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Nome: Danielle Peralta Kazanji

Disciplina: FCS 745/845 – Informalidade\Formalizações


Docentes: Daniel Hirata e Fernando Rabossi
2º semestre de 2017

Perigos e fronteiras: notas sobre o governo dos que vêm de fora

Riscos às fronteiras

Ir em direção a algum lugar, criar caminhos tanto para chegar, quanto para
permanecer e também para retornar: processos existenciais e vitais que se dão em
mundo dividido nas fronteiras simbólicas e materiais dos Estados-Nação. Nos vários
modos de circunscrever, delimitar, administrar tais movimentos se conformam campos
de governança, que envolvem: pontos densos da racionalidade burocrática em seu nível
técnico- administrativo, os modos de projeção destes estados no cenário internacional, e
a criação de zonas morais, de perigo e risco que singularizam as relações entre corpos e
espaços.

São muitas as escolhas analíticas e metodológicas para abordar tais questões.


Conforme vimos no curso, seguindo uma perspectiva foucaultiana, essas escolhas não
são únicas, universais e nem são formas de captar uma realidade pronta e acabada. Os
próprios modos de se pesquisar acabam atuando na perpetuação das relações de poder,
e\ou, em deslocamentos, torções, desenquadramentos, deformações destas relações.
Nestas próprias práticas discursivas, portanto, enquanto se produz a definição de
problemas de pesquisa e delimitação dos fenômenos, se constituem formas de intervir
nesse próprio fenômeno circunscrito.
Seguindo essa perspectiva, Mitchell (2006) analisa as fronteiras entre estado,
mercado e sociedade no texto “Society, Economy, and the State Effect” argumentando
que tais fronteiras devem ser permanentemente historicizadas, pois se movimentam no
tempo, segundo técnicas e processos mundanos associados a certos interesses.
Preocupado em formular uma teoria do estado, o autor identifica como parte
fundamental do problema, os processos sociais por meio dos quais uma série de
complexos institucionais, arranjos temporais, táticas de vigilância se obscurecem para
dar lugar à ficção de uma entidade única, fechada em si e abstraída da concretude do
social que seria O Estado. Portanto, essas próprias linhas de diferença, cotidianamente e
historicamente produzidas que criam certos cortes para o mundo podem nos indicar
pontos de irradiação do poder: zonas de disputas, associações, interesses politicamente
orientados. Nas palavras de Mitchell (2006, p.170): “o fenômeno que nós chamamos de
estado nasce de técnicas que permitem práticas materiais mundanas assumirem a
aparência abstrata, uma forma não-material”.
O fenômeno das mobilidades humanas tanto nas formas institucionais do refúgio
como nas migrações são interessantes por evidenciarem várias dessas práticas materiais
que engendram os processos de formação dos Estados-nação. Todo o trabalho técnico-
administrativo empreendido no sentido de acolher uns e expulsar outros esquadrinha as
fronteiras simbólicas da nação e cria mecanismos de segurança, vigilância para o
governo de uma “população” (Foucault, 2008).
Ángela Facundo, em sua tese sobre o universo institucional do refúgio brasileiro
a partir da presença colombiana no Sul e Sudeste recupera a discussão de Didier Fassin
(2010)- também de aspiração foucaultiana- acerca de uma das dimensões entre governos
e governados que seria uma política da compaixão expressa nas relações entre
solicitantes de refúgio e agentes de estado. Nesta relação moral particular é posto em
operação um conceito de humanidade decisivo no governo das mobilidades.
Segundo Facundo, o saber-fazer constitutivo deste universo institucional está
atravessado por conteúdos morais sobre o ‘outro’ que chega. Mesmo a gestão da ajuda,
que opera na dimensão do “fazer viver” localizada no nível da “sociedade civil”1,
concessão de comida, subsídios financeiros é feita a partir de um olhar moralizante
sobre a humanidade do outro, sempre legitimado por esse saber-fazer dos psicólogos,
assistentes sociais, advogados. Gestos mínimos dos solicitantes de refúgio podem
levantar suspeição acerca dos motivos que os conduziram até aquele momento. Eles
devem ser capazes de demonstrar que cabem na imagem humanitária do refugiado, ou
seja, do corpo que sofre, que foge de um “fundado temor de perseguição”, que não tem
vontades ou desejos, que não calcula seus passos.
Trata-se, portanto, de um campo de governança conformado pela projeção de
um humano “tábula rasa” (Ibid. p.311). Ele deve aceitar tudo que vem do país soberano,
inclusive as negativas, expulsões, demoras. Sua capacidade em acatar e aceitar é prova
de que ele é suficientemente bom à nação. Essa característica também aparece como
“...uma força potencialmente disruptiva da ordem social na qual se
pretende “integrar” ao refugiado. Isso porque um humano, puramente
humano, sem possibilidade de reflexão e sem vontade, pode ser
entendido também como a matéria prima de qualquer coisa, desejada ou
indesejada para os propósitos da integração.” (Ibid, p.311)

