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PROGRAMA UNIFICADO DE BOLSAS PARA APOIO E FORMAÇÃO DE

ESTUDANTES DE GRADUAÇÃO

PROJETO DE PESQUISA

A FAVELA, O NEGRO E A CRISE BRASILEIRA: RELATOS SITUADOS SOBRE A

TRIPLA CRISE POLÍTICA, ECONÔMICA E SANITÁRIA (2015-2022)

Docente Responsável: Prof. Dr. André Vereta-Nahoum

Resumo: Esta pesquisa pretende investigar como membros de grupos socialmente vulneráveis

produzem conhecimento sobre as condições, definem a situação concreta e calculam as formas

de agir sobre as condições, à luz de representações na memória, suas experiências de vida e

concepções de dignidade e respeito próprio. Esse objetivo é operacionalizado por meio de três

perguntas: (1) Quais os trabalhos que pessoas sujeitas à crise econômica e política iniciada em

2014, agravada pela pandemia de Covid-19, realizam em suas práticas cotidianas e em suas

relações para “dar conta” e “prestar conta” da situação? (2) Como essas práticas são

influenciadas pelo respeito que despertam na sociedade e como, por sua vez, influenciam essas

mesmas noções? (3) Diante de situações que comprometem formas mercantis de obtenção de

sustento e perturbam relações delas dependentes, obrigando pessoas a rever caminhos, quais

instrumentos, outras relações, objetos e pessoas de referência são mobilizados para definir a

situação, os recursos de ação disponíveis para enfrentá-la e sustentar relações moralmente

significativas para essas pessoas? Para enfrentá-las, este projeto mobilizará relações

construídas com a Central Única das Favelas, em Heliópolis, e com o Movimento Negro

Unificado, para chegar a famílias socioeconomicamente vulneráveis que são atendidas por suas

ações.

Palavras-chave: crise, sobrevivência, entendimento.


Justificativa

Há um renovado interesse nas ciências sociais por melhor compreender situações definidas

como crises, com novos trabalhos que oferecem pressupostos e alguns elementos centrais para

uma definição de trabalho sobre o fenômeno. Em consonância com essa literatura recente, eu

assumo que crises são dispositivos narrativos e estruturantes empregados para organizar e dar

sentido a fenômenos complexos que mobilizam múltiplos domínios da vida social (Roitman

2013). São também reconhecidas como momentos de conhecimento, questionamento e

intervenção nas bases da ação (Roitman 2013), um juízo moral sobre a realidade que reclama

uma ação imperativa e urgente (Neiburg and Guyer 2017).

Muito do trabalho empírico recente sobre crises, entretanto, debruça-se sobre causas, respostas

e efeitos da crise financeira de 2008 no Atlântico Norte. A experiência e as práticas dos

brasileiros são marcadas, de modo desigual e assimétrico, pelo singular histórico de crises

fiscais e monetárias e as múltiplas experimentações políticas para remediá-las. Essa particular

trajetória histórica importa para as definições da situação que os atores promovem e para seu

repertório de recursos de ação sobre a crise. A singularidade das vidas econômicas dos

brasileiros também imprime sentidos próprios às experiências de crise, expressos em termos

vernaculares como “virar-se”, “ganhar a vida” e “bico”.

Torna-se, portanto, particularmente oportuno investigar crises a partir de situações no Sul

Global, e compreender como diferentes grupos no interior de sociedades nacionais

experimentam, a partir de trajetórias e estruturas de relevância singulares, situações

publicamente constituídas como crises. A singularidade das experiências e práticas dos

brasileiros frente a crises se manifesta também na associação presente entre as experiências e

práticas dessas populações com os processos históricos de vulnerabilização e estigmatização

das populações negras no Brasil (Lamont 2018), bem como por sua inserção marginal no

mercado de trabalho (Paoli 1992). Isso justifica um olhar concentrado sobre essas populações.
Cumpre, portanto, para compreender as dimensões reais da crise econômica brasileira,

reconstruir a experiência específica vivida por estas populações mais vulneráveis à perda de

renda em meio à atual crise econômica.

