre a população atendida. A falta de investimento nessas
áreas, juntamente com à precarização do trabalho e o aumento do desemprego, nos dá uma
perspectiva de fortalecimento dessas práticas, em detrimento de uma política que de fato
transforme a realidade das populações mais pobres. Tal cenário poderá propiciar o aumento
de um populismo assistencialista.

5 Os direitos sociais
Em 1988 surge a Constituição Federal, um grande pacto assinado em nome do bem-
-estar e proteção social. Nele são reconhecidos como direitos sociais, entre outros, a edu-
cação, a saúde, a segurança, a previdência social, a assistência sendo o Estado o detentor
e responsável pela sua aplicação. A Emenda Constitucional 95, conhecida como PEC da
Morte (PEC 241/2016, quando em tramitação na Câmara dos Deputados e a PEC 55/2016,
no Senado Federal, rompem esse pacto. A suposta austeridade econômica defendida pelo
governo interrompe o que vinha sendo implantado e enfraquece e limita os investimentos em
políticas sociais, fragilizando toda a rede de proteção social.
Os fundamentos de soberania, cidadania e dignidade da pessoa humana foram esta-
belecidos por meio da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º, sendo um dos princi-
pais objetivos estabelecidos para a República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza
e a redução das desigualdades sociais. O artigo 6º da CF/1988 enumera os direitos sociais,
aqueles que são classificados como direitos de igualdade, como a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção da maternidade e da infância e a assistência aos desamparados.
A ordem social definida nos termos do art. 193 da CRF/88 tem como base o primado
do trabalho, e como objetivos o bem-estar e a justiça social. A seguridade social está juri-
dicamente definida no artigo 194 é um dos instrumentos para implementar o bem-estar e a
justiça social. De igual forma está estabelecida a previdência social no seu artigo 201 e é de
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 159

caráter contributivo ou seja só terá acesso os que para ela contribuírem, sendo que em seu
parágrafo § 12, a referida lei contemplou a existência de um sistema especial de inclusão
previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria que
se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que
pertencentes a famílias de baixa renda, garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a
um salário-mínimo. Já a assistência social, direito subjetivo estabelecido no artigo 203 da
CR/1988, dispõe que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independen-
temente de contribuição à seguridade social, tendo como objetivos:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;


II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção
de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de defi-
ciência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção
ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.(BRASIL, 1988)

Ao conferir bem-estar a quem necessitar, a CF/1988 consequentemente estaria ga-


rantindo justiça social e contribuindo para a redução das desigualdades sociais. Criando
benefícios específicos para dois tipos de sujeitos a quem pretendia proteger: a pessoa com
deficiência e o idoso que comprovassem não possuir meios de prover sua própria manuten-
ção ou tê-la provida por sua família na forma da lei.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) foi instituído pela Constituição Federal
de 1988, e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), Lei n. 8.742, de
07/12/1993, pelas Leis n. 12.435, de 06/07/2011 e n. 12.470, de 31/08/2011, que alteram
os dispositivos da Loas, e pelos Decretos n. 6.214/2017 e nº 6.564/2008. Sua adoção foi
provocada mais pelo interesse da Previdência Social em depurar seu financiamento entre
benefícios contributivos e não contributivos (SANTOS, 2004). Assim, a introdução do BPC
ganhou mais força como de caráter contributivo previdenciário. Até então, era realizado o
pagamento da renda mensal vitalícia (RMV), cujo caráter contributivo era quase simbólico,
com apenas um ano de contribuição.

Criada em 1974, pela lei nº 6, a RMV, era destinada a cidadãos maiores de setenta
anos ou inválidos e que não exerciam atividades remuneradas, não aferiam quaisquer
rendimentos, não eram mantidos por suas famílias, mas contribuintes para a previ-
dência Social por, no mínimo doze meses (SANTOS, 2004, p. 127).
160 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

Em primeiro de janeiro de 1996 foi extinta a RMV, dando lugar ao Benefício de Pres-
tação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/Loas), que é um Direito
Assistencial operacionalizado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), sendo
custeado com recursos provenientes do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). É
um Benefício individual não contributivo, não vitalício e intransferível que consiste na trans-
ferência mensal e temporária de renda, sem contrapartidas, no valor de um salário-mínimo,
destinado às pessoas com deficiência e idosos com 65 anos de idade ou mais, ambos com
renda per capita familiar inferior a ¼ do salário-mínimo (BRASIL, 1993, 2007).
No caso da pessoa com deficiência, após habilitação do benefício, ela é direcionada
para ser avaliada por assistente social e médico perito do INSS, em relação à deficiência e ao
grau de impedimento (BRASIL, 2011a). O Ministério da Cidadania é responsável pela gestão,
coordenação, regulação, financiamento, monitoramento e avaliação do Benefício, enquanto
ao INSS cabe a operacionalização, incluindo o reconhecimento do direito e a concessão,
com base nas avaliações médica e social.
O BPC constitui, muitas vezes, a única fonte de renda de famílias vulnerabilizadas,
pela condição de deficiência ou idade. Além das condições já mencionadas, em 2016 outra
condição de acesso ao benefício foi exigida. Por meio do Decreto n. 8.805, de 7 de julho de
2016, que alterou o Decreto n. 6.214, de 26 de setembro de 2007, consolidando o Cadastro
Único como ferramenta integrante do processo de concessão, revisão ou análise do Benefí-
cio de Prestação Continuada. Tal normativa extingue o formulário Declaração da Composição
e Renda Familiar e estabelece CadÚnico como fonte de informação sobre a composição e
renda familiar; em seu art. 12 diz que são requisitos para a concessão, a manutenção e a
revisão do benefício as inscrições no Cadastro único de Pessoas Físicas (CPF) e no Cadas-
tro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CadÚnico. O CadÚnico organiza a
relação de parentesco tomando como referência o chefe da família. A reclassificação das
relações de parentesco é necessária para compor a família legalmente definida para fins do
BPC. Ressalte-se que enquanto os conceitos de família BPC e CadÚnico forem distintos esse
será um procedimento complexo.
Além de que essa alteração introduz regra para dispensar avaliação da deficiência
quando a renda per capita for superior ao critério, sendo que vai contra a decisão do STF de
2013 que considera a renda per capita critério insuficiente para elegibilidade BPC, sabendo
que foi incluída na Lei de Inclusão da pessoa com deficiência – LBI/2016 que acata decisão
do STF sobre a insuficiência do critério de ¼ do salário mínimo para definição da elegibili-
dade ao benefício.
O cadastro é apenas uma das ferramentas utilizadas pelo governo federal para ana-
lisar o perfil dos beneficiários. Entretanto, quem recebe o BPC tem que atualizar obrigato-
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 161

riamente o Cadastro Único para evitar o bloqueio desse benefício. Tudo leva crer que foi
mais uma estratégia que o Governo Federal lançou para cortar gastos, uma vez que vários
beneficiários que não estavam dentro do perfil exigido foram notificados para apresentarem
carta de defesa para o INSS para que o recurso fosse desbloqueado.
Diante disso representará perdas expressivas para o campo assistencial a política de
ajuste fiscal proposta na EC 95, visto que poderá comprometer os avanços realizados em
relação ao combate à pobreza e à desigualdade, e à promoção da cidadania inclusiva. As
ações assistenciais, principalmente o Benefício de Prestação Continuada, o Programa Bolsa
Família e o Sistema Único de Assistência Social colocaram o Brasil em um patamar mais
elevado, ao afiançar direitos e proteção à população em situação de vulnerabilidade, seja pela
situação de pobreza, seja devido à violação de direitos.
Logo, o Novo Regime Fiscal poderá impor uma descontinuidade da oferta sociopro-
tetiva, o que poderá compelir as proteções já afiançadas pela política assistência. A premissa
considerada para esse cenário é, de maneira geral, conservadora. Parte da hipótese de que o
ex-Ministério do Desenvolvimento Social e o atual Ministério da Cidadania garantirá a manu-
tenção das políticas atualmente sob sua responsabilidade, mas não expandirá a cobertura do
número de beneficiários proveniente de novas demandas num contexto de crise econômica,
nem outras frentes de atendimento às populações em situação de pobreza ou vulnerabilidade
social. Em linhas gerais, deixará de incorporar as demandas que surjam pelo aumento das
necessidades socioassistenciais das populações vulneráveis. Em outros termos, nas proje-
ções para esse cenário, o impacto do aumento de mais de 100% da população idosa entre
2016 e 2036, previsto pelas estimativas do IBGE, bem como o crescimento da população
total de 10% no mesmo período será incorporado ao cálculo, sendo relevante para a projeção
dos gastos como BPC (IPEA, 2016).
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os benefícios eventuais integram o
conjunto de cobertura do Sistema Único de Assistência Social (Suas), sendo estes definidos
como prestação de transferência de renda e ofertados na proteção social básica. Sendo as-
sim o benefício é dirigido a dois segmentos de vulnerabilidade: ao idoso, pelo ciclo de vida e
pobreza, e à pessoa com deficiência, por estar em desvantagem em relação às demais pes-
soas, além da pobreza, garantindo com isso provisão de renda para sobrevivência. É ainda
uma das únicas políticas não contributivas de responsabilidade do Estado, que está presente
em todos os municípios brasileiros, e sofre sérios riscos de redução e cortes na atual con-
juntura política de corte de gastos e de ser afetada pelo projeto de reforma da previdência.
162 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

6 Dados sobre o benefício de prestação continuidada – BPC


Em Santa Catarina a partir de dados coletado no site do Ministério do Desenvolvi-
mento Social3 em 2018, temos registrados cerca de 78 mil pessoas que recebem o BPC
como mostra a tabela 1 adiante. No município de Siderópolis/SC, segundo dados pesquisa-
dos na Secretaria de Avaliação e Gestão da Informaçãodo Ministério de Desenvolvimento So-
cial - SAGI/MDS, em 201 8, um total de 104 pessoas recebia BPC, somando um valor anual
em 2015 de repasse de R$ 942.929,86 (novecentos e quarenta e dois mil novecentos e vinte
e nove reais e oitenta e seis centavos), o que representava a soma dos recursos transferidos
pelo BPC de 12,7% do valor transferido pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM)
que foi de R$ 7.403.302,48 (sete milhões, quatrocentos e três mil, trezentos e dois reais e
quarenta e oito centavos).
Já em 2018 esse aumento não significou muito em números de pessoas passando
para 106 pessoas. Entretanto, os valores em recursos passaram para R$ 1.191.506,65 (um
milhão, quinhentos e seis reais e sessenta e cinco centavos) devido ao aumento do reajuste
do salário mínimo que foi em torno de 21,06% entre 2015 e 2018. De acordo com o Dieese4,
o salário mínimo em 2015 era de R$788,00 e em 2018, de R$ 954,00. A seguir é exposto
um comparativo de crescimento do número dos beneficiários ao longo dos anos, bem como
o crescimento da população idosa em face do aumento da longevidade, lembrando que o
aumento da população com deficiência merece um estudo mais aprofundado em virtude de
que, não só o aumento da natalidade de crianças com deficiência aumentou como também
os casos de pessoas que por diversos acidentes deixam a população jovem fora do merca-
do de trabalho, muitas vezes recorrendo à informalidade e que, não tendo garantidos seus
direitos previdenciários, buscam o benefício assistencial como forma de garantia de sobre-
vivência, além das pessoas que mudam de local de residência.

TABELA 1 - Número de pessoas com deficiência e número de idosos no


Estado de Santa Catarina que recebem BPC.

ANO PCD IDOSOS PCD (R$) IDOSOS (R$)

2004 15.946 10.136 45.169.783,49 27.149.529,74

2016 47.485 24.627 489.241.892,72 255.872.376,18

2017 49.887 25.577 546.204.373,53 281.591.693,34

2018 51.743 26.246 581.086.271,33 297.115.234,12

Fonte: Adaptado de MDS/SAGI -2018.

3
Informações acessadas por meio dos Relatório Social: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/ri/relatorios/cidada-
nia/#. Acesso em 04 abril de 2021.
4
Informações disponíveis em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html. Acesso em 04
de abril de 2021.
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 163

TABELA 2 - Número de pessoas com deficiência e o número de idosos no


Município de Siderópolis/SC que recebem BPC.

ANO PCD IDOSOS PCD (R$) IDOSOS (R$)

2004 23 06 66.587,04 14.608,36

2007 31 06 130.578,97 27.227,88

2015 77 26 715.199,20 227.730,66

2016 77 27 808.249,86 285.777,62

2017 73 30 845.058,94 335.445,12

2018 76 30 846.159,09 345.347,56

Fonte: Adaptado de MDS/SAGI - 2018.

Nas tabelas apresentadas, podemos fazer um comparativo entre os anos de 2004 e


2016 e notar que num período de 12 anos o aumento da população idosa que recebe BPC
mais que dobrou. Na tabela 2, de 2004 até 2018, esse número é muito maior em proporção
chegando a mais do triplo de beneficiários em 14 anos. Se considerarmos que a EC 95 será
para um período de 20 anos, proporcionalmente, com o aumento da população idosa, esses
números tendem a ser mais elevados, de modo que esse aumento da cobertura reduziu ou
tirou os idosos da condição de extrema pobreza e em decorrência os membros do seus
domicílio e assim a permanência por mais tempo em função do aumento da longevidade
proporcionado pela melhoria das condições de vida, também influenciado pelo recebimento
do BPC.
Por outro lado, deve ser levado em consideração que o cuidado com idosos tira uma
demanda de adultos do mercado de trabalho e cujo efeito de aumento de gastos exigirá a
oferta de serviços públicos para atender essa demanda. Ainda, o aumento impactará direta-
mente em mais gastos e consequentemente em maior oferta de serviços públicos. Estando
os gastos públicos congelados até 2036, as situações de extrema pobreza no país e as
desigualdades sociais tendem a aumentar, assim como a redução na oferta de serviços por
falta de investimentos de recursos.

Conclusão
O Brasil terá um enorme potencial de crescimento econômico e desenvolvimento
produtivo quando enfrentar duas de suas principais mazelas sociais: a concentração de ren-
da e a carência na oferta pública de bens e serviços sociais. Isso porque a distribuição de
renda e o investimento social são importantes impulsionadores do crescimento econômico.
164 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

De um lado, a distribuição de renda é fundamental para a consolidação de um mer-


cado interno dinâmico que, por sua vez, pode proporcionar escala e ganhos de produtividade
para as empresas domésticas. De outro lado, o investimento social tem efeitos dinâmicos de
curto prazo, por meio dos multiplicadores de gastos e da geração de empregos, e efeitos de
longo prazo por meio da melhora da qualidade de vida dos trabalhadores e aumento da pro-
dutividade da economia. Há, de fato, desafios na consolidação dos princípios e diretrizes tra-
zidos pelo Suas. O Brasil é um país que histórica e culturalmente reproduziu uma assistência
social à margem de outras políticas para minimizar os impactos da questão social. Quebrar
esse paradigma e construir uma política de direito é por si só um desafio, principalmente se
levarmos em conta o fato de se tratar de um país com uma das maiores concentrações de
renda e uma das maiores desigualdades sociais do mundo.
Para tanto, é necessário que sociedade e governo tenham entendimento da situação
e que não seja desconstruída a luta em favor das classes mais vulneráveis, pois os direitos
conquistados não foram projetos de governo e sim frutos da luta dos movimentos sociais e
de uma parcela significativa da classe trabalhadora. Só com o fortalecimento dos conselhos
e movimentos sociais é que poderemos combater o pensamento conservador, que tem insi-
diosamente invadido o campo da assistência social.
Mesmo que a economia volte a crescer, que as receitas públicas se recuperem e se
promova o efetivo combate à sonegação, os gastos sociais estarão condenados à estag-
nação, uma vez que a emenda constitucional congela os gastos por 20 anos ou seja toda
receita arrecadada será para pagamento dos gastos da dívida pública, sem perspectivas de
investimentos nas iniciativas sociais.
No entanto, as necessidades da população tendem a continuar crescendo, signifi-
cando que o Estado não só deixará de atuar na redução da pobreza, como se transformará
num poderoso instrumento de acumulação e concentração de riquezas. É necessário que
se façam amplos debates com a sociedade por intermédio dos movimentos sociais orga-
nizados, Conselhos de Assistência Social, Conselhos de Direitos dos Idosos, Conselho dos
direitos de Deficientes e o Congresso Nacional para trazer essa temática urgente ao centro
da discussão na atual conjuntura política do país, no sentido de compreender e encaminhar
melhor o rumo das reformas que o país necessita, a fim de que seja entendida a política pú-
blica de assistência social como o fortalecimento do Suas e acesso na perspectiva do direito.
Ao impedir a ampliação da oferta nas áreas de educação Saúde e assistência so-
cial, a austeridade representada pela EC 95 impede o cumprimento das metas e estratégias
previstas no Plano Nacional de Educação (PNE), no Plano Nacional de Assistência Social
(PNAS), no Plano Nacional de Saúde (PNS), bem como reduz direitos estabelecidos na
Constituição Federal de 1988, e nas normativas que sucederam essa legislação, como o
Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e Adolescente.
FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM TEMPOS DE AUSTERIDADE FISCAL | 165

A saída desse cenário pode ser o aumento da privatização em suas diversas áreas
como saúde e educação, porém devemos estar atentos aos interesses espúrios de uma
parcela da sociedade, escondidos por detrás dessas mudanças, que quer reduzir a partici-
pação do Estado e das instituições públicas nas relações econômicas e nas relações sociais
amplas na intenção de abrir caminho para que o mercado, supostamente ou não, se torne
protagonista de direitos.
Ademais é importante analisar que a tabela nos mostra que o crescimento de acesso
ao BPC no Município de Siderópolis de 2004 até 2018 significou um aumento de 400% dos
idosos e 230% das pessoas com deficiência; em contraponto, a população total cresceu en-
tre 2004 e 2017 em torno de 8% de acordo com dados do IBGE. Diante do exposto, conclui-
-se que a EC 95 congela os gastos até 2036 e dentre esses gastos está a seguridade social
resultante do pacto social estabelecido na Constituição de 1988. O BPC foi um dos pilares
de ampliação do nível de proteção social num país ainda marcado por fortes desigualdades,
que garante renda de substituição a um público extremamente pobre e reconhecidamente
incapaz de garantir sua própria sobrevivência por meio do trabalho remunerado. Essa ga-
rantia de renda proporcionou melhorias de condições de vida desses grupos e contribuiu
significativamente para redução da miséria e da desigualdade no país nas últimas décadas.
Contudo, a EC 95 ameaça esse importante instrumento contra a pobreza e a miséria,
seja sinalizando possibilidades de redução de investimentos em áreas importantes como
na saúde, educação e assistência social, seja propondo a desvinculação do BPC do salário
mínimo, a restrição do acesso ou a elevação da idade para o público idoso na proposta de
emenda da reforma da previdência em tramitação no Congresso, projetando futuro aumento
da demanda por benefícios assistenciais. Com tais medidas, essas reformas comprometem
elementos e princípios equitativos da seguridade social num país ainda marcado por eleva-
dos níveis de desigualdade, portanto, a agenda neoliberal irá vulnerabilizar ainda mais as
pessoas que são beneficiárias do BPC.

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166 | GLADYS LENUZIA KESTERING | ISMAEL DE CÓRDOVA

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CAPÍTULO XI

PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL


E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS
AO TRANSEXUAL NO REGIME GERAL DE
PREVIDÊNCIA SOCIAL (RGPS)

LUCAS DE COSTA ALBERTON 1


PATRICIA RODRIGUES OENNING 2

Introdução
O tema apresentado aqui, num paralelo entre transexualidade e Previdência Social,
apresenta uma análise do que será enfrentado pelos transexuais, a partir do momento que
chegarem ao tempo de se aposentar, pois trata de um assunto complexo que sugere muita
polêmica. Cabe ressaltar que os transexuais já tiveram muitas conquistas como a possibi-
lidade legal da cirurgia de redesignação sexual, inclusive no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS), o direito de obter um novo nome, ou seja, sua real identidade e a modificação
do registro civil, mesmo ainda sem a cirurgia para mudança de sexo.
Embora o ordenamento jurídico não ofereça muitas respostas para as mudanças
que ocorrem na sociedade atual, cabe aos juristas a tarefa desafiadora de produzir novos
conceitos e soluções que se adequem às necessidades sociais com a legislação em vigor.
Portanto, sem uma norma regulamentadora no direito previdenciário para os transexuais,
em que se aplica tratamento normativo diferenciado para homens e mulheres, sendo o sexo
o parâmetro para concessão de benefícios, essa problemática é pertinente como objeto de
estudo.


1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/Unesc). Especialista em Direito Previdenciário pela Unibave. Advogado e professor do Curso de Direito das
Faculdades Esucri. Conselheiro Estadual da OAB/SC, gestão 2019-2021. E-mail: lucasalberton@hotmail.com.
2
Bacharel em Direito pela Escola Superior de Criciúma - Esucri. E-mail: patriciarodriguesoenning@gmail.com.
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 169

Assim, dividimos o trabalho em dois momentos que foram subdivididos em dois


temas para uma melhor compreensão do assunto. No primeiro, temos a definição de transe-
xualidade e o reconhecimento pela sociedade. O que se faz necessário para diferenciação de
outras orientações sexuais, bem como suas conquistas.
No segundo momento, o trabalho apresenta os benefícios previdenciários, principal-
mente aqueles que têm relação aos aspectos da condição de segurado, seja ele homem ou
mulher. Por fim, aborda-se a relação do transexual com a Previdência Social, na concessão
dos benefícios previdenciários. Desta feita, observamos que este estudo está ligado à área
do Direito Previdenciário, mais especificamente em relação aos benefícios previdenciários,
concedidos em função da idade e sexo, bem como ao Direito Constitucional, sendo neces-
sário a garantia e o reconhecimento dos direitos pela condição do transexual.

1 A transexualidade e seu reconhecimento pelo direito brasileiro

1.1 Breves apontamentos sobre gênero, identidade de gênero e transexualidade


Sexo e gênero se confundem na distinção da identidade das pessoas. Assim sendo,
precisamos identificar essas diferenças para compreendermos o que é a transexualidade.
Uma vez, que importa ao Direito normatizar as relações sociais entre os indivíduos e acima
de tudo garantir a dignidade da pessoa humana, evitando a discriminação e respeitando as
singularidades. Transexuais, também são, ou deveriam ser, sujeitos dotados de personali-
dade jurídica para o exercício pleno dos seus direitos fundamentais. Porém, considerados
como grupo vulnerável, pertencente à classe das minorias, seja pela exclusão ou invisibili-
dade perante à sociedade, dentro de um Estado Democrático de Direito, estão associados à
ideia de discriminação.
Atualmente, vivenciamos um avanço acelerado na ciência e na sociedade. Contudo
as normas legais, não acompanham esse processo, o que pode causar prejuízos à aplicação
dos princípios constitucionais fundamentais, devido à má interpretação destes, corroboran-
do para o aumento da desigualdade social. Portanto, é imprescindível identificarmos, em
linhas gerais, as diferenças entre identidade sexual e identidade de gênero, visando possi-
bilitar a compreensão com o objetivo da proteção ao princípio da dignidade humana, como
direito fundamental.
Gênero expressa as atitudes esperadas em relação às pessoas por definição do seu
sexo biológico, genital. Um conjunto de características atribuídas ao ser humano, determina-
das historicamente como intrínsecas ao homem e à mulher. É uma construção social e cultu-
ral, que reconhece a existência de duas categorias, o masculino e o feminino ou o homem e
a mulher. (LANZ, 2014). Gênero encarcera o sexo, principalmente pelo discurso cultural que
170 | LUCAS DE COSTA ALBERTON | PATRICIA RODRIGUES OENNING

insere o sexo e suas diferenças fora da realidade social (ABÍLIO, 2017, p. 47). É a exterioriza-
ção do sentimento interior e individual de cada pessoa do seu sexo, como se vê no mundo.
Para Butler (2016), a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais
que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído;
consequentemente não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco a aparência fixa
do sexo. Revelando uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros construí-
dos. Sexo é natural, anatômico, cromossômico, hormonal. Gênero é construído, psicológico,
sentimento intrínseco que existe em relação a outro, o oposto.
A identidade sexual, como define Anna Paula Uziel (2014), é o modo como o indi-
víduo manifesta sua sexualidade para satisfação carnal, com pessoas do mesmo sexo, do
sexo oposto ou com ambos os sexos. Vai além do interesse reprodutivo das pessoas. Identi-
dade de gênero é a identificação do sujeito como sendo masculino ou feminino. Nesse sen-
tido, vale ressaltar que sexo está ligado à fisiologia humana, sendo sexo biológico, genético,
o que difere fisicamente o homem da mulher. Sexo biológico, em síntese, seria a percepção
do sexo genético, endócrino e morfológico (QUADRINI; VENAZZI, 2016). Identificando física
e externamente o indivíduo, como aparece ao olhar do outro.
A identidade de gênero é a visão pessoal de si mesmo, compreendendo aspectos
integrados de relações sociais, sentimentais e psicossociais, determinando um processo
ininterrupto na definição de si mesmo, de como é no mundo (BOCK, FURTADO; TEIXEIRA,
2008). É a manifestação dos sentimentos internos e atitudes individuais de cada pessoa, que
será ou não em consonância ao sexo atribuído no nascimento, englobando a modificação da
aparência, por meios cirúrgicos ou hormonais, incluindo o modo de se vestir, falar e de se
comportar (ABÍLIO, 2017). Importante ressaltar, que não se trata de escolha sexual, opção
sexual ou transtorno, como se observa no senso comum.
Nesse contexto, podemos definir que transexual é o indivíduo que encontra uma difi-
culdade de se apresentar com seu sexo biológico, por entender que pertence ao sexo oposto.
Apresenta uma oposição físico-psíquica em relação a si mesmo. Há, para essa pessoa,
uma diferença entre o sexo biológico e o sexo psicológico. São pessoas que, desde muito
cedo, pode-se dizer que desde o ventre materno, poderão apresentar significativa oposição
psicológica e emocional em relação ao seu sexo biológico pois amoldam-se ao sexo oposto
ao seu corpo, devido a diversos fatores, sejam eles genéticos, hormonais ou familiares (SÁ
NETO; GURGEL, 2014).
Para Hélio Gustavo Alves (2018), independente do sexo com que o indivíduo nasceu,
ele tem a percepção de si como sendo do outro gênero; masculino, feminino ou uma mes-
cla dos dois, sendo que tal fato se relaciona com seus sentimentos, a maneira de agir, se
comportar e interagir, em conformidade com suas características de personalidade ou sua
identidade, ou modo como deseja ser reconhecido.
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 171

Desafiam as convenções de comportamento de gênero, saindo dos padrões im-


postos pelo binômio masculino/feminino que determinam como ser, agir e se comportar.
Rompem as barreiras criadas culturalmente de um e de outro sexo, ao passo que constroem
sua identidade de gênero diferentemente do seu sexo biológico (ABÍLIO, 2017).
Ainda, como menciona Leandro Reinaldo Cunha (2015), identidade de gênero, por
sua vez, está atrelada ao conceito de pertencimento de cada um, na sua sensação ou per-
cepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero (masculino ou feminino), independente-
mente de sua constituição física ou genética, sobressaindo o entendimento atual de que não
existe determinismo biológico quando se fala da construção da identidade sexual, vez que
esta se molda além do plano do meramente físico ou anatômico, sendo sexo e gênero ele-
mentos distintos, havendo de prevalecer o gênero no que se refere à formação da identidade
da pessoa.
É o sentimento de ser de outro sexo apesar de pertencer a um sexo definido biologi-
camente e civilmente. Para a Ciência do Direito, prevalece o que está assentado no Cartório
de Registro Civil de Pessoas Físicas, na observância dos aspectos biológicos, tornando-o
público na emissão da Certidão de Nascimento. Surgindo assim, a pessoa natural de fato,
sujeito detentor de direitos e obrigações, através de seu nascimento com vida, ainda que
por alguns segundos de horas, mesmo que venha a falecer posteriormente (GAGLIANO;
PAMPLONA FILHO, 2017).
Dessa forma, realizado o registro, o recém-nascido será considerado como uma
pessoa de fato e de direitos. De modo que no momento atual do Estado Democrático de
Direito se concebe como consolidado. Não se permitindo qualquer tipo de discriminação,
intolerância ou segregação.
Para Mariana Chaves, Fernanda Barreto e Rodolfo Pamplona Filho (2017), transexua-
lidade, envolve importância predominantemente psicológica, pois o indivíduo não se aceita
como é, não considera seu sexo biológico e se identifica com o sexo oposto, pela sensação
de pertencer a outro sexo, diferente daquele que física e juridicamente pertence. Para esses
indivíduos, seu sexo físico é diferente de seu sexo mental, que ao modificá-lo mediante
cirurgia ou tratamento hormonal, para retificar com seu gênero, sentirão que seu corpo está
adequado, harmonizado com sua mente.
Ainda, nesse mesmo viés, temos que transexual é a pessoa que apresenta uma
dissociação entre o sexo físico e o psíquico, ou seja, ela tem a convicção de que nasceu no
corpo errado. O homem se vê como mulher ou a mulher se vê como homem (CRUZ, 2016).
Ademais, o corpo humano exerce diversas funções, dentre elas a função sexual, sendo esta
complexa demais para ser reduzida ao aparelho genital. Portanto, a identidade sexual é cons-
truída por determinadas variáveis, sejam elas físicas ou psicossociais (QUADRINI; VENAZZI,
2016), sendo as mais distintas possíveis, que não estão presentes nos pilares da visão
heteronormativa da sociedade.
172 | LUCAS DE COSTA ALBERTON | PATRICIA RODRIGUES OENNING

Ressalta-se ainda que, para muitos transexuais, a transformação do seu corpo só


com tratamento hormonal não é o suficiente para sua aceitação. Sendo necessária a modifi-
cação por meio cirúrgico. A esse procedimento chamamos de cirurgia de redesignação, um
processo cirúrgico pelo qual as características sexuais/genitais biológicas de um indivíduo
são transformadas para aquelas socialmente associadas ao gênero com que ele se identifica.
Em 2008, por meio da Portaria n. 1.707 do Ministério da Saúde, o governo brasileiro
instituiu o processo transexualizador no âmbito do Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2008),
sendo esta revogada e substituída pela Portaria n. 2.803, em 2013, que garante e amplia o
atendimento integral de saúde do transexual, incluindo acolhimento e acesso aos serviços
do SUS, garantindo o tratamento hormonal, consultas com equipe multidisciplinar na área da
saúde para a adequação do corpo biológico à identidade de gênero (BRASIL, 2013).
Malgrado todo o investimento por parte do governo, o Conselho Federal de Medi-
cina conceitua transexualidade como uma patologia, utilizando os termos transexualismo e
travestismo, classificados como disforia de gênero. De acordo com o Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais, “disforia de gênero, são as discrepâncias apresentadas
entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa” (APA, 2014,
p. 452).
Define-se, dessa forma, o transexual como aquele que sofre de transtorno de identi-
dade de gênero. Essa patologização da transexualidade associada à estigmatização faz com
que essa população esteja à margem da sociedade, gerando um sofrimento significativo,
pela falta de uma legislação específica, em que seus direitos são velados pelo conceito
heterodominante que ameaça o direito a uma vida digna.
Não obstante, a Constituição Federal de 1988, trouxe no rol dos fundamentos da
República, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, da qual inegavelmente
estão incluídos os transexuais, pois a finalidade é a proteção de todo ser humano, o exercício
pleno de sua cidadania, livre de preconceitos e discriminações. Aliado a isso, a Constituição
Federal adotou o princípio da igualdade, no qual todos, seja qual faixa etária, etnia, credo,
orientação e percepção sexual, são iguais perante a lei, com direitos e deveres.
Contudo, há momentos em que se invoca a aplicação da norma constitucional para
o tratamento diferenciado aos indivíduos em determinadas situações, como a redução das
desigualdades entre homens e mulheres para atenuar desníveis entre eles, bem como na
concessão dos benefícios previdenciários para homens e mulheres.

1.2 O reconhecimento do transexual pela sociedade brasileira


A sociedade é gerida pelo direito positivado. Com a evolução das relações sociais,
o ordenamento jurídico e todas as normas nele inclusas devem ser adequadas, ou criadas,
acompanhando essa evolução. Sendo assim, é preciso considerar as mudanças que ocor-
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 173

rem na sociedade em razão da identidade das pessoas, de como elas expressam e vivem sua
sexualidade que é formada por determinantes biológicos, psicológicos e sociais.
Contudo, conforme expressa Fábio Costa de Souza (2015), o direito de reconheci-
mento dos transexuais é invisível para diversos atores sociais, visto que a elaboração de polí-
ticas públicas de proteção social não é suficiente para suprir as demandas dessa população,
estando sujeita a frequentes e graves violações dos direitos humanos. Se para o transexual,
o que prevalece é o sexo psicológico, ou seja, como ele se vê e se sente, sem a garantia
legal será tratado como homem ou mulher, de acordo com seu sexo biológico (CASTOLDI;
MULLER 2016,). Essa situação acaba gerando constrangimentos significativos para os tran-
sexuais, ferindo sua dignidade, além aflorar o sentimento de humilhação. Não obstante, res-
tará ao Poder Judiciário, a árdua competência de julgar os casos de violação dos direitos e
garantias fundamentais, bem como os direitos de personalidade pertinentes aos transexuais.
Como define Flávio Tartuce (2014), direitos da personalidade englobam o modo de
ser, físico ou moral do indivíduo, envolvendo aspectos psíquicos para proteção de sua inte-
gridade física, moral e intelectual, desde a concepção até a morte. Porém existem pessoas
que apresentam uma condição real, vivendo como se veem (identidade social) mas carre-
gam um documento de identificação que informa um nome diferente (nome civil) que já não
é o seu, esse nome é o que vive no mundo dos registros, num mundo real que não existe
(SÁ NETO; GURGEL, 2014).
Essa pessoa que tem uma identidade social diferente da identidade civil, não tem,
em regra, seus direitos garantidos, passando pela invisibilidade de um contexto social pre-
conceituoso. Sem um reconhecimento pleno de sua cidadania, essa pessoa é levada ao
isolamento, desamparada também pela lei, é inclinada à escolha pelo mercado informal ou
autônomo, muitas vezes vivendo à margem da sociedade, pela falta de garantia dos direitos
inerentes.
Apesar da constante evolução da sociedade, o preconceito e discriminação também
evoluem e a classe dos transexuais parece esquecida ou invisível, talvez pela repulsa que
causa aos olhos de quem não os compreende (aceita), sendo, então, percebidos somente
quando ligados a temas no ruidoso noticiário de homicídios, prostituição ou escândalos em
casas noturnas. A luta constante dessa classe para suplantar os obstáculos existentes se
dá por falta de legislação específica que normatize sua condição social (SÁ NETO; GURGEL,
2014). Denote-se que é muito forte a influência e a presença, bem como o próprio poder, das
classes dominantes heteroafetivas na sociedade. A invisibilidade dos transexuais leva a um
tratamento diferenciado que irá refletir na concessão dos benefícios previdenciários, quando
apresentam particularidades em razão da idade e sexo.
Assim, em 2014, quando o Supremo Tribunal Federal ao julgar, o Recurso Extraor-
dinário 845.779, originário do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e, sendo reconhecida a
repercussão geral pelo Ministro Relator Luís Roberto Barroso, fundamentando sua decisão
174 | LUCAS DE COSTA ALBERTON | PATRICIA RODRIGUES OENNING

onde “o tema debatido no recurso ultrapassa os limites subjetivos da lide, possuindo relevân-
cia social e jurídica, pois envolve reconhecer a indivíduo integrante de uma minoria o direito a
uma vida digna” (BRASIL, 2014). Continua sua decisão, em reconhecer a repercussão geral

que a matéria versada no presente recurso é relativa à aplicabilidade do artigo 1º,


inciso III e artigo 5º, incisos V, X e XXXII CF/88 e ultrapassa os interesses subjetivos
da causa, tendo em vista a alta relevância no meio social ao contribuir para a cons-
trução de um novo paradigma cultural, primando pelo respeito mútuo e igualdade de
tratamento, objetivos da República Federativa do Brasil (BRASIL, 2014).

Essa decisão da Suprema Corte, é o início do processo em que todos devem ser
tratados de forma igualitária, respeitando suas diferenças com base na nossa Carta Magna,
para o livre exercício da cidadania sem preconceitos ou discriminação a determinados gru-
pos, principalmente aos transexuais.
Com efeito, a identidade é um direito da personalidade fundamental de estreita liga-
ção com a dignidade da pessoa humana, relacionado com a existência jurídica da pessoa
garantindo sua efetiva concretização (ALMEIDA; VEDOVATO; SILVA, 2018) no tratamento de
forma igualitária para as minorias, incluindo os transexuais, em suas diferenças, objetivando
o pleno reconhecimento de sua identidade.
Nesse sentido, para o fortalecimento e reconhecimento das minorias como sujeitos
detentores dos direitos constitucionais, em 2018, o Supremo Tribunal Federal, julgou proce-
dente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, entendendo que todo cidadão tem
direito de ser chamado como desejar, reconhecendo às pessoas transexuais a garantia de
alteração do nome e sexo diretamente no registro civil, em cartório, sem precisar se subme-
ter ao processo cirúrgico de redesignação, observando o princípio da dignidade da pessoa
humana. Essa iniciativa denota um grande avanço contra a discriminação e o tratamento
excludente que tem estigmatizado a comunidade dos transexuais. No voto da Presidente da
Corte, ela afirmou que: “O ser humano é único, mas os padrões se impõem. O Estado há que
registrar o que a pessoa é, e não o que acha que cada um de nós deveria ser, segundo a sua
conveniência” (BRASIL, 2018).
Essa ação foi proposta pela Procuradoria-Geral da República para que fosse feita a
interpretação de acordo com a Constituição Federal e pactos internacionais que tratam dos
direitos fundamentais objetivando a possibilidade da alteração de nome e gênero no registro
civil com averbação no registro original, independentemente de cirurgia de transgenitalização
ou pareceres e laudos psicológicos ou médicos e sem a necessidade de autorização judicial
e limite de idade mínima. Sendo necessário, somente a autodeclaração. O Ministro Edson
Fachin em seu voto afirmou:
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 175

A alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de


vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. A pessoa não deve
provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer
tipo de modelo, ainda que meramente procedimental (BRASIL, 2018).

