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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Resenha do livro

Êxodos, refúgios e exílios.


Colombianos no Sul e Sudeste do
Brasil.

Aluna de mestrado: Danielle Peralta


Kazanji

2018
Das filtragens, expulsões, impedimentos.

Ir em direção a algum lugar, criar caminhos tanto para chegar, quanto para
permanecer, e, ainda, para, por vezes, retornar. Processos existenciais e vitais que se
dão em mundo dividido nas fronteiras simbólicas e materiais dos Estados-Nação. Entre
os muitos modos de circunscrever, delimitar, administrar tais movimentos está o refúgio
e seu universo institucional. Ángela Facundo leva a sério a empreitada de construir um
mapa sobre esse universo, através do encontro entre colombianos e estado brasileiro que
conformam um campo de governança sobre certas formas de se movimentar em direção
e dentro do Brasil. Neste mapa estão pontos densos da racionalidade burocrática em seu
nível técnico- administrativo, a projeção do Brasil no cenário internacional como uma
nação humanitária e as marcas existenciais desses sujeitos administrados.

“Dessa maneira, o compromisso deste texto (que, como o refúgio, tem


um final meramente contingente) consiste exatamente em questionar e
interrogar as categorias e os processos instituídos e, muitas vezes,
naturalizados – exercício chave não somente em termos antropológicos,
mas também em termos de reflexão política sobre a construção, a
expulsão, a fixação e a sedentarização de sujeitos no mundo.” (p.373-4)

Muitas são as escolhas analíticas e metodológicas para abordar tal questão.