Esse corpo raso, então, é um risco a ser administrado e ordenado. Para tanto, é
preciso o fortalecimento de um ideal integrativo capaz de ancorar essas depurações
entre indesejáveis e desejáveis. Este ideal formata os modos possíveis de fixação e
sedentarização e condiciona os lugares através dos quais esses sujeitos poderão integra-
se á nação. Facundo observando as práticas do programa de reassentamento voltado aos
colombianos aponta para alguns critérios usados na pré-seleção dos refugiados, sendo
um deles a capacidade de adaptação do sujeito a “dinâmicas citatinas, particularmente
nas cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul” (Ibid.
p.121). Neste programa, os refugiados já são direcionados às cidades pré-definidas pela
administração do refúgio. Para os solicitantes ou refugiados espontâneos - os que vêm
ao Brasil traçando suas próprias rotas sem garantias de visto - as cidades também são
pontos de permanência necessários, pois é por meio destas fixações “geográfico-
adminstrativas” (Ibid.p.121) que o refugiado é produzido. Embora haja alguns outros
poucos postos administrativos que cuidam das populações em deslocamento no Norte,
parece estar nas regiões Sul e Sudeste e também em Brasília, um maior adensamento de
complexos institucionais e tecnologias de governo que intermediam a relação dessas
pessoas com o estado. Portanto, pessoas precisam ser adaptáveis à vida na cidade,
sobretudo, porque parece ser este o lugar destinado a elas pela administração brasileira.
No trabalho de Vieira (2017), observamos o caso interessante e bastante singular
do governo da mobilidade haitiana no Brasil, a partir do que ela chama de desbordo, ou
seja, da percepção dos agentes de estado de que em um dado momento o número de
haitianos chegando ao Brasil transbordou, e impôs a necessidade da criação de
categorias de gestão e modelos padronizados de administração dessa população
específica. Houve toda uma reconfiguração nas relações diplomáticas entre Brasil e
Haiti, e a singularidade da concessão de vistos humanitários a haitianos, o que
evidentemente, diferencia os modos de fixação desses sujeitos dos de outras
nacionalidades. No entanto, me deterei a recuperar um ponto de Vieira acerca dos
“medos” e das reações “alarmistas” (Vieira, 2017, p.245) parte da construção do
problema que começou em meados de 2010.
Um dos temores levantados pela percepção desse desbordo foi “a possibilidade
de pessoas haitianas serem um risco para a saúde da população brasileira.” (Vieira,
2017, p.237), devido a uma ameaça de cólera – como mostra a autora- infundada, e que
tampouco é elemento novo no governo das mobilidades haitianas 2 pelo mundo. A ideia
de que a nação está sempre ameaçada por um “outro” imageticamente raso e, por isso,
perigoso à estabilidade nacional parece ressoar de modo bastante duro nas respostas
governamentais às mobilidades haitianas. A atribuição da falta de civilidade e de uma
humanidade relativa está evidentemente também compondo com a dimensão da
racialização de tais corpos.

“O risco levantado de disseminação da cólera e, consequentemente, os


exames empreendidos configuraram esforços de produzir e reproduzir
diferenciações e hierarquias (ordem e desordem; limpeza e
insalubridade; progresso e atraso) entre as nações.” (Vieira, 2017, p.239)

Em uma matéria de Junho de 2015 do UOL, intitulada “Haitianos que chegam a


São Paulo vivem dias de fome e desemprego” algumas dessas hierarquias e
diferenciações são evidenciadas. Um dos trechos diz: “Por lá os imigrantes já foram
vacinados e tiraram a carteira de trabalho. Porém, como estão doentes e famintos,
muitos haitianos nem sequer têm forças para trabalhar”.
Os imigrantes “já vacinados” estão “famintos”, porém “tiraram sua carteira de
trabalho”. Esse trecho cria uma imagem interessante das leituras feitas sobre o outro.
Ele está vacinado, portanto, não apresenta tanto um risco aos brasileiros. Passam fome,
mas, estão em vias de se prepararem para o mercado de trabalho em São Paulo, local
para onde foram conduzidos desde o Acre, e para uma instituição específica– Missão
Paz- na qual os “empresários brasileiros” são “atraídos” para contrata-los. O uso das
categorias “imigrantes”, “doentes”, “famintos”, “haitianos” “desempregados” parecem
ser o avesso do ideal de integração. Se houvesse alimentação, cura e emprego, tais
corpos estariam aptos a fazerem parte da nação, nada mais eles podem ser, nada mais
parece escapar de suas histórias. Com os cuidados necessários, eles podem se tornar a
tábula rasa perfeita para “uma nova vida”, um “recomeço”, um “se fazer uma vida do
nada”, e neste sentido, o poder integrador do trabalho se torna central.
“Brasileiro não quer cortar madeira”

