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Riscos às fronteiras
Ir em direção a algum lugar, criar caminhos tanto para chegar, quanto para
permanecer e também para retornar: processos existenciais e vitais que se dão em
mundo dividido nas fronteiras simbólicas e materiais dos Estados-Nação. Nos vários
modos de circunscrever, delimitar, administrar tais movimentos se conformam campos
de governança, que envolvem: pontos densos da racionalidade burocrática em seu nível
técnico- administrativo, os modos de projeção destes estados no cenário internacional, e
a criação de zonas morais, de perigo e risco que singularizam as relações entre corpos e
espaços.
Esse corpo raso, então, é um risco a ser administrado e ordenado. Para tanto, é
preciso o fortalecimento de um ideal integrativo capaz de ancorar essas depurações
entre indesejáveis e desejáveis. Este ideal formata os modos possíveis de fixação e
sedentarização e condiciona os lugares através dos quais esses sujeitos poderão integra-
se á nação. Facundo observando as práticas do programa de reassentamento voltado aos
colombianos aponta para alguns critérios usados na pré-seleção dos refugiados, sendo
um deles a capacidade de adaptação do sujeito a “dinâmicas citatinas, particularmente
nas cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul” (Ibid.
p.121). Neste programa, os refugiados já são direcionados às cidades pré-definidas pela
administração do refúgio. Para os solicitantes ou refugiados espontâneos - os que vêm
ao Brasil traçando suas próprias rotas sem garantias de visto - as cidades também são
pontos de permanência necessários, pois é por meio destas fixações “geográfico-
adminstrativas” (Ibid.p.121) que o refugiado é produzido. Embora haja alguns outros
poucos postos administrativos que cuidam das populações em deslocamento no Norte,
parece estar nas regiões Sul e Sudeste e também em Brasília, um maior adensamento de
complexos institucionais e tecnologias de governo que intermediam a relação dessas
pessoas com o estado. Portanto, pessoas precisam ser adaptáveis à vida na cidade,
sobretudo, porque parece ser este o lugar destinado a elas pela administração brasileira.
No trabalho de Vieira (2017), observamos o caso interessante e bastante singular
do governo da mobilidade haitiana no Brasil, a partir do que ela chama de desbordo, ou
seja, da percepção dos agentes de estado de que em um dado momento o número de
haitianos chegando ao Brasil transbordou, e impôs a necessidade da criação de
categorias de gestão e modelos padronizados de administração dessa população
específica. Houve toda uma reconfiguração nas relações diplomáticas entre Brasil e
Haiti, e a singularidade da concessão de vistos humanitários a haitianos, o que
evidentemente, diferencia os modos de fixação desses sujeitos dos de outras
nacionalidades. No entanto, me deterei a recuperar um ponto de Vieira acerca dos
“medos” e das reações “alarmistas” (Vieira, 2017, p.245) parte da construção do
problema que começou em meados de 2010.
Um dos temores levantados pela percepção desse desbordo foi “a possibilidade
de pessoas haitianas serem um risco para a saúde da população brasileira.” (Vieira,
2017, p.237), devido a uma ameaça de cólera – como mostra a autora- infundada, e que
tampouco é elemento novo no governo das mobilidades haitianas 2 pelo mundo. A ideia
de que a nação está sempre ameaçada por um “outro” imageticamente raso e, por isso,
perigoso à estabilidade nacional parece ressoar de modo bastante duro nas respostas
governamentais às mobilidades haitianas. A atribuição da falta de civilidade e de uma
humanidade relativa está evidentemente também compondo com a dimensão da
racialização de tais corpos.
Essa fala retirada de outra matéria “Trabalhadores haitianos em São Paulo são
cobiçados por empresários do país” do IG de maio de 2014 pode ajudar a pensar sobre
as condições de possibilidade da inserção ocupacional dos haitianos nas cidades
brasileiras. A reportagem faz uma leitura positiva do interesse dos empresários que
contratam haitianos, como aqueles que concedem a oportunidade da integração. As
vagas mencionadas oferecem pouco mais de um salário mínimo mais alimentação e
transporte (não fica claro em que forma) e alojamento\moradia. Na época foi feito um
mutirão para confecção das carteiras de trabalhos, elas demoravam em média 45 dias e
na ocasião foram emitidas 300 em 3 dias na Missão Paz. Alguns desses mutirões
emergenciais foram frequentes e, por vezes, reportados pela mídia nos últimos anos.
Segundo Luiz Antonio Medeiros, superintendente do Ministério do Trabalho, em São
Paulo citado na reportagem:
[...] eles [os colombianos] são muito empreendedores [...] é uma coisa
que os chefes reconhecem muito, que eles são os mais esforçados, que
uma coisa diferente no jeito de trabalhar. Como uma característica de
muitos [...] Lembro de xxxxx, ele na Colômbia era um assessor de um
deputado e ao começo ele não queria aceitar de jeito nenhum trabalhar
numa cooperativa catando lixo. Mas não é que agora ele é o chefe da
cooperativa de catadores de lixo? E ele implementou uma política de
salário. Mas foi que a comunidade recebeu ele muito bem, e aí ele ficou
sem jeito de falar não para esse trabalho. (Ex-agente de integração)
(Ibid., p.294)
17) Se de um lado nicho étnico traz uma forte solidariedade étnica, por
outro lado, traz a conformação de pouco contato com a população
brasileira. Isto reforça as relações de poder no grupo étnico,
ampliando a informalidade no mercado de trabalho. Portanto, é a
partir da permeabilidade das fronteiras do nicho étnico que será
possível a migrantes ter acesso a informações sobre diferentes setores
da economia brasileira e sua oportunidade de inserção laboral.”(Ibid.,
p.107)
Notas
MITCHELL, Timothy. 1999. “Society, Economy, and the State Effect.” Em Sharma,
Aradhana & Gupta, Akhil. The Anthropology of the State. A Reader. Blackwell
Publishing, p. 169-186, 2006.
NEUMAN, Camila. 2015. “Haitianos que chegam a São Paulo vivem dias de fome e
desemprego.” UOL. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2015/06/02/haitianos-que-chegam-a-sao-paulo-vivem-dias-de-fome-e-
desemprego.htm. Acesso em 30.01.2018
OLIVEIRA, Ana Flávia. “Trabalhadores haitianos em São Paulo são cobiçados por
empresários do País”. IG. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-
05-09/trabalhadores-haitianos-em-sao-paulo-sao-cobicados-por-empresarios-do-
pais.html. Acesso em 30.01.2018