Essas escolhas atuam na construção da própria definição do fenômeno e das reflexões
políticas que podem se desdobrar. Neste sentido, então, o próprio pensar sobre o refúgio
é forma de intervir nessa certa relação entre corpos e espaços. Esta tese busca perceber -
junto com as experiências administrativas de colombianos- os meios pelos quais a
figura do “refugiado” é criada no compasso dos modelamentos das fronteiras – sempre
instáveis- dos Estados-nação, que, em um primeiro momento, podem parecer, naturais,
eternas, estáveis, apenas regulando a entrada dos que precisam chegar.
Esta suposta fixidez das fronteiras do Estado-nação se coloca como matéria de
analise, uma vez que o estado, desde a perspectiva de Mitchell (1999), Sharma e Gupta
(2006) e outros, é constructo ideológico e força material, não sendo possível defini-lo,
então, por meio do seu caráter estável e monolítico, já que isso é um dos efeitos criados
por um complexo de instituições, agentes, práticas e tecnologias de governo. Ao invés
de buscar definições acerca do estado, trata-se nessa perspectiva de localizar suas
práticas. Esta, acredito ser uma das pretensões desta tese. Nas palavras de Mitchel
(2006, p.170) “o fenômeno que nós chamamos de estado nasce de técnicas que
permitem práticas materiais mundanas assumirem a aparência abstrata, uma forma não-
material”.
Na constituição de um universo institucional para conformar o refúgio
contemporâneo, processos de formação do estado são evidenciados por Facundo,
podendo ser localizados em alguns níveis administrativos, em especial, nas
espacializações e formatações do que a autora chamou de “agentes da tríade”1 .
Importa-me aqui seguir aqui alguns fios de um desses agentes: a “sociedade civil”.
A autora aponta que “sociedade civil” pode fazer referência muitas vezes a
Cáritas- entidade integrante do CONARE e parceira histórica do ACNUR-, mas não só,
também pode aludir a paróquias, centros de estudos e pastorais para migrantes - e outras
instituição ligadas a igreja católica -, ordem dos advogados do Brasil (OAB),
associações como Senai, Senac e Sesc2 – no caso de São Paulo. Em um nível mais
amplo, essa categoria pode ser acionada como sinônimo de “nação brasileira, também
frequentemente qualificada como acolhedora, multicultural e formada pela migração”
(p,102).
É interessante notar como tais associações e agrupamentos que integram a
“sociedade civil” são fundamentais na recepção e no próprio encaminhamento das
solicitações dos chamados refugiados espontâneos. O procedimento tido como
complementar – questionário e entrevista pela Cáritas-, na prática, determinante para o
processo de solicitação (p.131). Sendo assim, existem certas competências profissionais
atuando no sentido de acolher e ao mesmo tempo selecionar aqueles que poderão seguir
no processo.
No caso brasileiro, as profissionais3 do direito são não só aquelas que
entrevistam primeiro os solicitantes, mas como, “são encarregadas de buscar, via
internet a informação sobre o lugar de banimento” (p.107), podendo também ativar os
profissionais das Relações Internacionais que “se presumem capazes de interpretar
politicamente as informações sobre a realidade social de qualquer país e região do
mundo”(p.107). Outra força também presente é a dos saberes psi – psicólogos e
psiquiatras, pois, dentro da definição do que um refugiado é, no contexto do
humanitarismo, está embutida a sua qualidade de sofrente e traumatizado a espera de
alguém para aliviar sua dor. Ambos saberes atuam no sentido de “colaborar na produção
da “verdadeira história” de cada sujeito, contribuindo, assim, no processo de seleção dos
“verdadeiros refugiados”” (p.108).
Sobre as práticas em torno das subjetividades e dos corpos, aqui representadas
pelas ciências psi, cabe salientar que não apenas no que tange a administração de
refugiados, é que se tem percebido a consolidação deste saber-fazer. Nikolas Rose
(1988) , seguindo Foucault, apresenta uma dimensão dos governos contemporâneos, que
opera no remodelamento “das técnicas para administrar as emoções” dos “cidadãos”
(Rose, 1988, p.32) , buscando incidir mais eficazmente nos “mundos mentais” (Ibid.
p.32) dos trabalhadores, pais, funcionários, mães e etc. Neste sentido, cálculos políticos
são feitos em torno de construir sentidos, utilidades, moralidades a processos vitais,
constituindo aquilo que ele chama de “governo da alma”. Tratarei mais disto na
segunda parte do texto.
No caso do refúgio, Facundo nos mostra um saber-fazer encarregado de
distinguir os legítimos e ilegítimos refugiados, extraindo a “verdade” de seus corpos e
discursos. Tais saberes se tornam cada vez mais autorizados a agir nessa depuração, na
medida em que se movimentam em composição com outra força – também categorizada
como fazendo parte da sociedade civil- “a academia”. Os “profissionais das áreas de
Direito, Relações Internacionais e Psicologia, que têm trabalhado na Cáritas ou nos
escritórios do Acnur e do Conare, são, em grande medida, os produtores da bibliografia
disponível sobre o tema” (p.108) [...] “Além disso, com contadas exceções, são essas
mesmas pessoas as que promovem a introdução do tema nas cátedras universitárias e
são as encarregadas de ministrá-las.” (p.109). Ou seja, os autorizados para atuar sobre o
refúgio contemporâneo, são, em boa parte, os mesmos que produzem conhecimento
sobre ele. A eficiência e competência desses profissionais parecem ser mais
reconhecidas, na medida do quanto se tornam hábeis para em suas práticas gerar o efeito
de estabilidade e fixidez das fronteiras simbólicas e materiais do Estado-nação.
Segundo Facundo, é possível, perceber “uma rede institucional do refúgio” (p.109)
restritiva, produzida a partir da circulação desses atores, e que cria uma dinâmica
bastante singular:

“…alguns funcionários da tríade Conare, especialmente aqueles que


estão na faceta “sociedade civil”, fazem parte de grupos ou organizações
que se caracterizam por uma posição crítica ante certos aspectos
restritivos das políticas de refúgio. Desse modo, dentro do espaço
comum de uma mesma rede de agentes encontra-se o planejamento dos
programas, a implementação das disposições e a elaboração das críticas.
Essa dinâmica descrita auxilia ainda a formação de um grupo restrito de
especialistas sobre o tema e favorece a existência de pessoas que são em
si mesmas quase instituições, pois elas detêm a memória dos programas
e estão fortemente treinadas num saber-fazer específico que tem se
desenvolvido para os processos de refúgio. (p.98).