Essa fala retirada de outra matéria “Trabalhadores haitianos em São Paulo são
cobiçados por empresários do país” do IG de maio de 2014 pode ajudar a pensar sobre
as condições de possibilidade da inserção ocupacional dos haitianos nas cidades
brasileiras. A reportagem faz uma leitura positiva do interesse dos empresários que
contratam haitianos, como aqueles que concedem a oportunidade da integração. As
vagas mencionadas oferecem pouco mais de um salário mínimo mais alimentação e
transporte (não fica claro em que forma) e alojamento\moradia. Na época foi feito um
mutirão para confecção das carteiras de trabalhos, elas demoravam em média 45 dias e
na ocasião foram emitidas 300 em 3 dias na Missão Paz. Alguns desses mutirões
emergenciais foram frequentes e, por vezes, reportados pela mídia nos últimos anos.
Segundo Luiz Antonio Medeiros, superintendente do Ministério do Trabalho, em São
Paulo citado na reportagem:

“A carteira de trabalho é a grande prova de cidadania deles. O risco de


trabalho escravo é enorme sem essa assistência. Pelo menos 20 empresas
já procuraram o Ministério para contratar os haitianos. Falta mão-de-
obra no setor da construção civil e do agronegócio”.

Sobre as tentativas de integração dos colombianos através do programa de


reassentamento, Facundo (2017) observa que o potencial integrativo desses sujeitos
depende do nível de civilidade que eles podem vir a alcançar: “alguns tempo-espaço
podem piorar sua condição sub-humana ou melhora-la”. Tratam-se “de perdas ou
ganhos em termos de civilidade.” (Ibid., p.304). Por isso, os esforços dos agentes de
estado que atuam no processo de “integração” se dão no sentido de torna-los cidadãos a
partir de dois caminhos principais que visam civiliza-los: o do trabalho (para os adultos
em idade laboral), e da escola (para as crianças). Quando os agentes do refúgio tratam
dos casos exitosos se referem a sujeitos “integrados, estáveis, empregados, bilíngues”
(Ibid., p. 294). Eles são a amostra de como o Brasil realiza um bom trabalho na
integração de refugiados, e também do mérito daqueles que sustentam as dificuldades e
precariedades do caminho, e estabelecem uma vida digna. Os persistentes, os gratos e
esforçados, que reconhecem a solidariedade e generosidade dos que o acolhem, passam
a integrar a “categoria do refúgio exitoso”.

[...] eles [os colombianos] são muito empreendedores [...] é uma coisa
que os chefes reconhecem muito, que eles são os mais esforçados, que
uma coisa diferente no jeito de trabalhar. Como uma característica de
muitos [...] Lembro de xxxxx, ele na Colômbia era um assessor de um
deputado e ao começo ele não queria aceitar de jeito nenhum trabalhar
numa cooperativa catando lixo. Mas não é que agora ele é o chefe da
cooperativa de catadores de lixo? E ele implementou uma política de
salário. Mas foi que a comunidade recebeu ele muito bem, e aí ele ficou
sem jeito de falar não para esse trabalho. (Ex-agente de integração)
(Ibid., p.294)

Embora o programa de reassentamento seja um exemplo específico, talvez sirva


para notarmos os esforços empreendidos no sentido de produzir certo tipo de integração
pela via de certos tipos de trabalho, que, embora sejam formais não deixam de ser
precários. Interessante notar como não basta aceitar e realizar as funções, pois,
relacionado ao êxito da integração está uma dedicação singular ao trabalho, correlata a
um imaginário sobre os colombianos: “são empreendedores”. Neste caso, a disposição
de empreender está em saber agir na relação com o chefe de um jeito diferenciado. Há
certas disposições para o trabalho mais reconhecidas e desejadas. Ao contrário do
disciplinamento dos corpos, da captura das forças vitais que os serializam, neste caso,
parecem operar certas tecnologias constitutivas de um campo de subjetivação no qual
certos sujeitos, ou certas nacionalidades trabalham mais e melhor que outras.
Todo este campo parece confinar as pessoas a certo tipo de brasileiro: aquele
que não incomoda os reais interesses da suposta “sociedade civil” que os acolhe,
concede emprego e, supostamente, um solo seguro. Este ‘outro’ é acolhido através do
envolvimento nos serviços menos remunerados “que não representem um potencial
perigo para os setores e grêmios profissionais que desfrutam de prestígio social e
econômico no nível nacional” (Ibid., p.327).