Embora tenhamos esse entendimento do Supremo, precisamos aprender a aplicá-lo


de forma a evitar o preconceito e a discriminação, pois esse tratamento diferenciado, desi-
gual e injusto dado a uma pessoa ou grupo, só leva à exclusão. Com isso, não se verifica
apenas uma violência psíquica, mas revelam um alto índice de assassinatos de transexuais,
ocasionados em sua maioria, pela falta de legislação específica que venha punir os crimes de
ódio contra essas pessoas, o que se torna um forte obstáculo para o combate à homofobia
e transfobia (ABÍLIO, 2017).
Não obstante, a maior preocupação dos estudiosos, legisladores e formadores de
opinião é reconhecer a dignidade da pessoa humana, corrigindo a segregação e a exclusão
de uma população que por anos foi (e ainda é) destituída de seus direitos fundamentais,
incluindo o direito sobre sua orientação sexual e sua identidade de gênero. Esse reconhe-
cimento contribuirá para a inserção e aceitação das diferenças existentes numa sociedade
multicultural.
Passadas essas considerações, no que tange às diferenças entre gênero, identidade
de gênero e identidade sexual dentro do contexto social, no reconhecimento pleno do ser hu-
mano e suas relações, faremos uma reflexão acerca dos direitos e benefícios previdenciários
à luz da diversidade sexual, em especial aos transgêneros.

2 Os benefícios previdenciários do RGPS e sua concessão aos transexuais

2.1 Os benefícios previdenciários do RGPS


De maneira geral, a Previdência Social, espécie do gênero Seguridade Social poderá
ser conceituada como um seguro, sob forma de regime geral, baseado em normas de di-
reito público, sendo necessariamente contributivo, para concessão de benefícios e serviços
previdenciários aos segurados e seus dependentes, de acordo com o plano de cobertura
(AMADO, 2016). Os benefícios previdenciários oferecidos pelo regime geral de previdência
social, devem ser observados com suas novas relações e reflexos ante às mudanças de
gênero, conforme passa a expor.
A aposentadoria por tempo de contribuição será concedida ao trabalhador homem
com 35 anos de contribuição e à mulher trabalhadora com 30 anos de contribuição, sendo
que para a concessão desse benefício não existe idade mínima, fazendo jus o Segurado ao
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benefício, quando da data do cumprimento dos requisitos legais, ressalvada a carência de


180 contribuições mensais, nos termos da Lei n. 8.213, de 1991 (BRASIL, 1991).
Para a classe do magistério, que desempenha atividades na educação básica, ou
seja, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, bem como atividades de direção
e coordenação pedagógicas, o benefício da aposentadoria por tempo de contribuição será
concedido com a redução de cinco anos de contribuição, sendo 30 anos de contribuição
para o professor do sexo masculino e 25 anos para a professora do sexo feminino.
A aposentadoria por idade será concedida ao segurado, que cumprido os requisitos
de carência (180 contribuições mensais), completar 65 anos de idade se homem e 60 anos
de idade se mulher, conforme previsto nos artigos 48 a 51 da Lei n. 8.213/1991, combinado
com o artigo 201, § 7º, II da Constituição Federal. Ao trabalhador rural será diminuído em
cinco anos a idade, sendo 60 anos de idade para o trabalhador rural homem e, 55 anos de
idade para a trabalhadora rural mulher, por determinação constitucional (BRASIL, 1988).
Percebe-se, portanto, que a lei faz distinções entre sexo e faixa etária. Nesse sen-
tido, temos que a aposentadoria por idade visa a proteção do risco social idade avançada,
garantindo o sustento do segurado e também de sua família, quando a atividade laborativa
não será mais possível.
A aposentadoria especial, prevista nos artigos 57 e 58 da Lei n. 8.213/1991, será
concedida aos trabalhadores segurados em razão da exposição a agentes nocivos, durante
as atividades laborais que sejam prejudiciais à saúde ou à integridade física, assim como
aos segurados portadores de deficiência física. Terá uma redução no tempo de contribuição
e, uma vez cumprida a carência exigida, será devida ao segurado empregado que tenha
trabalhado 15, 20 ou 25 anos, observada a carência de 180 contribuições mensais, sem
necessidade de idade mínima, nos termos definidos em lei (BRASIL, 1991).
Ainda na Lei n. 8.213/1991, encontramos nos artigos 42 a 47 o benefício da aposen-
tadoria por invalidez (BRASIL, 1991). Esse benefício poderá ser concedido a todas as clas-
ses de segurados, desde que presentes os requisitos legais. A aposentadoria por invalidez
será concedida ao segurado que for considerado incapaz ou àquele que não for suscetível à
reabilitação para o exercício de atividade laborativa que lhe garanta o sustento e/ou de sua fa-
mília, e será pago enquanto perdurar nessa condição. Importante salientar que para receber
esse benefício o segurado deve estar totalmente incapacitado para o exercício do trabalho.
Contudo, como bem afirma Frederico Amado (2016), é preciso analisar as condi-
ções sociais, como escolaridade, idade avançada, bem como a hipótese de o segurado ser
portador de doença com estigma social, o que torna inviável a reabilitação. Nesses casos,
será preciso analisar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, para que a in-
capacidade seja vista de forma ampla em face da estigmatização social. É o que chamamos
de incapacidade social.
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 177

Outro benefício previdenciário destacável é o salário maternidade que está regula-


mentado nos artigos 71 a 73 da Lei n. 8.213/1991 (BRASIL, 1991). Será devido à segu-
rada que tiver filho ou adotar uma criança, durante 120 dias a partir do parto ou adoção,
substituindo a sua remuneração. Como já foi reconhecida a união homoafetiva em nosso
ordenamento jurídico, é certo que casais homoafetivos farão jus ao benefício ao adotarem
uma criança, desde que um deles seja filiado ao Regime Geral de Previdência Social e tenha
todos os requisitos comprovados para sua concessão.
Além desses benefícios, encontramos nos artigos 59 a 63 da Lei n. 8.213/1991, o
auxílio-doença (BRASIL, 1991). Esse benefício, não programado, será concedido ao segu-
rado que estiver incapacitado para o trabalho por mais de 15 dias consecutivos, desde que
cumpridos os requisitos legais, quando for o caso. Contudo, ele não cessa até que o segura-
do seja novamente habilitado para o desempenho de suas atividades laborativas, ou no caso
de reabilitação profissional, que garanta o seu sustento e/ou de sua família.
Dos benefícios citados até aqui, vimos que são todos devidos aos segurados filiados
ao RGPS. Porém, existem benefícios que serão devidos aos dependentes dos segurados,
quais sejam a pensão por morte e o auxílio-reclusão.
A pensão por morte, elencada nos artigos 74 a 79 da Lei n. 8.213/1991, será devida
aos dependentes do segurado que falecer, sendo este aposentado ou não. Os beneficiá-
rios da pensão por morte serão os dependentes do segurado listados no artigo 16 da Lei
n. 8.213/1991, devendo essa condição ser aferida no momento do óbito, pois será quan-
do inicia o direito, independente de carência. Estão divididos em três classes, em que a
dependência econômica das pessoas da classe 01 é presumida e das demais, deverá
ser comprovada (BRASIL, 1991). Quanto ao auxílio-reclusão, previsto no artigo 80 da Lei
n. 8.213/1991, este será devido aos dependentes do segurado que for recolhido à prisão e
seja enquadrado como baixa renda, de acordo com o artigo 201, IV da Constituição Federal.
Observa-se que dentre esses tipos de concessão de benefícios existe uma diferen-
ciação em relação ao sexo. Nesse sentido, é necessária a análise de cada caso em particular,
para que a liberdade de orientação sexual ou identidade de gênero seja protegida como ga-
rantia de direitos, sem causar danos ao sistema ou a qualquer outro direito.

2.2 A concessão dos benefícios previdenciários aos transexuais


De acordo com tudo o que foi estudado até aqui, para que se efetive realmente a
concessão dos benefícios previdenciários, é necessário filiação no Regime Geral de Previ-
dência Social (RGPS) e que se tenha os requisitos mínimos exigidos. Portanto, se cumpridas
as condições legais, poderá o transexual se beneficiar de alguns tipos de aposentadoria
apresentadas na lei.
178 | LUCAS DE COSTA ALBERTON | PATRICIA RODRIGUES OENNING

Assim, ao realizar a mudança em seus documentos, alterando sua identificação com


o gênero que julga pertencer, deverá também realizar as devidas alterações no Cadastro Na-
cional de Informações Sociais (CNIS), e assim obter os benefícios conforme sua identidade
atual (QUADRINI; VENAZZI, 2016). Contudo, existem muitas lacunas acerca desse tema,
sendo necessário utilizar dos princípios constitucionais para que não haja a estigmatização e
a discriminação dos sujeitos envolvidos.
Se tivéssemos as mesmas regras para a concessão dos benefícios para ambos
os sexos, não haveria preocupação. Ocorre que são exigidas condições diferentes (FLU-
MINHAN, 2016). Daí é imperativo se observar as especificidades de cada caso em cada
benefício que será concedido ao indivíduo transexual.
Partindo do conceito de que transexual é a pessoa que, em relação ao sexo bioló-
gico, se percebe como um sexo psicológico divergente, ou seja, seu sexo físico é diferente
do seu sexo mental. Nasceu homem, mas se vê mulher (CRUZ, 2016). Seu benefício será
transformado a partir da alteração de seu documento, com o novo nome, junto à autarquia,
no CNIS. Essa alteração, deverá obedecer a Instrução Normativa 77, de 2015, a qual regula
o Processo Administrativo Previdenciário, em que o próprio requerente ou procurador solicita
a alteração do nome administrativamente junto ao INSS (BRASIL, 2015).
De tal forma que, se já inscrito ao regime geral com identidade anterior, se acres-
cente ao período posterior, contribuído com nova identidade, a partir da retificação completa
(CASTOLDI; MULLER, 2016), sendo todas as contribuições devidamente consideradas para
a concessão do benefício, observados carência e obrigatoriedade.
A partir de então, para a concessão da aposentadoria por tempo de contribuição,
deve-se considerar sua nova realidade sexual seguindo o princípio da razoabilidade e pro-
porcionalidade, aplicando-se o cálculo da tabela de conversão homem x mulher ou mulher
x homem (ALVES, 2018). O que geraria um bônus para aquele que teria sua nova identidade
como mulher e a um ônus para o contrário. Ainda assim, respeitando o direito à identidade
de gênero, ou seja sua nova condição social.
Nesse sentido, se temos que a aposentadoria por tempo de contribuição para mu-
lheres é de 30 anos e 35 anos para homens, caso uma pessoa do sexo masculino tenha
alterado seu gênero para o feminino e tenha contribuído durante 10 anos como homem,
aplicando-se o cálculo proporcionalmente, numa simples regra de três, temos um percentual
que multiplicado ao tempo necessário conforme a lei para mulheres e somado ao tempo
restante será o tempo, em anos, que essa pessoa com nova identidade terá que contribuir
(ALVES, 2018). Dessa forma, seria possível preservar o tempo real trabalhado em cada
identidade sexual.
Trata-se de um cálculo simples, no qual se faz a divisão do tempo legal para as apo-
sentadorias por tempo de contribuição para homens e mulheres, sendo o resultado o fator de
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 179

proporção. Tal fórmula matemática também deverá ser aplicada nos casos de aposentadoria
por idade e na aposentadoria especial, uma vez que poderá ser convertido para comum,
sendo diferente para homens e mulheres. Assim, a pessoa com nova identificação nos seus
registros, prevalecendo sua identidade atual, se aposentará com a diferença proporcional da
idade do homem e da mulher.
Nesses casos, aplicando-se a regra supracitada, seria a forma mais plausível para
garantir o direito ao transexual, bem como a segurança jurídica ao sistema previdenciário
(ALVES, 2018), levando em consideração todo o tempo trabalhado de acordo com o sexo.
Porém, se administrativamente for indeferida a solicitação de alteração do nome nos ca-
dastros junto à autarquia, restará ao interessado buscar o poder judiciário para apreciar sua
pretensão, de modo que seja respeitado o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, vemos que os efeitos da transexualidade não atingem somente os
segurados da Previdência Social, mas também os dependentes transexuais. Podemos citar
aqui a pensão por morte no caso dos militares, na qual a filha mulher e solteira teria o direito
de receber a pensão do pai falecido, caso não venha a ocupar cargo público permanente ou
deixar de ser solteira.
Nesse sentido, decidiu um Juiz Federal do Rio de Janeiro, em setembro de 2017,
quando a Marinha do Brasil cancelou o benefício ao filho transexual, na apresentação de seus
novos documentos como sendo homem. Motivou sua decisão na ideia de que “considerar o
autor como sendo do sexo feminino, não seria respeitada sua nova condição social” (RIO DE
JANEIRO, 2017), como se observa na transcrição de um trecho da decisão:

Entender que o impetrante seria titular do direito à pensão seria considerá-lo, em algu-
ma medida ou para certos fins, como um indivíduo do sexo feminino, o que reavivaria
todo o sofrimento que teve durante a vida e violaria sua dignidade, consubstanciada
no seu direito – já reconhecido em juízo – a ser reconhecido tal como é para fins
jurídicos, ou seja, como um indivíduo do sexo masculino (RIO DE JANEIRO, 2017).

Assim, também decidiu o juiz Joviano Carneiro Neto, em audiência realizada durante
do Programa Acelerar – Núcleo Previdenciário, na comarca de Aragarças/GO, em junho de
2018 (GOIÁS, 2018). O magistrado concedeu o benefício da aposentadoria por invalidez a
uma jovem de 30 anos que é soropositiva, portadora do vírus HIV/Aids. Baseou sua decisão
no artigo 42 da Lei n. 8.213/1991, bem como no laudo médico apresentado aos autos, o
qual comprova a existência de incapacidade total e permanente, trazendo a possibilidade da
concessão do benefício. O segurado que nasceu homem, desde os 14 anos se sente mulher
(GOIÁS, 2018).
Fica claro que nesse caso o magistrado, além de motivar sua decisão nos documen-
tos apresentados aos autos, se valeu do entendimento que vem sendo dado em relação às
180 | LUCAS DE COSTA ALBERTON | PATRICIA RODRIGUES OENNING

doenças que tem grande estigmatização social, como no caso da Aids, em que excepcional-
mente se analisa as condições pessoais, sociais e econômicas na concessão do benefício,
demonstrando a incapacidade social. A aposentadoria por invalidez poderá ser concedida
como primeira opção para as pessoas com incapacidade para as atividades laborais ou de-
correrem do benefício auxílio-doença, quando se verifica a incapacidade total e permanente
para o exercício das atividades laborativas.
Certamente, é necessária uma adequação na norma para acompanhar todas as mu-
danças sociais. A fim de que sejam resguardados os direitos das minorias (NASCIMENTO;
LEHFELD, 2016), de modo justo e igualitário sem preconceitos ou prejuízos, preservando
o direito à dignidade humana previsto na Constituição Federal. Portanto, se cumpridas as
exigências legais e realizada a fórmula matemática para as pessoas que alteraram sua iden-
tidade civil para um outro gênero, a concessão da aposentadoria seria o resultado esperado.
Contudo, está tramitando no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Consti-
tuição – PEC 287/2016, de autoria do Poder Executivo, para a reforma da Previdência Social.
Essa reforma prevê grandes mudanças no Regime Geral de Previdência Social, inclusive para
o funcionalismo público. De sorte, que tal mudança só valerá para os benefícios concedidos
após aprovada a reforma. Mesmo assim, não se observa a previsão legal para concessão
dos benefícios previdenciários em relação ao tempo a ser computado aos transexuais, que
biologicamente têm características de determinado sexo e se amoldam como pessoas do
gênero sexual oposto.
Essa situação se apresenta, em face do Brasil ter no ordenamento jurídico o elemen-
to sexo como determinação da identidade da pessoa (masculino/feminino) (ABÍLIO, 2017).
Prova disso é a Lei de Registros Públicos, que determina a indicação do sexo da pessoa em
sua certidão de nascimento. Dessa forma, os transexuais que são as pessoas que não se
identificam com seu sexo biológico, encontram-se sem amparo legal, abrindo espaço para
grandes problemas e constrangimentos.
Nesse contexto, ao analisarmos que a identidade pessoal não é estabelecida ape-
nas por seus fatores físicos e biológicos, mas por uma construção social e um sentimento
interno de pertencer ao sexo oposto (NASCIMENTO; LEHFELD, 2016), seria o pressuposto
para efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo como consequência a
garantia do direito à igualdade e à liberdade, ligados intimamente aos aspectos relacionados
à identidade do transexual.

Conclusão
Com base no que foi apresentado, podemos definir que transexual é a pessoa que
nasceu com um sexo biológico e encontra dificuldade de se apresentar como tal por entender
que pertence ao sexo oposto. Dessa forma, é necessária a supressão das desigualdades so-
PERSPECTIVAS DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL E A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS...| 181

ciais, principalmente aquelas relacionadas à questão de identidade de gênero, reconhecendo


a pessoa transexual como sujeito detentor de direitos (ABÍLIO, 2017), como qualquer outra
pessoa.
Seguramente, é possível concluir que mesmo sem uma norma expressa constitucio-
nalmente que verse sobre a identidade de gênero, o Estado tem acompanhado de forma mui-
to discreta as mudanças ocorridas na sociedade. Prova disso são as recentes decisões em
relação ao tema no Supremo Tribunal Federal, que vêm primando pelo direito fundamental,
decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana para o pleno exercício da cidadania
do transexual.
As decisões do Supremo Tribunal Federal relacionadas à orientação sexual ou iden-
tidade de gênero vêm se tornando cada vez mais usuais. O reconhecimento da diversidade
pressupõe a integração na sociedade, diminuindo, assim a intolerância e o preconceito.
Na legislação previdenciária, encontramos critérios diferentes para concessão de
benefícios, em relação à capacidade física do cada sexo (CASTOLDI; MULLER, 2016). As-
sim, a transexualidade reflete de forma variada na vida da pessoa, sendo que seu novo sexo
vai conferir uma nova situação com direitos iguais aos das pessoas de determinado sexo.
Dessa forma, se cumpridas as exigências legais, não há como negar ao transexual a
concessão dos benefícios previdenciários, desde que feitas as alterações atinentes no CNIS
bem como em qualquer outro registro que possua, uma vez que a identidade de gênero ou
a orientação sexual é um direito absoluto e individual (FLUMINHAN, 2016), que deve ser
garantido para não gerar prejuízo a outros direitos.
Conclui-se, portanto, que o que deve prevalecer é o sexo psicológico, de como a
pessoa se vê no meio social (CHAVES; BARRETO; PAMPLONA FILHO, 2017). Sendo esse
um importante passo para diminuir as desigualdades e o abismo social e para que prospere
o equilíbrio na sociedade brasileira, reconhecendo a Previdência Social os direitos dos indiví-
duos transexuais, em conformidade com a Constituição Federal de 1988.

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CAPÍTULO XII

A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES


A PARTIR DA MEDIAÇÃO COMO METODOLOGIA
INTERVENTIVO-PARTICIPATIVA E DE
CARÁTER PREVENTIVO

BÁRBARA MARIA EIDT 1


SILVIA OZELAME RIGO MOSCHETTA 2

Agradecimentos
Agradecer o apoio do Estado de Santa Catarina e da Universidade Comunitária da
Região de Chapecó (Unochapecó) pela realização desta Pesquisa de Iniciação Científica
com Recursos do art. 170 da Constituição Estadual de Santa Catarina – Edital 008/REITO-
RIA/2018 – UNOCHAPECÓ.
Agradecer o Comitê de Ética da Unochapecó pela aprovação da pesquisa, sobretudo
no tocante à realização das sete entrevistas com mediados atendidos pelo SMF/Unochapecó,
que encaminharam pedidos de divórcio consensual pela via extrajudicial, culminando com a
desjudicialização de conflitos familiares.

1
Bolsista de Pesquisa de Iniciação Científica com Recursos do art. 170 da Constituição Estadual de SC – Edital
008/Reitoria/2018 Unochapecó; bacharel em Direito – Unochapecó – Universidade Comunitária da Região de
Chapecó; E-mail: babieidt06@gmail.com.
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Direito Público e Evolução
Social pela Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Professora permanente do Programa de Mestrado
Acadêmico em Direito UNOCHAPECÓ na Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e Atores Internacionais. Integrante
dos Grupos de Pesquisas: Relações Internacionais, Direito e Poder – atores e desenvolvimento pluridimensional;
Liberdade, Estado e Desenvolvimento, ambos da UNOCHAPECÓ. Integrante da Rede de Pesquisa Interinstitu-
cional (UFSC, UNESC, UCS, ESUCRI, UNOCHAPECÓ) em Republicanismo, Cidadania e Jurisdição – RECIJUR.
Mediadora. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1370518931808075 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
3722-8581 Email: silviaorm@unochapeco.edu.br.
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 185

Introdução
Os conflitos disseminados no corpo social, originam-se de divergências entre os
envolvidos, entre eles e as entidades as quais pertencem ou entre estas propriamente ditas,
por conta de um momento de incertezas de ordem econômica, social, jurídica, política, filo-
sófica e emocional. O conflito é inerente à pessoa e pode ser verbalizado ou não, porquanto
não serão objeto da pesquisa as motivações intersubjetivas que originaram o dissenso, nem
mesmo os conflitos oriundos de situações de vulnerabilidades, como violência doméstica,
crianças, adolescentes, idosos e deficientes em situação de risco, mas sim as formas que
se pode utilizar a partir do conflito externalizado, levando-se em consideração a repercussão
tida com a outra parte conflitante (mediando).
A intervenção nos conflitos requer práticas inovadoras de encaminhamento que mi-
grem para um ideal de justiça, mesmo que na ordem privada. Em razão desse contexto de
conflitualidade crescente, sobretudo familiar, e o Poder Judiciário abarrotado de processos,
tem-se na desjudicialização um mecanismo que faculta às partes comporem seus litígios
fora da esfera de jurisdição estatal, cuja operacionalização vem acompanhada da edição de
leis, resoluções e provimentos que dispõem sobre atos jurídicos que dispensam a judiciali-
zação e que são eficazes, o que fortalece o sistema de justiça, conferindo-lhe autonomia e
oferecendo tutela jurídica aos jurisdicionados.
Nesse teor, a desjudicialização aponta para inúmeras possibilidades de desafoga-
mento do Poder Judiciário, de suas atribuições ante o crescimento exponencial das lides
oriundas das relações sociais. Assim, a mediação extrajudicial alberga perspectivas para
o futuro, fato corroborado pela edição da Lei da Mediação – Lei n. 13.140/2015, Lei de
Divórcio e Inventário Extrajudiciais – Lei n. 11.441/07, Provimento 63, de 14 de novembro
de 2017, do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre o reconhecimento voluntário e
a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva.
O tema escolhido possui relevância pois os conflitos, sobretudo os de ordem familiar,
aumentam cotidianamente e se apresentam cada vez mais complexos, fruto de relações
sociais desajustadas que necessitam de intervenção preventiva qualificada para possam ser
compreendidos e assumidos pelos envolvidos. Assim, os deveres oriundos, por exemplo, de
um divórcio certamente serão cumpridos porque houve diálogos, convenções e acordos que
tornaram a decisão do casal factível ao cumprimento, porque ambos participaram da cons-
trução da melhor decisão que o fato requeria e compreenderam o papel de cada um perante
os termos mediados: a responsabilidade.
Com esse introito, tem-se que o artigo contempla o eixo de Novos Direitos, Litigio-
sidade e Direitos Humanos. Ressalta-se que diante da pesquisa ser circunscrita ao tema da
desjudicialização, isto é, conflitos familiares que não foram judicializados, não foram objeto
de investigação as contendas que versavam sobre direitos indisponíveis, como o envolvi-
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mento de crianças e adolescentes, casos de violência doméstica ou ainda, pessoas com


deficiência, tendo em vista a obrigatoriedade de intervenção estatal do Ministério Público.
Na sequência, a contextualização teórica do tema se apresenta em pontos que se
caracterizam por sua nítida imbricação.

1 A mediação na perspectiva de metodologia interventivo-participativa


Aborda-se a mediação como metodologia apropriada para intervenção nos conflitos
familiares, pois no contexto da sociedade pós-moderna, espera-se que o sistema judiciá-
rio tenha condições físicas e humanas para atender as demandas da população de acordo
com os preceitos constitucionais e sociais, o que nem sempre é possível. A mediação, se
apresenta, nesse contexto como uma opção para o cidadão consciente e livre, a fim de que
busque voluntariamente e com autonomia as respostas e a responsabilização para os seus
conflitos (FERREIRA, 2008). A mediação, “forma civilizada de solução de controvérsias, é
mais que adequada à resolução das questões de família” (BENETI, 2009, p. 8).

Neste contexto, a mediação familiar interdisciplinar torna-se ferramenta imprescin-


dível como mecanismo de acesso à justiça. Porém, é preciso compreender que a
mediação é um conhecimento fundamentado na interdisciplinaridade, pois se trata
de uma linguagem própria que utiliza pensamento, sentimento e vontade. Portanto,
não se pode apequenar este importante conhecimento como objetivo de celebração
de mero acordo, como tem sido confundida, com evidente equívoco de afirmar que
mediação e conciliação são sinônimos, quando há conceitos diversos para as respec-
tivas ações humanas. E, tampouco, atribuir-lhe a função de desafogar o Judiciário,
afinal, o “afogado” não tem solução, pois em desacordo com os novos paradigmas
contemporâneos, sendo que a mediação tem poder de deixar de “afogar” o sistema
(BARBOSA, 2015, p. 124).

Em termos conceituais, a mediação é um processo informal que reestabelece o diá-


logo da família com o intuito de encaminhar os litígios, envolvendo um terceiro imparcial e
independente que não decide o conflito nem sugere solução, mas facilita a comunicação
entre os mediados. Ela também se apresenta como oportunidade de acesso à justiça, muitas
vezes buscada por encaminhar o conflito familiar de uma maneira que os mediados são
protagonistas de uma escuta qualificada.
O mediador tem um papel fundamental nesse processo pois não deve simplesmente
indicar, sugerir, um encaminhamento para o conflito, mas sim proporcionar um ambiente no
qual as partes se sintam seguras, respeitadas e ouvidas, e, assim, se sintam ambientadas a
procurar a melhor solução. Nesse contexto, o mediador “se responsabiliza cuidadosamente,
junto com os mediados, de que acordo planejado atenda realmente a necessidade de todos”.
(VEZZULLA, 2016, n.p.).
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 187

Outra situação que se apresenta circunscrita à metodologia interventiva, perfectibili-


zada pela atuação interdisciplinar – Direito, Psicologia e Serviço Social – e com a participa-
ção dos mediados, é a comunicação, posto que as “intervenções dos mediadores devem ser
diferentes segundo as pessoas que participam da mediação porque deve adequar-se a elas
a suas necessidades e fundamentalmente à maneira de se comunicar, de se expressar” (VE-
ZZULLA, 2015, n.p.). Ademais, a mediação é “medida que possibilita a resolução de conflitos
familiares de forma pacífica e permite a reflexão sobre os dramas de separação e divórcio,
oportunizando um lugar de descoberta de um caminho menos traumático ao restabelecer, se
possível, o diálogo entre o ex-casal” (OLIVEN, 2010, p. 47).
O marco legal da mediação foi anunciado em decorrência da aprovação do Projeto de
Lei n. 7.169, de 2014, em 8 de junho de 2015, sendo que, por meio de sanção presidencial,
sem veto, e, 26 de junho de 2015 foi publicada a Lei 13.140, que dispõe sobre a mediação
entre particulares. A mediação seria uma fórmula admitida dentro das “regras do jogo”; por
isso, para Wolkmer (1997, p. 81, grifos do autor):

Há que se compreender que a reinvenção permanente de “novos” direitos, que as-


sumem dimensão individual, política e social, está diretamente relacionada com o
grau de eficácia de uma resposta à situação ou condição de privação, negação ou
ausência de “necessidades” fundamentais, “necessidades” configuradas como bens
que servem para a satisfação e realização da vida humana.

A partir dessas compreensões, tem-se que a ética da mediação traduz-se em altruís-


mo, numa atitude de “preenchimento do tempo-espaço, para libertar-se e, com isso, estimu-
lar a liberdade dos mediandos, capacitando-os para um novo projeto de futuro” (BARBOSA,
p. 93, 2015), além de identificar-se com a ética do cuidado, que vem a ser a atividade hu-
mana de preservação da vida em sua plenitude a qual se estabelece no dever de assistência
à pessoa em situação de perigo.
Por fim, tem-se que a “humanização da justiça e a restauração de valores sociais
perdidos pelo individualismo do neo-liberalismo e o efeito colonizador da globalização estão
a ser das maiores e melhores mudanças promovidas pela mediação” (VEZZULLA, 2015,
n.p.).
O Direito, ao expor suas fronteiras, elege, não sem resistências, a interdisciplinarida-
de como um diálogo com o social: prima por um sistema aberto e plural, em contraposição
à visão positivista-dogmática clássica que o constrói como um sistema fechado, posto que
forças sociais, culturais, econômicas e científicas produzem relações intersubjetivas plurais
e heterogêneas.
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2 Os conflitos familiares atendidos pelo Serviço de Mediação Familiar


Extrajudicial
A pesquisa direcionou-se para o projeto permanente de extensão universitária, deno-
minado Serviço de Mediação Familiar – SMF/Unochapecó, vinculado ao programa permanen-
te de extensão universitária identificado como Centro de Atendimento à Comunidade (CAC).
No projeto de SMF/Unochapecó o “papel dos mediadores é auxiliar os sujeitos envolvidos
no sentido de (re)construir as alternativas na busca de soluções aos interesses de todos”
(UNOCHAPECÓ, 2016), por isso que a mediação tem espaço nas situações relativas à con-
flitos familiares, prestada à população com renda individual e/ou familiar de até três salários
mínimos, residentes nas Comarcas de Chapecó e São Lourenço. Os resultados se traduzem
na garantia dos direitos das famílias, nas distintas formas de ser família, destacando-se a
contribuição efetiva dos mediadores por meio do diálogo, da escuta qualificada e de pactua-
ções (acordos) viáveis. (UNOCHAPECÓ, 2016). Ademais, consoante relatório referente ao
projeto (UNOCHAPECÓ, 2015), os benefícios proporcionados aos sujeitos pelo processo de
mediação familiar incluem rapidez e eficácia dos resultados; redução do desgaste emocional;
garantia de privacidade e sigilo; redução da duração e reincidência de litígios; facilitação da
comunicação; promoção de ambientes mais colaborativos; melhoria dos relacionamentos e
maior compromisso das pessoas em cumprir um acordo por elas estatuído.

3 A desjudicialização das relações familiares


É indiscutível a maior interferência do Poder Judiciário nas relações familiares, pois
este é cada vez mais chamado para resolver litígios. Isso nada mais é do que a judicialização
da família, porém, em termos conceituais, “judicialização significa que questões relevantes
do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo
Poder Judiciário”, contudo, é importante distinguir que judicialização não é ativismo jurídico;
judicialização é um fato e ativismo uma atitude (BARROSO, 2018, n.p.).
Atualmente a judicialização possui uma grande abrangência, porém há uma certa
limitação, a saber: “de um lado, a participação no debate aos poucos que têm acesso ao
mundo jurídico – com seus ritos formais e custos elevados – e, por outro lado, oferece o risco
de politização indevida da justiça”, podendo nesses casos “p roduzir apatia nas forças sociais
ou levar paixão a um ambiente que deve ser presidido pela razão” (BARROSO, 2018, n.p.).
Uma das principais discussões na esfera jurídica é a garantia ao acesso à justiça,
este que deve ser garantido pelo Estado, seguindo a lógica do princípio da tutela à dignidade
da pessoa humana que deve conseguir se defender e cobrar um direito que possui, assim
para “garantir este exercício, há o Princípio da Proteção Judiciária, ou Princípio da Inafastabi-
lidade do Controle Jurisdicional, direito fundamental a garantir a defesa de direitos” (OLIVEN,
2010, p.8).
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 189

Importante salientar que o acesso à justiça não é garantido somente por meio do
Poder Judiciário, buscando em determinadas situações a judicialização para a resolução dos
litígios, como também a desjudicialização tem se apresentado como uma possibilidade de
acesso com segurança jurídica garantida. Portanto, a desjudicialização busca a solução de
conflitos, problemas sociais por meio de órgãos extrajudiciais mediante processos adminis-
trativos.

A informalização da Justiça significa acatar espaços jurisdicionais alternativos e de-


senvolver mecanismos consensuais de justiça em espaços comunitários. Com essa
informalização, cresce a desjuridificação (desjudicializacão), ou seja, a adesão a
meios informais de solução de controvérsias (MARQUES, 2014, n.p.).

A judicialização quantitativa nada mais é que uma quantidade espantosa de ações


judiciais. “É quase como se cada brasileiro adulto tivesse uma ação em juízo” (BARROSO,
2018, p. 22-23). Uma das consequências desse grande número de ações é um Judiciário
sobrecarregado, se fazendo necessário o surgimento de medidas alternativas para a solução
de litígios e ao acesso à justiça, ou seja, soluções extrajudiciais, como a mediação que am-
bienta o encaminhamento do conflito de forma participativa e responsável.
É nesse contexto que a desjudicialização, e consequentemente a mediação, se apre-
senta relevante, pois garante acesso à justiça, por meios alternativos fazendo com que todo
o processo seja mais informal e rápido.

A desjudicialização indica o deslocamento de algumas atividades que eram atribuídas


ao Poder Judiciário e, portanto, previstas em lei como de sua exclusiva competência,
para o âmbito das serventias extrajudiciais, admitindo que estes órgãos possam reali-
zá-las, por meio de procedimentos administrativos (MARQUES, 2014, n.p.).

Dessa forma, a desjudicialização ou a delegação de atos aos serviços extrajudiciais


vem sendo cada vez mais incentivada, seja pelo Conselho Nacional de Justiça, seja pelo
Poder Legislativo com a promulgação de leis que dispõem, por exemplo, sobre mediação
no ambiente privado, mediação judicial e mediação extrajudicial em caso de divórcios e
inventários.
Assim, a mediação extrajudicial alberga perspectivas para o futuro, fato corroborado
pela edição da Lei da Mediação – Lei n. 13.140/2015 (BRASIL, 2015), Lei de Divórcio e
Inventário Extrajudiciais – Lei n. 11.441/2007 (BRASIL, 2007), Provimento 63, de 14 de
novembro de 2017, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (BRASIL, 2017), que dispõe
sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva .
190 | BÁRBARA MARIA EIDT | SILVIA OZELAME RIGO MOSCHETTA

Não há outra consideração a fazer senão reconhecer a mediação como uma alterna-
tiva de se abduzir a cultura da sentença cedendo espaço para a desjudicialização no âmbito
dos conflitos familiares, traduzindo-se em prestação da tutela almejada pelos mediados e
garantindo segurança jurídica.

4 Os benefícios da desjudicialização no âmbito do divórcio extrajudicial


A pesquisa de campo desenvolveu-se com entrevistas semiestruturadas de sete
mediados que utilizaram o SMF/Unochapecó, a partir do projeto de pesquisa A mediação
como metodologia preventiva de conflitos familiares e a desjudicialização no bairro Efapi
- Chapecó sendo aprovado perante o Comitê de Ética de Pesquisa da Unochapecó – CAAE
98050618.2.0000.0116, conforme parecer n. 3.343.765, datado de 23/05/2019. Ressalta-
-se que não foi possível realizar a pesquisa restringindo-se somente ao Bairro Efapi.
Quanto aos riscos previstos no projeto de pesquisa, como: a) relembrar o sentido
negativo quando da participação da pesquisa por via da entrevista, o qual significaria aspec-
tos desagradáveis de seu relacionamento pessoal poderiam ser rememorados; b) algumas
lembranças poderiam causar algum desconforto quando se fosse relatar o conflito conjugal
ou parental; ou, ainda c) algum constrangimento pela gravação, averiguou-se que tais situa-
ções não foram apresentadas ou simplesmente não eram aferíveis durante a realização da
oitiva dos pesquisados.
A entrevista é um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha
informações sobre determinado assunto de cunho profissional. É um procedimento utilizado
na investigação social, para coleta de dados ou para ajudar no diagnóstico ou no tratamento
de um problema social. A entrevista padronizada ou estruturada segue um roteiro previamen-
te estabelecido com perguntas predeterminadas.
No intuito de preservar os entrevistados, foram omitidos dados pessoais como no-
mes, apenas se perquiriu sobre idade, profissão e estado civil. Dessa forma, no processo de
transcrição das entrevistas, cada entrevistado será chamado de entrevistado 1, 2, 3 e assim
sucessivamente, na ordem cronológica em que foram entrevistados. As entrevistas possuem
formato semiestruturado, sobre a experiência dos casais em relação à percepção subjetiva
da metodologia da mediação como prevenção dos conflitos e a necessidade ou não de
judicialização. Os participantes foram entrevistados em suas casas para maior comodidade
e privacidade.
Foram realizadas sete entrevistas3 de mediados que passaram pelo Serviço de Me-
diação Familiar da Unochapecó com o encaminhamento extrajudicial, ou seja, nenhum deles

3
As entrevistas foram transcritas e os depoimentos constantes neste artigo passaram por revisão ortográfica no
que se refere à pronúncia correta das palavras, além da correção em termos de concordância e regência, ambas
nominal e verbal.
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 191

precisou procurar o Poder Judiciário para resolver seu conflito, por conseguinte, concluímos
que nesses casos a desjudicialização do conflito familiar obteve um resultado positivo.
Quanto à procura do SMF/Unochapecó, nota-se que há divulgação do SMF e dos
encaminhamentos feitos: “[...] eu não sabia da mediação familiar, mas um colega meu da
BRF indicou, procurei e percebi que foi bom, não teve custo e foi muito rápido, bem bom, não
demorou nada” (MEDIADO 7, 2019).
A possibilidade de desjudicialização do conflito familiar também demonstra a certeza
de não intervenção estatal na vida privada, situação assim descrita: “se a gente tivesse que
enfrentar um juiz ele talvez tentaria uma reconciliação e talvez o processo demorasse mais”
(MEDIADO 5, 2019).
Indubitavelmente, a gratuidade se apresenta como uma das vantagens do encami-
nhamento extrajudicial, embora o judicial também garanta assistência judicial, pela via da
hipossuficiência dos mediados, a prestação gratuita aliada à celeridade evidenciam a neces-
sidade dos mediados, pois quando questionados sobre o porquê da procura pelo SMF, assim
responderam: “pela questão financeira a gente procurou e pela agilidade, pois vocês enca-
minharam os documentos e a gente não precisou dispor desse tempo” (MEDIADO 6, 2019).
Sobre o protagonismo em encaminhar os próprios conflitos familiares a partir do
conhecimento da mediação ambientada em uma metodologia participativa e preventiva, per-
cebe-se que as respostas são afirmativas, destacando-se o diálogo, ou como mencionado
alhures, a escuta qualificada, a saber:

Entrevistador: Tu achas que a questão da mediação ela ajuda, contribui para que as
pessoas consigam resolver seus conflitos de família?
Mediado 5: É eu acho que sim, porque é um caminho mais fácil do que você enfrentar
um juiz, eu acho que ali se as pessoas conversassem entre elas e já tem mais ou
menos um acordo, é bem mais fácil (MEDIADO 5, 2019).