Pois bem, as conexões e costuras entre os diferentes pontos desse universo são
feitas pelos próprios sujeitos que por ele transita, criando trajetos e formas de encontro
singulares com o estado (p.19-27). É, portanto, seguindo algumas dessas relações
tecidas por colombianos com essa “sociedade civil” brasileira, que tentarei me deter
brevemente. Facundo, seguindo Vianna (2011), diz tempos específicos que são criados
em tais encontros. Para esta dimensão ela se dedica na parte 4 da tese: “O tempo:
integração ou o retorno da vida”. Ainda que este capítulo trate tantos dos solicitantes
espontâneos quanto dos reassentados, vou ainda me deter aos dados acerca dos
primeiros.
Para os solicitantes espontâneos, que tentam o refúgio por elegibilidade, vemos
um tempo feito na demora das esperas e no encolhimento provocado pela invasão dos
trâmites intermináveis e difíceis. E, ainda, a impossibilidade da revalidação de diplomas
e da carteira de trabalho, pois não há certeza de que poderão permanecer. (p.292).

“Aí eu te faço uma pergunta, qual é o perfil que o Brasil procura para me
dar os documentos? Que tipo de perfil eles querem que eu seja? Por que
toda essa demora? Não dizem que os computadores modernizam e
simplificam e aceleram uma documentação ou um trâmite? Então, por
que é que eu vejo que elas têm muitos computadores bonitos? [Elas] tão
bem vestidas, bem elegantes, bem belas, bem bonitas, bem super legais,
e as condições de todos que estamos do outro lado dessa grade. Que
mais parece um presídio? Nós nos sentimos incapazes , impotentes[..]”
(p.193)

“... tenho direito de que? Direito de esperar, esperar, esperar, esperar,


esperar. (p.291)

Essa “espera minúscula do dia-a-dia” (p.291) é acompanhada por “negativas, gritos,


vazios de informação” (p.291), ela faz um tempo adverso, produzindo uma “defasagem entre o
quanto necessitam as coisas e quanto delas chegou no momento adequado” (p.291). Para
algumas das agentes entrevistadas essa espera não se coloca como um problema.

“Mas assim, as pessoas teoricamente não têm o prejuízo de esperar até


porque renova protocolo[..] Então é assim, ela não tem prejuízo, nada
que ela não teria sendo refugiada”. (p.292).
É, então, ao longo desse “prolongamento do tempo e dilatação dos meses” (p.292), que
os processos administrativos vão selecionando e diferenciando “refugiados” de outras
categorias, em especial do “migrante econômico”, enquanto isso os sujeitos seguem
sustentando a incerteza se poderão permanecer, e se mantêm carecendo de apoio assistencial por
mais tempo e impedidas de se desfazerem das ações de salvação do qual são objeto.
Então, nesses prolongamentos do tempo são também administrados, (negados ou
concedidos) esses recursos assistenciais, sob critérios estabelecidos pelas profissionais das
ONGS. Uma assistente social da Cáritas diz o seguinte:

[...] eu não sei de onde tiram eles que a ajuda financeira é um direito [...]
a ajuda financeira não é um direito, é uma ajuda humanitária, ninguém
tem direito nenhum de receber. Isso é uma ajuda humanitária, então você
não tem direito nenhum, nós estamos dando porque nós avaliamos que
você precisa dessa ajuda. (p.137)

Em geral, mesmo as escolhas sobre quem poderá ou não receber ajuda,


acontecem segundo conteúdos morais – legitimado por esse saber-fazer-. Neste campo
já passa a atuar as diferenciações entre migrante econômico e refugiado, através de
gestos mínimos produzidos pelos sujeitos.

“De qualquer forma, segundo os agentes, a rapidez com a qual as


pessoas solicitam refúgio, uma vez que tenham entrado ao território
brasileiro, será um elemento que jogue a seu favor. Do contrário, pode
ser ativada a suspeita comum de que as pessoas “estão utilizando o
refúgio para solucionar sua situação migratória”. Essa suspeita continua
estando baseada na premissa da perda de vontade que supostamente
caracteriza as pessoas perseguidas e as distingue daquelas migrantes
econômicas desejosas de uma melhor condição de vida.” (p.321).