Entre os estudos que têm como objeto o Brasil, abundam análises diversas de especialistas na

imprensa e publicações especializadas a respeito das origens da crise econômica brasileira de

2014 (Holland 2016; Bolle 2016; Carvalho 2018). Resta por analisar, porém, os trabalhos que

têm de ser realizados diariamente por atores econômicos concretos para dar conta dessa crise.

Para suprir parcialmente essa lacuna, esta pesquisa propõe examinar a experiência vivida

singular de populações negras e faveladas, por meio de relatos de famílias beneficiadas com

ações de assistência do Movimento Negro Unificado (MNU) e da Central Única das Favelas

(CUFA).

O MNU, que surge no ano de 1978 pautando a luta contra a violência policial e a discriminação

étnico-racial, a defesa da igualdade étnico-racial e participação democrática, é considerado o

Núcleo Antirracista mais antigo do Brasil. Durante a pandemia, o movimento engajou-se, por

meio da Convergência Negra e da Coalizão Negra por Direitos, na campanha “Se tem gente

com fome, dá de comer”, em suporte às famílias negras em condição de vulnerabilidade social.

Já a CUFA nasceu em 1999 com ênfase na promoção do empreendedorismo nas favelas por

meio da arte, da cultura e do esporte. Por meio de ações de assistência social durante a

pandemia, em especial o projeto “Mães da Favela”, as ações da CUFA ganharam grande

destaque nacional.

Ambas as organizações congregam pessoas que correspondem ao objeto da pesquisa proposta,

mas em razão de suas pautas, apresentam significativa diversidade no que diz respeito aos

aspectos étnico-raciais, de gênero, de classe e de luta por formas de subsistência, permitindo

cobrir diferentes trajetórias de inserção mercantil, experiências e contextos múltiplos, ainda

que marcadas pela vulnerabilidade.


Resultados Anteriores

Em etapa anterior, a pesquisa concentrou o seu esforço em compreender a lógica das ações da

CUFA em Heliópolis e do MNU em alguns territórios de sua atuação, por meio de entrevistas

com lideranças locais dos movimentos e a observação de algumas de suas ações. Essa foi uma

estratégia em razão do prolongamento da pandemia de COVID-19 e os desafios para chegar às

famílias socioeconomicamente vulneráveis. Assim, a pesquisa resultou em uma compreensão

dos entendimentos que representantes das organizações têm do momento crítico, de como a

situação pôs à prova convicções e alterou formas de ação e projetos, das intervenções

pretendidas nos contextos em que atuam. Esses resultados correspondem à produção de um

relato sobre as formas de conhecimento e operação de movimentos sociais voltados a

populações negras e favelas diante da situação, indicando entendimentos do que é crítico e

categorias que ganham relevância situada ante a memória de outras situações e a experiência

trazida pela memória desses grupos.

Ainda que de forma indireta, foi também possível apurar pelos relatos desses representantes

um quadro geral de como a crise é entendida e enfrentada pelas famílias com quem as

instituições mantêm relações por meio de suas ações. Esses resultados substantivos traduzem-

se, ainda, em condições de acesso ao pesquisador nas áreas de atuação mediado pelas

organizações. Conhecer lideranças e acompanhar algumas ações da CUFA e do MNU resultam

em formas privilegiadas para chegar às famílias em comunidades em que atuam.

Objetivos

O objetivo principal do projeto é compreender como indivíduos que pertencem a grupos

socioeconomicamente vulneráveis, por sua renda, forma de inserção ocupacional ou

reconhecimento que comandam da sociedade, dão conta de sua situação em meio à crise
econômica. Utilizo a expressão “dar conta”, de inspiração etnometodológica (Cicourel 1974),

em toda sua polissemia, englobando as múltiplas tarefas de relatar e representar uma situação

para dar-lhe sentido e justificação (Scott & Lyman 1968), calcular a partir de formas nativas

os recursos disponíveis e definir como agir sobre as condições diante da situação concreta.