Nesse tom, tem-se que o protagonismo resta amalgamado no desenvolvimento da


personalidade, percebendo-se que a mediação vai ocupando um espaço aberto para outra
forma de acesso à justiça, fundamentado em direito material regido por uma “principiologia
decorrente do axioma maior a reger o ordenamento pátrio, qual seja, a dignidade da pessoa
humana, do qual decorre, dentre outros, o princípio do livre desenvolvimento da personalida-
de” (BARBOSA, 2015, p.102).
Outro resultado da pesquisa que se pode destacar refere-se ao cumprimento do
acordo estabelecido, ou seja, os mediados compreenderam que a partir do princípio da
responsabilidade conjugal, as convenções devem ser respeitadas e cumpridas, como se
observa:
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Entrevistador: O fato de vocês colocarem algumas regras na escritura pública de di-


vórcio, não pedir alimentos um para o outro, sobre isso você percebe que ter sido ali
no Cartório e não ter sido em frente ao juiz, houve algum prejuízo?
Mediado 7: Não, acredito que mesma coisa, até porque é um contrato que você assina
e tal, acredito que seja a mesma coisa, tem a mesma força perante o juiz, o extrajudi-
cial acredito que não muda (MEDIADO 7, 2019).

A maior vantagem da utilização do serviço indicada pela pesquisa é a ausência de


custo financeiro, pois os participantes não gastaram e tiveram suas necessidades jurídicas
e pessoais atendidas de forma célere. Os serviços de mediação familiar geralmente são
buscados pela população por serem uma forma de acesso à justiça que a seu ver, por ser
extrajudicial, é uma forma descomplicada para encaminhamento do litigio.

Conclusão
A mediação familiar permite que os interessados tenham autonomia para tratar e
ressignificar o conflito existente, tornando-se capazes de decidir sobre a melhor resposta
para o impasse vivenciado. Nessa perspectiva, os procedimentos são refletidos na forma
como é conduzida a sessão de mediação. Esta deve ser um processo dinâmico e flexível, em
que fatores sociais, econômicos e culturais dos mediandos sejam levados em consideração
para a escolha do modo de abordagem do mediador (por isso a formação interdisciplinar é
necessária), a fim de que se possam alcançar a igualdade e o equilíbrio entre as forças em
disputa e se estabeleça a comunicação.
A pretensão do artigo foi apresentar a mediação como metodologia interventivo-par-
ticipativa e preventiva de encaminhamento de conflitos familiares e mostrar os resultados de
pesquisa realizada com o apoio e financiamento. Para demonstrar viabilidade da pesquisa
foram apresentados alguns trechos das entrevistas realizadas com os mediados que utiliza-
ram o SMF/Unochapecó e não necessitaram da judicialização de seu conflito.
Os entrevistados ressaltam o bom atendimento do Serviço de Mediação Familiar
Extrajudicial da Unochapecó, em que foram recolhidos os documentos, prestadas as devidas
informações e confeccionada a minuta da demanda solicitada (divórcio consensual), pos-
teriormente foi encaminhado ao respectivo Cartório para confecção da respectiva Escritura
Pública de Divórcio Consensual. No âmbito do Cartório Extrajudicial os mediados obtiveram
toda a orientação jurídica sobre o processo, o que evidenciou a celeridade como ponto po-
sitivo. Outro ponto destacado pelos mediados entrevistados foi em relação à gratuidade do
procedimento, o qual conta com a dispensa de custas, sendo assim uma facilidade oferecida
pelo Serviço de Mediação Familiar Extrajudicial.
A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES A PARTIR DA MEDIAÇÃO...| 193

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VEZZULLA, Juan Carlos. Mediação responsável e emancipadora. 2016. Disponível em: http://www.


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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 2. ed.
São Paulo: Alfa Omega, 1997.
CAPÍTULO XIII

ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E


ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS: GARANTIA
DA DIGNIDADE HUMANA

CLOVIS DEMARCHI 1
ELAINE CRISTINA MAIESKI 2

Introdução
Considerada como um grande avanço, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também
conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146 (BRASIL, 2015), tem
impactado diretamente a vida de cerca de 45 milhões de brasileiros com algum grau de
deficiência, e indiretamente, toda sociedade, governo e instituições. A lei que trouxe mais
autonomia às pessoas com deficiência alterou o instituto da capacidade possibilitando que
esses cidadãos possam exercer atos da vida civil em condições de igualdade com as demais
pessoas, como o direito de casar ou constituir união estável e exercer seus direitos sexuais
e reprodutivos em igualdade de condições com as demais pessoas.
Também introduziu novos institutos como a Tomada de Decisão Apoiada (TDA), pos-
sibilitando o auxílio de pessoas de sua confiança em decisões sobre atos da vida civil, com
a designação de um curador para atos de direitos patrimonial ou negocial. Nesse contexto,
o artigo tem como objeto a discussão sobre a aplicabilidade do Estatuto da Pessoa com
Deficiência e a sua relação com a Dignidade Humana.
O objetivo geral é analisar o Estatuto da Pessoa com Deficiência e as consequentes
alterações na legislação brasileira, em especial no Código Civil e verificar as consequências
destas alterações. Como objetivos específicos têm-se: a) caracterizar dignidade humana; b)

1
Doutor em Ciência Jurídica. Professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (PPGD/Univali). E-mail: demarchi@univali.br.
2
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Jornalista. E-mail: lane.maieski@
gmail.com.
196 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI

analisar aspectos gerais do Estatuto da Pessoa com Deficiência; c) verificar as consequentes


alterações no Código Civil Brasileiro após a aprovação do Estatuto da Pessoa com Deficiên-
cia. Desse modo, o problema de pesquisa está assim relacionado: o Estatuto da Pessoa
com Deficiência e as consequentes alterações na legislação brasileira contribuíram para a
efetivação da Dignidade Humana?
A deficiência de uma maneira geral sempre existiu na história do mundo, sendo que
indivíduos com alguma limitação física, mental, sensorial ou cognitiva existem há tanto tem-
po quanto a própria humanidade. Entretanto, somente a partir do século XV é que as pessoas
com deficiência passaram a ser reconhecidas como cidadãs, tendo alguns direitos reconhe-
cidos por meio de normas e passando a ser percebidas pela sociedade e pelo Estado.
A efetivação dos direitos assegura a inclusão social da pessoa com deficiência, im-
pondo a igualdade, baseando-se na promoção do exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais pela pessoa com deficiência, direitos que só serão efetivados por meio das
políticas públicas direcionadas a atender às suas necessidades.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência é hoje um importante instrumento de efetiva-
ção da dignidade humana. Ele possibilita não apenas a implementação de políticas públicas
voltadas às necessidades da pessoa com deficiência, mas também um entendimento e iden-
tificação mais específicos das barreiras que ainda impedem a ampla inclusão e acessibili-
dade.
Com a alteração principalmente do instituto da capacidade no Código Civil, o Estatuto
estabelece que todas as pessoas, independentemente de cor, raça, credo, sendo elas defi-
cientes ou não, são capazes, detentoras de direitos e, portanto, dignas de receber do Estado
as garantias que lhes são previstas no ordenamento jurídico. A metodologia empregada tem
por base o método indutivo com a utilização da pesquisa bibliográfica e documental.

1 Considerações sobre a dignidade humana


Ao longo do tempo, o conceito de dignidade vem moldando-se às influências histó-
ricas, sociais, políticas e jurídicas. Diante de um vasto repertório, com entendimentos an-
corados em leis divinas, na natureza humana, ou ainda como resultado de lutas de classes,
o fato é que somos desafiados sempre que abordamos o tema. A dignidade é um princípio
que não nasceu pronto, acabado, e molda-se constantemente às necessidades e à própria
existência do ser humano.
Para Daniel Sarmento (2016, p. 26), “a valorização da pessoa humana pode se ex-
pressar de múltiplas formas, por meio de diferentes vocabulários, sem a necessidade do
uso de um termo especifico para designar o fenômeno”. Para o autor, a noção de dignidade
humana evoca duas ideias diferentes: a de dignidade da espécie humana, muito mais antiga,
e a dignidade da pessoa humana, com objetivos igualitários da dignidade.
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS| 197

Acrescenta ainda que “a dignidade da espécie humana consiste no reconhecimento


de que o ser humano ocupa uma posição superior e privilegiada entre todos os seres que
habitam o nosso mundo”. Já “a dignidade da pessoa humana envolve a concepção de que
todas as pessoas, pela sua simples humanidade, têm intrínseca dignidade, devendo ser
tratadas com o mesmo respeito e consideração” (SARMENTO, 2016, p. 27).
Sarlet (2012, p. 75) estabelece que a dignidade da pessoa humana é “[...] a qualida-
de intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”. É por meio da dignidade da
pessoa humana que o indivíduo exercita o sentimento de pertencimento à sociedade.
A dignidade da pessoa humana, portanto, nasce com o ser humano, mas a sua pro-
teção cabe ao Estado que, além de protegê-la, deve respeitá-la e garantir que seja cumprida
em todos os sentidos, possibilitando meios de proteção à vida e de convivência digna.
Preservando esse pensamento, a dignidade humana foi incluída na Constituição Fe-
deral (BRASIL, 1988) na condição de fundamento. O Constituinte estabeleceu “de forma
clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de
normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional”, especialmente dos
direitos e garantias fundamentais (SARLET, 2012, p. 75).
O Estado, ao fornecer a todo cidadão, sob pena de desrespeito à própria Constituição
Federal, um padrão mínimo essencial, garante a dignidade humana. Portanto, ainda que se
alegue que este, por possuir recursos finitos em face de uma infinita gama de necessida-
des, não consegue cumprir com todas as suas atribuições, e que ao dar prioridade para
determinados casos deixará de adimplir outros, de acordo com a reserva do possível, esse
mesmo Estado nunca poderá se furtar de fornecer aos seus cidadãos políticas públicas que
executem um “mínimo existencial”, abrangendo todas as esferas, inclusive a da inclusão e
da acessibilidade das pessoas com deficiência.
Nesse contexto, é importante definir o que pode ser considerado como o mínimo
existencial para uma vida digna. Nesse ponto, a própria Constituição Federal (BRASIL, 1988)
fornece alguns caminhos, por exemplo, no que se refere à dignidade da pessoa humana,
prevista no artigo 1º, inciso III, que constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito no Brasil. Com a finalidade de assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem
ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, esse princípio preserva e valoriza o ser
humano.
Sendo a dignidade da pessoa humana um fundamento da Constituição Brasileira e,
ainda, um valor central do Direito, não há como ser mitigado ou relativizado. É no valor da
dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu
ponto de partida e seu ponto de chegada na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se,
assim, dignidade da pessoa humana como base orientadora do Estado e do Direito.
198 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI

Nesse contexto, Flávia Piovesan (2018. p. 102) diz que a dignidade da pessoa hu-
mana está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido,
condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se como “cânone constitucio-
nal que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico
a todo o sistema jurídico Brasileiro”. Portanto, a efetivação da dignidade humana se dá por
meio da implementação de políticas públicas que dão solidez a todos os direitos previstos e
pautados no Direito Brasileiro, e encontram guarida inclusive na tutela do mínimo existencial,
já que as políticas de estado e as políticas de governo devem estar voltadas às necessidades
dos mais diversos grupos sociais, sem distinção.
Sendo assim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência é hoje um importante instru-
mento de concretização da dignidade humana, pois possibilita não apenas a implementação
de políticas públicas voltadas às necessidades da pessoa com deficiência, mas também
um entendimento e identificação mais específicos das barreiras que ainda impedem a plena
inclusão e acessibilidade.

2 Considerações sobre o Estatuto da pessoa com deficiência


O Estatuto da Pessoa com Deficiência, destinado a assegurar e a promover, em
condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais das pessoas
com deficiência, visando sua inclusão social e cidadania, tem impactado diretamente a vida
de cerca de 45 milhões de brasileiros com algum grau de deficiência, e indiretamente, toda
a sociedade, governos e instituições.
As inovações trazidas pela nova lei alcançam, entre outras, as áreas de saúde, edu-
cação, trabalho, assistência social, esporte, previdência e transporte e tem provocado o
Estado, bem como a sociedade, a garantir o cumprimento de metas e a implementação de
políticas públicas que atendam às necessidades das pessoas com deficiência. Tendo como
ponto de partida que a efetivação das garantias e a inclusão da pessoa com deficiência no
meio social perpassam a conscientização de toda uma sociedade organizada, inclusive em
seus preceitos políticos e jurídicos, o Brasil buscou, em sua última legislação especial sobre
o tema, dar vazão aos princípios constitucionais, e editou em 2015, o Estatuto da Pessoa
com Deficiência.
A Lei 13.146 de 06 de julho de 2015 (BRASIL, 2015), em vigor desde janeiro de
2016, baseia-se na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e
seu Protocolo Facultativo, de 2006, que, confirmado pelo Congresso Nacional Brasileiro em
2008, adequou a legislação brasileira ao que foi acordado entre os países signatários da
Convenção. No artigo 2º da referida legislação, encontra-se o conceito de pessoa deficiente
como “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS| 199

ou sensorial, [...], em interação com [...] barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva[...] em igualdade de condições com as demais pessoas”. Ou seja, a deficiência não
é um “defeito” que precisa ser consertado.
O modelo adotado é social ou de garantia da Dignidade da Pessoa. Consagra-se,
assim, o vetor de antidiscriminação, exigindo a efetivação de políticas públicas e a responsa-
bilidade do Estado na eliminação das barreiras e assegurando a igualdade material (RAMOS,
2018). Cite-se também o parágrafo primeiro do artigo 2º3, que dispõe que a avaliação da
deficiência será biopsicossocial, devendo ser realizada por equipe multiprofissional e inter-
disciplinar.
Destaca-se que a avaliação biopsicossocial deve considerar aspectos sociais e da-
dos médicos. Essa abordagem supera o simples modelo biológico, para considerar, fato-
res sociais como nível de escolaridade, profissão, composição familiar, e outros (FARIAS;
CUNHA; PINTO, 2016).
O caput do artigo 4º do Estatuto afirma que “Toda pessoa com deficiência tem direito
à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de
discriminação” (BRASIL, 2015). O disposto atende à dignidade da pessoa humana, à liber-
dade e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
O segundo título do Estatuto da Pessoa com Deficiência, destina-se aos direitos
fundamentais, como direito à vida, à habilitação e à reabilitação, à saúde, à educação, à
moradia, ao trabalho, à assistência social, à previdência social, à cultura, ao esporte, ao
turismo e ao lazer, ao transporte e à mobilidade. Quanto à educação, o Estatuto assegura
um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo da vida, como
dispõem os artigos 27 e 28.
Em relação à assistência social prevista no artigo 39 e nos seguintes, o Estatuto
garante o direito da pessoa com deficiência e sua família à proteção social, assim como
criou o auxílio-inclusão, de cunho previdenciário, para pessoas com deficiência moderada
ou grave, conforme artigo 94. Observa-se que o Estatuto reafirmou os direitos previdenciá-
rios e socioassistenciais assim como apresentou avanços para ampliar a proteção social
e a acessibilidade. Outra preocupação do Estatuto encontra-se no artigo 42, que garante o
acesso à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as
demais pessoas.
O título III é destinado à acessibilidade, sendo um direito de toda pessoa com de-
ficiência viver com independência e exercer seus direitos de cidadania e de participação

3
“§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissio-
nal e interdisciplinar e considerará: I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II - os fatores
socioambientais, psicológicos e pessoais; III - a limitação no desempenho de atividades; e IV - a restrição de
participação” (BRASIL, 2015).
200 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI

social, conforme o artigo 53. É importante ressaltar que o conceito de acessibilidade está
previsto no artigo 3º do Estatuto, qual seja:

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:


I - Acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança
e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transpor-
tes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de
outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso
coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com
mobilidade reduzida; [...] (BRASIL, 2015).

A concretização da mobilidade ou acessibilidade é um problema no Brasil, visto que


menos de 6% (seis por cento) das cidades brasileiras possuem plano de mobilidade, reve-
lando um verdadeiro descaso com a inclusão das pessoas com deficiência (GLOBO NEWS,
2018). O Estatuto previu também uma série de crimes e infrações administrativas, como:
praticar discriminação, abandonar, apropriar-se de bens ou rendimentos de pessoa com de-
ficiência, dentre outros tipos penais dispostos entre o artigo 88 e 91.
Destaca-se que o Estatuto é um instrumento para exigir, com base no fundamento
da dignidade humana, que a sociedade trate seus diferentes de modo a assegurar a igual-
dade material e, assim, eliminar as barreiras que obstam a plena inclusão da pessoa com
deficiência.

3 Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas


Além de alterar alguns artigos do Código Civil, enfatizando a Dignidade Humana da
pessoa com deficiência, essa lei trouxe importantes reflexos na interpretação da teoria das
incapacidades, repercutindo no instituto Família, dando novos entendimentos para constitui-
ções como casamento, interdição e curatela. O Estatuto da Pessoa com Deficiência confirma
a proposta da inclusão. Isto é, retira a pessoa com deficiência do rol da incapacidade, desta-
cando-a, em primeiro lugar, como pessoa, e como tal, garantindo-lhe dignidade.
Em termos genéricos, observa-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência altera
integralmente o artigo 3° do Código Civil (BRASIL, 2002), revogando todos os seus incisos,
bem como dando nova redação para o seu caput que passou a vigorar com a seguinte reda-
ção “Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os
menores de 16 (dezesseis) anos”.
A alteração varreu qualquer afirmação sobre ação de interdição absoluta no sistema
brasileiro de direitos civis, observando que a partir daí, apenas os menores de 16 (dezes-
seis) anos passaram a ser absolutamente incapazes, ou seja, a incapacidade absoluta está
relacionada somente a uma questão cronológica (idade) e não mais às condições da pessoa
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS| 201

para realizar ou não determinado ato. Esta ideia além de ser inclusiva, caracteriza-se como
não discriminatória. Com a nova regra, toda e qualquer pessoa com deficiência, passou a ser
plenamente capaz perante o Direito Civil, consolidado ainda mais a ideia de inclusão social
e dignidade humana.
Igualmente importante, cita-se a alteração do artigo 4º do Código Civil, que trata das
pessoas relativamente incapazes, mais precisamente nos incisos II e III, tendo atualmente a
seguinte redação:

Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:


I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua
vontade;
IV - os pródigos.

O novo dispositivo legal não faz mais referência às pessoas com discernimento re-
duzido como relativamente incapazes, como eram anteriormente consideradas, mantendo
apenas nessa categoria os ébrios habituais e os viciados em tóxicos. O inciso III tirou da
condição de relativamente incapazes os excepcionais, sem desenvolvimento mental com-
pleto, como é o caso das pessoas com Síndrome de Down, passando a integrar o rol as
pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade e que
antes da alteração, eram consideradas absolutamente incapazes. Tais alterações contribuem
para a inclusão de pessoas que antes eram relegadas ou desconsideradas no contexto da
dignidade e de direitos.
O instituto do casamento também recebeu importantes modificações com a vigência
do Estatuto da Pessoa com Deficiência. O artigo 1.548 do Código Civil, em seu inciso I,
indicava que era nulo o casamento contraído pelo enfermo mental sem discernimento para
os atos da vida civil. Tal inciso foi revogado pela vigência da nova norma. Ou seja, a partir
do Estatuto da Pessoa com Deficiência, não se pode mais anular o casamento contraído
pelo enfermo mental, sem discernimento. O texto anterior sugeria o casamento para a pes-
soa incapaz como algo negativo. Porém, a nova regra institui o contrário, afirmando que o
casamento é via de regra salutar à pessoa que apresente alguma deficiência, visando assim,
reafirmar a tutela de sua dignidade e inclusão social.
O artigo 1.550 do Código Civil, que trata da nulidade relativa do casamento, também
sofreu alterações, passando a vigorar com o acréscimo de um novo parágrafo, e redação
como se segue: “Art. 1.550. É anulável o casamento: [...] § 2o A pessoa com deficiência
mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade
diretamente ou por meio de seu responsável ou curador”.
202 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI

Essa alteração complementa o inciso IV do referido artigo, que prevê a anulação do


casamento da pessoa incapaz de consentir ou manifestar de modo inequívoco o seu con-
sentimento. A possibilidade de a pessoa com deficiência mental ou intelectual poder casar-se
trouxe como consequência também alterações em dois incisos do artigo 1.557 do Código
Civil, que trata das possibilidades de anulação do casamento por erro essencial quanto à
pessoa do outro, nos seguintes termos:

Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: [...]
III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não carac-
terize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança,
capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência; (BRASIL,
2002).

O inciso III do artigo passou a ter uma ressalva, em que menciona que se considera
erro essencial quanto à pessoa do outro a ignorância, anterior ao casamento, de defeito
físico irrecuperável que não caracterize deficiência ou moléstia grave, e o seu inciso IV, que
tratava do erro essencial relativo à doença mental grave da pessoa, foi revogado.
A curatela também sofreu alterações pela Lei n. 13.146/2015, com vários artigos no
Código Civil alterados ou revogados. Nesse novo contexto, a curatela também foi instituída
como forma de assegurar o direito ao exercício da capacidade civil da pessoa com deficiên-
cia. Dispõe o artigo 84, caput e parágrafo 1º, da Lei n. 13.146/2015:

Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capa-
cidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1o Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, con-
forme a lei.

O artigo 1.767 do Código Civil, o primeiro a abordar a curatela, sofreu alterações pelo
Estatuto da Pessoa com Deficiência no que diz respeito ao rol de pessoas sujeitas a esse ins-
tituto, excluindo os que por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o discernimento
para os atos da vida civil, os deficientes mentais e os excepcionais sem completo desen-
volvimento mental, passando a vigorar nos seguintes termos: “Art. 1.767. Estão sujeitos a
curatela: I - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua
vontade; [...] III - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; [...] V - os pródigos”.
A inclusão do artigo 1.775-A no Código Civil, estabelece que na nomeação de cura-
dor para pessoa com deficiência o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais
de uma pessoa – o que até então não era possível. Nas alterações supracitadas, a curatela
passa a ser uma medida extraordinária, ficando limitada aos atos relacionados aos direitos
de natureza patrimonial e negocial, conforme determina o artigo 85, caput, sendo reforçada
essa ideia pelos parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 13.146/2015:
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS| 203

Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza
patrimonial e negocial.
§ 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao
matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2o A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões
e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.

A curatela como medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às


circunstâncias de cada caso, e que ainda deverá durar o menor tempo possível, também é
mencionada no parágrafo 3º do artigo 84, da mesma lei.
A Tomada de Decisão Apoiada (TDA), incluída no Código Civil pela Lei n. 13.146/2015,
por meio do artigo 1.783-A, foi a grande novidade no que tange aos institutos assistenciais,
descrito em seu caput:

Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com defi-
ciência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos
e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre
atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que
possa exercer sua capacidade.

A TDA também encontra fundamentação legal na Lei n. 13.146/2015, em seu artigo


84, parágrafo 2º, conforme segue: “Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o
direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais
pessoas. [...] § 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada
de decisão apoiada”.
Tal instituto traz uma opção mais ampla de representação para a pessoa com defi-
ciência, em que poderá optar por mais de um representante para os atos de sua vida civil,
tendo inclusive a possibilidade de escolher que atos especificamente cada apoiador fará a
representação, os limites de cada um e o prazo de vigência deste apoio.
Com o exposto, observa-se claramente que o Estatuto da Pessoa com Deficiência
objetiva a inclusão social da pessoa com deficiência, principalmente no que tange à igualda-
de e à não discriminação, tendo em seu escopo ainda, a promoção do exercício dos direitos
e das liberdades fundamentais pela pessoa com deficiência, em especial a capacidade civil,
assegurando a tutela do princípio da Dignidade Humana.
É exatamente nesse sentido o pacífico entendimento das alterações trazidas no Códi-
go Civil e também no próprio Estatuto, que em seu artigo 6º traz um rol de situações em que
a deficiência deixa de afetar a plena capacidade civil da pessoa, como pode ser verificado:
204 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI

Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - Casar-se e constituir união estável;
II - Exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - Exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações
adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - Conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - Exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - Exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou ado-
tando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Os artigos e comentários supracitados evidenciam como a pessoa com deficiência


começou a ter diversos direitos que até então eram limitados pela nossa legislação. A for-
te e marcante discriminação das pessoas com deficiência trazida por essas limitações foi
igualmente combatida com a nova lei, ao estabelecer em seu escopo também a proteção à
pessoa com deficiência, inclusive contra as discriminações legais, como se pode observar
no artigo 4º, caput e parágrafo 1º, da Lei n. 13.146/2015:

Art. 4o Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as
demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.
§ 1o Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção,
restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de
prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das li-
berdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações
razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.

Como deixa claro em seu artigo 1°, o Estatuto da Pessoa com Deficiência “é des-
tinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e
cidadania”. Paradigmas históricos da lei brasileira que categorizavam a deficiência segundo
critérios médicos, dividindo os grupos por “tipos de deficiência”, foram superados com a
edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Nesse contexto, percebe-se que o a nova lei, além de ser extremamente positiva,
objetiva claramente a inclusão social da pessoa com deficiência, impondo a igualdade, ba-
seando-se na promoção do exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pela pessoa
com deficiência.

Conclusão
O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) e sua relação com a
Dignidade Humana colocou em outras perspectivas não apenas a teoria das capacidades,
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS| 205

mas também a forma como nos relacionamos com o tema deficiência. Observa-se que a dig-
nidade da pessoa humana se manifesta na capacidade de pensar, criar, interpretar e interagir
com os outros e com o ambiente em que vive, possibilitando ao deficiente expressar sua
opinião e suas vontades perante a sociedade e o Estado, exercendo sua cidadania, obtendo
voz e sendo respeitado.
Claramente o Estatuto da Pessoa com Deficiência objetiva a inclusão social da pes-
soa com deficiência, principalmente no que tange à igualdade, tendo em seu escopo a pro-
moção dos direitos e liberdades fundamentais, em especial da capacidade civil, assegurando
a tutela da Dignidade Humana. Como dito, esse dispositivo legal tem impactado diretamente
a vida de cerca de 45 milhões de brasileiros com algum grau de deficiência, e indiretamente,
toda a sociedade, governos e instituições.
Em termos genéricos, observa-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência altera
integralmente o artigo 3° do Código Civil. Toda e qualquer pessoa com deficiência, passou a
ser plenamente capaz perante o Direito Civil, consolidado a ideia de inclusão social e digni-
dade humana. O instituto do casamento recebeu modificações. Não se pode mais anular o
casamento contraído pelo enfermo mental, sem discernimento.
A curatela foi instituída como forma de assegurar o direito ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência. O artigo 1.775-A no Código Civil estabelece que na nomea-
ção de curador o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa. A
curatela passa a ser uma medida extraordinária, ficando limitada aos atos relacionados aos
direitos de natureza patrimonial e negocial.
A Tomada de Decisão Apoiada, incluída no Código Civil pela Lei n. 13.146/2015, por
meio do artigo 1.783-A, foi a grande novidade no que tange aos institutos assistenciais. Tal
instituto traz uma nova opção de representação, mais ampla, em que poderá optar por mais
de um representante para os atos de sua vida civil, sendo possível a nomeação específica
para cada ato de representação.
Nesse contexto, verifica-se que o problema de pesquisa foi efetivamente respondido,
visto que o Estatuto da Pessoa com Deficiência e as consequentes alterações na legislação
brasileira contribuíram para a efetivação da Dignidade da Pessoa Humana. Quanto à meto-
dologia teve por base o método indutivo com a técnica de pesquisa bibliográfica, legislativa
e documental.

Referências
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 25 out.
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206 | CLOVIS DEMARCHI | ELAINE CRISTINA MAIESKI

BRASIL. Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Admi-
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planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9784.htm. Acesso em: 15 maio. 2019.

BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso
em: 15 maio. 2019.

BRASIL. Lei 13.146 de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiên-
cia (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06 jul. 2015. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 10 maio.
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FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da Pessoa
com Deficiência Comentado artigo por artigo. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

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Disponível em: https://g1.globo.com/globonews/noticia/2018/09/04/menos-de-6-das-cidades-brasilei-
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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 18. ed. São Paulo: Sa-
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RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição Fe-
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SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetória e metodologia. 2. ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2016.
PARTE III
ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA A CRIANÇA E O
ADOLESCENTE
CAPÍTULO XIV

TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA: A OMISSÃO DO


LEGISLADOR BRASILEIRO E A INVISIBILIDADE
DAS CRIANÇAS TRANS

ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA 1


PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO 2

Introdução
Os direitos fundamentais de crianças e adolescentes por muito tempo foram negli-
genciados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Foi apenas após a promulgação da Constitui-
ção Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, que esses sujeitos
passaram a ter seus direitos positivados. Apesar de garantidos em lei, ainda se percebe a
dificuldade da efetivação de direitos das crianças e dos adolescentes, em especial, quando
se trata ao direito à voz e à diversidade de gênero.
A elaboração da pesquisa acerca da transexualidade na infância se mostra conve-
niente em virtude de que, apesar de haver alguns pontuais avanços na garantia de direitos às
pessoas transgênero, pouco (ou quase nada) se vê em relação ao assunto quando abordado
na infância. Assim, ainda há muita dificuldade para esses sujeitos conseguirem ter uma vida
digna e livre de repressão social.
A população LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, transexuais, traves-
tis, intersexo e outras identidades) sofre diariamente com preconceito e violência. Conforme

1
Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Professor e pesquisador permanente do
Programa de Pós-Graduação em Direito e da graduação em Direito na disciplina de Direito da Criança e do Ado-
lescente na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado,
Política e Direito (Nuped/Unesc). E-mail: ismael@unesc.net.
2
Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/Unesc), com taxa pelo Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino
Superior – Prosuc/Capes e Unesc/Propex. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nu-
ped/Unesc). E-mail: pedrohhilario@unesc.net.
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 209

relatório anual divulgado pela ONG Grupo Gay da Bahia, em 2018 foram 420 mortes violen-
tas contra esse grupo social, sendo que, dessas 420 mortes, 164 foram de pessoas trans,
categoria considerada mais vulnerável a mortes violentas (GGB, 2019).
Pensando nisso, nasce a problemática: a atuação do poder legislativo e judiciário dá
suporte e garante a efetivação de direitos às crianças transexuais? Assim, o presente artigo
tem como objetivo geral analisar como os poderes legislativo e judiciário vêm tratando o
tema da transexualidade na infância. Para alcançar tal objetivo, o trabalho será dividido em
três tópicos, a saber: a teoria da proteção integral e o direito da criança à liberdade, respeito e
dignidade; diversidade de gênero como um direito fundamental; e a omissão do ordenamento
jurídico brasileiro na questão da transexualidade na infância.
O trabalho utilizou-se do método dedutivo e seu desenvolvimento se deu por meio de
técnicas de pesquisa documental-legal, doutrinas e julgados sobre o tema, com a realização
de revisão bibliográfica acerca dos direitos da criança e do adolescente e da questão de
gênero, bem como análise de como o legislativo e o judiciário brasileiro se posicionam no
tocante ao direito das crianças trans.

1 A teoria da proteção integral e o direito da criança à liberdade, respeito e


dignidade
Crianças e adolescentes não eram considerados sujeitos de direitos no Brasil até
meados dos anos 1980. Conforme Souza (2016), a história tanto jurídica quanto social de
crianças e adolescentes no Brasil tem profundas marcas produzidas pela violação de seus
direitos fundamentais.
Após anos de repressão e imersão em um regime totalitário militar, a promulgação
da Constituição Federal em 1988 trouxe um texto inovador e evoluído na questão de direitos
humanos, que rompeu com os antigos modelos jurídicos e iniciou um ordenamento que tenta
eliminar estigmas e respeitar as diferenças (GORCZEVSKI, 2009).
O preâmbulo da CRFB/883 dispõe sobre a instituição de um Estado Democrático4
que visa assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, a igualdade,

3
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia (sic) Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a seguran-
ça, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988).
4
“O Estado Democrático [...] significa que o Estado se rege por normas democráticas, com eleições livres,
periódicas e pelo povo, bem como o respeito pelas autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais é
proclamado, por exemplo, no caput do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil [...]” (MORAES,
2014, p. 6).
210 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO

dentre outros valores, para assegurar uma sociedade pluralista e sem preconceitos, que foi o
que o legislador buscou com a promulgação da Carta Magna (BRASIL, 1988).
Ao se estudar acerca dos direitos fundamentais de todo cidadão, é essencial desta-
car que vários grupos sociais possuem constantemente seus direitos reduzidos. Por conta
disso, Rubio (2014, p. 102) comenta que é de indispensável e imediata relevância analisar
a história dos direitos humanos conforme as “lutas, contextos e condições particulares de
cada grupo e forma de vida”. Diz, ainda, que não se deve condicionar essa análise à “[...]
visão geracional que apenas atende a reflexos normativos e institucionais vestidos por um
alfaiate que manifesta uma expressão de corpo humano, porém não é necessariamente a
única e nem serve para avançar na produção de humanidade” (RUBIO, 2014, p. 102).
Foi apenas a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que o Direito da
Criança e do Adolescente criou suas bases, “inter-relacionando os princípios e diretrizes da
teoria da proteção integral”, gerando, em consequência disso, “um reordenamento jurídico,
político e institucional sobre todos os planos, programas, projetos, ações e atitudes por parte
do Estado” (CUSTÓDIO, 2009, p. 26).
Com o fim do período ditatorial militar e com a promulgação da Constituição Federal
em 1988, passou-se a acolher, pelo menos no texto da lei, a criança e o adolescente de for-
ma social, olhando-os como sujeitos de direitos e concedendo-lhes garantias fundamentais.
Houve, então, a “transição da ‘doutrina da situação irregular do menor’ para a ‘teoria da
proteção integral’” (CUSTÓDIO, 2009, p. 24).
O novo olhar dado à criança e ao adolescente foi inserido ao texto constitucional de
1988, que reconhece uma série de direitos fundamentais a esses sujeitos de direitos e os
trata como sendo de “absoluta prioridade”:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao ado-


lescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liber-
dade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL,
1988).

Como pode ser analisado no dispositivo legal, o Estado, a família e a sociedade têm
a obrigação de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem diversos direitos, bem como
deixá-los livres de quaisquer tipos de violações e discriminações. Seguindo o exposto na
Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado em
1990 (Lei n. 8.069/1990). O ECA rompe com as ideias dispostas anteriormente nos Códigos
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 211

de Menores de 19275 e de 19796 e traz, em seu artigo 3º7, que “a criança e o adolescente
gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da pro-
teção integral de que trata esta Lei” (BRASIL, 1990).
Conforme Souza (2016, p. 65-66), a “proteção integral dos direitos da criança e do
adolescente salvaguarda os elementos necessários, pois condicionou a ruptura dos velhos
dogmas menoristas instituídos até fim do século XX”. Ficaram, assim, estabelecidas normas
que tentam garantir à criança e ao adolescente direitos, deveres, proteção e, principalmente,
dignidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, portanto, foi criado para implementar direi-
tos à criança e ao adolescente. Dentre as principais ações do Estatuto está a implementação
da proteção integral a esses novos sujeitos de direitos. A CRFB/88, junto com o ECA, foi de
suma importância para a evolução do tema. Firmo (1999, p. 32) aponta que:

[...] a Constituição Federal e o Estatuto geraram um novo posicionamento do Estado,


da família e da sociedade com relação à criança e ao adolescente, reconhecendo-
-os como sujeitos de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
garantindo-lhes a proteção integral, a qual incumbiu, de forma concorrente, àqueles
entes: estadual, familiar e social [...] garantindo às crianças e aos adolescentes, e
até mesmo ao nascituro, o direito “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária”.

Conforme Pereira (2008, p. 137), “a iniciativa constitucional de declarar, dentre os


Direitos Fundamentais da população infanto-juvenil, os valores da liberdade, do respeito e da
dignidade, representou avanço significativo em nosso ordenamento jurídico”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente traz o direito à liberdade, ao respeito e à
dignidade em seu Capítulo II, artigos 15 e seguintes. Para o legislador, “a criança e o adoles-
cente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo
de desenvolvimento e como sujeitos de direitos” (BRASIL, 1990). A liberdade não deve se
resumir apenas ao direito de ir e vir. Não se resume a uma “liberdade física”.

5
Decreto n. 17.943-A, de 1927: “Consolida as leis de assistencia e protecção a menores” (BRASIL, 1927, sic).
6
Lei n. 6.697, de 1979: “Institui o Código de Menores” (BRASIL, 1979).
7
Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem
prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único.  Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas
as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor,
religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica,
ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comu-
nidade em que vivem (BRASIL, 1990).
212 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO

É muito mais. É a garantia de fazer o que quiser, se o fazer não afronta a lei, deixar
de fazer o que não quiser fazer, se o fazer não for imposto pela lei, expressar como
quiser o seu pensamento e as suas convicções, professar a sua crença publicamente,
seja religiosa, filosófica ou política, divulgar as suas criações de espírito no campo da
literatura, das artes, da ciência e tecnologia, nos meios de comunicação (PEREIRA,
2008, p. 153).