“Os agentes da tríade costumam dizer que os refugiados desfrutam dos


“mesmos direitos que têm os nacionais”, mas esquecem de
complementar que são os mesmos direitos dos nacionais pobres e que se
referem basicamente (e de forma ideal) aos direitos laborais e aos
serviços gratuitos de saúde e educação. Outras formas de cidadania, não
subsumidas no âmbito produtivo e financeiro, nem sequer aparecem nas
narrativas dos agentes.” (Ibid., p.330).

O caso haitiano, nas suas particularidades e nos novos arranjos institucionais


vinculados ao governo dessa mobilidade (Vieira, 2017), talvez possa dar pistas sobre o
as formas de operação do poder integrador do trabalho. Fazendo uma rápida pesquisa no
Google Acadêmico, se digitamos “haitianos” “brasil” “trabalho” rapidamente somos
conduzidos à escritos sobre trabalho escravo no Brasil contemporâneo, o que pode
aludir a certas situações-limite da produção de condições precárias, inclusive, - talvez
principalmente - nos trabalhos ditos formais disponíveis. Deixarei de lado essa
literatura, e todas as matérias jornalísticas que tratam de denuncias de trabalhos
análogos à escravidão envolvendo haitianos, o que já, inclusive provocou a criação de
uma associação em São Paulo chamada União Social dos Imigrantes Haitianos (Usih).
Irei, no entanto, fazer uma breve analise de alguns pontos de um recente relatório feito
pela OIT (2017) chamado “Inserção Laboral de Migrantes Internacionais: transitando
entre a economia formal e informal no município de São Paulo”.

Sobre inserir e integrar

Conforme afirma Rabossi, a Organização Internacional do Trabalho é agência


central na projeção da ideia de informalidade. A criação desta instituição está
relacionada a esforços de garantia de um suposto bem-estar “moderno” a países
terceiro-mundistas que, em tese, através da geração de empregos, seriam capazes de
passar por diferentes estágios de desenvolvimento até, por fim, adquirirem esse bem-
estar. Em relatório de missão no Quenia em 1972 já passa a ser questionado “el punto
de partida asumido para pensar el problema del empleo; esto es, comenzar los análisis
de empleo a partir de aquello que es registrado como tal” (Rabossi, 2006, 20, p.5). No
relatório já há apontamentos no sentido de “incorporar dicho sector dentro del quadro y
de cualquier estrategia de desarrollo, en particular aquella que aparece formulada en el
informe” (Ibid, p. 6). Ao longo do tempo o ‘setor informal’ vai tomando forma e
aparecendo em diversos trabalhos e pesquisas de forma pouco homogênea em bastante
controversa. De todo o modo, a OIT publica em 2002 uma resolução fazendo relação
entre ‘trabalho decente’ e ‘economia informal’ e legislação.

“A expressão "economia informal" refere-se a todas as atividades


econômicas de trabalhadores e unidades económicas que não são
abrangidas, em virtude da legislação ou da prática, por disposições
formais. Estas atividades não entram no âmbito de aplicação da
legislação, o que significa que estes trabalhadores e unidades operam à
margem da lei; ou então não são abrangidos na prática, o que significa
que a legislação não lhes é aplicada, embora operem no âmbito da lei;
ou, ainda, a legislação não é respeitada por ser inadequada, gravosa ou
por impor encargos excessivos.”

Os trabalhadores da economia informal incluem trabalhadores


assalariados e trabalhadores por conta própria. A maior parte dos
trabalhadores por conta própria são tão vulneráveis e carecem de tanta
segurança como os assalariados, e passam de uma situação a outra.
Sofrendo de falta de protecção, de direitos e de representação, estes
trabalhadores são frequentemente atingidos pela pobreza. (OIT, 2002,
p.7).

