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2018
Linhas de estiramento
Linhas de fratura
“Se a “história das lutas” e a “história dos dispositivos de poder” implicam tipos
diferentes de inteligibilidade, mobilizam, por isso mesmo, modos e exigências
diferentes no trabalho de análise. Mas ambas as análises se referem ao mesmo tecido
histórico, e ambas as análises devem se remeter uma à outra.”(Telles, 2017, p. 25)
Linhas de visível
No entanto, o que talvez defina mesmo o sentido dessa palavra, sejam os modos
pelo qual ela é mobilizada nos discursos. Em um mundo onde muitos se movem a todo
o tempo, esse acabou sendo um termo bastante mencionado, logo associado a questões
sobre uma suposta crise humanitária e migratória, guerras e conflitos. De qualquer
modo, há muitos jeitos possíveis de se deparar com essa palavra, desdobra-la e criar
questões a partir dela em escritos, pesquisas, relatórios, reportagens, terapias, acolhidas,
livros, filmes, obras, músicas, poemas, relações. Em cada jeito são construídos
percursos, metodologias, linguagens, assimetrias, gestos, modos de entrar em relação,
atenções voltadas a algumas pessoas e coisas e desatenção para outras, habilidades e
desabilidades. Em cada estética estão modos de tornar as coisas visíveis.
Nesses processos criativos, semelhantes à própria vida no sentido de um ‘dar
forma’ sempre transitório e contingente, existem alguns atravessadores. Sobre o fazer
etnográfico, por exemplo, James Clifford (2016) discute o quanto relações de poder
constituem historicamente a presença e escrita do etnógrafo. Minha esperança é a de
poder concluir esse texto experimentando construir uma breve análise de alguns trechos
de um material audiovisual (dois longa-metragem) sobre o “Refúgio”, à luz das
discussões já feitas até aqui e de algumas poucas observações de Clifford.
“Refugee” é um filme de 2016, sua Sinopse é a seguinte: “Cinco fotógrafos
famosos viajam pelo mundo para nos darem a conhecer as difíceis condições que
enfrentam os refugiados que sonham com uma vida melhor.” (Netflix, 2018) É um
documentário. Buscar trazer informações sobre as condições de refugiados de diferentes
etnias em diferentes lugares do mundo. Dos 5 fotógrafos, 1 é negro. Dos fotografados
quase todos tem a pele escura. Só esse dado poderia dar seguimento a toda uma
discussão sobre relações étnico-raciais, a qual não farei aqui. Vou me centrar em apenas
algumas cenas protagonizadas por uma das fotografas. Ela está na costa oeste da
Colombia em Buenaventura, local onde muitos são deslocados internos, refugiados em
seu próprio país.
Nas imagens ela caminha com sua câmera por um vilarejo. A câmera é o meio
pelo qual ela se relaciona com as pessoas. A palavra, o gesto, olhar, assuntos, tudo
acontece porque a câmera fotográfica está ali. Só quem sabe manipular a câmera é a
mulher branca, ninguém mais sabe. Mas aí chega a hora de outros experimentarem. Ela
ensina uma garota, já partindo de uma relação mediada por algo que apenas ela tem o
poder de tocar.
“PRECISA FAZER ISSO COM CUIDADO. VEJA, VOU ENSINAR A VOCÊ.”
Pois bem, não há mais pontos fixos, tudo se move, mesmo assim estamos
sempre buscamos alguma ancoragem (ainda que transitória) para olhar para algum
mundo. É, nesse ponto, que gostaria antes de encerrar, citando um trecho de Félix
Guattari (1977) onde é descrita a experiência do Coletivo de Radio Potência Mental, do
qual ele, sujeitos diagnosticados com transtornos mentais, outros terapeutas e
comunicadores fizeram parte.
Reapropriação do tempo.
O direito de esquecer a hora
Acabar com a chantagem da miséria,
disciplina do trabalho,
a ordem hierárquica
O sacrifício
A pátria
Os interesses gerais.
Tudo isso calou a voz do corpo.
Todo o nosso tempo sempre foi consagrado ao trabalho
8 horas por dia
Duas horas de transporte
E depois descanso, televisão, refeição em família.
Conspirar quer dizer respirar junto
e é disso que somos acusados.
(Milhões e milhões de Alices no ar)
“Porque o caos está sempre lá, e sempre estará, não importa o quanto nós
construamos guarda-sóis com as visões.
E quanto aos poetas neste nó? Eles revelam o desejo interno da humanidade. O que
revelam? Eles mostram o desejo por caos e, ao mesmo tempo, o medo do caos. O
desejo pelo caos é a respiração de sua poesia. O medo do caos está no desfile de
formas e técnicas. Poesia, dizem, é feita de palavras.
Então, sopram-se bolhas de som e imagem, que, em seguida, irão estourar com a
respiração que anela pelo exato caos que as preenche. Os poetastros podem fazer
bolinhas bonitas e brilhantes para a árvore de natal, as quais nunca se rompem,
porque não há sopro dentro delas: elas permanecem até o momento em que as
deixamos cair.” (Lawrence, DH)
Notas
1- Sobre o conceito de corpo vibrátil de Deleuze e Guattari ver: ROLNIK, Suely. 1989.
Cartografia sentimental. Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação
Liberdade, São Paulo, 1989.
Bibliografia