O direito ao respeito é assegurado à criança e ao adolescente no artigo 17 do Estatu-


to, e “consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do ado-
lescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores,
ideias e crenças, dos espaços e objeto pessoais” (BRASIL, 1990). Já em relação ao direito à
dignidade, que está incluído no ECA em seu artigo 188, explana Pereira (2008, p. 166) que:

[a]o incluir no elenco de Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente o direi-


to à dignidade, procurou o legislador estatutário ressaltar que a prioridade absoluta
prevista no art. 4º deve compreender procedimentos indispensáveis a proporcionar
à população infanto-juvenil vida digna que lhe permitirá ser no futuro um adulto não
marginalizado, nem portador de carências.

Seguindo esse pensamento, entende-se que crianças e adolescentes devem ter seus
direitos civis, humanos e sociais assegurados como pessoas humanas que se encontram
em fase de desenvolvimento (CUSTÓDIO, 2009). Vê-se, assim, que a liberdade, o respeito
e a dignidade da criança e do adolescente são essenciais para a garantia da efetividade da
proteção integral. Ao respeitar e consolidar esses direitos, o Estado e os cidadãos estão
indo ao encontro de uma sociedade mais harmônica, justa, livre de preconceito, opressão e
marginalização.
Apesar de positivados, não há como afirmar que os direitos fundamentais de crian-
ças e adolescentes estão consolidados e que há observância ao que dita a teoria da proteção
integral.

Uma constituição ou um tratado internacional não criam direitos humanos. Admitir


que o direito cria direito significa cair na falácia do positivismo mais retrógrado que
não sai de seu próprio círculo vicioso. Daí que, para nós, o problema não é de como
um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano”
consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica
para sua melhor implantação e efetividade (FLORES, 2009, p. 28).

8
“Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer trata-
mento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (BRASIL, 1990).
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 213

Ou seja, não se pode cair no comodismo de imaginar que, pelo fato de a Constituição
Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente trazerem dispositivos que versem
sobre a prioridade absoluta e a proteção integral, os direitos já estejam garantidos e não é
preciso reivindicá-los. A família, Estado e sociedade têm o dever de garantir a esses sujeitos
de direitos toda proteção necessária.

2 Diversidade de gênero como um direito fundamental


Inicialmente, para se conseguir gerar o debate em relação à transexualidade na in-
fância, é indispensável pontuar a diferença entre os termos “identidade de gênero” e “sexo
biológico”.

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino,


a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça
intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequen-
temente, não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente
fixo quanto o sexo. Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela
distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo (BUTLER,
2016, p. 25-26).

Partindo dessa ideia, tem-se por sexo biológico aquele que o corpo sexuado apre-
senta ao nascer. Barata (2009, p. 73-74), ao explicar o conceito de sexo, define-o como “um
marcador de diferenças biológicas entre indivíduos da espécie humana, relacionadas com
aspectos anatômicos e fisiológicos do aparelho reprodutivo e eventualmente com caracterís-
ticas genéticas vinculadas aos cromossomos x ou y”.
Inicialmente, os debates envolvendo o gênero limitavam-se às questões biológicas
e apenas nessas questões estava baseado. Tentava-se explicar e justificar diferenças físicas
e comportamentais existentes entre mulheres e homens, atendo-se à justificativa biológica.
Além disso, buscava-se encontrar explicação que comprovasse que cada corpo sexuado
possuía lugares sociais e destinos específicos (LOURO, 2003).
Buscando explicar o conceito social de como o gênero é construído, indo além da
mera diferenciação com o sexo, Beauvoir (1980, p. 9) apresentou o célebre pensamento de
que “[n]inguém nasce mulher: torna-se mulher”. Para além dessa frase, a autora faz a análi-
se de que “é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho
e o castrado que qualificam de feminino”.
Dessa forma, gênero e sexo se distinguem com o entendimento de que este é um
fator biológico, enquanto aquele é construído social e culturalmente. Butler (2016, p. 26)
segue sua discussão sobre distinção sexo/gênero esclarecendo que a ideia de que o gênero
decorre do sexo não é uma lógica que deve ser considerada regra nem natural. Logo:
214 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO

A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa


relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele res-
trito. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente indepen-
dente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência
de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo
feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como
um feminino (BUTLER, 2016, p. 26).

A construção do gênero no âmbito social e cultural é compreendida quando se exa-


mina o comportamento que é imposto a crianças e adolescentes. Isso é observado por
Beauvoir (1980, p. 9) da seguinte forma: “[e]ntre meninas e meninos, o corpo é, primei-
ramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do
mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo”.
Em análise ao ambiente familiar onde a criança e o adolescente são criados e se
desenvolvem, percebe-se a diferenciação de tratamento dado às crianças do sexo masculi-
no em relação ao tratamento dado às crianças do sexo feminino. A estas, dá-se o máximo
de carinhos e carícias, toleram-se suas lágrimas e manhas, aceitam-se seus trejeitos, a
aquelas, são negados os carinhos, é ensinado que homem não pode chorar ou demonstrar
emoções (BEAUVOIR, 1980). Crianças e adolescentes, normalmente, desenvolvem-se em
meio a uma cultura heteronormativa (em que a heterossexualidade é o padrão de expressão
e comportamento), onde são incentivadas a performar masculinidade, se meninos, ou fe-
minilidade, se meninas. Beauvoir (1980, p. 21) explica que “a influência da educação e do
ambiente é aqui imensa”.
Apesar de toda a família e a sociedade colocar sobre o corpo sexuado da criança
suas expectativas em relação ao gênero e ao comportamento, esse sujeito pode não se
identificar com o gênero imposto ao seu nascimento. É necessário, portanto, o entendimento
sobre a identidade de gênero.
A identidade de gênero é “a profundamente sentida experiência interna e individual
do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento”,
incluindo, aí, a percepção individual de cada pessoa em relação ao seu próprio corpo (PRIN-
CÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2006).
Nesse sentido, é importante o esclarecimento de que “sexo é biológico, gênero é
social” (JESUS, 2012, p. 6). Há pessoas que nasceram um útero e que se identificam e se
expressam como homem, pois são homens; assim como há pessoas que nasceram com
próstata e se identificam e se expressam como mulheres, pois são mulheres. Conforme
Jesus (2012, p. 6), “o gênero vai além do sexo: O que importa, na definição do que é ser ho-
mem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a auto-percepção
(sic) e a forma como a pessoa se expressa socialmente”.
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 215

As pessoas que foram designadas ao nascimento como pertencentes a um gênero


o qual não se identificam são conhecidas como transgêneros, termo que engloba travestis,
transexuais e pessoas não-binárias, que não se identificam com o padrão binário – homem/
mulher – de gênero. Indivíduos que se identificam com o gênero imposto ao nascimento são
chamadas cisgêneros. A transexualidade não é doença: nem mental, tampouco contagiosa.
Também não se trata de perversão. O autorreconhecimento como pessoa trans é uma ques-
tão de identidade e pode acontecer em qualquer fase da vida, desde a infância até a velhice,
haja vista muitas pessoas trans passarem uma vida toda reprimidas por um sistema que
privilegia apenas pessoas cisgênero (JESUS, 2012).
Assim, uma pessoa que se identifica como mulher é uma mulher. Um indivíduo se
identifica como homem é um homem. Genitália não define gênero nem comportamento. É
incoerente e cruel definir uma mulher trans ou travesti como homem apenas pelo fato de ter
nascido com um pênis (e vice-versa), haja vista o gênero, como exaustivamente explicado,
não ter relação lógica com o sexo biológico.
A rotulação cisnormativa imposta pela sociedade conservadora que não compreende
as diversas formas com que as pessoas expressam suas identidades traz transtornos para
cada pessoa que sofre discriminação e violência apenas por ser ou aparentar ser transgêne-
ro. Por conta do preconceito, muitas pessoas LGBTI+ acabam morrendo todos os dias no
Brasil e no mundo pelo simples fato de não se adequarem ao padrão imposto pela sociedade
retrógrada.

3 A transexualidade na infância: a omissão do ordenamento jurídico


brasileiro frente a uma realidade social
O reconhecimento da identidade de gênero de cada indivíduo não ocorre apenas na
fase adulta. Muito pelo contrário, a epifania, ou seja, o momento em que a pessoa transgê-
nero consegue compreender que sua identidade de gênero não é a mesma àquela atribuída
ao seu nascimento, ocorre quando o indivíduo possui, em média, 8 anos de idade (KENNEDY,
2010). 
Conforme pesquisa realizada por Kennedy (2010, p. 25) na Inglaterra, “a percenta-
gem de pessoas transgênero que perceberam a variação de gênero na idade de 18 anos, ou
mais tarde, é inferior a 4%, com 76% dos participantes estarem cientes de que eram varian-
tes de gênero ou transgêneros antes de saírem da escola primária”.
Analisando-se dados brasileiros, percebe-se que estes pouco diferem das informa-
ções colhidas por Kennedy. Na pesquisa realizada no Brasil pela doutora em Psicologia Ja-
queline Gomes de Jesus, constatou-se que:
216 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO

Com relação à lembrança de quantos anos tinham quando, pela primeira vez, teriam
sentido que a sua identidade de gênero estava em desacordo com a designada social-
mente, configurando-se assim a idade da epifania, os respondentes indicaram uma
idade média entre 6 e 7 anos (média igual a 6,75), com moda (valor mais frequente)
de 5 anos, idade mínima de 4 e máxima de 12 (JESUS, 2013, p. 5).

Não há como argumentar, portanto, que é apenas na fase da adolescência e adulta


que o tema deve ser discutido. Existem crianças transgênero e elas não podem viver à som-
bra da invisibilidade. Pensando nisso, qual suporte legal o ordenamento jurídico brasileiro dá
a essas crianças?
Apesar de a Constituição Federal de 1988 tentar regular e ordenar uma sociedade
pautada na igualdade de todos e livre de quaisquer tipos de preconceitos e discriminações,
não há, em seu texto, regras específicas acerca da diversidade sexual e de gênero (BARRO-
SO, 2010).
Em relação à discriminação da população LGBTI+, Silva (2011, p. 224) expõe que
se buscou incorporar à CRFB/88 uma norma que a vedasse expressamente, mas não foi
possível, pois “não se encontrou uma expressão nítida e devidamente definida que não ge-
rasse extrapolações inconvenientes”. Segundo o autor, houve receio do legislador em incluir
um termo mais específico em relação a essas desigualdades, pois poderia ser prejudicial a
terceiros.
Barroso (2010, p. 672) ressalta que todos “a despeito de sua origem e de suas
características pessoais, têm o direito de [...] serem livres e iguais, de desenvolverem a ple-
nitude de sua personalidade e de estabelecerem relações pessoais com um regime jurídico
definido e justo”. Por sua vez, Pinho (2005, p. 55) prontamente diz que “as diferenças físicas
existem, mas que elas não podem ser causa para a opressão, para a discriminação e para
a dominação”.
Uma das poucas conquistas jurídicas das pessoas trans ocorreu em 2018, quando
a Corte Constitucional decidiu, no julgamento da ADI n. 4.275, que transgêneros têm o di-
reito de alterar seu registro civil independente de cirurgia de redesignação sexual, tratamento
hormonal ou autorização judicial, podendo a alteração ser realizada diretamente no cartório
competente (BRASIL, 2018). Essa decisão se mostrou de suma importância pois visa à pro-
teção da dignidade das pessoas transgênero, fazendo com que seu registro civil contenha o
nome e o sexo com o qual se identificam.
Outro avanço nessa temática ocorreu também no ano de 2018, com a retirada da
transexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde
(CID). Dessa forma, a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de considerar a transe-
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 217

xualidade um transtorno mental, tentando diminuir a estigmatização sofrida pelas pessoas


transgênero e buscando a garantia do direito ao acesso à saúde.
Conforme o portal do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a CID agora trata o
assunto como “incongruência de gênero”, integrando a categoria de condições relacionadas
à saúde sexual (CFP, 2019). 
Apesar de alguns pontuais avanços no tratamento dado às pessoas transgênero,
pouco (ou quase nada) se vê em relação ao assunto quando abordado na infância. A ADI
n. 4.275, que concedeu às pessoas transexuais o direito à mudança de nome e sexo no
registro civil, não contemplou crianças e adolescentes que se identificam com o gênero
oposto ao imputado no nascimento. Assim, ainda há muita dificuldade para esses sujeitos
conseguirem a retificação jurídica de sua identidade.
Atualmente, há notícias de duas crianças que conseguiram na justiça autorização
para mudança de nome e sexo no registro civil. A primeira ocorreu em 2017, em uma ação
judicial que tramitou na comarca de Sorriso, em Mato Grosso. A Defensoria Pública do Es-
tado de Mato Grosso, na defesa dos interesses da criança, ingressou com a ação, que teve
julgamento procedente. O juiz da causa, Anderson Candiotto, pontuou, na fundamentação
de sua decisão, que ficou clara a preocupação dos pais em atender ao melhor interesse da
criança, haja vista a busca desde cedo pelo acompanhamento psicológico e psiquiátrico no
Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Instituto de
Psiquiatria, do Hospital das Clínicas de São Paulo (VEJA SÃO PAULO, 2017)9.
Mais recentemente, no ano de 2019, houve nova decisão judicial semelhante, dessa
vez na comarca de Paraty, no estado do Rio de Janeiro. Também representada pela Defenso-
ria Pública do Estado, a criança obteve autorização da justiça para retificar seu nome civil e
gênero. Conforme a Defensora Pública responsável pelo caso, Elisa Costa de Oliveira,

[a] decisão garante o respeito à dignidade da criança, que se via submetida a uma
série de constrangimentos e situações vexatórias em seu dia-a-dia e em razão da
discrepância entre seu gênero biológico e o gênero com o qual se identifica desde os
5 anos. Além disso, é importante porque serve de precedente para casos análogos.
[...]. Essa alteração garantirá direitos preconizados no Estatuto da Criança e do Ado-
lescente, no sentido de que a criança tenha assegurado o seu melhor bem-estar em
relação aos aspectos biológicos, psicológicos e sociais (DPRJ, 2019).

Vê-se que, visando ao princípio do melhor interesse da criança, o poder judiciário


do Mato Grosso e o do Rio de Janeiro concederam decisões favoráveis a esses sujeitos que

9
Informação extraída do portal eletrônico de notícias Veja São Paulo, haja vista a ação judicial correr em segredo
de justiça e os autores não terem tido acesso à decisão judicial até a data de submissão deste trabalho (ju-
lho/2019).
218 | ISMAEL FRANCISCO DE SOUZA | PEDRO HENRIQUE CARDOSO HILÁRIO

parecem ainda não ter direitos. Graças ao trabalho da Defensoria Pública, essas crianças
conseguiram conquistar um pouco de dignidade e respeito perante a sociedade. Entretanto,
diferentemente desses dois casos, há muitas crianças e adolescentes que passam pela mes-
ma situação e não tem nem o acolhimento da família, tampouco o acesso à justiça.
O poder judiciário, nos dois casos supramencionados, atuou na garantia dos direitos
fundamentais das crianças, haja vista a ausência de posicionamento do legislador brasileiro
no tocante ao tema. Quantas outras ações terão de ser ingressadas para assegurar o melhor
interesse da criança? Quantas crianças terão de sofrer para que haja uma postura ativa que
assegure a dignidade desses sujeitos de direitos? Ainda há muito a se fazer para garantir a
efetivação da proteção integral à criança e ao adolescente.

Conclusão
Foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que crianças e adolescentes
passaram a ser tratados pelo legislador como sujeitos possuidores de direitos fundamentais
os quais todo ser humano possui, sendo-lhes assegurado o direito à liberdade, ao respeito e
à dignidade, a fim de os colocar livres de toda forma de opressão e discriminação. Seguido
a isso, foi publicado, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal que trouxe
a ideia da teoria da proteção integral à criança e ao adolescente, ou seja, criou dispositivos
legais que visam à garantia dos direitos fundamentais a esses sujeitos.
Antes de adentrar ao tema da transexualidade na infância, buscou-se elucidar a dis-
tinção entre os termos “identidade de gênero” e “sexo biológico”. Enquanto este é um fator
biológico, aquele se traduz numa construção social, cultural e identitária. As pessoas que se
identificam com um gênero diverso de seu sexo biológico são denominadas transgêneros,
termo que engloba travestis e transexuais; já as que se identificam com o mesmo gênero
atribuído ao nascimento são chamadas cisgêneros.
O descobrimento da identidade de gênero acontece, normalmente, na infância, entre
os 6 e 8 anos de idade. A partir dessa informação, é essencial voltar a atenção a essas
crianças que ainda são tratadas como seres invisíveis, sem voz, e que muitas vezes são
reprimidas ao tentarem expressar sua própria identidade.
Há apenas dois casos no Brasil de que se tem conhecimento de que crianças tran-
sexuais, representadas por seus pais e sob assistência jurídica da Defensoria Pública, in-
gressaram com ações judiciais e conseguiram a retificação do nome e sexo no registro civil.
Os magistrados, ao proferirem suas decisões, pautaram-se no princípio do melhor interesse
da criança para garantir às postulantes o seu melhor bem-estar no tocante aos aspectos
biológicos, psicológicos e sociais.
TRANSEXUALIDADE NA INFÂNCIA| 219

Ainda que de forma tímida, constatou-se que nos dois casos houve a preocupação
do judiciário em dar voz e garantir a devida proteção aos direitos e interesses da criança.
Porém, ainda se vê a inércia (leia-se: a resistência) do legislativo conservador brasileiro em
tratar essa questão. Não é novidade que os nobres deputados federais e senadores se recu-
sam a estudar temas relacionados a gênero e orientação sexual. Os pensamentos arcaicos e
reacionários do poder legislativo federal tiram a voz daqueles que já não são ouvidos, deixam
à escuridão aqueles que já são invisíveis e violam os direitos fundamentais de quem mais
tem direitos violados.

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CAPÍTULO XV

O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL: UMA


ANÁLISE DA PROTEÇÃO JURÍDICA E DAS CAUSAS DA
EXPLORAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO 1


FERNANDA MARTINS RAMOS 2

Introdução
O presente artigo analisa o trabalho infantil doméstico, mais precisamente o con-
texto, as causas e a proteção jurídica no marco teórico da proteção integral de crianças e
adolescente. A pesquisa sobre este tema é de extrema importância, visto que é com seu
estudo que se amplia a área de conhecimento discorrendo sobre a proteção jurídica das
crianças e dos adolescentes, para assim garantir seus direitos e assegurar o aprimoramento
das políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil.
Neste trabalho se busca compreender quais são as causas para o trabalho infantil
doméstico tendo por base o marco teórico da proteção integral. Considerando a comple-
xidade e a multidimensionalidade do tema, analisa-se as questões econômicas, culturais,
educacionais e políticas relacionadas ao trabalho infantil doméstico no Brasil.
A pesquisa utiliza o método de abordagem dedutivo, ou seja, analisa questões gerais
fundamentais para então compreender o tema e suas especificidades, permitindo um estudo

1
Pós-doutor pela Universidade de Sevilha/Espanha (US). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Professor e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (PPGD/Unisc). Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos
Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e Líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social
do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul
(Unisc). E-mail: andrecustodio@unisc.br.
2
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, e em Direito da
União Europeia na Universidade do Minho em Braga-Portugal, integrante do Grupo de Estudos em Direitos
Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do
PPPG/UNISC. Email: f.mramos@yahoo.com.br.
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 223

de maneira explicativa sobre o trabalho infantil doméstico, contribuindo para as políticas pú-
blicas de crianças e adolescentes vítimas de tais práticas. Como técnicas de pesquisa foram
utilizadas a documentação indireta bibliográfica e a documental.
O trabalho infantil doméstico é uma prática de exploração de mão de obra barata e
de difícil fiscalização, pois acontece dentro da própria casa das pessoas ou na de terceiros,
evidenciando aspectos resultantes das discriminações geracionais e de gênero decorrentes
das desigualdades econômicas e sociais.

1 Contexto do trabalho infantil


A Constituição Federal dispõe a proibição do trabalho infantil em seu artigo 7º, inciso
XXXIII a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de
qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de
quatorze anos” (BRASIL, 1988). Dessa forma, podemos afirmar que trabalho infantil é toda
a forma de trabalho realizada abaixo dos limites de idade mínima conferido pelas normas
brasileiras.
O trabalho infantil doméstico é considerado no contexto como o mais abrangente da
exploração do trabalho infantil, adicionando ainda a condição de gênero, visto que coloca a
criança e o adolescente em uma terrível situação de exploração não sendo evidente para a
vítima, pois restringe o campo da sua percepção, tornando assim esquecido ou até mesmo
invisível, já que é realizado no espaço privado, ou seja, dentro de sua própria casa, o que
oculta a exploração (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009).

Na década de 90, o assunto ganhou visibilidade no cenário nacional e na mídia. Entrou


definitivamente na agenda de problemas brasileiros e na pauta de jornais e revistas.
Uma face do problema, no entanto, continuou invisível até recentemente: o Trabalho
Infantil Doméstico. Apesar de ser uma velha prática no Brasil, parte da nossa herança
escravocrata, ele era até pouco tempo ignorado pela maioria das pesquisas e pela
própria imprensa. Em 2002, graças a estudos feitos por entidades da sociedade civil
e pela Organização Internacional do Trabalho, virou notícia. Tirá-lo do anonimato já é
um avanço, mas, a exemplo do que acontece com a cobertura do Trabalho Infantil em
geral, ainda é necessário ampliar o foco das matérias, discutido causas, consequên-
cias e possíveis soluções (PERES, 2003, p. 14).

Dados extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005


mostram que no Brasil, apesar de já ter tido um declínio acentuado, na metade da década de
1990, ainda existem quase três milhões de crianças e jovens de cinco a 15 anos trabalhando
ou 7,8% do total nessa faixa etária, sendo que no ano de 1992 havia quase cinco milhões e
meio de crianças trabalhando, ou seja, isso corresponde a 14,6% da população entre cinco
224 | ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO | FERNANDA MARTINS RAMOS

e 15 anos (IBGE, 2015). Desta vista sabe-se que exceto no emprego doméstico, em que
predominam as mulheres, a proporção de meninos trabalhando é maior sendo a porcenta-
gem de trabalho infantil nas áreas rurais mais elevada do que nas áreas urbanas do Brasil
(KASSOUF, 2007).

Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apontam que o trabalho


infantil é predominantemente masculino, mas, segundo os mesmos dados, o número
do trabalho infantil feminino não é pouco significativo. Em 2001, o trabalho infantil
envolvia 4.141.676 meninos e 2.477.152 meninas. Já em 2004, foram observados
3.981.129 meninos e 2.240.175 meninas trabalhadoras. Além disso, a invisibilidade
do trabalho doméstico pode subestimar o trabalho feminino, muitas vezes considera-
do “apenas” como ajuda (CUSTÓDIO, 2006, p. 87).

Tendo como base dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,


2015), mais de 90% das crianças que trabalham como domésticas no Brasil são meninas,
sendo essa uma das razões que levaram a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no ano de 2001 a elegerem o trabalho
infanto doméstico como prioridade. Tal pesquisa também conclui que as meninas emprega-
das domésticas obtêm maior atraso escolar por causa da incompatibilidade entre trabalho
e a escolaridade. Dessas crianças e adolescentes, dois terços residem no emprego e dessa
forma não frequentam a escola, sendo que a maioria dessas meninas exerce a função de
babá (CORTEZ, 2018).

Dados do Relatório Mundial sobre Trabalho Infantil 2015, elaborado pela OIT, indicam
que 168 milhões de crianças realizam trabalho infantil no mundo. Entre elas, 120
milhões tem idades entre 5 e 14 anos e cerca de 5 milhões vivem em condições
análogas à escravidão. Mais da metade (85 milhões) está envolvida com trabalhos
perigosos. Segundo a OIT, entre 20% e 30% das crianças em países de baixa renda
abandonam a escola e entram no mercado de trabalho até os 15 anos (CORTEZ,
2018, p. 68).

As informações encontradas sobre trabalho infantil doméstico não devem ser vis-
tos apenas como resultados “do acirramento da exclusão econômica e empobrecimento da
população, mas também indicam uma continuidade da dinâmica histórica consolidada por
práticas jurídicas e institucionais” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 75, pois sempre se é
transferido para as crianças e os adolescentes a responsabilidade pelo seu sustento e tam-
bém de sua família. Afinal, embora a exclusão econômica seja o principal fator para a causa
do trabalho infantil doméstico, este não é o único “visto existirem outros elementos históri-
cos claros que contribuíram para sua normalização, ampliando a capacidade de resistência
e consequentemente a reprodução do fenômeno” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 75).
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 225

Atualmente, a sociedade tem uma visão mais consensual de que o lugar da criança
é na escola, tendo sido criado por o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que
envolve o conjunto de ações intersetoriais da política de prevenção e erradicação do trabalho
infantil, fortalecendo os “espaços atuantes na defesa da criança e do adolescente, a exemplo
dos Conselhos de Direitos e Tutelares e do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil” (PERES, 2003, p. 16). Porém, ainda há muitas crianças e adolescentes que
continuam a trabalhar no país, e que por isso não conseguem estudar, sendo que no futuro
não conseguirão melhores empregos pois não estudaram “reproduzindo o ciclo vicioso da
miséria” (PERES, 2003, p. 16).

2 Proteção jurídica nacional e internacional contra o trabalho infantil


No que se refere à proteção da criança e do adolescente, a legislação brasileira é uma
das mais avançadas que existem, pois está de acordo ainda com legislações internacionais,
como a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (1989),
que trata sobre a proteção integral e a prioridade aos direitos da infância, a Convenção 138
e a Recomendação 146 da Organização Internacional do Trabalho, que estipulam a idade
mínima para admissão ao trabalho e a Convenção 182 sobre as piores formas de trabalho
infantil (PERES, 2003).
Ratificada pelo Brasil em 15 de fevereiro de 2002, a Convenção 138 da Organização
Internacional do Trabalho estabeleceu uma idade mínima para a admissão ao trabalho, sendo
ela de 15 anos, porém o Brasil adotou a idade de 16 anos, conforme o ordenamento jurídico
interno. Além da idade mínima obrigatória, tal Convenção estipula que deve ser adotada uma
política nacional de combate ao trabalho infantil no país, sendo então criado o Programa
de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) “compreendido como um programa do Estado
brasileiro com ações intersetoriais específicas em cada uma das áreas de políticas públicas
básicas” (SOUZA; LEME, 2014, p. 43).
Junto com a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho veio a Reco-
mendação 146, que além de também estabelecer uma idade mínima para a admissão ao tra-
balho, tem como função jurídica indicar e sugerir métodos para que as normas encontradas
na Convenção sejam devidamente inseridas nos países-membros.
No Brasil, foi assinada em janeiro de 2000 a Convenção 182, sobre proibição das
piores formas de trabalho infantil e a ação imediata para sua eliminação, esta estabeleceu
estratégias para a erradicação de todas as formas de escravidão de crianças e adolescentes,
de exploração sexual comercial e outras atividades pornográficas, de “emprego no tráfico
de drogas, servidão por dívidas, recrutamento armado e todas as atividades que submetes-
sem crianças a situações humilhantes atentando contra sua saúde, moralidade e segurança”
(CORTEZ, 2018, p. 53).
226 | ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO | FERNANDA MARTINS RAMOS

Segundo a supramencionada Convenção as piores formas de trabalho infantil são:

a) Todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e


tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório,
inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em
conflitos armados; Utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição,
produção de pornografia ou atuações pornográficas; Utilização, recrutamento e oferta
de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entor-
pecentes conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; trabalhos que,
por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são suscetíveis de
prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança (ORGANIZAÇÂO INTERNACIO-
NAL DO TRABALHO, 1999, n.p.).

Por fim, para garantir a efetividade das políticas públicas de enfrentamento ao tra-
balho infantil foi editada a Recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT). Esta prevê “ações especificas para o enfrentamento do trabalho perigoso e medidas
de aplicação da Convenção 182”, como integrar e sistematizar dados sobre o trabalho infantil
e monitorar a aplicação das normas da referida Convenção” (SOUZA; LEME, 2014, p. 47).
Essas Convenções, que foram ratificadas pelo Brasil, criaram um “compromisso
com a adaptação das leis nacionais e do desenvolvimento de programas de ação específicos
e imediatos” (PERES, 2003, p. 26). No Brasil, desde o ano de 1988, temos a proibição do
trabalho infantil pela Constituição Federal em seu artigo 7º, XXXIII, que elucidava a proibição
de trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres aos menores de 18 anos e aos menores de
14 anos qualquer outro trabalho que não seja na condição de aprendiz.
Na data de 13 de julho de 1990 foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que
incorporou a proteção integral desses sujeitos já encontrada no artigo 227 da Constituição
de Federal de 1988, a qual assegurou a todas as crianças a aos adolescentes seus direitos
fundamentais.

A legislação internacional foi o esteio para que, depois de uma longa discussão com
a participação da sociedade civil organizada, o Congresso Nacional aprovasse a Lei
8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ainda
que relativamente pouco conhecido em profundidade pela sociedade brasileira, o ECA,
com seus 267 artigos, é o principal instrumento legal que dispõe sobre a proteção in-
tegral à criança e ao adolescente. O trabalho infanto-juvenil também é regulamentado
pela Constituição Federal (Título VIII, Capítulo VII, artigo 227) e pela Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT (Capítulo IV, artigos 402 a 441) (PERES, 2003, p. 26).

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi elaborado com base na doutrina da prote-


ção integral que “dispõe sobre as relações jurídicas da criança e adolescente com a família,
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 227

a sociedade e o Poder Público”, conferindo obrigações para prevenir e cumprir as leis e os


deveres que asseguram os direitos, “protegendo todo o universo de crianças e adolescentes
que passam a ser sujeitos de direitos” (STEPHAN, 2002, p. 88).
Porém, assim como a Constituição Federal, o artigo 60 do Estatuto da Criança e do
Adolescente também teve que ser alterado pela Emenda Constitucional n. 20, promulgada
em 15 de dezembro de 1998, proibindo qualquer trabalho por menores de dezesseis anos
salvo na condição de aprendiz e vedando qualquer tipo de trabalho antes dos quatorze anos
de idade.
É disciplinado no Capítulo V entre os artigos 60 a 69 do ECA a proteção constitu-
cional contra a exploração do trabalho infantil, “destinado ao direito à profissionalização e à
proteção no trabalho” (CUSTÓDIO, 2006, p. 154).

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de junho de 1990, disciplina


as normas de proteção contra a exploração do trabalho infantil entre os artigos 60 e
69, possibilitando a definição precisa do conceito do trabalho infantil a partir dos limi-
tes de idade mínima para o trabalho. Assim, considera-se como trabalho infantil todos
os trabalhos realizados por crianças e adolescentes antes dos limites de idade mínima
para o trabalho, que neste caso evolve: a) todos os trabalhos perigosos, insalubres,
penosos, prejudiciais à moralidade e realizados em horários e locais que prejudiquem
a frequência à escola antes dos dezoitos anos de idade; b) qualquer trabalho antes
dos dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz; c) qualquer trabalho,
incluída a condição de aprendizagem, antes dos quatorze anos de idade (SOUZA;
LEME, 2014, p. 43).

Assim como já disposto na Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adoles-


cente reitera a proibição no Brasil de que crianças e adolescentes exerçam trabalhos consi-
derados insalubres ou perigosos, sendo tal proibição reiterada pela Estatuto da Criança e do
Adolescente, mais precisamente em seu artigo 67, inciso II, acrescentando ainda a vedação
do trabalho penoso (MINHARRO, 2003).
O artigo 67, I a IV também vedam qualquer trabalho que prejudique o desenvolvi-
mento físico, psíquico e moral do adolescente, por esse motivo também é vedado o trabalho
noturno, ou seja aquele entre as “vinte e duas horas de um dia até as cinco horas do outro
dia” (STEPHAN, 2002, p. 97). Dessa forma, pode-se ver que o Estatuto da Criança e do
Adolescente, “além de amparar a proteção constitucional contra a exploração do trabalho
infantil doméstico, amplia as possibilidades e limites de proteção à criança e ao adolescente”
(CUSTÓDIO, 2006, p. 156).
228 | ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO | FERNANDA MARTINS RAMOS

3 Causas do trabalho infantil doméstico


O trabalho doméstico é considerado dentro do trabalho infantil como o mais amplo,
sendo assim, é possível entendê-lo a partir da estruturação dos elementos do trabalho in-
fantil, “acrescentado de suas particularidades, tais com as condições de gênero, do espaço
doméstico e, ainda, por ocorrer supostamente desvinculado do sistema econômico” (CUS-
TÓDIO; VERONESE, 2009, p. 77).
A mão de obra infantil é caracterizada por ter um custo reduzido para o trabalha-
dor, pois a criança não exige seus direitos e também não cobra por melhores condições
de trabalho, sendo o trabalho infantil doméstico ainda protegido dos sistemas de controle
e fiscalização por ocorrer dentro do espaço doméstico. Com as diversas pesquisas do-
miciliares levantadas em diversos países e a disponibilidade de microdados e de análises
econométricas voltadas ao tema do trabalho infantil nos últimos anos, é finalmente possível
uma melhor compreensão do que leva as crianças a trabalhar. “A pobreza, a escolaridade dos
pais, o tamanho e a estrutura da família, o sexo do chefe, idade em que os pais começaram
a trabalhar, local de residência, entre outros” são os principais pontos analisados e também
os mais importantes para explicar as causas do trabalho infantil (KASSOUF, 2007, p. 339).

O trabalho infantil doméstico inicialmente decorre da percepção e dos olhares atribuí-


dos à criança ao longo do processo histórico; são os olhares da família, e também
os das instituições, que em suas práticas de vigilância e repressão produziram um
conjunto de intervenções públicas e privadas no universo infanto-juvenil, ao longo da
história brasileira. Essas intervenções, representativas dos interesses dominantes das
mais variadas instâncias políticas e sociais, produziram um direito peculiar, e sob o
estigma do menorismo, de raízes positivistas do século XIX, concebeu-se a moraliza-
ção pelo trabalho. (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 76)

Não é apenas uma causa que se pode citar para a prática do trabalho infantil do-
méstico, pois se trata de questão mais complexa, causada pela junção de diversos fatores.
Contudo, pode-se apresentar alguns pontos para melhor compreensão dos motivos pelos
quais muitas crianças e adolescentes ainda se submetem ao trabalho infantil doméstico no
Brasil (CORTEZ, 2018).
O entendimento do trabalho infantil doméstico pode ser analisado de diversas for-
mas, mais evidentes são as relacionadas aos aspectos econômicos, culturais e políticos.
Quanto às causas econômicas, estas são consideradas como fatores determinantes do tra-
balho infantil, incluindo o doméstico: “A condição de pobreza e a baixa renda familiar são
um dos estímulos para o recurso ao trabalho da criança e do adolescente, pois a busca pela
sobrevivência exigiria a colaboração de todos os membros do grupo familiar” (CUSTÓDIO;
VERONESE, 2009, p. 77).
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 229

No Brasil, uma das principais causas da exploração do trabalho infantil é a condição


de pobreza o de extrema pobreza que atinge parcela significativa da população. O
trabalho infantil perpetua ciclos intergeracionais da pobreza, pois ele impede o desen-
volvimento educacional e a profissionalização, o que acarreta privação de melhores
oportunidades futuras. Em consequência, crianças e adolescentes de famílias pobres
que foram explorados em atividades de trabalho infantil tendem a continuar em si-
tuação de pobreza quando da vida adulta, o que decorre de ciclos intergeracionais
que não são rompidos pelas ações de políticas públicas e pela reprodução de fatores
culturais (CABRAL; MOREIRA, 2018, p. 5).

Com certeza a pobreza é uma das causas fundamentais do trabalho infantil, porém
não é a única, pois com a necessidade de complementação de recursos e as dificuldades
encontradas para sobreviver as crianças são direcionadas para o trabalho infantil domés-
tico. “A pobreza é resultado de políticas econômicas que geram e produzem as condições
de desigualdade e marginalização social, concentrando a riqueza nos estratos elitizados da
população” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 79).

Contudo, não é apenas a baixa renda familiar que estimula o uso do trabalho infan-
til doméstico, mas também as condições de desigualdade social. Isso explica, por
exemplo, porque no Brasil é mais frequente o uso do trabalho infantil em relação à
maior parte dos países da América Latina. Embora as condições econômicas de tais
países sejam muito mais precárias que as condições brasileiras, é o fator de desigual-
dade social que explica o maior uso de mão de obra infantil (CUSTÓDIO; VERONESE,
2009, p. 78).

Apesar de depender do ambiente familiar e das oportunidades envolvidas na decisão


da criança e do adolescente no que se refere ao trabalho doméstico em casa de terceiros,
há também outros fatores muito frequentes que causam essa situação, sendo elas principal-
mente as relacionadas às questões econômicas, culturais, educacionais e políticas, ou seja,
são, “essencialmente, os fatores ideológicos e as próprias condições materiais da existência
que definirão o ingresso no trabalho infantil doméstico” (CUSTÓDIO, 2006, p. 93).
Na maioria das pesquisas realizadas encontra-se que a escolaridade dos pais é um
fator de extrema relevância, sendo que “se a renda da família não for controlada, qualquer
efeito da educação dos pais tenderá a incluir o efeito renda, uma vez que pais mais educados
tendem a ganhar mais e ser mais ricos” (KASSOUF, 2007, p. 340). Ou seja, quanto maior
educação dos pais e mais estável sua renda menos probabilidade terá a criança de trabalhar,
“então uma interpretação plausível para o efeito da educação é em termos de aspiração
para o futuro da criança e grau de subjetividade para a preferência na alocação do tempo”
(KASSOUF, 2007, p. 340).
230 | ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO | FERNANDA MARTINS RAMOS

Com relação a educação, tanto o ingresso quanto a frequência escolar podem ser vis-
tos como causas do trabalho infantil. O trabalho, ao ser conciliado com o estudo, aca-
ba por prejudicar o desempenho de crianças e adolescentes em atividades escolares.
A fadiga pode resultar no abandono ou na diminuição do rendimento escolar. É neces-
sário que haja uma reconstrução no modo como trabalho infantil é enfrentado, através
de políticas públicas educacionais que, além de serem eficazes no oferecimento e na
manutenção de crianças e adolescentes na escola, capacite os profissionais de modo
que compreendam o contexto em que a exploração está inserida. Porém, não são
somente políticas públicas educacionais que são deficientes. As políticas públicas que
dão acesso à cultura, ao lazer e ao esporte também são de suma importância para o
combate da exploração do trabalho infantil. Apesar de haverem programas de incenti-
vo, faltam políticas que atendam de modo universal, que envolvam a articulação dos
setores e comprometam as unidades da Federação. É válido citar ainda, que também
existem deficiências nas políticas socioassistenciais (COSTA, 2019, p. 60).