Essas formas ordinárias de cálculo (Weber 2002) e conhecimento, fundadas em suas

experiências e trajetórias, que embasam a ação de indivíduos concretos, escapam das análises,

senão como contraponto empírico a pressupostos comportamentais normativos, seja para

confirmar a racionalidade do ator, seja para negá-la.

Para tanto, a pesquisa pretende recolher relatos pessoais das definições que fazem os agentes

de sua situação e das ações e relações que estes mobilizam diante dela. Isso porque o mundo

social é constituído por meio dessas práticas narrativas com que os atores dão sentido à sua

situação, relatam-na e prestam contas de suas ações (Cicourel 1974). Logo, importa produzir

um estudo da etnometodologia promovida para conhecer a situação, defini-la e agir sobre ela.

O projeto assume que para agir sobre condições inesperadas que comprometem formas

habituais de garantir as condições materiais de sobrevivência e alimentar relações

significativas, os indivíduos precisam mobilizar seus instrumentos de conhecimento (Dewey

1929) e as representações na memória (Schütz 1967). Por outro lado, só é possível conhecer

por meio do engajamento prático em situações em que indivíduos selecionam um conjunto de

artefatos e pessoas relevantes como referência que levam em consideração (James 1890) na

construção do mundo sobre o qual agem.

Portanto, o conhecimento é construído diferentemente por diferentes participantes (Cicourel

1974), a depender de experiências e trajetórias particulares que impactam em suas ações, tanto

quanto nos recursos a que têm acesso. Torna-se relevante, portanto, para compreender as

experiências na crise observar, em diferentes espaços sociais, e entre pessoas com trajetórias
distintas, como a crise é definida e vivida, recolhendo os relatos sobre seus atos de

conhecimento e o conhecimento de sua ação sobre a situação de crise.

Como o objetivo, nesses relatos, é reconstruir as experiências situadas da crise e os meios

encontrados de enfrentá-la, são objetivos secundários e auxiliares do projeto observar, em

especial, quais:

1) Categorias específicas os indivíduos utilizam para definir a situação, quer em relação a

trajetórias trilhadas, quer em relação às expectativas que organizam os planos desses

indivíduos. Importa identificar como planos e expectativas são revistos;

2) Os grupos de referência aos quais recorrem para confirmar intuições sobre a realidade,

cursos de ação sobre ela, aos quais se sentem moralmente ligados e que acionam para procurar

oportunidades;

3) As formas nativas de cálculo (Weber 2002) e o trabalho relacional (Zelizer 2012) com que

indivíduos definem os recursos necessários e os disponíveis, bem como as formas de distribuí-

los e negociar com a falta;

4) As noções de respeito com que se valorizam grupos sociais e formas de ação sobre a crise e

como elas afetam as oportunidades e percepções de auto-respeito; e

5) As formas de solidariedade acionadas nos relatos e as formas como figuram: como fontes

de suporte, como vínculos que estão em dívida com o autor, com os quais o autor está em falta

e aquelas que foram perturbadas pela situação crítica, revelando assim a economia moral dos

laços. A literatura demonstra a importância de redes, como fontes de oportunidades e

constrangimentos para populações vulneráveis (Marques 2009). Mas aqui importa, também,

compreender, em sintonia com o objetivo anterior de identificar como trabalhos relacionais são

afetados (Zelizer 2012), como a crise afeta as definições sobre a propriedade de certas

transações entre pessoas conhecidas e meios para o cumprimento de obrigações.


Métodos

Para reconstruir as experiências situadas de produção de conhecimento e ação sobre a crise, o

projeto vale-se do procedimento de reconstrução da etnometodologia dos atores investigados,

por meio da coleta de relatos e da observação de natureza etnográfica de sujeitos da crise. Isto

implica a realização de uma pesquisa de campo que produza um conhecimento situado, que

será realizada com outros membros da equipe na região de Heliópolis, na Zona Sul de São

Paulo, valendo-se para tanto de contatos mantidos pela equipe com uma importante

organização que possui sede no local: a Central Única das Favelas. Além disso, valendo-se das

articulações desenvolvidas com as coordenações estaduais e municipais do Movimento Negro

Unificado, será realizada uma etnografia com famílias beneficiadas por suas ações na cidade

de São Paulo.

