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Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Resenha do livro
2018
Das filtragens, expulsões, impedimentos.
Ir em direção a algum lugar, criar caminhos tanto para chegar, quanto para
permanecer, e, ainda, para, por vezes, retornar. Processos existenciais e vitais que se
dão em mundo dividido nas fronteiras simbólicas e materiais dos Estados-Nação. Entre
os muitos modos de circunscrever, delimitar, administrar tais movimentos está o refúgio
e seu universo institucional. Ángela Facundo leva a sério a empreitada de construir um
mapa sobre esse universo, através do encontro entre colombianos e estado brasileiro que
conformam um campo de governança sobre certas formas de se movimentar em direção
e dentro do Brasil. Neste mapa estão pontos densos da racionalidade burocrática em seu
nível técnico- administrativo, a projeção do Brasil no cenário internacional como uma
nação humanitária e as marcas existenciais desses sujeitos administrados.
Pois bem, as conexões e costuras entre os diferentes pontos desse universo são
feitas pelos próprios sujeitos que por ele transita, criando trajetos e formas de encontro
singulares com o estado (p.19-27). É, portanto, seguindo algumas dessas relações
tecidas por colombianos com essa “sociedade civil” brasileira, que tentarei me deter
brevemente. Facundo, seguindo Vianna (2011), diz tempos específicos que são criados
em tais encontros. Para esta dimensão ela se dedica na parte 4 da tese: “O tempo:
integração ou o retorno da vida”. Ainda que este capítulo trate tantos dos solicitantes
espontâneos quanto dos reassentados, vou ainda me deter aos dados acerca dos
primeiros.
Para os solicitantes espontâneos, que tentam o refúgio por elegibilidade, vemos
um tempo feito na demora das esperas e no encolhimento provocado pela invasão dos
trâmites intermináveis e difíceis. E, ainda, a impossibilidade da revalidação de diplomas
e da carteira de trabalho, pois não há certeza de que poderão permanecer. (p.292).
“Aí eu te faço uma pergunta, qual é o perfil que o Brasil procura para me
dar os documentos? Que tipo de perfil eles querem que eu seja? Por que
toda essa demora? Não dizem que os computadores modernizam e
simplificam e aceleram uma documentação ou um trâmite? Então, por
que é que eu vejo que elas têm muitos computadores bonitos? [Elas] tão
bem vestidas, bem elegantes, bem belas, bem bonitas, bem super legais,
e as condições de todos que estamos do outro lado dessa grade. Que
mais parece um presídio? Nós nos sentimos incapazes , impotentes[..]”
(p.193)
[...] eu não sei de onde tiram eles que a ajuda financeira é um direito [...]
a ajuda financeira não é um direito, é uma ajuda humanitária, ninguém
tem direito nenhum de receber. Isso é uma ajuda humanitária, então você
não tem direito nenhum, nós estamos dando porque nós avaliamos que
você precisa dessa ajuda. (p.137)
[...] eles [os colombianos] são muito empreendedores [...] é uma coisa
que os chefes reconhecem muito, que eles são os mais esforçados, que
uma coisa diferente no jeito de trabalhar. Como uma característica de
muitos [...] Lembro de xxxxx, ele na Colômbia era um assessor de um
deputado e ao começo ele não queria aceitar de jeito nenhum trabalhar
numa cooperativa catando lixo. Mas não é que agora ele é o chefe da
cooperativa de catadores de lixo? E ele implementou uma política de
salário. Mas foi que a comunidade recebeu ele muito bem, e aí ele ficou
sem jeito de falar não para esse trabalho. (Ex-agente de integração)
(p.294)
É interessante notar como não basta trabalhar, é preciso “uma coisa diferente”.
Há certas disposições para o trabalho mais reconhecidas e desejadas do que outras, e
não se trata também do disciplinamento, da captura das forças vitais, mais talvez, de
“tecnologias da subjetividade” como Rose destaca. Segundo ele:
No caso do reassentado ideal, é preciso que ele seja “um sujeito com idade e
capacidade laboral, viajando em companhia do seu núcleo familiar com filhos
pequenos. Esses últimos, preferentemente, em idade escolar para não obstaculizar as
possibilidades de empregar-se de seus pais” (p.327). Sobretudo, esse refugiado ideal
precisa ser capaz de “exorcizar os fantasmas da dependência e do
asistencialismo”(p.326) através de certo engajamento laboral, que trata-se, vale
ressaltar, do envolvimento nos serviços menos remunerados “que não representem um
potencial perigo para os setores e grêmios profissionais que desfrutam de prestígio
social e econômico no nível nacional” (p.327).
Os usos e ganhos do dinheiro estão sobretudo situados em uma “pedagogía da
integração” que pretende “criar alguns hábitos nos refugiados” (p.329), como é caso do
sistema de crédito oferecido a certas famílias, que tinha a dupla função de ajuda-las a
desenvolver pequenos empreendimentos, e também de ensina-las como movimentar o
dinheiro de certo jeito. Segundo um ex agente de reassentamento:
Notas
1
Trata-se do modelo tripartite através do qual são administrados os processos de
refúgio no Brasil. Facundo (p. 80) propõe que este seja entendido no formato de tríade,
privilegiando o olhar para as relações entre os elementos: Cáritas- ACNUR\\ ACNUR-
Governo brasileiro\\ Governo brasileiro- Cáritas. As ambiguidades deste modelo são
muitas, uma delas está no fato da Cáritas ser representante da “sociedade civil”, ao
mesmo tempo em que é representante do ACNUR.
2
Sesc- Serviço Social do Comércio, Senac- Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial, Sesi - Serviço Social da Indústria.
3
O tratamento no feminino a certas categorias profissionais é propositalmente utilizado
ao longo do trabalho e se dá por muitas razões, entre elas a de que é importante
atentarmos, seguindo Vianna (2002) “ a presença do feminino nos lugares da
administração, não apenas como uma variável que cria um tipo particular de relação
com os administrados, mas como uma manifestação da divisão arquetípica do mundo
social entre o feminino e o masculino” (p. 130).
4
(Facundo, 2017, p. 322)
Bibliografia
MITCHELL, Timothy. (1999). Society, Economy and the State Effect. In: Sharma,
Aradhana & Gupta, Akhil. The Anthropology of the State. A Reader. Blackwell
Publishing, 2006, pp. 169--‐186.