Além dos fatores econômicos há também os aspectos culturais e tradicionais do


trabalho infantil, seja com o aspecto educativo ou moralizador, visto que a criança está pre-
sa às tradições tendo uma forte resistência à mudança (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009).
Permanece ainda a tradição de reproduzir as condições dos pais, pois a “transmissão in-
tergeracional das ocupações implica uma maior possibilidade de a menina ser inserida no
trabalho doméstico, quando sua própria mãe já desempenhou esta atividade” (CUSTÓDIO;
VERONESE, 2009, p. 81).

Outro importante determinante do trabalho infantil, discutido na literatura como as-


sociado ao ciclo da pobreza, é a entrada precoce dos pais no mercado de trabalho.
Há estudos mostrando que crianças de pais que foram trabalhadores na infância têm
maior probabilidade de trabalhar, levando ao fenômeno denominado de “dynastic po-
verty traps”. Wahba (2002), utilizando dados do Egito, mostra que a probabilidade
de a criança trabalhar aumenta em 10% quando a mãe trabalhou na infância e em
5% quando o pai trabalhou. Emerson e Souza (2003) chegam a conclusão parecida,
analisando dados do Brasil, e atribuem o fenômeno às normas sociais, isto é, pais
que trabalharam quando crianças enxergam com mais naturalidade o trabalho infantil
e são mais propensos a colocar os filhos para trabalhar. (KASSOUF, 2007, p. 342)

Por fim, percebe-se que quando se trata de trabalho infantil doméstico temos que
fazer relações também às desigualdades de gênero, pois essas atividades ainda são im-
putadas, em sua maioria, às mulheres. O trabalho doméstico realizado por crianças e ado-
lescentes meninas ocorre pelo fato de seus pais, necessitando uma nova renda devido às
condições sociais em que vivem e também pela falta de sistema protetivo direciona suas
filhas para a realização desse trabalho.
O TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL| 231

Assim, vemos que a “integração das mulheres ao mercado de trabalho também vem
fortalecendo um componente importante no reforço e integração de crianças e adolescentes
no trabalho doméstico”, seja no trabalho realizado em sua própria casa com irmãos ou em
casa de terceiros, pois “a ausência de políticas públicas de atendimento para crianças e ado-
lescentes e de apoio socioassistencial às mulheres torna ainda mais grave essa condição”
(CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 81).

Conclusão
O presente artigo demonstra que o trabalho infantil possui um contexto amplo e com-
plexo, cuja prática viola os direitos humanos de crianças e adolescentes acarretando prejuí-
zos que comprometem o seu pleno desenvolvimento físico, psicológico, cognitivo e moral.
Analisando a proteção jurídica contra o trabalho infantil no âmbito internacional, con-
clui-se que a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas
(1989), a Convenção 138, a Recomendação 146, a Convenção 182 e a Recomendação 190
focam na prevenção e na erradicação do trabalho infantil. Já as normas nacionais como a
Constituição Federal e o Estatuto da Criança do Adolescente se direcionam para a regula-
mentação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes amparados no artigo 227
da Constituição Federal.
Por fim, conclui-se que as maiores causas do trabalho infantil sem dúvidas tem ori-
gem em questões culturais, econômicas, políticas e educacionais, sendo a pobreza a maior
delas, dada a necessidade de trabalhar para ajudar em casa, reproduzindo o perfil do pais
que também trabalharam na infância e deixaram de estudar e por esse motivo não tiveram
oportunidades melhores na fase adulta.
Com a fragilidade dos mecanismos de fiscalização do trabalho infantil doméstico, é
indispensável que políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil articulem
estratégias envolvendo a rede de atendimento, proteção e justiça, de modo a garantir o exer-
cício dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, caso contrário essa realidade
alarmante dificilmente mudará.

Referências
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232 | ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO | FERNANDA MARTINS RAMOS

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STEPHAN, Cláudia Coutinho. Trabalhador Adolescente: em face das alterações da Emenda Constitu-
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CAPÍTULO XVI

ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS:


A ATUAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
NÃO GOVERNAMENTAIS

BETANI HILGERT 1
LUCIANA ROCHA LEME 2

Introdução
A adoção internacional é um instituto jurídico criado oficialmente no período pós-
-Segunda Guerra Mundial, como alternativa para o grande contingente de órfãos vítimas
do conflito. A partir do desenvolvimento do conceito, a adoção internacional passou a ser
viabilizada com o intuito de possibilitar aos indivíduos o convívio familiar, mesmo que dis-
tante de sua nação materna. Com o avanço dos direitos humanos na seara internacional, a
adoção deixou de ser tema de exclusividade do direito interno dos Estados e passou a ser
discutido internacionalmente. O tema encontra nos tratados e convenções suas principais
diretrizes, mas ainda cabe ao Estado internalizar e decidir em que condições essas normas
terão eficácia e efetividade.
Atuando muito mais como provedor de crianças do que receptor destas, o Brasil
possui um fluxo considerável dessa modalidade de adoção. Entre as causas estão, além do
reflexo a dinâmica externa, a cultura da adoção interna. Ainda que o número de candidatos
a adotantes seja significativamente superior ao de crianças disponíveis para a adoção, o
perfil requerido pelos pretensos adotantes não condiz com a realidade encontrada nas insti-
tuições de acolhimento. Enquanto o perfil solicitado compreende crianças brancas, de idade

1
Pós-graduada em MBA de Gestão de Projetos pela Universidade Positivo. Graduada em Relações Internacionais
pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail: betanihilgert@gmail.com.
2
Doutoranda junto a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul (Unisc). Professora de Direitos Humanos e Direito Constitucional dos Cursos de Direito e Relações
Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail: luciana.rocha.leme@gmail.com.
234 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME

inferior a 5 anos e sem irmãos, dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
demonstram que o perfil mais recorrente nas instituições é de crianças com mais de seis
anos, negras ou pardas e com irmãos. Dentre os candidatos brasileiros, 91% só aceitam
crianças de até 6 anos, 20% só aceitam crianças brancas e 68% não aceitam adotar irmãos,
enquanto entre os estrangeiros não há, em sua maioria, empecilhos à adoção de crianças e
adolescentes negros ou pardos, irmãos e crianças mais velhas (CNJ, 2017).
Apesar da recente discussão do tema internacionalmente, problemas como a busca
de lucros por meio do procedimento de adoção, a intermediação por entidades não habilita-
das, o tráfico e rapto de crianças, a ausência de regulamentação e a falta de harmonização
quanto à regulamentação entre os países ainda assombram essa modalidade de adoção
e trazem insegurança ao processo. Diante dessa relação, surge o problema de pesquisa
deste trabalho, que busca compreender a atuação das organizações internacionais gover-
namentais e não governamentais diante da adoção internacional de crianças brasileiras por
estrangeiros, com o objetivo de detalhar como ocorre o processo de adoção internacional
que envolve adotados brasileiros no campo da normativa jurídica, compreendendo seus me-
canismos de promoção e a interação deste instituto com as instituições internacionais não
governamentais.
Com intuito de atender a proposta apresentada, a presente pesquisa se utiliza do
método dedutivo de abordagem e, quanto ao procedimento, dos métodos histórico e mono-
gráfico. A pesquisa foi realizada a partir de dados obtidos junto aos órgãos competentes a
respeito das ONGs atuantes na questão da adoção internacional, tema central do trabalho,
além de livros e produções acadêmicas sobre adoção e temas correlatos aos da presente
pesquisa.

1 O desenvolvimento histórico do instituto da adoção


A adoção de crianças surge como uma forma de preservar a família. Com sua gê-
nese nas primeiras formas de civilização, a adoção era permitida apenas a quem não tinha
filhos, como meio de perpetuar o culto doméstico e evitar sua extinção (COULANGES, 2006).
Estabelecida como um costume comum a quase todos os povos, sua conceituação varia de
acordo com época e tradições (GRANATO, 2010). Nesse sentido, a adoção é primeiramente
encarada como alternativa a quem, por algum motivo, fosse impossibilitado de gerar herdei-
ros. Atualmente é realizada em prol adotado e da proteção de seus interesses, visando es-
tabelecer uma relação que atenda suas necessidades básicas e especificidades. No âmbito
internacional, a adoção passou a ser um tema de maior expressão com o desenvolvimento
das nações (GATELLI, 2005).
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 235

Trazida junto com a colonização portuguesa, a adoção no Brasil se faz presente


desde o início3, a princípio relacionada à caridade, como forma de se prestar assistência aos
mais pobres (MAUX; DUTRA, 2010). Sem clara menção junto ao ordenamento brasileiro, a
adoção era regida pelo direito romano4, como subsidiário do pátrio, uma vez que a legislação
não atribuía organização completa a esse instituto (JORGE, 1975).
Durante o Brasil Império e o início do período republicano, a adoção permaneceu
sem quaisquer alterações até o ano de 1916. A elaboração do Código Civil de 1916 introdu-
ziu o instituto no ordenamento brasileiro e determinou a adoção nas modalidades simples
e plena. A adoção simples era estabelecida por escrituração pública, sem interferência do
Judiciário, cujo vínculo criado entre adotante e adotado era tênue e sem caráter irrevogável. A
plena desvinculava o adotado de seus laços familiares anteriores, inserindo-o integralmente
em sua nova família. Com efeito, a adoção era tratada como negócio jurídico que poderia
se concretizar de modo pouco formal pela via cartorial, além de desprestigiar o filho adotivo
em comparação aos biológicos, tendo em vista que ao adotado eram negados privilégios su-
cessórios (MATOS; OLIVEIRA, 2012). Instituindo-se como alternativa às famílias, a adoção
era raramente concretizada mediante mecanismos legais, preferindo-se a chamada “adoção
a brasileira” (MAUX; DUTRA, 2010), prática que consistia no registro de filho alheio como
próprio (GRANATO, 2010).
Como dito, a adoção internacional é oficialmente instituída no período pós-Segunda
Guerra Mundial, e surge como alternativa para o contingente de órfãos vítimas do confli-
to. Adotadas por famílias de países que sofreram em menor escala os efeitos da guerra,
essas crianças encontrariam melhores circunstâncias para seu desenvolvimento, uma vez
que seu Estado de origem não seria capaz de tutelar sua proteção. Partindo dessa premis-
sa, a adoção internacional inicia-se na tentativa de prover melhores condições de vida ao
adotado, mais especificamente no plano material. Com o avanço dos direitos humanos em
nível global, a adoção deixou de ser tema de exclusividade do direito interno dos Estados e
passou a ser discutido internacionalmente. A criação da ONU, em 1945, intensificou o debate
da adoção por estrangeiros e colocou a questão como matéria relevante para os Estados
(SILVEIRA, 2008).
No Brasil, o primeiro registro de uma adoção internacional ocorreu no ano de 1927,
quando uma criança do estado do Rio Grande do Sul foi adotada por um cidadão italiano
(FIGUEIRÊDO, 2005). Embora não fosse um instituto comum para a época e não se encon-
trar claramente normatizado no direito interno brasileiro, esse caso seria a primeira alusão à
prática da adoção internacional no país.

3
Salienta-se que entre os índios, a adoção de crianças por parentes é costume, quando estas ficam órfãs, ou
quando a família não tem condições de criá-las (SENA; DELGADO, 2016).
4
O direito romano é considerado a mais importante fonte histórica do direito nos países do ocidente, presente em
vários institutos jurídicos atuais (MAGALHÃES; PEREIRA, 2010).
236 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME

A adoção por estrangeiros no Brasil foi realizada por muito tempo por meio de
simples escrituras públicas. Empregada por meio da normatização vigente para a adoção
interna, a adoção internacional era realizada sem o rigor necessário para coibir práticas
criminosas e avessas aos interesses da criança (FIGUEIRÊDO, 2005). A relativa facilidade
do processo de adoção internacional no Brasil abriu caminho para sua realização de maneira
desmedida, incluindo o país na rota de adoção internacional.
A difusão da adoção internacional no mundo ocorre durantes as décadas de 1970
e 1980, quando o fluxo de crianças tem uma considerável elevação em seus índices (FON-
SECA, 2006b), impulsionado por razões relativas às baixas taxas de natalidade nos países
desenvolvidos, além de questões culturais afloradas a partir da chamada “geração de ses-
senta e oito”5 (FIGUEIRÊDO, 2005). O alvo desse movimento foram os países em desenvol-
vimento, uma vez que a adoção internacional era encarada como meio de retirar crianças de
condições de miséria e pouca oportunidade de desenvolvimento em seus países de origem,
associando-os a famílias em países desenvolvidos. Especialmente nesse período, “o Brasil
ocupava a quarta posição dos principais países fornecedores de crianças para adoção inter-
nacional” (FONSECA, 2006a, p. 16).
Somente a partir da Constituição de 1988 e da vigência do Estatuto da Criança e do
Adolescente, implementado pela Lei n. 8.069/90 de julho de 1990, a adoção internacional
foi devidamente positivada no ordenamento jurídico brasileiro, instituindo procedimentos es-
pecíficos que a distinguem do processo de adoção interno. A partir da vigência do Estatuto,
estabeleceu-se também o princípio do melhor interesse da criança, garantindo que suas
especificidades fossem atendidas no lar substituto, em todas as suas esferas.

2 A adoção e as doutrinas jurídicas de proteção à infância no Brasil


As políticas elaboradas em torno da infância durante o Brasil Império estavam res-
tritas ao âmbito criminal e social. A preocupação da legislação da época girava em torno da
responsabilização penal e o recolhimento de crianças órfãs ou abandonadas, estas subsi-
diadas por iniciativas privadas, geralmente de caráter religioso ou simplesmente caridoso
(RIZZINI; RIZZINI, 2004), a exemplo das rodas de expostos. Criado na Europa durante a
Idade Média, o sistema de rodas de expostos foi trazido ao Brasil durante o período colonial.
Vinculadas às Santas Casas de Misericórdia, tinham como incumbência acolher crianças em
situação de desamparo. Sua denominação provém do dispositivo onde eram colocados os
bebês a serem abandonados. Fixados nos muros ou à janela da instituição, tinham formato
cilíndrico, dividido ao meio por uma divisória. A criança era depositada em uma abertura

5
O ano de 1968 mudou profundamente as relações entre raças, sexos e gerações na França, e, em seguida, no
restante da Europa. As manifestações ajudaram o Ocidente a estabelecer ideais como a liberdade civil demo-
crática, os direitos das minorias, e da igualdade entre homens e mulheres, brancos e negros e heterossexuais e
homossexuais (MOVIMENTO..., 2008, n.p.).
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 237

externa e a seguir, girando-se a roda, era levada ao outro lado do muro. Sem necessidade
de identificar-se, o expositor apenas puxava uma cordinha com uma sineta para avisar ao
vigilante sobre a presença da criança (MARCILIO, 2003).
Com a ruptura para o período republicano em 1889, a infância adquire novo signifi-
cado. O Estado brasileiro assume para si a responsabilidade de fixar um aparelho institucio-
nal capaz de tutelar a infância, por meio do planejamento e implementação de políticas de
atendimento ao “menor” (RIZZINI; RIZZINI, 2004). Nesse caso, o termo “menor” carregava
uma conotação [...] “estigmatizante, isso porque até o advento do Estatuto da Criança e do
Adolescente, o termo era sinônimo de criança abandonada, carente, com desvio de conduta,
vítima de maus tratos ou mesmo infratora de algum tipo penal” (VERONESE, 1999, p. 48).
A elaboração de leis relacionadas a infância culmina em 1927 no primeiro Juízo de
Menores do país, implantado no Rio de Janeiro, e na aprovação do Código de Menores,
denominado de Código Mello Mattos6. Criando um sistema de assistência social e jurídica,
o Código conferiu ao Juizado funções relativas à vigilância, regulamentação e intervenção
direta sobre o menor, entre elas destaque-se a internação. Ao aplicar um modelo de classi-
ficação e intervenção sobre a criança e o adolescente, herdado da ação policial, o Juizado
identificava, encaminhava, transferia e desligava das instituições aqueles designados como
“menores”. Devido à alta demanda criada pelo próprio modelo, os juízes não conseguiam
internar todos os casos que chegavam às suas mãos, o que levou o sistema a esgotar-se em
alguns anos (RIZZINI; RIZZINI, 2004).
Em 1964, sob o regime militar, é instituída a Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor (Funabem), resultado da nova proposta para infância no período, a Política Nacional
do Bem-Estar do Menor. Seus pilares eram sustentados pela doutrina da segurança nacio-
nal, encarando a questão como um problema nacional de competência do Poder Executi-
vo. Incorporando a estrutura vinculada ao extinto SAM, a Funabem instituiu o sistema de
internação de carentes e abandonados e a “política dos muros redentores” no tratamento
aos infratores (SANCHES; VERONESE, 2016), evidenciada pela atuação da Fundação do
Bem-Estar do Menor (Febem), criada no primeiro ano da Ditadura Civil Militar com objetivo
de representar as políticas da Funabem em instância estadual e responsável pela aplicação
de grande parte das medidas voltadas a internação (MIRANDA, 2016).
As políticas públicas empregadas durante o período de 1964 eram pautadas no
assistencialismo e em uma autoritária representação de “família estruturada”, aos moldes
conservadores. Voltadas para crianças e adolescentes atingidos pela marginalização social,
limitavam-se a sua integração à comunidade e em atender suas “necessidades básicas” por
meio da assistência à família. Alvo de críticas até mesmo de organismos internacionais, a
Política Nacional do Bem-Estar do Menor entrou em declínio já no fim da década de 1970,

6
Primeiro juiz de menores do Brasil e de mais longa permanência, de 1924 até o ano de seu falecimento, em
1934. Cf.: Rizzini e Rizzini (2004, p. 29).
238 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME

o que resultaria, em 1978, na criação da Comissão Nacional do Ano da Criança e no novo


Código de Menores no ano de 1979 (CUSTÓDIO, 2009).
O Código de Menores de 1979 era uma tentativa de adaptação aos novos tempos,
entretanto resgatando princípios da velha lei de Mello de Matos. O novo código restituiu
grande parte da autoridade judiciária e manteve a Política Nacional do Bem-Estar do Me-
nor, inserindo como atualização a chamada “Doutrina da Situação Irregular”7 caracterizada
por medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente (SANCHES; VERONESE,
2016). A nova legislação menorista trazia consigo a concepção da incapacidade das famílias
pobres em educar os filhos (RIZZINI; RIZZINI, 2004). Ao corroborar com a estigmatização
das crianças pobres como “menores” e delinquentes em potencial, representou novas vio-
lações em prol de uma suposta integração social por meio da educação, disciplina, justiça,
assistência e principalmente ao combate ao abandono e à criminalidade (PASSETTI, 2004).
Ainda que de maneira nebulosa, o Código de Menores de 1979 atenta para a adoção
internacional, estabelecendo o perfil da criança posta a essa forma de adoção (COSTA,
1998). Segundo o artigo 20 do Código “o estrangeiro residente ou domiciliado fora do País
poderá pleitear colocação familiar somente para fins de adoção simples e se o adotando
brasileiro estiver na situação irregular, não eventual, descrita na alínea a, inciso I, do art. 2º
desta Lei” (BRASIL, 1979).
Observando a alínea a, inciso I, do art. 2º do referido Código, os estrangeiros esta-
riam autorizados a adotar crianças que se encontrassem privadas de “condições essenciais
à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de
falta, ação ou omissão dos pais ou responsável” (BRASIL, 1979). Reflexo da movimenta-
ção internacional em torno do tema da adoção por estrangeiros e os altos índices de saída
de crianças brasileiras ao exterior, o artigo 20 do Código de 1979 representava a tentativa
de controle da questão pelo Estado e, principalmente, pelo Poder Judiciário. Embora tenha
significado um avanço em termos normativos, na prática acabou obtendo pouco respaldo,
coexistindo com a adoção já positivada no Código Civil, era comumente ignorada em razão
de seu caráter pouco “prático” ao estrangeiro (COSTA, 1998).
Em consonância ao processo de redemocratização já no fim da década de 1980 e
do processo de lutas sociais, a política para a infância, até então em vigência, foi substituí-
da. A extinção da Funabem em abril de 1990 e a implantação do Estatuto da Criança e do
Adolescente em julho do mesmo ano inauguraram um novo olhar sobre a infância brasileira
(VERONESE, 1999).

7
Considera-se em situação irregular o menor privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e ins-
trução obrigatória, ainda que eventualmente, vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais
ou responsável, em perigo moral, privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou
responsável, com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária e/ou autor de
infração penal (BRASIL, 1979).
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 239

A Teoria da Proteção Integral eleva a criança e o adolescente à condição de sujeitos


de direitos. Critério estruturante das legislações para a infância, possibilitou instrumentos
de defesa e promoção de seus direitos, independentemente de conduta ou situação social,
reconhecendo a situação da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento
com todos os direitos de um adulto e outros direitos específicos à sua condição peculiar
(SANCHES; VERONESE, 2016). Institui os princípios da

[...] prioridade absoluta, a humanização no atendimento, a ênfase nas políticas so-


ciais públicas, a descentralização político-administrativa, a desjurisdicionalização,
a participação popular, a interpretação teleológica e axiológica, a despoliciação, a
proporcionalidade, a autonomia financeira e a integração operacional dos órgãos do
poder público responsáveis pela aplicação do Direito da Criança e do Adolescente
(CUSTÓDIO, 2008, p. 32).

Sob a nova égide do Direito da Criança, a adoção é vista em benefício da criança e


do adolescente e suas especificidades. Definida juridicamente como uma filiação legítima,
que se sustenta sobre a pressuposição de uma relação não biológica, mas afetiva, que cria
relações de paternidade e filiação entre duas pessoas (VENOSA, 2013), a adoção adquire
maior conexão à criança e aos seus interesses. Sua função social é a proteção da criança,
considerando seu desenvolvimento físico e psíquico. Nessa perspectiva, a adoção interna-
cional adquire contornos mais claros quanto a seu conceito e aplicação. Em termos simples,
a adoção internacional é aquela cujas “pessoas que integram a relação processual são do-
miciliadas em países diferentes” (LIBERATI, 2003, p. 41).

3 A regulamentação da adoção pelo Direito Internacional


Durante a década de 1960 duas convenções a respeito do tema da adoção foram
realizadas na Europa. A primeira em 1965, na cidade de Haia na Holanda, celebrou a Conven-
ção sobre a Competência da Autoridade, a Lei Aplicável e o Reconhecimento das Decisões
em Matéria de Adoção, que estabeleceu como um dos critérios de competência a residência
habitual do adotante. No entanto, a complexidade de seus artigos e a falta de regulamentação
para os efeitos produzidos pela adoção internacional acabaram por podar os objetivos da
convenção. Em 1978, ano de entrada em vigor no direito internacional, tinha obtido apenas
três ratificações referentes a Áustria, Suíça e Reino Unido (COSTA, 1998).
Posterior à Convenção de Haia de 1965, surge a Convenção Europeia em Matéria de
Adoção, em 1967 na cidade de Estrasburgo na França. O objetivo da convenção era unifor-
mizar as legislações internas dos países do Conselho da Europa, para evitar a confusão em
caso de adoção por estrangeiros. Apesar de também não conter mecanismos claros para a
240 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME

resolução de conflitos sobre o tema, a Convenção conseguiu uma quantidade considerável


de contratantes, sendo ratificada por Áustria, Alemanha, Itália, Grécia, Suécia, Dinamarca,
Noruega, Suíça, Malta, Grã-Bretanha, Irlanda e Liechstentein (COSTA, 1998).
Para além dos problemas de conflito de legislação interna sobre a adoção internacio-
nal, era necessário coibir o deslocamento ou retenção ilícita de crianças além das fronteiras.
Isto posto, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças reali-
zada em Haia no ano de 1980 é o principal instrumento internacional, destinado a proteger
as crianças dos efeitos nocivos do deslocamento forçado. Por meio da institucionalização
de Autoridades Centrais, a Convenção vem demonstrando eficácia em garantir a coopera-
ção no regresso das crianças que foram ilegalmente retiradas de suas fronteiras nacionais
(MÉRIDA, 2011).
Reflexo da crescente discussão internacional acerca da adoção, o Instituto del Niño,
órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), elaborou no ano de 1983 na cida-
de de Quito, Equador, um projeto de convenção sobre adoção de crianças e adolescentes
com forte influência das convenções europeias de adoção internacional. Em 1984, o projeto
materializou-se na Convenção Interamericana sobre Conflitos de Leis em Matéria de Ado-
ção de Menores, ocorrida em La paz, na Bolívia. Essa Convenção não respondeu ao apelo
internacional de resolução de conflitos, simplesmente por não atingir países de adotantes e
adotados (LIBERATI, 2003). Uma vez que a cultura da adoção já se estabelecia da Europa em
direção a América, Ásia e posteriormente a África, a eficácia de um tratado dessa natureza
somente se daria ao reunir países, que historicamente são considerados, de adotantes e de
adotados. A ausência de uma cultura de adoção internacional no continente americano tornou
a convenção de pouca utilidade para a questão da adoção por estrangeiros no continente.
Em 1989, a Convenção Interamericana sobre Restituição Internacional de Menores realizada
em Montevidéu, Uruguai, estabeleceu a imediata restituição de crianças e adolescentes que
tivessem sido retirados ilegalmente de seu país de origem (LIBERATI, 2003). Implementada
aos moldes da Convenção de Haia de 1980, não apresentou mudanças significativas em
relação a sua versão europeia.
Atrelada a discussão internacional dos direitos humanos, a temática da adoção inter-
nacional aparece em consonância à garantia de direitos da infância. A Convenção sobre os
Direitos da Criança de 1989, que tem como precedentes a Declaração de Genebra de 1924
sobre os Direitos da Criança e a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, é considerada
a Carta Magna das crianças de todo o mundo. Composta por 54 artigos é atualmente o
instrumento de direitos humanos mais aceito no mundo (UNICEF, 2017).
Em relação a adoção internacional, as discussões se deram em torno da oposição
às disposições propostas pelos países ocidentais desenvolvidos, que pretendiam facilitar o
acesso de seus nacionais a essa modalidade de adoção (ROSEMBERG; MARIANO, 2010). A
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 241

oposição representada por países latinos americanos8 temia o aumento no fluxo já bastante
expressivo de crianças latinas adotadas por estrangeiros, em razão de fatores estruturais,
como a pobreza. Aliados nessa questão encontravam-se também os representantes de paí-
ses islâmicos, contrários à adoção por motivos religiosos (PILOTTI, 2000). No caso da ado-
ção por estrangeiros, foi estabelecido em seu artigo 21 o reconhecimento da adoção inter-
nacional como alternativa de proteção à criança, munida de garantias e normas equivalentes
às aplicáveis em caso de adoção nacional, além de estimular acordos, tratados bilaterais ou
multilaterais sobre o tema para assegurar que as adoções sejam efetuadas por autoridades
ou organismos competentes (ONU, 1989).
A Convenção de Haia Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria
de Adoção Internacional de 1993 é referência para a questão da adoção por estrangeiros,
determinando parâmetros e garantias mínimas a sua efetivação a fim de evitar o tráfico inter-
nacional de crianças. Complementar à Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção
de Haia de 1993 estabelece medidas comuns que resguardem o interesse superior da crian-
ça para que aquelas que não encontram família adequada em seu país de origem possam
gozar da convivência familiar (GATELLI, 2005). Segundo as disposições da convenção, a
adoção por estrangeiros só pode ser empregada observando-se alguns aspectos pontuais. O
primeiro deles é a situação geral da criança e de seus candidatos à adoção. Há de se inves-
tigar o histórico da criança, seus vínculos afetivos, condição médica e jurídica, bem como
o do adotante. A adoção somente deverá ser concretizada se a criança estiver autorizada a
permanecer em caráter permanente no país de acolhida (LIBERATI, 2003).
O advento da convenção institui as autoridades centrais, responsáveis por garantir
a cooperação e segurança do processo de adoção. Vinculadas ao Estado contratante, dis-
põem de mecanismos de controle e fiscalização garantindo que eventuais intermediários
não obtenham benefícios materiais na adoção (MÔNACO, 2002). Organizações que atuam
como intermediárias do processo de adoção internacional também receberam atenção junto
a convenção. Dessa maneira, um organismo somente pode atuar perseguindo fins não lucra-
tivos, dentro dos limites fixados pelas autoridades do Estado ao qual está creditada, estando
submetido às autoridades quanto ao seu funcionamento, composição e situação financeira
(HAIA, 1989).
A convenção também atribui ao país de origem do adotado a competência do pro-
cesso de adoção, que deve ser reconhecido no país de acolhida da criança, nesse sentido:

[...] dispensando-se, inclusive, a necessidade de se buscar o reconhecimento da sen-


tença brasileira perante o Judiciário do Estado de acolhida, o que tende a solucionar
um grave problema vivenciado em processos de adoção internacional anteriores, em
que os pais adotivos não diligenciavam, retornando ao seu Estado de origem, para
obter [a execução] para tal sentença (MÔNACO, 2002, p. 324).

8
Principalmente por Argentina, Brasil, Cuba, Peru e Venezuela (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).
242 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME

Ademais, a Convenção não derroga instrumentos internacionais dos quais os Es-


tados contratantes sejam parte e que sejam reguladas pela própria (COSTA, 1998). Assim,
estabelecidas as disposições gerais sobre o tema da adoção internacional, cada Estado tem
o direito de aplicá-las em nível interno conforme seu intento. Fica aberta ainda a possibilidade
quanto a acordos bilaterais ou multilaterais que complementem o texto da Convenção.
Participando da discussão sobre a questão da adoção internacional no cenário in-
ternacional, o Brasil torna-se signatário de certo número de convenções e tratados sobre o
tema. Destaca-se aqui a Convenção sobre os Direitos da Criança, as convenções efetuadas
no âmbito do Sistema Interamericano e a Convenção Relativa à proteção e à cooperação em
Matéria de Adoção Internacional, assinada durante a Convenção de Haia em 1993. Ratificada
em 1999, a convenção foi internalizada de modo significativo ao direito brasileiro trazendo
mudanças ao aparato da adoção internacional (GATELLI, 2005), que começa a contar com
uma Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf) e autoridades centrais estaduais, além
de uma legislação específica para a adoção por estrangeiros.

4 A atuação das ONGs nos procedimentos de adoção internacional


Os organismos estrangeiros que atuam no Brasil e os nacionais que atuam no ex-
terior em matéria de adoção internacional tem a sua atuação regulamentada pelo Decreto
n. 5.491 de 18 de julho de 2005. Para atuar no país, a instituição deve ser proveniente de
países que ratificaram a Convenção de Haia de 1993 e estar devidamente credenciada pela
autoridade central do país onde mantém sede e do país de acolhida do adotando, demonstrar
ética e experiência para atuar na área de adoção internacional, ser dirigida e administrada por
pessoas qualificadas e de idoneidade moral, com formação ou experiência para atuar na área
de adoção internacional, além de perseguir unicamente fins não lucrativos (BRASIL, 2005).
A solicitação de cadastro do organismo nacional ou estrangeiro deve ser feita eletro-
nicamente pelo site da Polícia Federal (PF). Após o pedido, o requerimento deve ser impresso
e protocolado na unidade descentralizada da PF da região da sede do organismo no Brasil,
dirigida ao chefe da Delegacia de Polícia de Imigração, nas capitais, ou da Delegacia de
Polícia Federal, nas demais localidades. Realizado o cadastro junto a Polícia Federal, o pro-
cesso é remetido à Coordenação de Justiça, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça,
que após aceitar o pedido de autorização, o encaminhará à Autoridade Central Federal, para
credenciamento. O processo retorna ainda ao Ministério da Justiça para análise final, que
determina o deferimento ou não da autorização (LIBERATI, 2009).
As organizações credenciadas submetem-se à supervisão das autoridades brasi-
leiras e do país de acolhida (BRASIL, 2005), bem como adquirem funções específicas no
processo de adoção por estrangeiros. Seus nomes e endereços devem ser publicados junto
ao Bureau Permanente da Conferencia de Haia, que poderá informá-los a quem quer que
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 243

seja (LIBERATI, 2009). Dessa forma, restringe-se a atuação de esquemas ligados ao tráfico
de pessoas e a obtenção de lucros nos processos de adoção internacional e torna público a
atuação dessas ONGs.
Entre as funções das ONGs no processo de adoção internacional estão: a garantia
que a criança ou adolescente brasileiro saia do país com o passaporte brasileiro e com visto
de adoção emitido pelo consulado do país de acolhida; que os adotantes encaminhem à
autoridade central federal brasileira cópia da certidão de registro de nascimento estrangeira
e do certificado de nacionalidade tão logo lhes sejam concedidos e fornecer a qualquer tem-
po; todas as informações que lhe forem solicitadas pela Autoridade Central Administrativa
Federal (BRASIL, 2005).
Responsáveis pelo acompanhamento pós-adotivo, as ONGs devem apresentar re-
latórios de acompanhamento das adoções internacionais efetuadas, com intervalo de seis
meses, à autoridade central estadual e a autoridade central federal brasileira, pelo período
mínimo de dois anos (BRASIL, 2005). A atuação das organizações credenciadas é primor-
dial ao procedimento pós-adotivo, uma vez que poderão ser o único meio de controle que o
governo brasileiro disponibiliza (LOPES, 2015) nessa fase sensível de adaptação do adotado.
A finalidade dos organismos credenciados é a garantia da proteção integral da criança e do
adolescente. Ao intermediar uma adoção internacional, as ONGs devem preparar os adotan-
tes para receber uma criança ou adolescente com cultura e costumes diferentes, devem ava-
liar se os adotantes possuem todas as condições para garantir o desenvolvimento saudável
do adotado e devem acompanhar o processo de adaptação à nova família (LOPES, 2015).
As ONGs de adoção internacional atuam como intermediárias entre os candidatos
estrangeiros, a adoção e as autoridades brasileiras. Ainda que haja uma legislação inter-
nacional acerca da adoção por estrangeiros, cada Estado possui a prerrogativa de instituir
normas próprias ao processo de adoção, como evidencia Costa (1998), referentes à idade
máxima e mínima, diferença de idade, consentimentos, estado civil, tempo mínimo de matri-
mônio, solenidade e efeitos do vínculo adotivo, comumente diferentes do Estado de origem
do adotante. Nesse emaranhado de normas jurídicas, as organizações atuam no sentido de
orientar o candidato à adoção oferecendo informações precisas sobre o processo, uma vez
que possuem conhecimento de procedimentos e critérios solicitados pelo Estado brasileiro.
Constata-se grande participação das ONGs nas demandas de adoção internacional
no Brasil, acionadas pelos pretensos adotantes ou recomendadas por seu Estado de origem.
Como exposto anteriormente, de acordo com estatísticas divulgadas pela autoridade central
brasileira, as adoções internacionais concluídas no ano de 2015 totalizaram 115 (cento e
quinze) casos, dos quais 98 (noventa e oito) tiveram a participação de organismo credencia-
do, o que caracteriza um dos objetivos da Convenção de Haia de 1993 no intuito de impedir
as adoções privadas, obrigando os interessados na adoção a procurarem os organismos
credenciados fiscalizados pelo Estado.
244 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME

Apesar de todos os procedimentos legais adotados pelo Brasil para garantir o bem-
-estar do adotado, o método ainda é passível de falhas. É possível que a adoção não seja
bem-sucedida, resultado de uma não compatibilidade da criança ou adolescente com os pais
adotivos ou com o novo meio social em que se insere, além de uma eventual adoção com
objetivos escusos. Ao atuarem no acompanhamento pós-adotivo, assim como afirma Libe-
rati (2009), as ONGs contribuem para eliminar o tráfico de crianças e são grandes aliadas na
garantia da proteção dos interesses do adotado.
Ademais, as ONGs costumam estar envolvidas em todas as esferas do processo de
adoção. Reuniões, palestras, encontros, no sentido de incentivar e preparar os futuros país
adotivos para a adoção e assistência aos pais adotivos, reunindo-os em movimentos e asso-
ciações, em ambientes que podem trocar experiências e até resolver dificuldades referentes
à condução da paternidade etc. são algumas iniciativas alavancadas por essas organizações,
a fim de solucionar dilemas simples, inerentes ao processo de adoção internacional.
Ainda que demonstrada a importância das ONGs de adoção internacional, no Brasil
a presença desses organismos não é de caráter obrigatório, mas sim facultativo. A possibi-
lidade de adoções internacionais de cunho privado abre brecha para adoções com objetivos
escusos e dificulta o acompanhamento pós-adotivo, que passa de incumbência das ONGs
para responsabilidade do adotante e das autoridades do país de acolhida. Alguns Estados
admitem somente adoções por meio de representantes de organismos autorizados, como
forma de atribuir seguridade ao processo de adoção e impossibilitar o ganho de lucros por
terceiros. Segundo Costa (1998), países como Peru, Colômbia, Equador, Índia e Indonésia
aceitam a adoção apenas por meio desses organismos.
Em relação às ONGs credenciadas junto à autoridade brasileira, encontram-se de
modo majoritário organizações estrangeiras. Dentre os 21 organismos credenciados9, 18
são de origem europeia e 3 provenientes dos Estados Unidos, nenhum brasileiro. Mesmo
atestada a proteção advinda da presença dessas entidades no processo de adoção interna-
cional, a presença de ONGs de adoção internacional estrangeiras coloca o Brasil em posição
apenas de acompanhar o movimento vindo de países desenvolvidos, tornando-o mero “for-
necedor de crianças”. Isso se explica também pela aparente falta de interesse da sociedade
civil brasileira na modalidade de adoção internacional, motivada pelo perfil adotivo pouco
flexível e a tentativa de preservar crianças e adolescentes em território brasileiro. No que

9
AAiM - Associació D’Ajuda als Infants del Món; AFN – Azione per Famiglie Nuove; AiBi - Associazione Amici dei
Bambini; AIPA - Associazione Italiana Pro Adozione; AMI - Amici Missioni Indiane; ARAI PIEMONTE – Agenzia
Regionale Per Le Adozioni Internazionali; ATWA - Across The World Adoption; Associação Arc en Ciel France –
Brésil, Associação Progetto São José, AVSI - Associazione Volontari per il Servizio Internazionale, BRADOPTA,
CIFA - Centro Internazionale per l´Infanzia e la Famiglia, COFA COGNAC, Hand in Hand Internacional Adoptions,
I CINQUE PANI, IL MANTELLO – Associazione di Volontariato per la Famiglia e l’Adozione, Lifeline Children´s
Service, Nova-nuovi Orizzonti per Vivere la Adozione, Sete Speranza Onlus, Senza Frontiere Onlus e Médecins Du
Monde que não atua mais como ONG de adoção internacional, entretanto permanece vinculada aos processos
de adoção iniciados antes de seu desligamento.
ADOÇÃO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS BRASILEIRAS| 245

tange a organizações brasileiras relacionadas à adoção nacional, encontram-se de forma


majoritária ONGs que trabalham com o acolhimento de crianças em condição de abandono,
maus-tratos ou que porventura foram retiradas do seio familiar, e associações que reúnem
pretensos pais adotivos.
A atuação das ONGs deve acontecer de forma conjunta ao Estado, que deve esta-
belecer parâmetros para sua atuação. Negligenciar a presença desses atores ou a maneira
como conduzem as demandas de adoção internacional traz riscos ao adotado, parte mais
sensível neste processo. O credenciamento de organismos que atuam na seara da adoção
previne atos mal intencionados, ao mesmo tempo que acarreta esquemas mais elaborados
relativos à corrupção ou tráfico de pessoas. Casos de ONGs envolvidas com atividades
criminosas ligadas ao tráfico de crianças ou com intuito de burlar trâmites e facilitar o proce-
dimento da adoção permeiam os meios de comunicação. Apesar de essas entidades em sua
maioria não estarem credenciadas junto às autoridades competentes, esses casos ilustram
uma faceta perigosa da adoção internacional, o que exige a preponderância do Estado.