Essa suspeição constante com relação aos solicitantes é fundamental para


administrar os subsídios financeiros, roupa, comida apenas a aqueles que se enquadram
no que um refugiado pode ser: um corpo que sofre, foge, e não calcula seus passos.
Enquanto esperam, os solicitantes são objetos desse cuidado\ controle, “fundamental no
exercício de “fazer viver” (p.115), e no qual, moralidades ligadas a caridade aparecem
fortemente vinculadas.
Vale ressaltar aqui o ponto sobre os sentidos e marcas daquilo que se constitui
como doméstico, pois, neste plano vivem muitas marcas da experiência de fugir e de
permanecer. Facundo, seguindo Cho (2008) afirma: “há fantasmas de guerra que se
instalam não na praça pública, mas na cozinha e no quintal traseiro da casa” (p.302).
Nos relatos de muitas das mulheres, são evidenciados os esforços de unificar a família
segundo o ritmo de concessão das ajudas, e ainda, as suas percepções do conflito na
Colombia, muito vinculadas às fraturas íntimas no cotidiano de suas famílias. Também,
algumas das lembranças da chegada ao Brasil, daqueles que já vivem há algum tempo
aqui, acabam remetendo à precariedade da casa que os foi concedida, a seus buracos na
parede, da fome, do frio que não esperavam encontrar durante as noites, e, para alguns
das dificuldades em dormir e transitar por albergues. Essas marcas vivas apontam para
experiências de sofrimento, descontentamentos que parecem não se esgotar e não terem
apenas a ver com o conflito na Colômbia. Em especial, sobre a experiência dos
reassentados, vindos do Equador, já partindo de um primeiro êxodo e esperando
conhecer o Brasil imagético previamente apresentado a eles pelas ONGs, Facundo
descreve:

“...me foi descrita com muita indignação a descoberta da precariedade


das casas e dos bairros onde o programa os localizou, assim como o
estado e o estilo dos móveis e eletrodomésticos que lhes foram entregues
e até a defasagem entre o tamanho das roupas que lhes foram oferecidas
e o tamanho dos seus corpos. Além disso, as narrações sobre os
primeiros dias referiram constantemente sentimentos de solidão,
angustia, por terem sido deixado a sós em hotéis, sem contato com as
funcionárias da Ong, com pouquíssimo dinheiro e sem conseguir se
comunicar em português com ninguém”. (p.287)

Das contingências de integrar-se: filiações da “matéria-prima de


futuros brasileiros”4

As experiências concretas desses sujeitos são pouco levadas em conta quanto se


trata de discutir a sua “integração” no território nacional, tendo em vista que elas não
caberiam em corpos adminstrados como frágeis, sofrentes, carentes, gratos à nação por
os terem recebido. Toda essa “humanidade rasa” expressas nos moldes da racionalidade
jurídico-administrativa não só atuam na seleção dos bons e maus refugiados, mas como
se mostram na sedentarizações desses sujeitos que foram aceitos para habitarem o
“dentro” das fronteiras simbólicas de uma nação imaginada como tolerante a diferença.
É possível perceber, ao longo dos relatos e narrativas, a imagem do Brasil enquanto
nação acolhedora e receptiva ir aos poucos se desfacelando, desfigurando, ou se
reconstituindo através de conteúdos morais.
Portanto, já que o refugiado nada mais é do que este corpo raso, sem reflexão e
sem vontades, a oportunidade que agora a nação lhe concede é a de ““recomeçar de
zero”, um “se fazer uma vida do nada”. No entanto, esta mesma tábula rasa pode se
apresentar como ameaça à nação, pois ela é “matéria-prima de qualquer coisa”
“desejada ou indesejada” (p 316). Sendo assim, os chamados agentes de integração
devem trabalhar sobre o resgate da humanidade, que neste caso, significa se encontrar
com a “essência da brasilidade”. Ou seja, se tornar humano de novo é sinônimo de ir,
através do tempo se integrando a sociedade brasileira, se naturalizando um brasileiro,
assim, recuperarando também a sua cidadania perdida.

“ Arrancados do espaço que os torna em algo não humano, os


refugiados serão instalados no espaço que os tornará potenciais
nacionais, sujeitos de
direitos (restritos) e submersos na ordem ordenadora do Estado-nação
brasileiro contemporâneo.” ( p. 313).