Utilizando essas relações e contatos com outras associações locais como facilitadores, o

bolsista se engajará com membros da comunidade local, enfocando seus esforços em

moradores negros de dois grupos etários bem definidos: jovens e adultos maiores de trinta anos.

Essa duplicidade de grupos-alvo tem por propósito verificar a hipótese de que os sentidos,

ações e afetos das crises dependem de experiências singulares de trajetórias históricas.

Detalhamento das atividades a serem desenvolvidas pelo(a)(s) bolsista(s)

Caberá ao/à bolsista realizar uma observação participante, engajando-se em atividades

promovidas pela CUFA e pelo MNU que envolvem atendimento de demandas da população

local em duas localidades de São Paulo para, a partir dos contatos construídos e relações

encetadas, realizar entrevistas semiestruturadas com famílias para coletar os relatos de suas

experiências. Esses relatos deverão ser posteriormente analisados, em conjunto com o

orientador, tendo em vista os cinco objetivos elencados acima. Paralelamente, a/o bolsista

empreenderá uma pesquisa bibliográfica sobre temas pertinentes, como estigma racial, crises e
pobreza urbana e a formação e desenvolvimento das comunidades escolhidas para o estudo.

Ele/a também participará das reuniões do grupo “Krisis: Crise, Incerteza e Sobrevivência",

coordenado pelo orientador, em que discutirá publicações pertinentes ao projeto e avanços de

sua pesquisa, contando com comentários e sugestões para aprimoramento.

Resultados previstos e seus respectivos indicadores de avaliação

Este projeto prevê produzir os seguintes resultados, ligados a indicadores de avaliação

específica:

1) A realização do trabalho de campo com observação participante nas ações mantidas pela

CUFA-Heliópolis e MNU em São Paulo e coleta de relatos de famílias nessa com especial

ênfase da população negra;

2) A produção de um relatório repondo as experiências de populações faveladas negras na

crise e identificando fatores para suas diferenças. Dar-se-á particular importância para os

cinco objetivos intermediários elencados acima. Esse relatório buscará indicar como

conhecem a situação, que grupos de referência mobilizam, as formas nativas de cálculo e o

trabalho relacional envolvido nas transações com que procuram os meios necessários à

sobrevivência e as formas de solidariedade acionadas nos relatos.

3) Disponibilização dos dados coletados no CIS - Consórcio de Informações Sociais.

4) A apresentação dos resultados de pesquisa no Simpósio Internacional de Iniciação

Científica e Tecnológica.

Cronograma de execução

Fase 1 (meses 1 a 3) – Pesquisa bibliográfica, realização de campo e aplicação das entrevistas-

piloto com as famílias beneficiadas pelas ações da CUFA e do MNU.


Fase 2 (mês 3) - Análise preliminar das entrevistas piloto e revisão final do roteiro

semiestruturado de entrevistas.

Fase 3 (meses 4 a 8) - Realização de campo, com coleta de dados e observação.

Fase 7 (meses 9 a 10) – Análise de dados, que servirá de insumo ao relatório.

Fase 8 (meses 11 a 12) – Produção do relatório e revisão.

Bibliografia

Bolle, Monica Baumgarten de. 2016. Como Matar a Borboleta Azul: Uma Crônica Da Era

Dilma. Rio de Janeiro: Intrínseca.

Carvalho, Laura. 2018. Valsa Brasileira: Do Boom Ao Caos Econômico. São Paulo: Todavia.

Cicourel, Aaron. 1974. Cognitive Sociology. Harmondsworth: Penguin.

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Schütz, Alfred. 1967. Phenomenology of the Social World. Evanston, IL: Northwestern.

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Zelizer, Viviana A. 2012. “How I Became a Relational Economic Sociologist and What Does

That Mean?” Politics & Society 40 (2): 145–74.

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