Pois bem, o emprego é enunciado como pertencendo ao lugar da estabilidade e da


segurança, da lei. Assim, vai se tornando mais naturalizada a correlação entre certos
trabalhos da dita ‘economia informal’ com a produção de condições vulneráveis de
vida, e ainda, de um distanciamento da legislação. Uma figura interessante, portanto, de
preocupação da OIT em várias recomendações e relatórios é o migrante, aquele que
frequentemente está na margem na lei. No texto o “Imigrado e o Iegal: de volta às
atividades informais dos estrangeiros”, Alain Morice (2015) pontua os inúmeros
problemas de definição em torno das figuras do “imigrado”, “informal”, “ilegal”
afirmando, inclusive, que as zonas de indistinção constitutivas dessas categorias,
frequentemente geram, no caso da Europa, sobreposições de umas nas outras, como no
caso da figura do “migrante clandestino” (Morice, 2015, p.146), o que frauda e rouba o
estado devido suas práticas nas margens da lei e que pode colocar em risco uma suposta
estabilidade, posta nos seguintes termos: “Você está aqui porque eu preciso, mas se eu
pudesse me livraria de você. Então, eu o tolero, mas fique quieto”. (Ibid., p.146).
Pois bem, nesse relatório de novembro de 2017: “Inserção Laboral de Migrantes
Internacionais: transitando entre a economia formal e informal no município de São
Paulo”, a OIT busca “compreender a situação dos trabalhadores migrantes na economia
informal e os obstáculos que enfrentam nos processos de transição para a formalização”
(OIT, 2017, p.7). Há, portanto, uma transição que culminaria na formalização, mais
próxima do “trabalho decente” tão preconizado. Trata-se de um:

“mapeamento do perfil de trabalhadores migrantes que se encontram no


mercado de trabalho informal em São Paulo; identificação dos setores
produtivos onde há uma inserção expressiva dos trabalhadores migrantes
em situação de informalidade; identificação das causas e dos motivos
que levam trabalhadores migrantes a se inserirem no mercado de
trabalho informal; reflexão sobre os obstáculos encontrados pelas
iniciativas que visam promover a transição destes trabalhadores
informais em trabalhadores formais; e. levantamento de instituições,
políticas, incentivos e boas práticas que promovam um ambiente
propício à formalização dos trabalhadores migrantes em situação de
informalidade; recomendações de estratégias e ações em diversos
campos das políticas setoriais voltadas a atender as necessidades dos
trabalhadores migrantes em seu processo de transição da economia
informal para a formal.”(Ibid., p.7)

Os dados apresentados ao longo do texto, bem como os modos de ordena-los e


as constatações feitas a partir deles, são interessantes para compreender o lugar de um
certo caminho a ser percorrido através de políticas públicas que assegurará a
estabilidade e uma certa tranquilidade ao migrante trabalhador e também a cidade. A
relação entre economia informal e risco – para o próprio migrante- aparece com
frequência no texto, como nesse trecho:

“Os trabalhadores da economia informal caracterizam-se por


diferentes graus de vulnerabilidade. Trabalhadores mulheres, jovens,
migrantes e idosos são especialmente vulneráveis aos mais graves
déficits de trabalho decente na economia informal. Essa
vulnerabilidade e falta de proteção legal tendem a expor ainda mais
esses trabalhadores informais a situações de violência, incluindo
assédio sexual e outras formas de exploração e abuso, corrupção e
suborno. O trabalho infantil e o trabalho escravo também se
encontram na economia informal.” (Ibid. p.9)

O relatório passa por aspectos teóricos, recupera discussões tratadas em outras


várias recomendações da OIT sobre questão migratória, pontua aspectos demográficos
da distribuição de migrantes na cidade e no estado de São Paulo. Não irei, no entanto,
me ater a esses pontos. Focarei em pincelar alguns aspectos da quinta parte em diante.
A quinta parte se chama: “Pesquisa exploratória de campo”, trata-se da descrição
de um trabalho de campo feito principalmente no centro de São Paulo, que entrevistou
71 pessoas de diferentes nacionalidades. Muitas das recomendações apresentadas nos
capítulos seguintes partem da analise desses dados. As informações são agrupadas no
que eles chamam de “Nichos étnicos”, sendo: 5.1- Migrantes do Haiti, 5.2- Nicho
étnico da costura, 5.3 - Nicho étnico dos restaurantes 5.4 -Nicho étnico do
comércio/ambulante. Abaixo dos nichos étnicos está um outro tópico chamado
“Caderno de campo”, que apresenta algumas observações sem muito ordenamento,
feitas a partir do olhar de um observador. Neste tópico os nichos étnicos parecem
embaralhados e misturados a partir das sensações e encontros deste observador. (OIT,
2017, p.64-81)
Vou focar em um desses tópicos “Migrantes do Haiti”. A justificativa pra
criação dessa categoria de análise está no fato de o visto humanitário ter concedido aos
haitianos uma inserção ocupacional bastante diferenciada de outras nacionalidades.
Embora muitos dos entrevistados estivessem desempregados, muitos têm carteira de
trabalho, e dentre estes, alguns trabalham de carteira assinada.
Segundo o relato de campo o risco da informalidade está sempre presente no
cotidiano dos haitianos. Através da compreensão desse modo de vida é possível se
aproximar do trabalho informal:

“A comida, o comércio e a forma de trânsito no espaço urbano é


rigorosamente análogo à vida em Porto Príncipe. Este é um ponto
importante para entendermos a reprodução da informalidade e da
inserção de homens e mulheres haitianas neste mercado de trabalho
informal em São Paulo.” (Ibid., p.66)

A presença haitiana provocou novos arranjos institucionais e a criação de certas


categorias de gestão, como já mencionei seguindo o trabalho de Vieira (2017). O
relatório menciona uma mudança da Missão Paz desde 2012 para mediar à relação entre
empregadores e empregados. Trata-se da “conscientização tanto do empregador como
do migrante a respeito dos direitos humanos e trabalhistas” (OIT, 2017, p.67). Nada se
diz sobre o que pode ter motivado tal programa de conscientização, mas enfim, no relato
de campo há a descrição de um importante acontecimento no sentido de denotar alguma
tensão entre trabalhadores e contratantes:

“Em uma quinta-feira, quando ocorrem mutirões de emprego na


Missão Paz, pudemos acompanhar a situação de oferta de empregos.
Neste dia, havia consideravelmente mais migrantes haitianos no
espaço da Igreja, mas poucos empregadores interessados. Um deles foi
justamente no horário de intervalo do almoço para recrutar, pois
provavelmente já sabe que os empregadores, para poder recrutar na
Missão Paz, têm que realizar um pequeno curso de direitos humanos e
trabalhistas, e que precisam se comprometer a seguir essas normativas
legais. Sem a anuência da Missão Paz, e sem ter de comprometer-se
legalmente, o empregador estacionou sua camionete em frente às
escadarias da Igreja Nossa Senhora da Paz e começou a chamar alguns
migrantes. A dificuldade de comunicação e a grande quantidade de
interessados, logo gerou uma pequena confusão. Após breves minutos,
o empregador levou consigo 4 migrantes, sem passar pelos trâmites do
recrutamento através da Missão Paz. Ficamos sabendo que a oferta era
por trabalho na reforma de sua casa, a R$70,00 por dia de trabalho.”
(OIT, 2017, p.67).
Dessa perspectiva, mais relevante do que entender e mapear práticas como esta,
parece ser o de entender como os migrantes se tornam vulneráveis por uma suposta
passagem à informalidade. Este caso descrito parece não parece fazer muita diferença
nas conclusões do relatório que em sua sexta parte pretende fazer um: “Diagnóstico das
condições sócio laborais da Migração internacional na cidade de São Paulo”. Esta parte
é subdividida em: 6.1. Perfil dos entrevistados, 6.2. Sexo, 6.3. Ano de chegada, 6.4.
Idade, 6.5. Nacionalidade, 6.6. Motivo para a vinda ao Brasil, 6.7. Registro em carteira,
6.8. Número de Empregos no Brasil , 6.9. Ocupação no país anterior e ocupação atual
no Brasil, 6.10. Trajetórias migratórias e ocupacionais. 6.11. Categorias das Ocupações
declaradas, 6.12. Tempo na ocupação, 6.13. Horas trabalhadas na ocupação, 6.14.
Contrato de trabalho, 6.15. Vida social 6.16.Comparação das variáveis segundo a
classificação ocupacional dos migrantes. (OIT, 2017, p.82-101)
Analisar esta parte poderia render muitas paginas, vou apenas tecer algumas
poucas considerações sobre dois desses tópicos. No tópico 6.10. “Trajetórias
migratórias e ocupacionais” mostra-se uma tabela, dividida por – certas- nacionalidades,
que compara ocupação no país anterior com a ocupação atual no Brasil: haitianos,
bolivianos, peruanos, sírios, angolanos aparecem em maior quantidade. Praticamente
todas as trajetórias iam de uma gama extensa de ocupações (no país de origem) para
quase sempre as mesmas ocupações no Brasil. No caso dos sírios (5 das 71 trajetórias),
por exemplo, de professor, médico, engenheiro, estudante e dono de lojas todos
passaram a trabalhar com culinária, de um modo ou de outro – nas funções de: ajudante
de cozinha, “faz e vende comida”, dono de restaurante . No caso dos haitianos, as
trajetórias foram de gente que passava por informática, elétrica, marcenaria, construção
civil, vendas, ramo hoteleiro, comércio, supervisão de empresa, professor universitário,
para as seguintes ocupações atuais: desempregado, ajudante de produção, ambulante,
limpeza, construção civil (pedreiro e ajudante de pedreiro).
O segundo tópico que quero apontar é o 6.15 Vida social. Entre toda a análise
dos diagnósticos sócio-laborais, existem apenas três tabelas para falar daquilo que sobra
do trabalho, o resto da vida. Dentro dessa tabela existe um componente chamado
“preconceito”. Dos 71 entrevistados 67 responderam ‘sim’, mas não se sabe muito sobre
as razões, ou espaços onde essas pessoas sentiram “preconceito”. É interessante
observar os que responderam ‘não’: três deles são donos ou proprietário de restaurantes
e o quarto é o único engenheiro ativo de todo o grupo. Dentre as categorias descritas
essas são ocupações que ganham acima de R$ 2.500. Num gráfico deste mesmo tópico
mostra a resposta dos migrantes a respeito de suas redes de amizades: 81% deles dizem
não ter amigos brasileiros, sendo que destes 54% têm apenas amigos de mesma
nacionalidade, e 27% também de outras nacionalidades.
Na última parte do relatório são feitas algumas conclusões dos dados que
resultam na constatação de que: “A formalização do trabalho como garantia de acesso a
direitos sociais” (Ibid., p.104). Algumas das conclusões dizem respeito à relações
internas aos “nicho étnico”:
“12) É preciso identificar as relações sociais e de poder nos nichos
étnicos para romper com as formas precárias de trabalho;