Conclusão
Referente à esfera dos Direitos da Criança, a adoção nacional ou internacional é con-
siderada medida excepcional, optando-se pela manutenção da criança ou adolescente em
sua família original. Importante recurso de garantia da criança e do adolescente à convivên-
cia familiar, a adoção internacional surge como alternativa a crianças que não se enquadram
no perfil de adotados no Brasil.
A adoção é uma prática recorrente desde as primeiras formas de civilização e foi por
muito tempo encarada como um meio de preservar a família. No Brasil, atrelada à legislação
e às políticas para a infância, a adoção era aplicada sem o devido cuidado com a criança ou
adolescente, que por diversas vezes se viam retirados desnecessariamente de seu núcleo
familiar original. Com a extinção de mecanismos como a Roda dos Expostos e a legislação
menorista, a adoção passou a ser encarada a partir do princípio do melhor interesse da
criança, originário do direito internacional e, portanto, igualmente empregado na adoção
internacional. Desde seu primeiro registro em 1927, a adoção internacional foi realizada no
Brasil por um longo período sem o devido grau de formalidade e fiscalização. Apesar de se
tratar de uma prática recorrente, tal modalidade de adoção não se encontrava positivada ao
direito interno, sendo executada por meio de simples escrituras públicas. Somente a partir da
Constituição de 1988 e da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 (ECA)
a adoção internacional foi devidamente positivada na norma brasileira, instituindo procedi-
mentos específicos que o distinguem do processo de adoção interno.
A partir da atuação da ONU, a adoção por estrangeiros passou a ser discutida de
maneira mais abrangente entre os Estados. Problemas ocasionados pelos processos de
246 | BETANI HILGERT | LUCIANA ROCHA LEME

adoção internacional foram tema de diversos tratados e convenções acerca da adoção, em


âmbito regional ou global. Destaca-se aqui a Convenção dos Direitos da Criança de 1989 e a
Convenção de Haia Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção
Internacional de 1993, responsáveis por mudanças significativas em relação à proteção de
garantias das crianças e adolescentes e disposições da adoção internacional.
Garantida pela Constituição Federal de 1988, a adoção internacional encontra-se po-
sitivada junto ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Com procedimentos que a distinguem
da adoção interna, a adoção por estrangeiros é realizada aos moldes da Convenção de Haia
de 1993, que institui as autoridades em âmbito federal e estadual, responsáveis pela habili-
tação de candidatos e o acompanhamento dos processos de adoção e permite a atuação de
organismos intermediários à adoção, como é o caso das ONGs.
Partes ativas na adoção internacional, as ONGs operam como colaboradoras do
processo de adoção, acompanhando o tema com proximidade e solucionando questões
práticas do processo. No Brasil, há uma legislação específica para as organizações que ob-
jetivam atuar na área da adoção internacional, que consiste em um credenciamento junto à
autoridade federal brasileira. As ONGs são ligadas diretamente ao processo de adoção inter-
nacional e atuam de modo a conectar os indivíduos a essa modalidade de adoção, por meio
da divulgação de informações e auxílio no processo de adoção. Não obstante, são respon-
sáveis pelo acompanhamento pós-adotivo, procedimento que atribui maior seguridade às
adoções concretizadas por estrangeiros. Ainda assim, sua atuação deve ser acompanhada
pelo Estado, que deve garantir a idoneidade dessas organizações. Nesse sentido, a presente
pesquisa contribui para explicitar a atuação das ONGs de adoção internacional e levantar
questões contundentes a este processo.

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CAPÍTULO XVII

ACOLHIMENTO FAMILIAR: O NECESSÁRIO


PROTAGONISMO DA SOCIEDADE CIVIL PARA
A EFETIVIDADE DO SERVIÇO

GLÁUCIA BORGES 1

Introdução
Sob o manto da teoria da Proteção Integral às crianças e adolescentes devem ser
assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado solidariamente todos os direitos
inerentes à dignidade da pessoa humana e os demais especialmente reservados a essa
população, com absoluta prioridade. Esses direitos estão consagrados destacadamente na
Constituição Federal Brasileira de 1988 e na Convenção sobre os Direitos das Crianças, de
1989, que foi ratificada pelo Brasil em 1990, bem como no Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, também de 1990.
Nessa lógica, tendo o Brasil ratificado a Convenção e incorporado em seu ordena-
mento jurídico a Proteção Integral, nosso dever de especial proteção às crianças e adoles-
centes torna-se obrigação internacional de cumprimento. Por isso, devemos estar atentos se
as Políticas Públicas nacionais destinadas às crianças e aos adolescentes estão respeitando
todas as diretrizes da teoria da Proteção Integral, conforme determinam as normas interna-
cionais e nacionais.
Analisar se nas Políticas Públicas destinadas à população infantojuvenil estão sendo
assegurados os deveres de forma solidária entre a tríplice responsabilidade compartilhada

1
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(Unesc). Especialista em Direito Civil e Processo Civil e graduada em Direito pela Unesc. Integrante do Núcleo de
Pesquisa em Estado, Política e Direito (Nuped) e do Núcleo de Pesquisa em Direito da Criança e do Adolescente
e Políticas Públicas, da Unesc. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa
Catarina (Fapesc). E-mail: glauciaborges@icloud.com.
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 251

é medida essencial para buscarmos a real tutela dos direitos e garantias das crianças e dos
adolescentes. Assegurar o mútuo dever dessas três entidades é buscar efetividade na aplica-
ção e salvaguarda dos direitos destas.
Nesse sentido, a presente pesquisa buscará demonstrar que, em verdade, quando se
trata da efetividade dos serviços de acolhimento familiar, a atual protagonista é a sociedade
civil. Do mesmo modo, buscará asseverar que com as Políticas de Acolhimento Familiar, o
Estado tem se afastado desse mútuo dever.
Para alcançar esse objetivo, o trabalho foi dividido em dois tópicos: o primeiro abor-
dará o conceito do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, pois foi visando a tutela des-
se direito que surgiu a necessidade de novas formas de acolhimento, bem como será feito
um breve histórico sobre o direito das crianças e adolescentes no Brasil, dando maior ênfase
às instituições, justificando o porquê da necessidade dessa nova forma de acolhimento fami-
liar. O segundo tópico versará sobre o protagonismo da sociedade na proteção dos direitos
e garantias das crianças e adolescentes quando abordamos o acolhimento familiar, demons-
trando a grande responsabilidade deixada pelo Estado para a sociedade civil na efetividade
do serviço e na garantia do Direito fundamental à Convivência Familiar e Comunitária. A
metodologia utilizada será a dedutiva, a de procedimento monográfica e técnicas de pesquisa
bibliográfica e documental indireta.

1 O acolhimento familiar como garantia ao direito à convivência familiar e


comunitária: uma perspectiva histórica e conceitual
No ordenamento jurídico brasileiro, o Direito à Convivência Familiar e Comunitária é
garantido com absoluta prioridade às crianças e adolescentes, tido como uma prerrogativa
essencial ao seu desenvolvimento enquanto seres humanos, sendo expressamente reco-
nhecido, entre outras normativas nacionais, mas especialmente na Constituição Federal (art.
227) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 19 e seguintes).
Incluído na constituinte de 1988 e tendo no Estatuto um capítulo inteiro destinado
para a tutela desse direito, incluindo junto ao título dos Direitos Fundamentais atribuídos a
essa população, é dito um Direito Fundamental das crianças e dos adolescentes. Os Direitos
fundamentais tratam-se da “[...] constitucionalização dos direitos humanos, ou seja, a sua
positivação no texto constitucional dos Estados, aplicáveis e vinculáveis de maneira imediata
[...]” (VIEIRA, 2013, p. 191).
Trata-se de um direito basilar, visando garantir, essencialmente, a manutenção da
criança e do adolescente com sua família natural e, excepcionalmente, em família substituta
(BRASIL, 1990b), de todo modo, visa assegurar o seu crescimento junto a uma entidade
familiar. Assim, independentemente do meio em que a criança ou o adolescente se encontre,
252 | GLÁUCIA BORGES

isto é, família natural, extensa, substituta ou até mesmo afastada do convívio de sua família
nuclear, os esforços devem ser para a garantia desse direito, pretendendo seu integral de-
senvolvimento (BRASIL, 1990b).
A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, sendo atualmente a norma in-
ternacional mais importante para o ramo dos direitos e garantias da população infantojuve-
nil, ratificada pelo Brasil em 1990 (BRASIL, 1990a), dispõe que as crianças que estiverem
privadas temporária ou permanentemente do seu meio familiar têm proteção e assistência
especial do Estado. Por sua vez, o Estado, enquanto parte ratificadora da Convenção, deve
garantir, conforme as leis nacionais, cuidados alternativos a essas crianças, adequados a
sua proteção.
Nesse sentido e, entre outras importantes garantias, foi visando tutelar o Direito à
Convivência Familiar e Comunitária para crianças e adolescentes cujo poder familiar esteja
suspenso ou destituído, que a Lei n. 12.010 de 2009, trouxe uma série de inclusões, emen-
das e vetos ao Estatuto. Essa lei consagrou a nível de normativa federal a possibilidade de
que o acolhimento de crianças e adolescentes que estivessem sob a condição de medida
de proteção de afastamento da família de origem não ocorresse somente mediante o acolhi-
mento institucional, regulamentando em lei o acolhimento familiar como uma das medidas
especiais de proteção do Sistema de Garantia dos Direitos das crianças e dos adolescentes
(BRASIL, 2009).
O acolhimento familiar é uma medida protetiva, excepcional e provisória, que se
dá diante da impossibilidade de manutenção da criança ou do adolescente em sua família
natural ou extensa (BRASIL, 1990b), preservando a Convivência Familiar e Comunitária en-
quanto o processo judicial de suspensão ou perda do poder familiar estejam em andamento,
evitando-se a numerosa institucionalização de crianças e adolescentes.
Isso porque o caminho da acolhida de crianças e adolescentes foi historicamente
marcado por uma série de descuidos e desproteções por parte do Estado, acabando por es-
tigmatizar instituições de acolhimento como ruins. Por isso, opções diversas se mostraram
viáveis e modificadoras dessa situação, buscando evitar a institucionalização em massa de
crianças em adolescentes. Atualmente, e em consequência disso, o acolhimento familiar
possui prioridade frente ao acolhimento institucional (BRASIL, 1990b). Nesse norte, ainda
que brevemente, faz-se importante entender a perspectiva histórica dessa população no Bra-
sil, especialmente com relação às instituições.
Em nosso país, desde o século XVI, quando da colonização portuguesa, havia um
tratamento diferenciado entre crianças e adultos, situação que as crianças e os adolescentes
eram considerados como categoria secundária, em que a proteção maior era destinada aos
adultos (CABRAL, 2012). “No Brasil-Colônia, regra geral, as crianças eram consideradas
pouco mais que animais. Comiam no chão e as que nasciam na escravidão eram, constan-
temente, objeto de brinquedo dos filhos dos senhores de escravos” (CABRAL, 2012, p. 23).
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 253

Além disso, a demora na abolição da escravatura e o advento da revolução industrial fez


com que mulheres “abandonassem mais os filhos”, bem como propiciando a demora por
parte do Estado em demonstrar preocupação efetiva para com as crianças e adolescentes
(CABRAL, 2012).
O advento da doutrina da situação irregular, com origem por volta do início do século
XIX, trouxe o Código de Menores em 1972, consolidando as legislações existentes sobre a
assistência aos ditos “menores” (CUSTÓDIO, 2008, p. 23-24). A dicotomia “criança/menor”
foi decorrência do recorte social promovido pela burguesia das sociedades europeias e se-
parou gradativamente os “filhos dos ricos” dos “filhos dos pobres” (LIMA, 2001, p. 22-23).
Em 1979, foi promulgada a nova edição do Código de Menores, por meio da Lei n. 6.697,
adotando explicitamente a doutrina da situação irregular (CUSTÓDIO, 2008). Essa doutrina,
segundo Custódio (2008, p. 24),

[...] produziu uma visão estigmatizada de infância e juridicamente era aprisionada


pelos conceitos positivistas clássicos da menoridade. A objetivação jurídica do con-
ceito de “menor” atribuía toda uma gama de políticas de tratamento à menoridade
legitimando o reforço de políticas de controle social, vigilância e repressão.

Em decorrência disso, crianças e adolescentes eram responsabilizados por sua si-


tuação dita irregular ou de abandono, especialmente no campo jurídico, pois a visão da crian-
ça e do adolescente enquanto “menores” legitimava as políticas de controle social (CUSTÓ-
DIO, 2008). Segundo Lima (2001, p. 24), a expressão “menor”, acabou ganhando o status
de expressão científica, identificando a categoria social do menorismo, numa perspectiva
sociocultural e jurídica.

Mais do que meras manifestações semânticas, a expressão “menor irregular” e o


termo “menor” constituíram, para a tradição menorista, formas de organização do
cotidiano, do mundo jurídico e político-assistencial destinado à grande maioria das
crianças e adolescentes brasileiros no período compreendido entre os anos 20 e anos
90 do século XX (LIMA, 2001, p. 24).

Ao trazermos essas concepções às crianças e aos adolescentes, desde a época co-


lonial, determinamos o modo pelo qual as relações sociais e jurídicas os tratavam, nas quais
instituições, órgãos e todo o sistema justificavam plenamente suas ações excludentes. Nas
instituições de colhimento e no sistema de adoção não foi diferente. Ressalte-se que estes
sofreram severas mudanças históricas.
A história da internação de crianças e adolescentes em instituições foi feita por meio
de modelos asilares de assistência à infância pobre (RIZZINI; RIZZINI, 2004). As crianças
ditas abandonadas ou delinquentes, mesmo que tivessem famílias, foram institucionalizadas
254 | GLÁUCIA BORGES

em grandes entidades fechadas que se chamavam orfanatos ou internatos, criando a cultura


da institucionalização (RIZZINI; RIZZINI, 2004).
Uma das modalidades mais conhecidas para bebês abandonados foi a roda dos
expostos, evitando que crianças recém-nascidas fossem abandonadas nas ruas ou em por-
tas de igrejas, surgindo no período colonial, com base nos costumes de Portugal e França,
e somente extinta na República (RIZZINI; RIZZINI, 2004). A roda dos expostos tratava-se,
literalmente, de uma roda, na qual os recém-nascidos eram depositados pelo lado de fora
das Santas Casas de Misericórdia. Após, as freiras giravam e as pegavam, preservando o
sigilo de quem desejava entregar o filho e dando oportunidade àqueles casais que estavam
impossibilidades de tê-los (SILVA FILHO, 2009).
Do período colonial até o século XIX, as crianças e os adolescentes eram tratados
considerando um caráter assistencialista, caritativo, em maioria por parte de instituições
religiosas, nas quais crianças abandonadas eram ainda mais excluídas (SILVA FILHO, 2009).
No século XX, as instituições religiosas passaram a ceder lugar para ações do governo e
crianças abandonadas, sendo colocadas em internatos ou orfanatos, trazendo aspectos his-
tóricos de crueldade (PASSETTI, 2000). Crianças pobres eram vistas como potencialmente
perigosas ou abandonadas, situação que o Estado estava focado em tirá-las dessa suposta
vida delinquente, internando-as e integrando-as prematuramente no mercado de trabalho
(PASSETTI, 2000).
Para os meninos órfãos e desviados foram criados colégios e internatos, e para as
meninas órfãs e desviadas, recolhimentos femininos religiosos (RIZZINI; RIZZINI, 2004). As
crianças indígenas, filhos de escravas ou os ingênuos (aqueles nascidos livres através da Lei
do Ventre Livre, de 1871) pouco puderam povoar os internatos, sendo ainda mais excluídos
(RIZZINI; RIZZINI, 2004).
Somente em 1828 surgiram as primeiras legislações referentes ao sistema de ado-
ção. O Código Civil de 1916, em vigor com o Código Menorista, tratou sobre a adoção dos
“menores em situação irregular” como um ato civil de aceitação de estranhos na qualidade
de filhos, como uma forma de supletiva, trazendo diferenciações no trato de filho adotivos e
biológicos. A propósito, os requisitos para que fosse possível adotar eram inúmeros, o que
dificultavam o ato e exigiu diversas alterações ao longo do tempo, por exemplo, a respeito
da idade dos adotantes e dos adotados, bem como da diferenciação da idade entre estes,
do tempo de casamento dos adotantes, prazo de esterilidade, direitos dos adotados, a forma
de constituição do ato, anulação da adoção, divisão entre a forma simples ou plena, entre
outros (SILVA FILHO, 2009).
Em decorrência da trajetória menorista, no plano nacional, foi por meio da Consti-
tuição Federal de 1988 que o primeiro passo foi dado para a melhoria na questão nacionais
dos direitos das crianças e dos adolescentes, inclusive quanto às institucionalizações, diante
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 255

do advento da Proteção Integral no plano internacional e sua incidência no ordenamento


nacional.
Mudanças significativas surgiram com essa teoria, construída aos poucos em trata-
dos internacionais e confirmada com todas as suas particulares diretrizes pela Convenção
sobre o Direito das Crianças, de 1989. A Proteção Integral foi devidamente incluída em nossa
Constituição antes mesmo da promulgação da Convenção, rompendo com as práticas me-
noristas e buscando efetiva proteção às crianças e aos adolescentes, pois passaram a ser
reconhecidos como sujeitos de direitos e pessoas em peculiar condição de desenvolvimento
(CUSTÓDIO, 2008).
Uma dessas mudanças foi o reconhecimento da necessidade de proposição de Polí-
ticas Públicas especialmente destinadas ao cuidado e proteção das crianças e adolescentes,
proporcionando a estes melhores condições de vida e desenvolvimento sadio (LIMA; PAGA-
NINI, 2017). Do mesmo modo se deu com relação ao Direito à Convivência Familiar e Co-
munitária, que surgiu junto à atual Constituição, ou seja, há pouco (LIMA; PAGANINI, 2017).
Analisando as antigas formas de tratamento de crianças e adolescentes, especial-
mente daquelas afastadas do convívio familiar, levando em consideração antigas práticas
de institucionalização, dar a elas uma alternativa diferente, como é o caso do acolhimento
familiar, se mostrou uma forma de garantia da manutenção desse direito enquanto a situação
não é resolvida, seja com a reintegração familiar ou com a colocação em família substituta.
O acolhimento familiar, por sua vez, apareceu pela primeira vez em documentos
regulamentários na Política Nacional da Assistência Social (Pnas), de 2004, depois, no Plano
Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convi-
vência Familiar e Comunitária, em 2006, nas Orientações Técnicas sobre os Serviços de
Acolhimento para Crianças e Adolescentes, em 2009 e, por fim, regulamentado no Estatuto
por meio da Lei n. 12.010, em 2009.
Contudo, essa forma de acolhida tem dado à sociedade civil uma grande responsa-
bilidade, frente à ineficácia do Estado em implementar estruturadas instituições de acolhi-
mento, preparadas para o recebimento de crianças e adolescentes, dando à sociedade civil a
responsabilidade na efetividade do serviço e no Direito à Convivência Familiar e Comunitária.

2 O protagonismo da sociedade civil na efetividade do serviço de


acolhimento
Em um contexto contemporâneo de sociedade, a participação social tem sido um
fator gritantes para a formulação de uma nova perspectiva estatal, sendo os atores sociais
um dos fundamentos necessários para a construção de novos paradigmas, especialmente
os comunitários e participativos (VIEIRA, 2013). Assim, surgem os chamados novos mo-
256 | GLÁUCIA BORGES

vimentos sociais, por meio da interação da sociedade civil nas necessidades fundamentais
de todos os seres humanos, ou seja, em prol da coletividade, se desenvolvendo a partir das
necessidades da própria sociedade (VIEIRA, 2013), buscando modificar o caminho pelo qual
algumas categorias ou classes trilhavam, como é o caso das crianças e adolescentes.
Foi por meio de diversos movimentos sociais que houve uma mudança no Brasil,
fazendo com que os Direitos Fundamentais e sociais fossem devidamente contemplados
em nosso ordenamento jurídico (LIMA; PAGANINI, 2017). Isso fez com que as crianças e
adolescentes se tornassem atores sociais reconhecidos e tivessem a favor de si legislações
específicas e capazes de atuar em prol de sua proteção (LIMA; PAGANINI, 2017).

Essa é a realidade do atual processo social em que a sociedade civil, articulada em


suas organizações representativas em espaços públicos, passa a exercer um papel
político amplo de construir alternativas nos vários campos de atuação do Estado e
de oferecê-las ao debate público, coparticipando, inclusive, na sua implementação e
gestão (TEIXEIRA, 2002, p. 6).

Com isso, a sociedade civil tem protagonizado setores, influenciando diretamente o


Estado na formulação de políticas públicas, como foi o caso dos acolhimentos familiares,
que se iniciou informalmente e não diretamente por ações governamentais (ABTH, 2015).
Para tanto, essa participação protagonista da sociedade não pode excluir as ações do Estado
(VIEIRA, 2013).
O protagonismo da sociedade aqui descrito é aquele cujas ações se tornaram tão
importantes ou demonstraram bom funcionamento que influenciam nas ações do poder
público, diferentemente de quando tratamos das responsabilidades legais cuja atribuição é
dada a mais de uma entidade, mas uma acaba se sobressaindo por omissão voluntária da
outra. Ter a sociedade civil envolvida não se trata de equívoco, mas sim de exercício dos
direitos de cidadania e participação, além de um dever, quando tratamos das crianças e dos
adolescentes. O problema pode existir quando o Estado deixa a responsabilidade ou, pelo
menos, a maior e mais difícil parcela desta, sobre uma única entidade, o que não é adequado
visto que o dever é equânime.
Quando falamos de direitos reconhecidos pela Constituição Federal no que tange aos
destinados à população infantojuvenil, sob o manto da Proteção Integral, sabe-se que a res-
ponsabilidade pela garantia e manutenção destes é dada à tríplice responsabilidade compar-
tilhada, ou seja, à família, à sociedade e ao Estado, de maneira solidária (BRASIL, 1988). Isso
quer dizer que ao Estado não cabe a responsabilidade subsidiária no que tange à proteção
integral de crianças e adolescentes, mas sim a responsabilidade solidária/igualitária. No caso
do Estado, primeiro, este deve auxiliar as famílias para que possam assegurar os direitos dos
seus filhos e, em caso de impossibilidade, incumbir-se de fazê-lo.
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 257

Mais do que isso, quando tratamos sobre as medidas especiais de proteção, o Es-
tatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990b) deixa claro que um dos princípios que
regem sua aplicação é o da responsabilidade primária e solidária do poder público. Isso quer
dizer que para a plena efetivação dos direitos assegurados a crianças e a adolescentes pelo
Estatuto e pela Constituição Federal, salvo nos casos por esta expressamente ressalvados,
é de responsabilidade primária e solidária das três esferas de governo a aplicação das me-
didas de proteção, sem prejuízo da municipalização do atendimento e da possibilidade da
execução de programas por entidades não governamentais. Assim, devem ser observadas
as Políticas Públicas destinadas às crianças e adolescentes, nas quais a responsabilidade
não deve ser imposta tão somente à família ou à sociedade, especialmente quando se tratar
de medida de proteção, pois maior ainda deve ser o protagonismo do Estado.
As Políticas Públicas destinadas a crianças e adolescentes acolhidos estão localiza-
das dentro dos serviços de proteção social especial da Assistência Social, que se dividem
em média e de alta complexidade (BRASIL, 2004).

A proteção social especial é a modalidade de atendimento assistencial destinada a


famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por
ocorrência de abandono, maus-tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de
substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de ria,
situação de trabalho infantil, entre outras (LIMA; PAGANINI, 2017, p. 143-144).

Segundo a Política Nacional de Assistência Social (Pnas), os acolhimentos familiares


se enquadram nos serviços de alta complexidade, sendo aqueles que “garantem proteção
integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido” (BRASIL, 2005, p. 38).
Sendo um serviço tão complexo e especial, deve ter, sem dúvidas, a devida atenção do poder
público.
Contudo, o serviço de acolhimento em uma família acolhedora acaba tendo como
protagonista a sociedade civil para a sua manutenção, pois, a atuação principal do serviço
será feita por pessoas da sociedade civil devidamente cadastradas em forma de famílias
acolhedoras, selecionadas e capacitadas para receber em seus lares crianças e adolescen-
tes cujo poder familiar esteja suspenso (BRASIL, 1990b). Segundo Lima e Paganini (2017,
p. 146), o serviço de acolhimento em Família Acolhedora propicia justamente “o atendimento
em ambiente familiar, garantindo atenção individualizada e convivência comunitária, permi-
tindo a continuidade da socialização da criança/adolescente”. A propósito, se a criança ou o
adolescente teve a necessidade de ser colocado em um serviço de acolhimento, entre outros
direitos, o da Convivência Familiar e Comunitária dirigido inicialmente a sua família de origem
falhou, por isso a prioridade de colocação em acolhimento familiar do que o institucional.
258 | GLÁUCIA BORGES

Aqui, faz-se importante a menção da distinção nas terminologias utilizadas para os


serviços de acolhimento em lares. Quando se fala em acolhimento familiar ou serviço em Fa-
mília Acolhedora e até mesmo o muitas vezes (erroneamente) chamado de programa família
acolhedora, o termo “família” urge. Porém, aqui não podemos confundir, pois não tratamos
de “família” enquanto aquela primeira entidade citada no texto constitucional e no ECA. Esta
se refere ao conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si.
Quando falamos sobre o serviço de acolhimento familiar, as crianças e os adoles-
centes serão protegidos pela entidade sociedade civil, uma vez que os acolhedores não se
enquadram no sentido de família como o de família natural, extensa ou substituta. Por isso,
essas pessoas, ditas famílias acolhedoras, membros da sociedade civil, não podem estar no
cadastro de adoção (BRASIL, 1990b), ou seja, o processo de cadastro é diferente e estas
não passam pela fase de cadastro ou estágio de convivência, não podendo o acolhimento
caracterizar a possibilidade de adoção daquela criança ou adolescente, pois trata-se da exe-
cução de um serviço provisório de acolhida (BRASIL, 1990b).
O acolhedor, participante do serviço de acolhimento familiar, se tornará um presta-
dor de serviços. Seu lar, uma instituição de acolhimento. Com isso, temos que, apesar de
a criança ou o adolescente estarem dentro de um lar em cujo ambiente se encontra uma
entidade familiar, essas pessoas assim o fazem enquanto instituição e não enquanto entes
familiares do acolhido ou com animus de constituir família substituta. Não se pode confundir
o ambiente familiar a que serão colocadas com a entidade familiar em si.
Tratamos, nos serviços de acolhimento, de terceiros – enquanto membros da so-
ciedade – fazendo as vezes do Estado, isto é, atuando no acolhimento familiar, em vez de
o Estado investir em equipes preparadas e acolhimentos institucionais. Conforme se pode
verificar na Pnas, o acolhimento familiar trata-se de proteção colocada no mesmo nível de
complexidade do Atendimento Integral Institucional, da Casa Lar, da República, da Família
Substituta, das medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade, entre outros
(BRASIL, 2005).
Por esse ângulo, percebemos que a atuação do Estado no acolhimento familiar se
resume na escolha e capacitação das famílias, depois no acompanhamento destas – até
aqui, claro, se a organização do serviço for governamental, caso contrário sequer essa etapa
será feita pelo poder público – e em possível auxílio financeiro, vez que o Estatuto dispõe
que os recursos federais, estaduais, distritais e municipais podem ser usados com o fito
de manutenção desse acolhimento (BRASIL, 1990b). Não obstante, o cuidado, o zelo, a
responsabilidade, a observação dos deveres com relação ao direito à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, a
preservação destes com relação à negligência, discriminação, exploração, violência, cruel-
dade e opressão e à responsabilização com o direito à vida (BRASIL, 1988) fica para a família
acolhedora, quer seja, a sociedade civil.
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 259

A Assistência Social é legalmente tratada como um “direito de cidadania, política


pública, prevendo ações de combate à pobreza e promoção do bem-estar social, articulada
às outras políticas, inclusive a econômica” (TEIXEIRA, 2002, p. 9). Todavia, dependendo
da forma que são colocadas em prática, podem novamente ser confundidas com tradições
caritativas ou clientelistas, e “[...] este compromisso entre o Estado e a sociedade para a
criação de condições dignas de vida não vem se efetivando e a cultura da elite que tutela o
carente ainda se mantém” (TEIXEIRA, 2002, p. 9).

O campo da assistência social reestruturou-se em novas bases democráticas que


contemplam a participação popular e a descentralização político administrativa como
instrumentos a conduzir a implementação e a fiscalização das políticas socioassisten-
ciais intentadas pelo Estado brasileiro. Tais políticas devem sobremaneira priorizar a
emancipação humana e não mais transformas os indivíduos em meros receptáculos
de benefícios (LIMA; PAGANINI, 2017, p. 142).

Essa questão da omissão do Estado, que acaba dando à sociedade maior obrigação
quando abordamos o acolhimento familiar, pode acabar trazendo de volta as antigas práticas
assistencialistas, pois pode confundir-se com a ideia de solidariedade da sociedade que
abriga a criança necessitada. Essa abordagem não é boa nem para a população infantoju-
venil, que não será vista como sujeito de direitos, nem para a Assistência Social, que luta
há anos para modificar sua forma de ser concebida e mesmo para a sociedade, que ficará
sobrecarregada.
Na forma de agir do poder público, este vem necessitando e muito que a sociedade
protagonize o acolhimento familiar. O Estado simplesmente coloca em forma de lei a garantia
do acolhimento familiar, colocando-o como preferencial (ou seja, retirando a obrigação de
serem feitas boas instituições de acolhimento) e impondo que a sociedade civil faça tal papel.
Nesse aspecto, é possível que haja confusão entre o acolhimento familiar e as an-
tigas práticas benemerentes, pois o Estado, não podendo garantir às crianças e aos ado-
lescentes todos os direitos a eles inerentes em caso de afastamento de sua família natural,
coloca na sociedade civil toda a responsabilidade de fazê-lo. Por fim, cumpre frisar que a
sociedade civil também tem o dever de garantir os direitos de crianças e adolescentes, no
mesmo nível que a família e o Estado. Assim, não há óbice de que algum encargo seja a este
dado, já que houve a implementação do acolhimento familiar e há a falha da entidade familiar.
A objeção está na falta de solidariedade do Estado neste momento, deixando as crianças e os
adolescentes praticamente sob proteção única dessas pessoas, quando a teoria da Proteção
Integral diz o contrário.
260 | GLÁUCIA BORGES

Conclusão
Quando tratamos de crianças e adolescentes em medidas de proteção, afastadas de
sua família de origem, encontramos o desafio de a elas continuar a garantir, com absoluta
prioridade, entre outros diversos direitos, o da Convivência Familiar e Comunitária.
Conforme se verificou, diante da massificadora institucionalização da população in-
fantojuvenil, bem como por essas ditas instituições de acolhimento não terem oferecido no
passado as devidas condições de pleno e sadio desenvolvimento aos acolhidos. De tal modo
que o acolhimento familiar se mostrou como um assegurador dos seus direitos, um garanti-
dor da continuidade da convivência em ambiente familiar, principalmente quando a situação
dos acolhidos para com a família natural não se encontra definida.
Em contrapartida, também foi possível verificar que essas novas formas de aco-
lhimento deram à sociedade civil um protagonismo e uma responsabilidade quase que in-
dividual. Primeiro, porque a entidade familiar de origem está impossibilitada de fazê-lo ou
auxiliá-la e, segundo, porque o Estado, enquanto mantenedor de acolhimentos institucionais,
não estava preservando o Direito à Convivência Familiar e Comunitária, necessitando de su-
porte de outra entidade corresponsável no dever de salvaguardar os direitos infantojuvenis.
No entanto, apesar de o Estado, quando organizador do serviço, agir na capacita-
ção, seleção e acompanhamento das Famílias Acolhedoras, deixou para essas pessoas um
grande encargo, abstendo-se de melhor preparar os profissionais dos acolhimentos institu-
cionais, abrir mais instituições e/ou melhorar as existentes. Para essa Família Acolhedora,
enquanto o processo da suspensão do poder familiar durar (o que poderá ser muito tempo),
ficará toda a responsabilidade como se família de origem fosse.
A atuação da sociedade civil juntamente com o Estado para garantir o Direito à Con-
vivência Familiar e Comunitária é norma constitucional, sendo a sua participação um avanço
com relação à atuação na tutela dos direitos, conforme preconiza a Proteção Integral. Porém,
o Estado não pode se abster totalmente ou deixar a maior responsabilidade sob estas, sob
penda de prejudicar especialmente crianças e adolescentes, principalmente porque, quando
se trata de medidas de proteção, sua responsabilidade é primária.
Assim, a pesquisa compreendeu que o Estado, ao dar maior protagonismo à socie-
dade civil nos serviços de acolhimento, a submete a maiores obrigações no cuidado dos
sujeitos acolhidos, desrespeitando preceitos da teoria da Proteção Integral, preconizados
na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como em diversas
outras normas.
ACOLHIMENTO FAMILIAR| 261

Referências
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tação do Serviço de Família Acolhedora no Brasil, 1. ed. digital. Rio de Janeiro: Associação Brasileira
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BRASIL. Lei n. 12.010, 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13
de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga
dispositivos da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do
Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1 de maio de 1943; e dá outras providências.
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VIEIRA, Reginaldo de Souza. A cidadania na República Participativa: Pressupostos para a articulação


de um novo paradigma jurídico e político para os Conselhos de Saúde. Florianópolis, SC, 2013.
CAPÍTULO XVIII

EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA: REFLEXÕES


ACERCA DAS VIOLÊNCIAS NA INFÂNCIA

SÍLVIA CARDOSO ROCHA 1

Introdução
Este texto apresenta uma reflexão a partir dos estudos realizados no Núcleo de Estu-
dos e Pesquisas Vida e Cuidado (Nuvic)2 sobre violências, infâncias e os movimentos pre-
sentes na elaboração das políticas públicas para a temática. De maneira específica, traz um
recorte da pesquisa de doutorado apresentada em 2019 ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na Linha de Pesquisa Sujeitos,
Processos Educativos e Docência/Ensino e Formação de Educadores que teve por objetivo
compreender mediante o Protocolo Apoia Online e seu fluxo dentro do Programa de En-
frentamento à Evasão Escolar vinculado ao Ministério Público de Santa Catarina, como são
construídas as aproximações entre Educação e Justiça. Nesse intuito o campo da pesquisa
foi constituído por duas Escolas Públicas da Rede Estadual e duas Promotorias de Justiça da
Infância (MP), situadas nas cidades de Criciúma e Tubarão, na Região Sul de Santa Catarina.
Caracterizou-se como uma pesquisa documental e de campo, integrada a uma abordagem
etnográfica.
Os conceitos centrais da pesquisa versaram sobre as violências, com atenção aos
maus-tratos na infância. Para este artigo, entretanto, optei pelo recorte que evidencia a dis-
cussão entre a Educação, o Sistema de Justiça e a relação que é estabelecida na elaboração
das Políticas Públicas voltadas às infâncias. As violências são aqui entendidas a partir da
perspectiva de Arendt (2018). Assim sendo, a violência tem caráter instrumental e a domina-

1
Doutora e mestra em Educação, pesquisadora do Núcleo Vida e Cuidado (NUVIC) vinculado à Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora Pedagógica na Secretaria do Sistema de Educação de Morro da
Fumaça, SC. E-mail: silviaufsceduca@gmail.com.
2
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Violências, vinculado ao Centro de Ciências da Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).
264 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA

ção e a obediência são construídas pela coerção. Dessa forma, o domínio pela pura violência
advém do poder sendo perdido e, onde o poder encolhe, a violência instala-se. Caracteri-
za-se como um fenômeno complexo, que não se reduz às explicações simplistas em que a
complexidade do olhar assume o diálogo com o campo empírico para construir explicações
aproximadas sobre o fenômeno dos maus-tratos na infância. Nesse cenário, valoriza-se a
infância como experiência em travessia.
A pesquisa apontou, entre outros aspectos, que a distância que marca as relações
entre Escola e Sistema de Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como
norma associada ao seu conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regulari-
dade e como determinação de conduta. Além disso, evidenciou que a invisibilidade de tantas
crianças ou dos ninguéns junto aos equívocos nos dados oficiais compromete a criação de
Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e assegurar os direitos de crianças e
adolescentes.