Esses ““futuros brasileiros” são posicionados dentro do espaço nacional, a partir


de sua condição de refugiados, ou seja, “dentro do espaço humanitário, dentro de
determinadas comunidades locais e sob a jurisdição de determinados postos
administrativos” (p.192). No caso dos reassentados, o que parece haver é um leque
enorme de opções no momento em que o Brasil é apresentado a eles no Equador, e um
consequente afunilamento processual de suas possibilidades de viver aqui quando de
deparam com as reais situações.
Do ponto de vista do potencial integrativo desses sujeitos, ele depende do nível
de civilidade que eles podem vir a alcançar: “alguns tempo-espaço podem piorar sua
condição sub-humana ou melhora-la”. Tratam-se “de perdas ou ganhos em termos de
civilidade.” (p.304). Por isso, os esforços dos agentes de estado que atuam no processo
de “integração” se dão no sentido de torna-los cidadãos a partir de dois caminhos
principais que visam civiliza-los: o do trabalho (para os adultos em idade laboral), e da
escola (para as crianças). Quando os agentes do refúgio tratam dos casos exitosos se
referem a sujeitos “integrados, estáveis, empregados, bilíngues” (p. 294). Eles são a
amostra de como o Brasil realiza um bom trabalho na integração de refugiados, e
também do mérito daqueles que sustentam as dificuldades e precariedades do caminho,
e estabelecem uma vida digna. Os persistentes, os gratos e esforçados, que reconhecem
a solidariedade e generosidade dos que o acolhem, passam a integrar a “categoria do
refúgio exitoso”.

[...] eles [os colombianos] são muito empreendedores [...] é uma coisa
que os chefes reconhecem muito, que eles são os mais esforçados, que
uma coisa diferente no jeito de trabalhar. Como uma característica de
muitos [...] Lembro de xxxxx, ele na Colômbia era um assessor de um
deputado e ao começo ele não queria aceitar de jeito nenhum trabalhar
numa cooperativa catando lixo. Mas não é que agora ele é o chefe da
cooperativa de catadores de lixo? E ele implementou uma política de
salário. Mas foi que a comunidade recebeu ele muito bem, e aí ele ficou
sem jeito de falar não para esse trabalho. (Ex-agente de integração)
(p.294)

É interessante notar como não basta trabalhar, é preciso “uma coisa diferente”.
Há certas disposições para o trabalho mais reconhecidas e desejadas do que outras, e
não se trata também do disciplinamento, da captura das forças vitais, mais talvez, de
“tecnologias da subjetividade” como Rose destaca. Segundo ele:

“O governo da alma depende de nos reconhecermos como, ideal e


potencialmente, certo tipo de pessoa, do desconforto gerado por um
julgamento normativo sobre a distância entre aquilo que somos e aquilo
que podemos nos tornar e do incitamento oferecido para superar essa
discrepância, desde que sigamos o conselho dos experts na
administração do eu.” (Rose, 1988, p.45)

No caso do reassentado ideal, é preciso que ele seja “um sujeito com idade e
capacidade laboral, viajando em companhia do seu núcleo familiar com filhos
pequenos. Esses últimos, preferentemente, em idade escolar para não obstaculizar as
possibilidades de empregar-se de seus pais” (p.327). Sobretudo, esse refugiado ideal
precisa ser capaz de “exorcizar os fantasmas da dependência e do
asistencialismo”(p.326) através de certo engajamento laboral, que trata-se, vale
ressaltar, do envolvimento nos serviços menos remunerados “que não representem um
potencial perigo para os setores e grêmios profissionais que desfrutam de prestígio
social e econômico no nível nacional” (p.327).
Os usos e ganhos do dinheiro estão sobretudo situados em uma “pedagogía da
integração” que pretende “criar alguns hábitos nos refugiados” (p.329), como é caso do
sistema de crédito oferecido a certas famílias, que tinha a dupla função de ajuda-las a
desenvolver pequenos empreendimentos, e também de ensina-las como movimentar o
dinheiro de certo jeito. Segundo um ex agente de reassentamento:

“[...] era um jeito também que o Acnur enxergava de educá-los para o


crédito porque, no Brasil, é muito complicado abrir empresa, trabalhar
com crédito, abrir conta em banco. Que era muito diferente do que eles
tinham vivido na Colômbia e principalmente vivido nos últimos anos no
Equador onde a informalidade é muito maior.” (p.329)