11) A importância de compreender o nicho étnico também como local


da formalização da inserção laboral. Embora predomine a
solidariedade étnica (Bonacich, 1973) e as formas de inserção laboral
informal, o nicho étnico propicia a inserção formal, mas é necessário
que por ele transitem as informações acerca do trabalho formal e os
direitos que isto os garante: como auxílio doença, afastamento por
acidentes de trabalho, licença-maternidade, etc.;

16) A inserção em nichos étnicos garante maior permanência nas


atividades laborais, tanto para
trabalhadores migrantes empregados informalmente quanto para os
terceirizados e por conta própria;

17) Se de um lado nicho étnico traz uma forte solidariedade étnica, por
outro lado, traz a conformação de pouco contato com a população
brasileira. Isto reforça as relações de poder no grupo étnico,
ampliando a informalidade no mercado de trabalho. Portanto, é a
partir da permeabilidade das fronteiras do nicho étnico que será
possível a migrantes ter acesso a informações sobre diferentes setores
da economia brasileira e sua oportunidade de inserção laboral.”(Ibid.,
p.107)

Sobre as trajetórias dos haitianos que passaram pela “formalização” as


conclusões são:
“13) Trajetórias com registro em carteira tendeu a apontar relativa
“ascensão” nas ocupações seguintes ou a ir direto ao desemprego nas
situações mais extremas, como no caso de muitos haitianos que ainda
persistem na espera do trabalho formal na Missão Paz;

14) No caso da migração haitiana o trabalho formal – e contar com um


salário fixo mensal – é a garantia de que o compromisso moral da
remessa será cumprido” (Ibid., p.104)
Completamente apartadas de um campo político, são feitas essas considerações, nas
quais o termo “população brasileira” aparece apenas uma vez. Segundo o relatório, a
pouca rede que os migrantes estabelecem com os nacionais é devido aos grupos étnicos
e suas relações de poder, e pouco tem a ver com qualquer atitude de brasileiros, embora
a maioria dos entrevistados tenha respondido sentir preconceito – o que é um dado
pouco discutido. Sobre as 14 recomendações feitas ao estado brasileiro também muito
poderia se discutir, no entanto, vou escolher mencionar apenas uma:

“Investir na escolarização e qualificação do trabalhador migrante.


Como no caso de brasileiros, o nível educacional é um divisor de
quem terá o acesso ao mercado formal e ao mercado de trabalho
informal. Mesmo no nicho étnico estão presentes migrantes
formalizados e informalizados no mercado de trabalho, no caso desses
últimos suas atividades são menos qualificadas e correspondem a
migrantes com baixa escolaridade. Além do domínio da língua,
escolaridade e qualificação profissional são determinantes para a
inserção laboral de migrantes no trabalho formal”(Ibid.p.107)

Novamente, o campo político é apartado, como se a própria estrutura


ocupacional da cidade não merecesse atenção. Sobre esse ponto gostaria de voltar ao
trabalho de Facundo (2017) que discute em um dado momento, os ganhos e usos do
dinheiro a partir de alguns olhares brasileiros e administrativos capazes de criar uma
verdadeira “pedagogia da integração” através da criação de certos hábitos nos
refugiados (Facundo, 2017, p.329). Ela cita o caso de um sistema de crédito oferecido a
certas famílias do programa de reassentamento, que tinha a dupla função de ajuda-las a
desenvolver pequenos empreendimentos, e também de ensina-las como movimentar o
dinheiro de certo jeito. Segundo um ex-agente:

“[...] era um jeito também que o Acnur enxergava de educá-los para o


crédito porque, no Brasil, é muito complicado abrir empresa, trabalhar
com crédito, abrir conta em banco. Que era muito diferente do que eles
tinham vivido na Colômbia e principalmente vivido nos últimos anos no
Equador onde a informalidade é muito maior.” (Facundo, 2017, p.329)

A mobilização do termo “informalidade” pelo ex-agente como fazendo parte de


um estágio civilizatório anterior, onde este ‘outro’ sabe menos, pois vêm de um lugar
necessariamente pior, nos coloca diante, talvez, de uma dentre várias outras disputas
políticas em torno do conceito ou ideia de informal, neste caso, associada a certos
estrangeiros. Afirmações como essa fazem indagar sobre qual é a solução pra
informalidade que se quer produzir diante das afuniladas possibilidades ocupacionais
para quem vêm de fora. A “essência da brasilidade” (Facundo, 2017, p.316) e as
atitudes dos que recebem, parece ser um ponto incontestável, ou pouco mencionado no
relatório, nas reportagens, em certa literatura sobre o tema, no entanto, divisões por
‘nichos’, certos modos de agrupamento e a tensa relação com essa “sociedade civil”,
talvez possam estar apontando para as fronteiras endurecidas da nação e para fraturas e
esgotamentos da própria cidade e seu campo de subjetivação. Em trabalhos como o de
Tereza Caldeira de 2002, “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São
Paulo”, por exemplo, observamos o potencial do medo como o afeto político
fundamental para produzir novos muros a cada dia. A ilusão ou o delírio de que há um
lugar seguro a ser protegido, talvez esteja impedindo negociações e movimentos reais
em direção ao ‘fora’ que bate aos muros, (neste caso legitimado pela ficção de uma
nação acolhedora, e de uma “cidade dos imigrantes” (OIT, 2017, p.106)). Se o medo
torna qualquer diferença perigosa à estabilidade subjetiva e material dos que fazem o
endurecimento das fronteiras, ele, logo trata de produzir os menos humanos, menos
civilizados, mais rasos, mais perigosos...

Notas

1- A “sociedade civil” representada pela Cáritas compõe o modelo tripartite através


do qual são administrados os processos de refúgio no Brasil. Facundo (p. 80)
propõe que este seja entendido no formato de tríade, privilegiando o olhar para
as relações entre os elementos: Cáritas- ACNUR\\ ACNUR- Governo
brasileiro\\ Governo brasileiro- Cáritas. As ambiguidades deste modelo são
muitas, uma delas está no fato da Cáritas ser representante da “sociedade civil”,
ao mesmo tempo em que é representante do ACNUR.
2- Conforme afirma a autora citando Paul Farmer (1992) aponta outros momentos
históricos nos quais “haitianos” se tornou uma categoria de risco, associada a
doenças como HIV na década de 80 (Vieira, 2017, p. 239).
Bibliografia

CALDEIRA, Tereza. 2002. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São


Paulo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002.

FACUNDO, Ángela. 2017. Êxodos, refugios e exilios. Colombianos no Sul e Sudeste


do Brasil. Ed. Papeis Selvagens.

FOUCAULT, Michel [1977-8] Segurança, Território e População (Curso no Collège de


France- 1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, p. 117-180, 2008.

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Aradhana & Gupta, Akhil. The Anthropology of the State. A Reader. Blackwell
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MORICE, Alain. 2011 “O imigrado e o ilegal: de volta às atividades informais dos


estrangeiros.” Em Ilegalismos na Globalização, Rio de Janeiro, UFRJ, 2015.

NEUMAN, Camila. 2015. “Haitianos que chegam a São Paulo vivem dias de fome e
desemprego.” UOL. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
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desemprego.htm. Acesso em 30.01.2018

OIT. 2002. “A OIT e a economia informal”, Genebra, 2002.

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formal e informal no município de São Paulo”, Brasília, Nov. de 2017.

OLIVEIRA, Ana Flávia. “Trabalhadores haitianos em São Paulo são cobiçados por
empresários do País”. IG. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-
05-09/trabalhadores-haitianos-em-sao-paulo-sao-cobicados-por-empresarios-do-
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VIEIRA, Rosa. 2017. O governo da mobilidade Haitiana no Brasil. Mana, Rio de


Janeiro , v. 23, n. 1, p. 229-254, Jan. 2017 .

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