1 O contexto investigativo: o programa apoia


O Programa de Combate à Evasão Escolar, intitulado Programa Apoia, é iniciativa
do Ministério Público catarinense, que nasceu em 13 de março de 2001 na cidade de Flo-
rianópolis/SC. Instituído pela Portaria n. 036 de 03 de abril de 2001, foi a primeira ação de
um programa mais amplo, denominado Justiça na Educação, programa que surge em 2000
com o objetivo de fortalecer a aliança entre o Sistema de Justiça e os Sistemas de Ensino,
o Ministério da Educação, por meio do Fundo de Fortalecimento da Escola (Fundescola), e a
Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Adolescência
(ABMP). Aborda o direito à educação a partir da ótica do Sistema de Garantias dos Direitos
da Criança e do Adolescente.
O acrônimo “Apoia” que se formou com o nome do formulário a ser empregado –
Aviso Por Infrequência de Aluno – resultou numa semelhança com o verbo apoiar, com o
intuito de apelar para a responsabilidade dos adultos quanto ao apoio dado para a criança e o
adolescente no empreendimento da trajetória escolar. A ideia central é apoiar, especialmen-
te a criança e sua família para que tal estudante consiga concluir seus estudos. O programa
surgiu com o propósito de atender dois objetivos: garantir a permanência de crianças e ado-
lescentes, de 07 a 18 anos de idade, na Escola para que concluíssem o Ensino Fundamental;
e promover o regresso à escola por parte de crianças e adolescentes que abandonaram os
estudos sem antes concluir o Ensino Fundamental. Com a publicação da Emenda Constitu-
cional (EC 59/2009) que traz a ampliação do Ensino Fundamental obrigatório para a faixa dos
04 aos 17 anos. O objetivo do programa pretendeu garantir que toda criança e adolescente
efetivasse o direito de cursar o Ensino Básico, com foco em crianças e adolescentes de 04
a 17 anos que não completaram o ensino obrigatório. Assim, o programa passou a atender
também a Educação Infantil.
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 265

Na evolução desse contexto surge, em 2013, o Termo de Cooperação 024/2013,


firmado entre o Ministério Público, Secretaria de Estado da Educação, União dos Dirigentes
Municipais da Educação do Estado de Santa Catarina, Federação Catarinense dos Municí-
pios, e a Associação Catarinense dos Conselhos Tutelares. O termo justifica-se pelo que
dispõem os artigos 205, 208 e 227 da Constituição Federal (1988); pelo artigo 56 do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente; pelo artigo 5º, parágrafo 1º, inciso III, da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/1996); pelo artigo 12 da Lei 9.394/1996; e
pelo artigo 6º da Lei n. 12.796/2013. Diante disso, o Apoia atua em rede na qual cada parte
interinstitucional (Escola, Conselho Tutelar e Ministério Público) assume o compromisso de
apoiar um estudante infrequente e trazê-lo aos espaços da sala de aula. Ainda para garantir
a efetividade dos objetivos que propõe, o programa é também firmado, em cada município,
com Termos de Adesão (em Criciúma Termo de Adesão n. 223/2014 e em Tubarão Termo
de Adesão n. 268/2016).
O órgão gestor do Apoia é o Centro de Apoio da Infância e Juventude (CIJ) que de-
senvolve estratégias para adequar o programa às necessidades das Promotorias de Justiça.
A Secretaria Estadual da Educação, mediante seu setor específico de processamento de
dados (controle e monitoramento realizado via Sistema de Gestão Educacional de Santa
Catarina - Sisgesc, antigo sistema série), tem a tarefa permanente de monitorar a evolução
do quadro da infrequência em todo o estado, repassando os dados aos demais parceiros.
Os Avisos por Infrequência de Alunos foram os instrumentos desenvolvidos para a
padronização dos procedimentos de enfrentamento à evasão escolar, facilitando o acompa-
nhamento do programa e servindo de referência para a formulação das Políticas Públicas.
Em 2013, o programa Apoia foi escolhido como uma das três atividades prioritárias do
Centro de Apoio da Infância e Juventude (CIJ) e o Ministério Público (MP) construiu um
novo projeto para a iniciativa, objetivando criar um sistema informatizado para substituir as
fichas de infrequência e fortalecer as Políticas Públicas intersetoriais. Com a implantação do
Sistema Apoia Online, em 2014, criado e implantado em parceria com a Secretaria de Estado
da Educação e o Centro de Informática e Automação do Estado de Santa Catarina (Ciasc), a
emissão de avisos por infrequência passou a ser realizada em uma plataforma Web, conecta-
da em tempo real com os parceiros do programa. Isso possibilitou a criação, monitoramento
e avaliação de estatísticas. A partir da iniciativa, o programa é intitulado Novo Apoia, eleito
prioridade institucional no Plano Geral de Atuação do MPSC, no ano de 2015.
O funcionamento do Sistema Apoia Online começa pela responsabilidade de profes-
sores(as) em monitorar, diariamente, a frequência escolar de cada aluno(a). Quando obser-
vada a ausência do(a) aluno(a) por cinco dias consecutivos, ou sete dias alternados, dentro
de um mês, o(a) professor(a) preenche a ficha de notificação inicial do Apoia e encaminha
para a equipe responsável pelo programa, ou para a Direção da Escola. No entanto, para ter
acesso ao sistema é necessário um login e uma senha, pois a entrada é restrita aos respon-
sáveis pelos encaminhamentos das ocorrências.
266 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA

Recebida a ficha de notificação inicial do Apoia, o profissional responsável pelo Pro-


grama na Unidade Escolar (equipe pedagógica, equipe do Núcleo de Prevenção às Violências
na Escola - Nepre - ou direção) deverá inserir os dados no sistema. Se após a Escola tomar
as providências cabíveis, como contato com a família e conversa sobre a responsabilidade
dos pais e/ou responsáveis quanto ao retorno do(a) aluno(a), além de outras ações nesse
sentido, não obtiver o retorno do(a) aluno(a) no prazo de sete dias, ou caso não encontre os
responsáveis, a Escola encaminha a informação ao Apoia e ao Conselho Tutelar (CT).
Na sequência, o CT recebe um e-mail com a notificação do Apoia contendo as infor-
mações básicas dos dados desse estudante. Logo, o CT para saber dos detalhes do caso
precisará entrar no sistema Apoia Online. Se o CT não conseguir o retorno do(a) aluno(a)
para a Escola, depois de tomadas todas as medidas relevantes, em um prazo de 14 dias, ou
não ter encontrado os responsáveis, o Apoia é encaminhado ao Ministério Público (MP) via
e-mail e via sistema.

2 Violências em (con)textos
As violências, como conceito, são aqui entendidas por um fenômeno complexo e
plural que carrega dados culturais compositórios da vida em sociedade. Olhar de outro modo
para as violências significa “jogar luz” sobre o ocorrido em nossa volta, não para clarear
algo oculto, mas para “limpar” a visão e enxergar sem embaçar o objeto que se olha. Vio-
lências evocam ambivalências que são constituintes dos comportamentos humanos: homo
sapiens, homo violens (DADOUN, 1998), criando ou destruindo a vida dependendo de onde
o ser humano coloca sua intenção e pode inclusive fazer uso da perversão para produzir vio-
lências (ROUDINESCO, 2008). A perversão como estruturação da nossa condição humana
(ARENDT, 2014) cria ambivalências em torno das atitudes de cuidado e proteção.
O que essa clareza pode proporcionar? Enxergar que o fenômeno das violências não
é algo externo a nós ou uma entidade fora de nós, mas que em sua análise e compreensão
pode ser pensada na sua condição humana e suas manifestações culturais. A condição hu-
mana, sob a perspectiva de Hannah Arendt (2014), não é sinônimo de natureza humana, mas
significa as formas de vida que o homem impõe para sua sobrevivência, de modo que variam
conforme o contexto histórico e social, sendo condicionadas por seus modos/movimentos
de operar no mundo.
Violências podem ser entendidas de maneira ampla, plural e inscritas como “figuras
de desordem” (BALANDIER, 1997 apud SOUSA; MIGUEL; LIMA, 2010) que contornam as re-
lações sociais e perpassam as situações de vulnerabilidade da infância. Sendo consideradas
um fenômeno paradoxal, suscitando silenciamentos e resistências, traumas e resiliências,
dor e prazer, repulsa e atração, interesses individuais e direitos coletivos, estão diretamente
ligadas à cultura, história, ciência, educação, crença e aos valores e contextos em que sur-
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 267

gem. Olhar para as infâncias e violências reivindica pensar a história da criança marcada pela
dinâmica relacional dos agrupamentos familiares e sociais de cada época e considerar que é
antigo o abandono social da criança e que na medida em que avançamos no tempo surgem
outras formas de abandono, por vezes, disfarçadas de “cuidado”.

Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam des-
se direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos
ricos como se fosse dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua.
O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em
lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do
televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia
e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças (GALEANO, 1999, p. 11).

As palavras de Galeano retratam o movimento de tensão entre o desejo das crianças


terem efetivamente seus direitos garantidos e a dura realidade vivida por elas na sociedade
contemporânea. A história mostra a ambivalência existente nas práticas de cuidado e pro-
teção. Essa condição agrava-se quando passamos a considerar os processos culturais nos
quais as crianças encontram-se inseridas, pois estes alteram a compreensão da universa-
lidade do direito. Portanto, a equação não é simples e complexifica-se ao consideramos os
processos de inserção social, os modos de vida e os processos culturais que contornam
as infâncias.
Hoje, passados 28 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), o assunto dos maus-tratos na infância ainda permanece sob um véu que obscure-
ce e/ou camufla situações que merecem ser desnudadas para avançarmos no caminho da
proteção às infâncias. Considerando sempre os processos culturais e os contextos micro-
políticos que contornam a proteção, a promoção e a provisão dos direitos das crianças, o
tema das violências é abordado e envolto por medo, constrangimentos e hipocrisia, além de
alguns fatores que atravessaram a trajetória dos direitos das crianças e que podem ajudar a
pensar sobre e por que esses sentimentos são alimentados até hoje.
Nessa reflexão, vale destacar que, a história do reconhecimento dos maus-tratos na
infância como violação de direito começa apenas em 1870 com o caso Mary Ellen. Mary,
vivendo sob a tutela de uma mãe substituta, estava em situação de negligência e submetida
aos abusos físicos por parte dos pais adotivos. A menina havia sido encontrada em casa
amarrada com marcas de agressão física e desnutrição. Etha Wheeler, funcionária de uma
agência de caridade em Nova Iorque denunciou o caso da menina Mary Ellen Wilson para
a agência e para a polícia, porém as instituições não encontraram, na época, amparo legal
suficiente para tomar posição em direção à proteção da criança. Somente no momento em
que Etha procurou auxílio da Sociedade de Prevenção da Crueldade contra Animais (Ame-
rican Society for the Prevention of Cruelty to Animals – ASPCA) encontrou alguma medida
268 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA

que tirou Mary da situação de abuso em que vivia. Baseado no recurso de que Mary Ellen
era um animal, a menina foi retirada da casa da mãe substituta, que cumpriu pena de prisão.
(GELLES; CORNELL, 1990).
Depois do desfecho do caso, em 1875, a Sociedade de Nova York para a Prevenção
da Crueldade contra a Criança (The New York Society for the Prevention of Cruelty to Children
- NYSPCC) foi a primeira agência com a finalidade de proteção de crianças em situação de
vulnerabilidade. Tal organização continua atuando até os dias de hoje nos EUA e sua criação
imediatamente inspirou a formação de outras sociedades no mesmo país.
Nesse período surgiu também o primeiro artigo médico sobre o tema dos maus-tra-
tos na infância, escrito por Tardieu, professor francês de Medicina, no qual o autor analisou
os resultados das autópsias de crianças com menos de cinco anos que vieram a óbito por
morte violenta em que se evidenciava que tais crianças teriam sido mortas por violências co-
metidas pelos pais. Cabe dizer que Tardieu foi provavelmente “o representante mais perverso
do discurso positivista da medicina mental, que teve como objetivo confesso descrever ao
infinito os danos de uma sexualidade dita ‘desviante’, de que o Estado democrático queria se
proteger” (ROUDINESCO, 2008, p. 89).
Os trabalhos publicados pelo referido médico pautavam-se no discurso higienista
que sustentariam a ciência criminal e a dicotomia entre uma raça “boa” e outra “ruim” além
do estigma dos “perversos”. Sobre o conceito de perversão, Elizabeth Roudinesco proble-
matiza:

Dar cabo da perversão. Eis, portanto, na atualidade, a nova utopia das sociedades
democráticas globalizadas, ditas pós-modernas: suprimir o mal, o conflito, o destino,
a desmedida, em prol de um ideal de gestão tranquila da vida orgânica. Por outro lado,
não haveria o risco de um projeto desse tipo ser capaz de fazer ressurgir, no seio
da sociedade, novas formas de perversões, novos discursos perversos? Não seria
ele capaz, em suma, de transformar a própria sociedade numa sociedade perversa?
(ROUDINESCO, 2008, p. 164).

A perda da inocência talvez nos possibilite compreender os excessos pelos quais


se anuncia a parte obscura de nós mesmos (ROUDINESCO, 2008) e entender que enfrentar
as violências com base em dualismos e/ou binarismos não tem nos levado muito longe no
caminho da Proteção. O movimento para “suprimir o mal” tem solidificado estereótipos e
estigmas que se inscrevem em torno de noções como o perverso, o bem e o mal, vítima e
agressor, bom e ruim, certo e errado, suscitando ainda outras violências. Ao suspender as
convicções e suspeitar do que parece óbvio ou naturalizado, dito como verdade, criamos
espaço para outro enunciado. Começar algo novo é uma habilidade do homem político que
pode criar possibilidades para compreender as violências na condição do humano e na cul-
tura que nos humaniza e molda nossas relações com os outros e consigo.
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 269

Nem a violência nem o poder são fenômenos naturais, isto é, uma manifestação do
processo vital; eles pertencem ao âmbito político dos negócios humanos, cuja quali-
dade essencialmente humana é garantida pela faculdade do homem para agir, a habi-
lidade para começar algo novo (ARENDT, 2018, p. 103).

A perversidade não está apenas isolada na pessoa, está no sistema que banaliza o
mal. Diante da banalidade do mal, faz-se urgente a criação de medidas protetivas para a vida,
medidas que nos protejam do totalitarismo, da perversidade do sistema que nega o direito
de determinados grupos de dispor da vida e naturaliza o sofrimento de outros. Imerso na
“política dos afetos”, o que faz do homem um ser político é sua faculdade para a ação. A
ação ou ato político de quem educa não poderia apenas voltar-se para o “desenvolvimento
da criança”, mas também para a própria “continuidade do mundo” (ARENDT, 2000, p. 235).
Assim, agir no mundo de outro modo, olhar por outro ângulo, é retirar os antolhos e olhar de
perto as estatísticas referentes aos maus-tratos das crianças no Brasil e no mundo. É agir na
construção de uma cultura de paz e de uma cultura democrática que avance na compreen-
são do fenômeno das violências e evolua rapidamente na construção de Políticas Públicas
conscientes de que “a prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança
mais provável é para um mundo mais violento” (ARENDT, 2018, p. 101).
No Brasil vivem 63 milhões de crianças e adolescentes; destas, 46% das menores
de 14 anos vivem em domicílios com renda per capta de até meio salário mínimo; ainda,
132 mil famílias são chefiadas por crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos (IBGE, 2010).
Nesse contexto ocorrem, em média por ano, 82 mil denúncias de violação de direitos contra
as crianças, e de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF BRASIL,
2017)3, a cada sete minutos, no mundo, uma criança morre por ato de violência. Portanto, e
diante de números tão alarmantes, este texto nasceu das tensões que rondam os discursos
da infância e o exercício dos direitos da criança. O relatório de 2017 sobre os números das
violências contra crianças, apresentado pela Organização Social Visão Mundial4, aponta o
Brasil como o líder no ranking de violência contra a criança dentro da América Latina. No
recorte nacional, o estudo apontou que três em cada dez pessoas conhecem pessoalmente
uma criança que já sofreu violência.
As situações de maus-tratos na infância são consideradas pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) um caso de saúde pública mundial. No Brasil, por exemplo, “o total de de-
núncias recebidas pelo serviço Disque Denúncia Nacional 100, no período de maio de 2003
até dezembro de 2010 foi de 2,5 milhões de atendimentos tendo recebido e encaminhado

3
Relatório disponível em português: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/unicef_relatorios/violencia_
na_vida_de_criancas_e_adolescentes_unicef2017_resumo_port.pdf Acesso em: 26 abr. 2018.
4
Disponível em https://www.cenpec.org.br/wp-content/uploads/2019/07/percepcao-brasileira-violencia-crian-
cas-ipsos.pdf Acesso em: 29 nov. 2018.
270 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA

mais de 145 mil denúncias de todo o país” (BRASIL, 2018, p. 48). As violações mais relata-
das são a negligência, agressão psicológica e violência física.
O aumento das denúncias de violência sofridas por crianças e adolescentes está
relacionado a uma série de fatores que vão desde a piora na situação econômica do país, o
que influencia diretamente nas relações familiares, até uma maior conscientização da popu-
lação em relação à existência do canal “Disque 100”. O reconhecimento tardio das violações
de direitos das crianças e a dificuldade de identificação das variadas formas de violência ou
de situações caracterizadas como maus-tratos são resultado de concepções equivocadas,
diferenças culturais, tradições, preconceitos e estigmas deixando um legado duro e desafia-
dor para os dias atuais.
Encarar dados estatísticos alarmantes sobre nossa sociedade, ainda mais porque
envolvem as crianças, pode ser doloroso, porém é necessário dentro da Rede de Proteção,
uma vez que “compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com
atenção, e resistir a ela – qualquer que seja” (ARENDT, 2012, p. 12). Retomo neste texto,
a constatação de que não é simples formular uma definição de maus-tratos, ou ainda, “ne-
nhuma definição pode dar conta da complexidade de todo e de cada caso de maus-tratos”
(CANHA, 2003, p. 10). Maus-tratos aqui são entendidos como toda e qualquer violação dos
direitos de crianças. Ou ainda, como atos ou omissões que comprometem o cuidado e a pro-
teção da criança e que resultam no comprometimento de seu desenvolvimento emocional,
físico, intelectual ou social (BENETTI, 2002).
As violências e/ou os maus-tratos contra crianças são praticados por diversos ato-
res e em diferentes lugares e com uma constância assustadora ao longo da história e não
menos na contemporaneidade. A superação deste mal passa pela compreensão de que as
classificações padronizadas oferecem sinais e indícios de um corpo violentado, mas não é o
suficiente para analisar toda a dimensão do sofrimento que vivem as crianças e as famílias;
por isso, é preciso considerar que, enquanto um fenômeno complexo, se gesta em diferentes
contextos sociais, envolvendo aspectos multidimensionais, geracionais, históricos, econô-
micos, políticos, culturais, nos âmbitos do privado e do público.
No entanto, a definição de maus-tratos e sua identificação é o que permite a denúncia
e o encaminhamento dos casos na busca da proteção à vida daqueles/daquelas que sofrem
violências. A especificação das violências e/ou maus-tratos serve para a criação de indica-
dores que possibilitam Políticas Públicas de intervenção e prevenção, além de estudos das
violências.

3 Educação, sistema de justiça e políticas públicas


As instituições, dentro das esferas Educacional e Judicial, nem sempre se encontram
em sincronia, e são peças que, muitas vezes, não se encaixam no mosaico do Programa. No
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 271

entanto, corroboram com a opinião de que não é somente pelo fato do direito à Educação
estar claramente enunciado na Constituição que ele será garantido, pois

[...] no mais das vezes o que temos não é uma simples negação do direito à Educa-
ção; antes o contrário, a todo tempo se destacam os avanços. Ainda assim, um dos
problemas centrais do sistema educacional brasileiro parece ser a forma desigual
com que os alunos são tratados, ou seja, os recursos humanos e materiais são distri-
buídos de maneira desigual na sociedade, aumentando as oportunidades para alguns
grupos e reduzindo a oportunidade para os demais (VIEIRA; ALMEIDA, 2013, p. 13).

A citação dos professores de Direito, supraenunciada, aproxima-se dos dados en-


contrados sobre o fluxo do Protocolo Apoia. De maneira alguma se nega o direito à Educa-
ção, no entanto, a sua garantia efetiva encontra-se travada diante dos obstáculos enfrentados
pelas instituições vinculadas tanto à Educação quanto à Justiça. Entraves da ordem dos
“despachos”, dos orçamentos, dos itinerários das equipes e da própria compreensão do
fluxo idealizado em seu Projeto.
Percebe-se claramente um entrave no desempenho do fluxo do Programa, o que é
ocasionado por diversos fatores, alguns elencados na seguinte narrativa: “a relação entre
Educação e Justiça é distante ainda, (risos). Percebemos que a Rede é falha. Não está inter-
ligada, nem conectada, é uma relação fragmentada” (Educadora 4)5.
Diante dessa narrativa, foi possível reafirmar a hipótese de que a distância que marca
as relações entre Escola e Sistema de Justiça é expressão do entendimento da atuação da
Justiça como norma associada ao seu conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma
como regularidade e como determinação de conduta. Nas brechas dessa distância ou nas
lacunas que separam as duas áreas distintas estão os atrasos do Protocolo, a invisibilidade
das violências sofridas pelas crianças e a falta de clareza e objetividade quanto aos cuidados
e à acolhida necessários às crianças e famílias em situação de vulnerabilidade social. As
seguintes narrativas confirmam essas lacunas:

Olha. A gente está muito longe do que precisaria. Porque os APOIAs custam a dar
respostas. Então a gente passa como tu visses ali, tem aquele monte de alunos,
mais esse ano todos esses aqui que eu já perdi a conta [...]. Não sei quantos tem.
(Educadora 1)6.

Tem muitas divergências de opiniões entre os setores. Eu acho que ainda falta alguma
coisinha nesse meio. É que nem a gente comentando ali, de nós pro CT já falta, quem

5
Informação contida no Diário de Campo de 05 de julho de 2018.
6
Informação contida no Diário de Campo de 04 de julho de 2018.
272 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA

dirá nós escola pra Promotoria. Então é bem complicado. Nesses anos todos eu nun-
ca vi a presença do MP na escola. (Educadora 2)7.

[...] Então pensando Educação e Justiça relacionada ao APOIA é uma forma de (si-
lencio). É um canal que deveria estar interligado, mas não há não. Na real acho que
ainda não estamos nesse nível de maturidade (risos) eu achei a palavra. Então falta
o diálogo entre os atores ali, os três atores principais dentro do sistema APOIA: UE,
CT, MP. E falta a conscientização, de cada um saber o seu papel dentro pra de fato a
gente garantir a Educação e assim garantir também a Justiça porque é justo a criança
ter aceso a Educação. (MP 2)8.

Quando a Rede não se conecta como deveria interfere em todo o fluxo de um traba-
lho. No caso do Apoia, comprometendo o fluxo do Protocolo e do trabalho que potencialmen-
te poderia ser realizado no que diz respeito às causas da evasão. A dúvida da fidedignidade
dos dados estatísticos e o descumprimento dos prazos por parte de cada órgão responsável
pelo Protocolo comprometem possíveis mudanças no quesito das demandas sociais que
poderiam gerar processos e articulações culminando na construção de Políticas Públicas
voltadas para as infâncias.
Como bem narrado pelos sujeitos entrevistados, a informatização da plataforma foi
um avanço importante para que os setores da Educação e da Justiça se conectassem ra-
pidamente junto aos demais órgãos que compõem a Rede de Proteção. No entanto, não foi
suficiente para agilizar os processos e demandas oriundas do Protocolo. Indiscutivelmente,
a possibilidade de a Rede estar conectada de maneira constante é um avanço fundamental
para facilitar a garantia dos direitos das crianças, principalmente daquelas que se encontram
em situação de vulnerabilidade social. Hoje, mais do que nunca, esse canal direto de parti-
cipação e atuação político/social precisa estar aberto contra o risco eminente de fragilização
da nossa democracia.
Cabe aqui assinalar a importância da participação do trabalho da Assistência Social
nos casos, pois o MP realmente precisa antes da aplicação de medidas socioeducativas ou
penalidades estar atento às vulnerabilidades dessa população e com seu aparato técnico jun-
to aos aparatos da Assistência Social promover os cuidados e orientações às quais demanda
cada situação de vulnerabilidade. Nessa direção, seria possível diminuir a cultura punitiva e
acentuar a cultura de uma Educação e Justiça voltadas para inclusão de todos e todas.
Para que a Assistência Social atue nos casos de Apoia depende exclusivamente
da compreensão de cada promotor(a) sobre sua relevância na avaliação da vulnerabilidade
de cada caso. Como relata uma Assistente Social entrevistada, a sua atuação depende do
“chamado” do promotor responsável pelos casos Apoia:

7
Informação contida no Diário de Campo de 13 de agosto de 2018.
8
Informação contida no Diário de Campo de 31 de agosto de 2018.
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 273

Em algumas Promotorias não tenho nenhuma intervenção porque depende da com-


preensão de cada promotor. Eu sou um suporte técnico das promotorias. Então, cada
Promotor/a requisita se acha que precisa ou não. Vai ter Promotor que me demanda
trabalho, tem outros que passam aqui passam ali e não me chamam. Eu acho que
na específica da infância eu tenho esse trabalho e que envolve o contato com toda
a Rede indiretamente. Penso que no caso específico do APOIA precisamos pensar
na Proteção Integral. Aí a partir do Protocolo podemos olhar pra criança, pra esse
aluno, pra essa pessoa e ver que ela tem outras demandas que influenciam nos casos
de evasão ou que isso está relacionado aos maus-tratos, a outras violações. E que
isso é proteção integral e proteção integral cabe a todos. A gente acaba ficando nos
compartimentos. A Educação muitas vezes, ela acha que a responsabilidade dela no
APOIA é informar a evasão e fica por isso mesmo. (MP 2)9.

Em relação aos entraves, atrasos, obstáculos ou questões de intercomunicação en-


tre a Rede de Proteção, responsabilidade quanto aos prazos dos encaminhamentos de cada
órgão, diante disso e para além disso, trago a seguinte questão: o quanto a Justiça e seus
setores da Infância e Juventude contribuem para a promoção dos direitos à Educação e para
a construção de Políticas Públicas? Sobre isso proponho algumas narrativas que reiteram a
importância do Sistema de Justiça para a efetivação dos direitos das Infâncias e dos obstá-
culos encontrados na sua concretização, dificuldades identificadas pelo fato de os direitos
serem objeto de disputa, divergências de compreensão sobre a quem cabe tais obrigações
e escassez de recursos.
Sem dúvida a vitalidade de uma sociedade civil, atuante e organizada, potencializa o
MP a agir e cumprir seu papel. Conselhos como os Municipais ou os da Criança e do Ado-
lescente expõem e dão visibilidades para as tantas vulnerabilidades, carências, exclusões
sociais e riscos os quais estão expostas as crianças. São essas organizações que irão pres-
sionar MP e governantes a construírem Políticas Públicas condizentes com os propósitos
constitucionais.
Aqui, quando se trata de Apoia, o fim não deveria apenas pôr fim ao processo ou Pro-
tocolo, mas antes e, além disso, tratar o problema, a causa da evasão e/ou da infrequência.
Talvez o MP no que se refere ao direito à Educação precise ser mais ousado, como afirmam
Vieira e Almeida (2013):

[...] não apenas o Judiciário, mas também os operadores jurídicos (Ministério Público,
Defensorias e Advogados de interesse público) têm sido muitas vezes pouco ousados
na formulação de pedidos e remédios para problemas complexos, pois miram mais
na concessão de um benefício do que na solução estrutural do problema. Não que

9
Informação contida no Diário de Campo de 31 de agosto de 2018.
274 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA

estes pedidos não possam e devam ser feitos, mas a discussão sobre a qualidade do
processo decisório pode ser mais proveitosa para que as instituições se qualifiquem,
estruturando as políticas públicas de forma a atender mais adequadamente as aspira-
ções constitucionais. (VIEIRA; ALMEIDA, 2013, p. 17-18).

Os problemas, entraves e obstáculos no fluxo do Apoia apontam ao MP a necessi-


dade de uma reformulação do Programa que avance na capacidade de atender as demandas
em relação aos direitos fundamentais e suscita a criação de um movimento com audácia
suficiente para abandonar a culpabilização da família em torno da infrequência, e a coragem
para criar ferramentas outras identificando as demandas complexas e estruturais que envol-
vem as famílias. Corroborando com tal pensamento, Silveira afirma em uma análise sobre a
gestão da informação na área de direitos humanos da criança e do adolescente:

[...] a intensidade da produção, circulação e tradução dos novos dispositivos de saber


e poder – que passaram a brotar como rizomas em diversos pontos da rede de aten-
dimento e proteção no curso da década de 1990 – , aliada a sua alta heterogeneidade,
tem dificultado sobremaneira a criação de mecanismos de ordenação, sistematização
e agenciamento por parte do poder público (SILVEIRA, 2015, p. 73).

Cria-se uma desorganização entre os dispositivos de poder, o exercício prático da


governamentalidade e a concepção das Políticas Públicas que são apresentadas dentro des-
se contexto. A sociedade precisa atentar-se aos efeitos perversos das várias formas de
violência e denunciar os casos identificados ao Ministério Público e à Rede de Proteção, para
que a responsabilização do poder público omisso seja levada a cabo e a proteção integral
das crianças assegurada. A invisibilidade de tantas crianças junto aos equívocos nos dados
oficiais compromete a criação de Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e
assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Essa situação perversa é a expressão das
desigualdades e/ou de violência estruturante que, “se caracteriza pelo destaque na atuação
de classes, grupos ou nações econômicas, ou politicamente dominantes, que se utiliza de
leis e instituições para manter sua situação privilegiada, como se isso fosse natural” (MINA-
YO, 1994, p. 83 apud GIRON, 2010, p. 50).
Ainda estamos avançando nesse novo quadro conceitual apresentado pelo Estatuto,
por exemplo, a “proteção integral” não substituiu a “cultura da internação”; o castigo e a
disciplina não foram excluídos, mas tem outra forma conceitual chamada “medida socioedu-
cativa” e esses componentes controversos da governamentalidade coexistem e são sentidos
no cotidiano ora de maneira criativa, ora conflituosa dentro da Rede de Proteção.
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 275

Conclusão
As narrativas sobre o Programa Apoia evidenciam que o referido protocolo confi-
gura-se como um dispositivo regulador da família e da infância e atua como extensão do
Estado, regulando, mediante leis e normas, os comportamentos das famílias, de educado-
res(as) e dos adultos no cuidado com as crianças. Essa situação é decorrente da intensifi-
cação do complexo fenômeno da judicialização da vida, em que consequentemente ocorre
a judicialização da infância. O fenômeno de judicialização da infância cria um conjunto de
saberes voltados à formulação de leis e normas que amparam a entrada do Estado de ma-
neira intensa na vida das famílias em nome da defesa, da garantia e da proteção dos direitos
das crianças e dos adolescentes.
A Escola no contexto dos (des)encontros com os coparticipantes do Programa
acaba sendo, de maneira incongruente, colocada como delatora da família. Isso pode ser
comprovado nos desconfortos ocasionados na relação Escola e família. Os órgãos de Pro-
teção assumem, em relação às famílias da criança em situação de evasão, uma postura de
culpabilização, camuflando questões importantes que perpassam as relações construídas
no cotidiano escolar e também as responsabilidades do Estado quanto às Políticas Públicas
que poderiam (se construídas) atender ao bem-estar da população.
O Protocolo, ainda que nos documentos oficiais traga a narrativa de proteção inte-
gral da criança, carrega o peso da gramática analítica e jurídica que tipicamente atende as
dualidades vítima e agressor e a negatividade que carrega as noções de “pobre”, “menor”
e “periférico”. Dentro dos processos de judicialização da vida, o aumento da criação de
leis e normas altera as relações sociais, sendo que tais normas, leis e regulamentos criam
subjetividades e assujeitamentos sempre sustentados em nome da ordem e da segurança.
As narrativas dos sujeitos entrevistados apontam que a Rede de Proteção não se co-
necta como deveria comprometendo o fluxo do Apoia. A dúvida da fidedignidade dos dados
estatísticos e o descumprimento dos prazos, por parte dos órgãos responsáveis pelo Pro-
tocolo, comprometem possíveis mudanças no quesito das demandas sociais que poderiam
gerar processos e articulações que implicariam a construção de Políticas Públicas voltadas
para as infâncias. No entanto, a informatização da plataforma foi um avanço potente para
que os setores da Educação e da Justiça conectem-se rapidamente junto aos demais órgãos
que compõem a Rede de Proteção, embora não seja suficiente para agilizar os processos e
demandas oriundas do Protocolo.
Os atrasos no fluxo do Protocolo atrapalham o retorno das crianças infrequentes e
evadidas da Escola e por consequência contribui no agravamento das situações de vulne-
rabilidade nas quais se encontram alunos e alunas protocolados no Apoia. Não podemos
esquecer que a invisibilidade dada às minorias é uma invisibilidade produzida e que reflete as
perversidades cometidas pelo Estado. Entre tais perversidades está a má gestão de seus re-
276 | SÍLVIA CARDOSO ROCHA

cursos humanos e financeiros, como a diferença na arquitetura entre os espaços da Justiça


e da Educação e que reforça o status quo dessas instituições.
Questões como raça, etnia, classe, gênero, sexualidade, território, cultura estão au-
sentes dos marcadores do Protocolo. Diante do fato de que, as violências encontram-se
em diferentes contextos e dispositivos, essa ausência contribui para a invisibilidade de
questões sérias e urgentes relacionadas a diversas formas de maus-tratos. Por exemplo, o
Protocolo, ao mostrar os dados que representam a idade das crianças vinculadas ao Apoia,
poderia relacionar esses números e cruzar com questões como o trabalho infantil.
A invisibilidade de tantas crianças junto aos equívocos nos dados oficiais compro-
mete a criação de Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e assegurar os direitos
de crianças e adolescentes. Além disso, essa situação perversa é a expressão das desigual-
dades e/ou do que podemos chamar de violência estruturante (MINAYO, 1994).
Tanto os atrasos no fluxo do Protocolo Apoia, observados nas duas cidades, quanto
o atraso na criação do Nepre, observado em uma das Escolas pesquisadas, comprometem
o objetivo de proteção e prevenção dada por essas políticas sociais. No interior dessas
ineficiências está também a violência simbólica que faz com que algumas infâncias sejam
menos protegidas do que outras, e que se reflete no acesso desigual às Políticas Públicas
marcadas pela invisibilidade dada aos negros e índios, por exemplo, ou ainda o descompas-
so de notificações registradas pelo CT entre as classes pobres e as mais favorecidas.
Os itens da lista de motivos elencados dentro da Plataforma, em sua maioria, não
atendem às realidades das Escolas. Inclusive alguns itens não traduzem a causa da evasão,
por exemplo, “item não encontrado”, “motivo não encontrado na lista”. A falta de clareza
quanto aos motivos que precisam ser preenchidos na Plataforma obscurece as situações
de maus-tratos dificultando o trabalho de acolhimento e, por vezes, anula a possibilidade de
investigação a respeito da causa/motivo da criança estar ausente da Escola.
Dessa forma, há uma contradição entre a narrativa encontrada nos documentos e a
execução do objetivo maior do Programa, que é enfrentar a evasão e solucioná-la. Segundo
o MP: “diagnosticar os motivos determinantes e enfrentá-los tem sido a melhor orientação
prestada para o retorno efetivo do aluno à escola” (SANTA CATARINA, 2001, p. 9). Nessa
pretensão, o MP cria ações a partir de um diagnóstico estadual sobre a situação da evasão
escolar em Santa Catarina e analisa os motivos com vistas ao seu enfretamento. Se os mo-
tivos não estão claros e não refletem as realidades encontradas nos contextos de evasão, o
diagnóstico estadual torna-se impreciso e ineficiente.
Evidencia-se que os profissionais da Educação carecem de uma capacitação e for-
mação que venha dar suporte técnico e epistemológico e traga outras ferramentas potencia-
lizadoras de sua atuação na Rede de Proteção e desmistifique o medo da denúncia. O que a
pesquisa evidenciou foi a urgência de capacitações que tenham um enfoque epistemológico
e metodológico capaz de trazer o desenvolvimento de estudos que avancem na compreen-
são de conceitos como evasão, violências e maus-tratos.
EDUCAÇÃO E SISTEMA DE JUSTIÇA| 277

Podemos dizer que a distância que marca as relações entre Escola e Sistema de
Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como norma associada ao seu
conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regularidade e como determinação
de conduta. Ainda, a distância que marca os movimentos/relação entre Escola e MP – co-
nectados respectivamente à área da Educação e da Justiça – imerge nas situações de maus-
-tratos e violências invisibilizadas pelo Protocolo. Entre demoras e atrasos emergem marcas
indeléveis nas crianças e famílias que são vigiadas, reguladas, protocoladas e pouco ou
nada cuidadas e protegidas.

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cef2017_resumo_port.pdf Acesso em: 26 abr. 2018. Acesso em: 26 abr. 2018.

VIEIRA, Oscar Vilhena; ALMEIDA, Eloísa Machado de. Direito, Educação e transformação (Prefácio). In:
ABMP - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MAGISTRADOS, PROMOTORES DE JUSTIÇA E DEFENSORES
PÚBLICOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. Todos Pela Educação (Org.). Justiça pela Qualidade na
Educação. São Paulo: Saraiva, 2013.
ROL DE AUTORES E ORGANIZADORES

Alberto Cardoso Cichella


Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/Unesc). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped). E-mail: beto-
cichella@gmail.com.