Outra das “práticas nacionalizantes” (Facundo apud Seyferth, p. 332) é a


escolarização das crianças, pois é através delas que as famílias poderão se conectar com
a “essência da brasilidade que vai se adquirindo aos poucos” (p.354), por meio do
aprendizado da língua, principalmente. Os filhos por estarem menos contaminados pela
essa experiência potencialmente perigosa e desumanizante da guerra e do conflito,
representam a potência máxima da integração, e da construção dessa subjetividade
desejada.
Essas práticas de integração, que agem sobre os tempos e esquadrinha espaços
possíveis para os sujeitos, parece confina-los ao molde de certo tipo de brasileiro:
aquele que não incomoda os reais interesses dessa suposta “sociedade civil” que os
acolhe, concede emprego e, supostamente, um solo seguro.

“Os agentes da tríade costumam dizer que os refugiados desfrutam dos


“mesmos direitos que têm os nacionais”, mas esquecem de
complementar que são os mesmos direitos dos nacionais pobres e que se
referem basicamente (e de forma ideal) aos direitos laborais e aos
serviços gratuitos de saúde e educação. Outras formas de cidadania, não
subsumidas no âmbito produtivo e financeiro, nem sequer aparecem nas
narrativas dos agentes.” (p.330)

Do ponto de vista das experiências desses sujeitos refugiados, o que Facundo


nos mostra, são seus movimentos contínuos de existência no mundo através das marcas
impostas pelos vários tempos. O estado se fazendo historicamente, através de seus
processos mundanos, por meio de suas técnicas e táticas (Mitchell, 2006, p.170) acaba,
neste caso, por enquadrar alguns em certas formas de sedentarização, expulsar outros e
prolongar a espera de muitos. No entanto, as pessoas seguem negociando lugares,
jogando com o “provisório e o permanente”, buscando outros lugares possíveis para si,
por vezes, construindo narrativas heroicas e moralizantes para as marcas difíceis de
alguns tempos, outras vezes, sustentando uma vida no Brasil, mas resistindo como
podem a essa brasilidade normativa. De todo modo, embora as fronteiras dos Estados-
nação estejam parecendo cada vez mais endurecidas e impenetráveis, nesses tempos
nossos, trabalhos como esse nos faz lembrar que elas são politicamente sensíveis a um
presente incerto.

Notas
1
Trata-se do modelo tripartite através do qual são administrados os processos de
refúgio no Brasil. Facundo (p. 80) propõe que este seja entendido no formato de tríade,
privilegiando o olhar para as relações entre os elementos: Cáritas- ACNUR\\ ACNUR-
Governo brasileiro\\ Governo brasileiro- Cáritas. As ambiguidades deste modelo são
muitas, uma delas está no fato da Cáritas ser representante da “sociedade civil”, ao
mesmo tempo em que é representante do ACNUR.

2
Sesc- Serviço Social do Comércio, Senac- Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial, Sesi - Serviço Social da Indústria.

3
O tratamento no feminino a certas categorias profissionais é propositalmente utilizado
ao longo do trabalho e se dá por muitas razões, entre elas a de que é importante
atentarmos, seguindo Vianna (2002) “ a presença do feminino nos lugares da
administração, não apenas como uma variável que cria um tipo particular de relação
com os administrados, mas como uma manifestação da divisão arquetípica do mundo
social entre o feminino e o masculino” (p. 130).

4
(Facundo, 2017, p. 322)
Bibliografia

FACUNDO, A. 2017. Êxodos, refugios e exilios. Colombianos no Sul e Sudeste do


Brasil. Ed. Papeis Selvagens.

MITCHELL, Timothy. (1999). Society, Economy and the State Effect. In: Sharma,
Aradhana & Gupta, Akhil. The Anthropology of the State. A Reader. Blackwell
Publishing, 2006, pp. 169--‐186.

ROSE, Nikolas. (1988) “Governando a alma: a formação do eu privado”. In: Silva,


Tomas Tadeu da (org.).Liberdades reguladas. Petrópolis: Vozes, p.30-45.

SHARMA, Aradhana; GUPTA, Akhil. Introduction: Rethinking Theories of the State in


an Age of Globalization. In: Sharma, Aradhana; Gupta, Akhil. The Anthropology of the
State, a reader. Malden, Blackwell Publishing, 2006, pp.1-42.

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