Alex da Rosa
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESC, membro do Grupo Andradiano de
Criminologia Crítica e do Grupo de Estudos Avançados em Economia Política da Pena vinculado ao
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E-mail: alexdarosa@hotmail.com.br.

André Afonso Tavares


Mestrando Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/
Unesc). Membro do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Especialista em Di-
reito Público e em Auditoria Governamental. Graduado em Direito e em Ciências Contábeis. Graduando
em Engenharia de Software. Advogado. Contador. E-mail: afonsotavares.andre@gmail.com.

André Viana Custódio


Pós-doutor pela Universidade de Sevilha/Espanha (US). Doutor em Direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Professor e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito
– Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (PPGD/Unisc). Coordenador do Grupo
de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e Líder do Grupo de Pesquisa
Políticas Públicas de Inclusão Social do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutora-
do – da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). E-mail: andrecustodio@unisc.br.

Bárbara Maria Eidt


Bolsista de Pesquisa de Iniciação Científica com Recursos do art. 170 da Constituição Estadual de SC
– Edital 008/Reitoria/2018 Unochapecó; bacharel em Direito – Unochapecó – Universidade Comunitária
da Região de Chapecó; E-mail: babieidt06@gmail.com.
280 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Beatriz de Almeida Coelho


Mestra do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/
UFSC), na área de Historicismo, Conhecimento Crítico e Subjetividade. Graduada em Direito (CESUSC).
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos Lilith. E-mail: almeidacoelhobeatriz@
gmail.com.

Betani Hilgert
Pós-graduada em MBA de Gestão de Projetos pela Universidade Positivo. Graduada em Relações Inter-
nacionais pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail: betanihilgert@gmail.com.

Clovis Demarchi
Doutor em Ciência Jurídica. Professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Professor do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (PPGD/Univali). E-mail: demarchi@
univali.br.

Cristiano de Souza Selig


Especialista em Direito Constitucional pela Unisul/LFG. Professor das disciplinas de Direito Constitucio-
nal e direitos difusos e coletivos da Unisul. Analista Processual do Ministério Público Federal. E-mail:
csselig@hotmail.com.

Elaine Cristina Maieski


Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Jornalista. E-mail: lane.
maieski@gmail.com.

Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos


Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catari-
nense (PPGD-Unesc). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc).
Formada em Ciências Econômicas pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e em Direito pela
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Pós-graduanda em Direito do Trabalho pela Unesc.
Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Damásio de Jesus. Oficial de Registro de
Imóveis da Comarca de Urubici/SC. E-mail: bethkonder@yahoo.com.

Fernanda Martins Ramos


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, e em
Direito da União Europeia na Universidade do Minho em Braga-Portugal, integrante do Grupo de Estudos
em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de
Inclusão Social do PPPG/UNISC. Email: f.mramos@yahoo.com.br.

Fritz Loewenthal Neto


Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESC, membro do Grupo Andradia-
no de Criminologia Crítica. E-mail: Fritz.loewenthal@gmail.com.
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 281

Giovanni Olsson
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor e pesquisador do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Unochapecó. E-mail: golsson71@gmail.com.

Gladys Lenuzia Kestering


Bacharel em Administração, acadêmica do Curso de Especialização em Sistema Único de Assistência
Social (Suas) e o Trabalho Interdisciplinar. Secretária Municipal de Assistência Social de Sideropólis/SC.
E-mail: gladys_glk@hotmail.com.

Gláucia Borges
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul
Catarinense (Unesc). Especialista em Direito Civil e Processo Civil e graduada em Direito pela Unesc.
Integrante do Núcleo de Pesquisa em Estado, Política e Direito (Nuped) e do Núcleo de Pesquisa em
Direito da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas, da Unesc. Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc). E-mail: glauciaborges@icloud.com.

Grazielly Alessandra Baggenstoss


Doutora em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra
em Direito, Estado e Sociedade (UFSC). Doutoranda em Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento
Humano. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atuante em Graduação e em
Pós-Graduação em Direito, nas disciplinas de Direito e Feminismos, Hermenêutica Jurídica, Prática Jurí-
dica e Metodologias do Ensino Jurídico e da Pesquisa. Pesquisadora Líder do Grupo de Pesquisa/CNPq
Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos pesquisa sobre sistemas sociais, epistemologias
críticas e análise discursiva jurídica. E-mail: grazyab@gmail.com.

Guilherme Beckhäuser Wensing


Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catari-
nense (PPGD-Unesc). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc).
Especialista em Direito Processual Civil pelo LFG. Especialista em Direito Público pela FURB. Especialis-
ta em Prática Jurídica pela Universidade Regional de Blumenau (Furb). Especialista em Direito Notarial
e Registral pela Universidade Anhanguera (Uniderp). Tabelião Titular no Tabelionato de Notas e Protesto
de Títulos da Comarca de Urubici/SC. E-mail: guilhermewensing@yahoo.com.br.

Hugo de Pellegrin Coan


Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Ca-
tarinense (PPGD/UNESC). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/
UNESC). Possui interesse nas áreas de Direito Constitucional, colisão de princípios, crise institucional
e neoconstitucionalismo. Assessor em gabinete da 1ª Vara Cível de Criciúma, no Poder Judiciário de
Santa Catarina. E-mail: hugocoan@hotmail.com.
282 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Isadora Kauana Lazaretti


Doutoranda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universi-
dade Comunitária da Região de Chapecó – Unochapecó. Advogada. E-mail: isadoralazaretti@unocha-
peco.edu.br.

Ismael de Córdova
Doutorando no PPGDS/Unesc. Pesquisador do Núcleo em Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/
Unesc). Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico Unesc/SC. E-mail: cordovaismael@hotmail.com.

Ismael Francisco de Souza


Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Professor e pesquisador permanente
do Programa de Pós-Graduação em Direito e da graduação em Direito na disciplina de Direito da Crian-
ça e do Adolescente na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Pesquisador do Núcleo de
Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). E-mail: ismael@unesc.net.

Jackson da Silva Leal


Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo-Sul
Catarinense (PPGD-UNESC), Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
professor de Criminologia (UNESC), coordenador do Grupo Criminologia Critica Latino-america-
na (UNESC), e co-líder do Grupo Pensamento Jurídico Critico Latino-Americano (UNESC), membro
da rede de pesquisa Grupo Brasileiro de Criminologia Critica; desenvolve pesquisas e projetos tanto
em nível de graduação quanto pós-graduação acerca da questão criminal com foco na realidade la-
tino-americana transitando por áreas como Direitos Humanos na interface com a questão Criminal.
E-mail: jacksonsilvaleal@gmail.com.

Johana Cabral
Doutoranda no Programa da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC),
com bolsa Prosuc Capes Modalidade I. Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/UNESC). Especialista em Direito Civil e em Direito
Processual Civil pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Especialista em Direito da Criança e do
Adolescente e Políticas Públicas pela UNESC. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos
de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do
Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC). E-mail: jcabral@mx2.unisc.br.

Josué Mastrodi
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Pontifícia Uni-
versidade Católica de Campinas (PUC-Campinas); no Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas;
e no Programa de Pós-Graduação em Direito. E-mail: mastrodi@puc-campinas.edu.br.

Leonardo Alfredo da Rosa


Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estremo Sul Catarinense,
UNESC. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped). E-mail: leonardoro-
sa1979@gmail.com.
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 283

Lucas de Costa Alberton


Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Ca-
tarinense (PPGD/Unesc). Especialista em Direito Previdenciário pela Unibave. Advogado e professor
do Curso de Direito das Faculdades Esucri. Conselheiro Estadual da OAB/SC, gestão 2019-2021.
E-mail: lucasalberton@hotmail.com.

Luciana Rocha Leme


Doutoranda junto a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul (Unisc). Professora de Direitos Humanos e Direito Constitucional dos Cursos
de Direito e Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail: luciana.rocha.
leme@gmail.com.

Patricia Rodrigues Oenning


Bacharel em Direito pela Escola Superior de Criciúma - Esucri. E-mail: patriciarodriguesoenning@
gmail.com.

Pedro Henrique Cardoso Hilário


Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul
Catarinense (PPGD/Unesc), com taxa pelo Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Co-
munitárias de Ensino Superior – Prosuc/Capes e Unesc/Propex. Pesquisador do Núcleo de Estudos em
Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). E-mail: pedrohhilario@unesc.net.

Reginaldo de Souza Vieira


Mestre e Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de
Santa Catarina (PPGD/UFSC). Professor, pesquisador e coordenador adjunto do Programa de Pós-Gra-
duação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Professor e pesquisa-
dor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico (mestrado e doutorado) da
Unesc. Coordenador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc) e do Laboratório
de Direito Sanitário e Saúde Coletiva (LADSSC/Unesc). Membro da Rede Ibero-americana de Direito
Sanitário. Membro e coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos. Advo-
gado. E-mail: prof.reginaldovieira@gmail.com.

Renato Cechinel
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/Unesc). Especialista em Prática Jurídica pela Escola Superior de Magistratura do Estado de San-
ta Catarina (Esmesc/Unesc). Especialista em Direito Administrativo e especialista em Direito Processual
Moderno ambas pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Unesc. Membro do Núcleo de
Estudos em Estado, Política e Direito (Nuped/Unesc). Advogado. Servidor Público Municipal no cargo
de Analista de Controle Interno. E-mail: advrenatoc@gmail.com.
284 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Rodrigo Goldschimidt
Pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Doutor em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da Graduação e do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/Unesc). Pesquisa-
dor permanente do PPGD/Unesc. Coordenador da linha de pesquisa Direito, Sociedade e Estado do
PPGD/Unesc. Membro pesquisador do Nuped/Unesc. Juiz do Trabalho Titular do TRT da 12ª Região/SC.
E-mail: rodrigo.goldschmidt@trt12.jus.br.

Silvia Cardoso Rocha


Doutora e mestra em Educação, pesquisadora do Núcleo Vida e Cuidado (NUVIC) vinculado à Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora Pedagógica na Secretaria do Sistema de
Educação de Morro da Fumaça, SC. E-mail: silviaufsceduca@gmail.com.

Silvia Ozelame Rigo Moschetta


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Direito Público e
Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Professora permanente do Programa
de Mestrado Acadêmico em Direito UNOCHAPECÓ na Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e Atores
Internacionais. Integrante dos Grupos de Pesquisas: Relações Internacionais, Direito e Poder – atores
e desenvolvimento pluridimensional; Liberdade, Estado e Desenvolvimento, ambos da UNOCHAPECÓ.
Integrante da Rede de Pesquisa Interinstitucional (UFSC, UNESC, UCS, ESUCRI, UNOCHAPECÓ) em
Republicanismo, Cidadania e Jurisdição – RECIJUR. Mediadora. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/1370518931808075 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3722-8581 Email: silviaorm@unochape-
co.edu.br.
ÍNDICE ALFABÉTICO

A
Acolhimento familiar como garantia ao direito à convivência familiar e comunitária: uma
perspectiva histórica e conceitual....................................................................................................251
Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade do
serviço. Gláucia Borges..................................................................................................................250
Administração Pública brasileira. Os sistemas de controle interno......................................................98
Administração pública e de seus sistemas de controle interno. As transformações............................89
Administração Pública. A evolução....................................................................................................91
Adoção e as doutrinas jurídicas de proteção à infância no Brasil......................................................236
Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações internacionais não
governamentais. Betani Hilgert. Luciana Rocha Leme......................................................................233
Adoção internacional. A atuação das ONGs nos procedimentos.......................................................242
Agenda 2030 da ONU. O novo marco civilizatório do desenvolvimento.............................................114
Agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibilidades de cooperativismo de plataforma no
mundo do trabalho. O desenvolvimento no marco...........................................................................108
Agenda neoliberal. A participação social como resistência...............................................................154
Alberto Cardoso Cichella. Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira. O direito
fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de direito...........78
Alex da Rosa. Jackson da Silva Leal. Fritz Loewenthal Neto. As matrizes bélicas da política:
guerra e democracia.........................................................................................................................45
André Afonso Tavares. Reginaldo de Souza Vieira. Renato Cechinel. As transformações da
administração pública e de seus sistemas de controle interno............................................................89
André Viana Custódio. Fernanda Martins Ramos. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma
análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adolescentes........................222
Apresentação. Reginaldo de Souza Vieira. Lucas Machado Fagundes. Rodrigo Goldschmidt................ 4
286 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Assistência social em tempos de austeridade fiscal: uma análise da emenda constitucional 95 e


seus reflexos no BPC. Financiamento da política..............................................................................149
Atuação das ONGs nos procedimentos de adoção internacional......................................................242
Austeridade fiscal. Consequências..................................................................................................150
Autores. Rol....................................................................................................................................279

B
Bárbara Maria Eidt. Silvia Ozelame Rigo Moschetta. A desjudicialização dos conflitos familiares a
partir da mediação como metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo...................184
Beatriz de Almeida Coelho. Grazielly Alessandra Baggenstoss. O valor social e econômico do
tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado.............123
Benefício de prestação continuidada – BPC. Dados sobre................................................................162
Benefícios da desjudicialização no âmbito do divórcio extrajudicial..................................................190
Benefícios previdenciários do RGPS e sua concessão aos transexuais.............................................175
Benefícios previdenciários do RGPS................................................................................................175
Betani Hilgert. Luciana Rocha Leme. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de
organizações internacionais não governamentais.............................................................................233
BPC. Dados sobre o benefício de prestação continuidada................................................................162
Brasil e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Regime Geral de Previdência
Social (RGPS). Perspectivas da transexualidade..............................................................................168
Brasil e a política migratória implementada para o acolhimento e a integração dos migrantes e
refugiados venezuelanos. A migração venezuelana............................................................................65
Brasil. A adoção e as doutrinas jurídicas de proteção à infância.......................................................236
Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adolescentes.
O trabalho infantil doméstico...........................................................................................................222

C
Capítulo I. Do contrato social à constituição material: de Hobbes a Rawls. Josué Mastrodi.................16
Capítulo II. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo de
Porto Alegre. Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos. Guilherme Beckhäuser Wensing........33
Capítulo III. As matrizes bélicas da política: guerra e democracia. Fritz Loewenthal Neto. Alex da
Rosa. Jackson da Silva Leal..............................................................................................................45
Capítulo IV. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o
federalismo brasileiro. Hugo de Pellegrin Coan. Johana Cabral...........................................................61
Capítulo IX. O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a questão da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais. Rodrigo Goldschmidt. Cristiano de Souza Selig.......................134
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 287

Capítulo V. O direito fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado demo-
crático de direito. Alberto Cardoso Cichella. Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira.....78
Capítulo VI. As transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno.
Renato Cechinel. André Afonso Tavares. Reginaldo de Souza Vieira...................................................89
Capítulo VII. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as
possibilidades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho. Isadora Kauana
Lazaretti. Giovanni Olsson.............................................................................................................. 108
Capítulo VIII. O valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres: uma análise
sobre o trabalho doméstico não remunerado. Grazielly Alessandra Baggenstoss. Beatriz de
Almeida Coelho.............................................................................................................................. 123
Capítulo X. Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal:
uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC. Gladys Lenuzia Kestering.
Ismael de Córdova......................................................................................................................... 149
Capítulo XI. Perspectivas da transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários
ao transexual no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Lucas de Costa Alberton. Patricia
Rodrigues Oenning......................................................................................................................... 168
Capítulo XII. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodo-
logia interventivo-participativa e de caráter preventivo. Bárbara Maria Eidt. Silvia Ozelame
Rigo Moschetta.............................................................................................................................. 184
Capítulo XIII. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia da dignidade
humana. Clovis Demarchi. Elaine Cristina Maieski........................................................................... 195
Capítulo XIV. Transexualidade na infância: a omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das
crianças trans. Ismael Francisco de Souza. Pedro Henrique Cardoso Hilário.................................... 208
Capítulo XV. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas
da exploração de crianças e adolescentes. André Viana Custódio. Fernanda Martins Ramos........... 222
Capítulo XVI. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações interna-
cionais não governamentais. Betani Hilgert. Luciana Rocha Leme................................................... 233
Capítulo XVII. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a
efetividade do serviço. Gláucia Borges........................................................................................... 250
Capítulo XVIII. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância.
Sílvia Cardoso Rocha..................................................................................................................... 263
Clovis Demarchi. Elaine Cristina Maieski. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações
legislativas: garantia da dignidade humana..................................................................................... 195
Concessão dos benefícios previdenciários aos transexuais............................................................. 177
Conclusão. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia
interventivo-participativa e de caráter preventivo............................................................................. 192
Conclusão. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a
efetividade do serviço.................................................................................................................... 260
288 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Conclusão. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações interna-


cionais não governamentais........................................................................................................... 245
Conclusão. As matrizes bélicas da política: guerra e democracia.......................................................58
Conclusão. As transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno.....103
Conclusão. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o
federalismo brasileiro........................................................................................................................73
Conclusão. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo
de Porto Alegre.................................................................................................................................43
Conclusão. Do contrato social à constituição material........................................................................31
Conclusão. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância....................275
Conclusão. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia da dignidade
humana..........................................................................................................................................204
Conclusão. Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal:
uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC...................................................163
Conclusão. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibili-
dades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho........................................................120
Conclusão. O direito fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado
democrático de direito.......................................................................................................................86
Conclusão. O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a questão da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais................................................................................................146
Conclusão. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas
da exploração de crianças e adolescentes.......................................................................................231
Conclusão. O valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre
o trabalho doméstico não remunerado.............................................................................................131
Conclusão. Perspectivas da transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários
ao transexual no Regime Geral de Previdência Social (RGPS)..........................................................180
Conclusão. Transexualidade na infância: a omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade
das crianças trans...........................................................................................................................218
Conflitos familiares atendidos pelo Serviço de Mediação Familiar Extrajudicial..................................188
Constituição material.........................................................................................................................30
Contrato social à constituição material: de Hobbes a Rawls. Josué Mastrodi......................................16
Convivência familiar e comunitária: uma perspectiva histórica e conceitual. O acolhimento familiar
como garantia ao direito..................................................................................................................251
Cooperativismo de plataforma. O mundo do trabalho e seus desafios..............................................109
Crianças brasileiras: a atuação de organizações internacionais não governamentais. Adoção
internacional...................................................................................................................................233
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 289

Crianças e adolescentes. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção


jurídica e das causas da exploração................................................................................................222
Crianças trans. Transexualidade na infância: a omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade......208
Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o federalismo brasileiro.
Hugo de Pellegrin Coan. Johana Cabral.............................................................................................61
Cristiano de Souza Selig. Rodrigo Goldschmidt. O poder empregatício e a vulnerabilidade do
empregado: a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais...........................................134

D
Dados sobre o benefício de prestação continuidada – BPC..............................................................162
Decisões judiciais acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações
trabalhistas.....................................................................................................................................143
Delineamentos sobre a situação político-econômica da Venezuela.....................................................62
Democracia participativa...................................................................................................................38
Democracia representativa................................................................................................................36
Democracia......................................................................................................................................35
Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo de Porto Alegre.
Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos. Guilherme Beckhäuser Wensing.............................33
Demodiversidade..............................................................................................................................42
Desenvolvimento histórico do instituto da adoção............................................................................234
Desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibilidades de coope-
rativismo de plataforma no mundo do trabalho. Isadora Kauana Lazaretti. Giovanni Olsson..............108
Desjudicialização das relações familiares........................................................................................188
Desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia interventivo-
participativa e de caráter preventivo. Bárbara Maria Eidt. Silvia Ozelame Rigo Moschetta..................184
Dignidade da pessoa humana e do estado democrático de direito. A polícia militar no âmbito da
segurança pública: reflexões à luz do princípio..................................................................................84
Dignidade humana. Considerações sobre........................................................................................196
Dignidade humana. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia...............195
Direito brasileiro. A transexualidade e seu reconhecimento...............................................................169
Direito da criança à liberdade, respeito e dignidade. A teoria da proteção integral.............................209
Direito fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de
direito. Alberto Cardoso Cichella. Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira.....................78
Direito Internacional. A regulamentação da adoção..........................................................................239
Direitos fundamentais - definição.....................................................................................................138
290 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Direitos fundamentais – vertical e horizontal. Plano da eficácia........................................................141


Direitos fundamentais como fundamento da instituição do Estado......................................................28
Direitos fundamentais em suas dimensões históricas......................................................................140
Direitos fundamentais. Eficácia horizontal........................................................................................138
Direitos fundamentais. O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a questão da
eficácia horizontal...........................................................................................................................134
Direitos fundamentais: função social do Estado.................................................................................26
Direitos sociais...............................................................................................................................158
Diversidade de gênero como um direito fundamental.......................................................................213
Divórcio extrajudicial. Os benefícios da desjudicialização no âmbito.................................................190
Doutrinas jurídicas de proteção à infância no Brasil. A adoção.........................................................236

E
Econômico do trabalho doméstico. O valor......................................................................................130
Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância. Sílvia Cardoso Rocha...263
Educação, sistema de justiça e políticas públicas............................................................................270
Eficácia horizontal dos direitos fundamentais...................................................................................138
Elaine Cristina Maieski. Clovis Demarchi. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações
legislativas: garantia da dignidade humana......................................................................................195
Eleições 2018: Gênero, raça e classe............................................................................................... 49
Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos. Guilherme Beckhäuser Wensing. Demodiver-
sidade, representação e participação: análise do orçamento participativo de Porto Alegre................. 33
Emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC. Financiamento da política de assistência social
em tempos de austeridade fiscal: uma análise.................................................................................149
Empregado: a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. O poder empregatício e
a vulnerabilidade.............................................................................................................................134
Empregatício e a vulnerabilidade do empregado. O poder.................................................................135
Estado civil. Teoria contratualista: estado de natureza....................................................................... 19
Estado de Roraima e os refugiados: uma análise de viés federalista.................................................. 68
Estado democrático de direito. A polícia militar no âmbito da segurança pública: reflexões à luz
do princípio da dignidade da pessoa humana.................................................................................... 84
Estado e políticas públicas para a criança e o adolescente. Parte III.................................................207
Estado e sociedade.......................................................................................................................... 24
Estado, direitos fundamentais e democracia. Parte I......................................................................... 15
Estado, políticas públicas e direitos sociais. Parte II.........................................................................107
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 291

Estado. Direitos fundamentais: função social.................................................................................... 26


Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia da dignidade humana.
Clovis Demarchi. Elaine Cristina Maieski..........................................................................................195
Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas............................................................200
Estatuto da pessoa com deficiência. Considerações sobre...............................................................198
Evolução da Administração Pública...................................................................................................91
Extrajudicial. Os conflitos familiares atendidos pelo Serviço de Mediação Familiar............................188

F
Familiares. A desjudicialização das relações....................................................................................188
Federalismo brasileiro. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana........61
Federalismo cooperativo. A intervenção federal.................................................................................71
Federalista. O estado de Roraima e os refugiados: uma análise de viés..............................................68
Fernanda Martins Ramos. André Viana Custódio. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma
análise da proteção jurídica e das causas da exploração de crianças e adolescentes........................222
Filosófico-jurídico da soberania. A formação do Estado e da democracia representativa: o discurso...46
Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal: uma análise da
emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC. Gladys Lenuzia Kestering. Ismael de Córdova.....149
Financiamento do Sistema Único de Assistência Social...................................................................152
Formação do Estado e da democracia representativa: o discurso filosófico-jurídico da soberania.......46
Fritz Loewenthal Neto. Alex da Rosa. Jackson da Silva Leal. As matrizes bélicas da política: guerra
e democracia....................................................................................................................................45
Função social do Estado. Direitos fundamentais................................................................................26

G
Gênero como um direito fundamental. Diversidade..........................................................................213
Gênero, identidade de gênero e transexualidade. Breves apontamentos sobre..................................169
Gênero, raça e classe. Eleições 2018................................................................................................49
Giovanni Olsson. Isadora Kauana Lazaretti. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU:
um olhar sobre as possibilidades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho...............108
Gladys Lenuzia Kestering. Ismael de Córdova. Financiamento da política de assistência social em
tempos de austeridade fiscal: uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC......149
Gláucia Borges. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a
efetividade do serviço.....................................................................................................................250
Grazielly Alessandra Baggenstoss. Beatriz de Almeida Coelho. O valor social e econômico do
tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado.............123
292 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Guerra e democracia. As matrizes bélicas da política.........................................................................45


Guerra é Paz.....................................................................................................................................54
Guilherme Beckhäuser Wensing. Elisabeth Beatriz Konder Reis Calixto dos Santos. Demodiver-
sidade, representação e participação: análise do orçamento participativo de Porto Alegre..................33

H
Hobbes a Rawls. Do contrato social à constituição material.............................................................. 16
Hugo de Pellegrin Coan. Johana Cabral. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a
migração venezuelana e o federalismo brasileiro............................................................................... 61

I
Identidade de gênero e transexualidade. Breves apontamentos sobre gênero....................................169
Instituição do Estado. Direitos fundamentais como fundamento........................................................ 28
Instituto da adoção. O desenvolvimento histórico.............................................................................234
Intervenção federal e o federalismo cooperativo................................................................................ 71
Interventivo-participativa e de caráter preventivo. A desjudicialização dos conflitos familiares a
partir da mediação como metodologia.............................................................................................184
Introdução. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia
interventivo-participativa e de caráter preventivo..............................................................................185
Introdução. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade
do serviço.......................................................................................................................................250
Introdução. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações interna-
cionais não governamentais............................................................................................................233
Introdução. As matrizes bélicas da política: guerra e democracia...................................................... 45
Introdução. As transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno...... 89
Introdução. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o
federalismo brasileiro....................................................................................................................... 61
Introdução. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo
de Porto Alegre................................................................................................................................ 33
Introdução. Do contrato social à constituição material...................................................................... 16
Introdução. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância....................263
Introdução. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia da dignidade
humana..........................................................................................................................................195
Introdução. Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal:
uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC...................................................149
Introdução. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibili-
dades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho........................................................108
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 293

Introdução. O direito fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado


democrático de direito...................................................................................................................... 78
Introdução. O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a questão da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais................................................................................................134
Introdução. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas
da exploração de crianças e adolescentes.......................................................................................222
Introdução. O valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre
o trabalho doméstico não remunerado.............................................................................................123
Introdução. Perspectivas da transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários
ao transexual no Regime Geral de Previdência Social (RGPS)..........................................................168
Introdução. Transexualidade na infância: a omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das
crianças trans.................................................................................................................................208
Isadora Kauana Lazaretti. Giovanni Olsson. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da
ONU: um olhar sobre as possibilidades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho......108
Ismael de Córdova. Gladys Lenuzia Kestering. Financiamento da política de assistência social em
tempos de austeridade fiscal: uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC......149
Ismael Francisco de Souza. Pedro Henrique Cardoso Hilário. Transexualidade na infância: a
omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das crianças trans...............................................208

J
Jackson da Silva Leal. Fritz Loewenthal Neto. Alex da Rosa. As matrizes bélicas da política:
guerra e democracia.........................................................................................................................45
Johana Cabral. Hugo de Pellegrin Coan. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a
migração venezuelana e o federalismo brasileiro................................................................................61
Josué Mastrodi. Do contrato social à constituição material: de Hobbes a Rawls.................................16

L
Leonardo Alfredo da Rosa. Reginaldo de Souza Vieira. Alberto Cardoso Cichella. O direito funda-
mental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de direito...................78
Liberdade, respeito e dignidade. A teoria da proteção integral e o direito da criança..........................209
Lucas de Costa Alberton. Patricia Rodrigues Oenning. Perspectivas da transexualidade no Brasil
e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Regime Geral de Previdência
Social (RGPS).................................................................................................................................168
Lucas Machado Fagundes. Rodrigo Goldschmidt. Reginaldo de Souza Vieira. Apresentação................ 4
Luciana Rocha Leme. Betani Hilgert. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de
organizações internacionais não governamentais.............................................................................233
294 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

M
Matrizes bélicas da política: guerra e democracia. Fritz Loewenthal Neto. Alex da Rosa. Jackson
da Silva Leal.....................................................................................................................................45
Mediação na perspectiva de metodologia interventivo-participativa..................................................186
Migração venezuelana e o federalismo brasileiro. Crise global e crise nacional: uma análise sobre.....61
Migração venezuelana para o Brasil e a política migratória implementada para o acolhimento e a
integração dos migrantes e refugiados venezuelanos.........................................................................65
Mulheres: uma análise sobre o trabalho doméstico não remunerado. O valor social e econômico
do tempo de trabalho......................................................................................................................123
Mundo do trabalho e seus desafios no cooperativismo de plataforma..............................................109

N
Novas plataformas como instrumentos de desenvolvimento. As possibilidades................................116
Novo marco civilizatório do desenvolvimento na Agenda 2030 da ONU............................................114

O
ONGs nos procedimentos de adoção internacional. A atuação.........................................................242
Orçamento participativo de Porto Alegre............................................................................................40
Ordenamento jurídico brasileiro frente a uma realidade social. A transexualidade na infância: a
omissão..........................................................................................................................................215
Organizações internacionais não governamentais. Adoção internacional de crianças brasileiras:
a atuação........................................................................................................................................233

P
Parte I. Estado, direitos fundamentais e democracia..........................................................................15
Parte II. Estado, políticas públicas e direitos sociais.........................................................................107
Parte III. Estado e políticas públicas para a criança e o adolescente.................................................207
Participação social como resistência à agenda neoliberal................................................................154
Patricia Rodrigues Oenning. Lucas de Costa Alberton. Perspectivas da transexualidade no Brasil
e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Regime Geral de Previdência
Social (RGPS).................................................................................................................................168
Pedro Henrique Cardoso Hilário. Ismael Francisco de Souza. Transexualidade na infância: a
omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das crianças trans...............................................208
Perspectivas da transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários ao
transexual no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Lucas de Costa Alberton. Patricia
Rodrigues Oenning..........................................................................................................................168
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 295

Pessoa com deficiência e alterações legislativas. Estatuto...............................................................200


Plano da eficácia dos direitos fundamentais – vertical e horizontal...................................................141
Plataforma no mundo do trabalho. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU:
um olhar sobre as possibilidades de cooperativismo.......................................................................108
Poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a questão da eficácia horizontal dos
direitos fundamentais. Rodrigo Goldschmidt. Cristiano de Souza Selig.............................................134
Poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado.....................................................................135
Polícia militar no âmbito da segurança pública: reflexões à luz do princípio da dignidade da pessoa
humana e do estado democrático de direito.......................................................................................84
Polícia militar no estado democrático de direito. O direito fundamental à segurança pública
e o papel...........................................................................................................................................78
Política pública de assistência social. Reflexo da austeridade...........................................................156
Políticas públicas. Educação, sistema de justiça..............................................................................270
Porto Alegre. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo.....33
Porto Alegre. Orçamento participativo...............................................................................................40
Prefácio. Prof. Dr. Daniel Ribeiro Preve................................................................................................ 6
Prof. Dr. Daniel Ribeiro Preve. Prefácio................................................................................................ 6
Programa apoia. O contexto investigativo........................................................................................264
Protagonismo da sociedade civil na efetividade do serviço de acolhimento......................................255
Proteção jurídica nacional e internacional contra o trabalho infantil...................................................225

R
Rawls. Do contrato social à constituição material: de Hobbes............................................................16
Referências. A desjudicialização dos conflitos familiares a partir da mediação como metodologia
interventivo-participativa e de caráter preventivo..............................................................................193
Referências. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo da sociedade civil para a efetividade
do serviço.......................................................................................................................................261
Referências. Adoção internacional de crianças brasileiras: a atuação de organizações internacionais
não governamentais........................................................................................................................246
Referências. As matrizes bélicas da política: guerra e democracia.....................................................59
Referências. As transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno...103
Referências. Crise global e crise nacional: uma análise sobre a migração venezuelana e o
federalismo brasileiro........................................................................................................................74
Referências. Demodiversidade, representação e participação: análise do orçamento participativo
de Porto Alegre.................................................................................................................................44
296 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Referências. Do contrato social à constituição material......................................................................31


Referências. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância..................277
Referências. Estatuto da pessoa com deficiência e alterações legislativas: garantia da dignidade
humana..........................................................................................................................................205
Referências. Financiamento da política de assistência social em tempos de austeridade fiscal:
uma análise da emenda constitucional 95 e seus reflexos no BPC...................................................165
Referências. O desenvolvimento no marco da agenda 2030 da ONU: um olhar sobre as possibili-
dades de cooperativismo de plataforma no mundo do trabalho........................................................121
Referências. O direito fundamental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado
democrático de direito.......................................................................................................................87
Referências. O poder empregatício e a vulnerabilidade do empregado: a questão da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais................................................................................................147
Referências. O trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção jurídica e das
causas da exploração de crianças e adolescentes...........................................................................231
Referências. O valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre
o trabalho doméstico não remunerado.............................................................................................132
Referências. Perspectivas da transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários
ao transexual no Regime Geral de Previdência Social (RGPS)..........................................................181
Referências. Transexualidade na infância: a omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das
crianças trans.................................................................................................................................219
Reflexo da austeridade na política pública de assistência social.......................................................156
Refugiados venezuelanos. A migração venezuelana para o Brasil e a política migratória imple-
mentada para o acolhimento e a integração dos migrantes................................................................65
Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Perspectivas da transexualidade no Brasil e a
concessão de benefícios previdenciários ao transexual....................................................................168
Reginaldo de Souza Vieira. Alberto Cardoso Cichella. Leonardo Alfredo da Rosa. O direito funda-
mental à segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de direito...................78
Reginaldo de Souza Vieira. Lucas Machado Fagundes. Rodrigo Goldschmidt. Apresentação................ 4
Reginaldo de Souza Vieira. Renato Cechinel. André Afonso Tavares. As transformações da
administração pública e de seus sistemas de controle interno............................................................89
Regulamentação da adoção pelo Direito Internacional......................................................................239
Remunerado. O valor social do trabalho doméstico não...................................................................125
Renato Cechinel. André Afonso Tavares. Reginaldo de Souza Vieira. As transformações da
administração pública e de seus sistemas de controle interno............................................................89
Reprodução social e o capital..........................................................................................................128
RGPS e sua concessão aos transexuais. Benefícios previdenciários................................................175
ESTADO, POLÍTICA E DIREITO | 297

Rodrigo Goldschmidt. Cristiano de Souza Selig. O poder empregatício e a vulnerabilidade do


empregado: a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais...........................................134
Rodrigo Goldschmidt. Reginaldo de Souza Vieira. Lucas Machado Fagundes. Apresentação................ 4
Roraima e os refugiados: uma análise de viés federalista. O estado....................................................68

S
Segurança pública e o papel da polícia militar no estado democrático de direito. O direito
fundamental......................................................................................................................................78
Segurança pública no estado democrático de direito..........................................................................79
Serviço de acolhimento. O protagonismo da sociedade civil na efetividade.......................................255
Serviço de Mediação Familiar Extrajudicial. Os conflitos familiares atendidos...................................188
Sílvia Cardoso Rocha. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca das violências na infância...263
Silvia Ozelame Rigo Moschetta. Bárbara Maria Eidt. A desjudicialização dos conflitos familiares a
partir da mediação como metodologia interventivo-participativa e de caráter preventivo...................184
Sistema de justiça e políticas públicas. Educação............................................................................270
Sistema Único de Assistência Social. Financiamento.......................................................................152
Sistemas de controle interno da Administração Pública.....................................................................96
Sistemas de controle interno na Administração Pública brasileira.......................................................98
Sistemas de controle interno. As transformações da administração pública.......................................89
Social e o capital. Reprodução........................................................................................................128
Sociedade brasileira. O reconhecimento do transexual.....................................................................172
Sociedade civil para a efetividade do serviço. Acolhimento familiar: o necessário protagonismo.......250

T
Teoria contratualista: estado de natureza e estado civil.......................................................................19
Teoria da proteção integral e o direito da criança à liberdade, respeito e dignidade............................209
Trabalhistas. Decisões judiciais acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas
relações..........................................................................................................................................143
Trabalho doméstico não remunerado. O valor social e econômico do tempo de trabalho das
mulheres: uma análise sobre...........................................................................................................123
Trabalho infantil doméstico no Brasil: uma análise da proteção jurídica e das causas da exploração
de crianças e adolescentes. André Viana Custódio. Fernanda Martins Ramos..................................222
Trabalho infantil doméstico. Causas.................................................................................................228
Trabalho infantil. Contexto...............................................................................................................223
Transexual pela sociedade brasileira. O reconhecimento..................................................................172
298 | REGINALDO DE SOUZA VIEIRA | LUCAS MACHADO FAGUNDES | RODRIGO GOLDSCHMIDT - Organizadores

Transexualidade e seu reconhecimento pelo direito brasileiro...........................................................169


Transexualidade na infância: a omissão do legislador brasileiro e a invisibilidade das crianças
trans. Ismael Francisco de Souza. Pedro Henrique Cardoso Hilário...................................................208
Transexualidade na infância: a omissão do ordenamento jurídico brasileiro frente a uma
realidade social...............................................................................................................................215
Transexualidade no Brasil e a concessão de benefícios previdenciários ao transexual no Regime
Geral de Previdência Social (RGPS). Perspectivas............................................................................168
Transexualidade. Breves apontamentos sobre gênero, identidade de gênero.....................................169
Transformações da administração pública e de seus sistemas de controle interno. Renato
Cechinel. André Afonso Tavares. Reginaldo de Souza Vieira...............................................................89

V
Valor econômico do trabalho doméstico..........................................................................................130
Valor social do trabalho doméstico não remunerado........................................................................125
Valor social e econômico do tempo de trabalho das mulheres: uma análise sobre o trabalho
doméstico não remunerado. Grazielly Alessandra Baggenstoss. Beatriz de Almeida Coelho..............123
Venezuela. Delineamentos sobre a situação político-econômica.........................................................62
Violências em (con)textos...............................................................................................................266
Violências na infância. Educação e sistema de justiça: reflexões acerca...........................................263

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