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BARREIRAS COLONIAIS À EFETIVIDADE DA GESTÃO DO ESTADO

BRASILEIRO NA MODERNIDADE: O CASO DO GTIT

Guilherme Dantas Nogueira (Doutor em Sociologia – UnB)


guidantasnog@gmail.com
Francisco Phelipe Cunha Paz (Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural – Iphan)
phelipecunhapaz@gmail.com

Apresentação

Partimos neste artigo de uma experiência vivida dentro de uma organização do


governo brasileiro, durante a administração da Presidenta Dilma Rousseff. Abstraímos
aqui tal experiência e a tratamos como a observação de campo de que a gestão pública
brasileira é obstaculizada por barreiras organizacionais/institucionais internas e externas
que dificultam fluxos de trabalho, alcance de resultados e, no limite, a
implantação/consolidação de políticas públicas. Estas barreiras, em nossa leitura, balizada
pelo campo teórico sócio-político latino-americano dos estudos decoloniais, estão
diretamente relacionadas à fundação colonial – racista, classista e patriarcal – do Estado
brasileiro. Este, com efeito, foi fundado como unidade política para ordenar a violenta
matriz estrutural colonial implantada por elites governantes portuguesas, herdada por
elites brasileiras e continuada após a independência do país – o que Quijano (2005)
pioneiramente chamou de colonialidade.
A colonialidade é, portanto, um construto de longo prazo e difícil solução, pelo
que apresenta um desafio concreto a qualquer governo democrático que se encarregue de
administrar o Estado brasileiro, sobretudo àqueles de postura mais progressista e
comprometidos com a ampliação de políticas sociais, como o que contextualiza a
experiência debatida. Tal desafio aumenta em instituições fundadas originalmente para
aprofundar a mesma colonialidade. Trata-se de operacionalizar para alcançar resultados
progressistas (antirracistas, anticlassistas e antissexistas), uma burocracia pública fundada
sobre pensamento contrário. Ao estudo da Administração Pública e ao da Sociologia
Política – disciplinas a partir de que, de forma interdisciplinar, construímos este artigo –
esse desafio interessa como material de análise que, como neste texto, pode ser feita em
forma de casos.
Assim, apresentamos como caso de estudo os debates travados dentro do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), especificamente em seu Grupo
de Trabalho Interdepartamental de Terreiros (GTIT). Este existiu durante o governo
Dilma com o propósito de pensar, propor, monitorar e avaliar ações a serem realizadas
com vistas à preservação de templos afrorreligiosos tombados – e potencialmente
tombáveis – como patrimônio nacional.
O GTIT foi criado pelo IPHAN, na prática, em 2014 e existiu daquele ano até
2016 – mas foi instituído legalmente em 19 de novembro de 2015, por meio da Portaria
489. Representava uma das respostas do então Ministério da Cultura (MINC)1 a uma
demanda de 2013 do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015) da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), então ligada à Presidência da República. Esta
era a de mitigar o racismo no Brasil – inclusive o institucional – a partir de ações
concretas, sendo que caberia a cada ministério do executivo federal propor e executar três
ações. O MINC, portanto, colocou ao IPHAN a demanda de ampliar a visibilidade e
valorização de terreiros afrorreligiosos e modos de vida comunitário-tradicionais
afrodescendentes a eles associados.
Tendo em vista nossas observações de campo2, objetivamos mostrar neste texto
que o trabalho do GTIT era moroso, truncado e inefetivo, devido, justamente, às barreiras
estruturais e organizacionais da própria colonialidade que, no limite, se buscava mitigar.
Trata-se de um esforço em que apresentamos uma experiência concreta da gestão pública
brasileira, ao mesmo tempo em que tecemos reflexões a partir da mesma.
Situamos no item que segue as noções sociológicas de Estado e colonialidade que
embasam nossa leitura. São essas noções que nos permitem mostrar as barreiras
organizacionais externas a que nos referimos neste texto. No item posterior, apresentamos
o histórico do GTIT e evidenciamos as barreiras internas. Logo após, passamos a um
debate do exposto, seguido das reflexões finais deste trabalho.

1
O IPHAN (o conjunto de processos burocráticos que compreende) recebeu diferentes nomes ao longo de
sua história (i.e. serviço do patrimônio, instituto do patrimônio, etc.) e fez parte da estrutura organizacional
de diferentes instituições do Estado brasileiro. Durante os governos Lula e Dilma fazia parte do MINC.
2
Um dos autores deste texto – Francisco Cunha Paz – foi consultor do IPHAN e fez parte do GTIT durante
dois anos. É esta experiência vivida que aqui tratamos como observação de campo, desde então referida
como ação na segunda pessoa do plural, até por envolver o esforço e reflexões analíticas de dois
pesquisadores. Para além da experiência com o GTIT, ambos os autores atuaram profissionalmente como
consultores para o governo federal durante os governos Lula e Dilma, ao mesmo tempo em que se
envolveram com organizações do Movimento Negro e Afrorreligioso, muito atuantes no controle social
daquelas administrações.
Salientamos, antes de seguir, que as observações e reflexões aqui feitas se referem
a uma experiência específica e a seus desafios à gestão do Estado, o que não implica dizer
que não haja outras questões que também afrontam o funcionamento da administração
pública e devem ser endereçadas em suas instituições. Pelo contrário, essas existem e
esforços diversos, mormente interpretados político-partidariamente, são feitos para
solucioná-las (Fontoura, 2018).
Estado, colonialidade e o papel do IPHAN

A colonialidade é uma matriz estrutural e, como tal, ela tem grande impacto –
fundante – sobre o Estado brasileiro e seu governo. É precisamente da colonialidade que
surgem as barreiras que condicionaram o trabalho do IPHAN, seu GTIT e os esforços de
valorização dos terreiros afrorreligiosos no país durante o governo Dilma e, antes desse,
do governo Lula. Para explicar melhor este ponto, chamamos a atenção para o fato de que
o Estado, lido sociologicamente, é uma abstração. Uma ideia, um construto mental, um
símbolo, uma ficção (Bastiat, 1848; Abrams, 1977). Como tal, só existe concretamente
na medida em que é encarnado por alguém – o mundo simbólico orienta a vida humana,
mas são os seres humanos que efetivamente vivem e o encarnam. Assim, em termos
coloquiais, não se pode esperar que o Estado “bata à porta” de ninguém, como se fora
uma entidade viva. Por outro lado, pessoas encarnando o Estado podem vir fazê-lo, e.g.,
agentes de saúde, policiais e outros.
Abrams (1977) já nos alertava na década de 1970, contudo, a não tomarmos a
projeção da ficção estatal pelos processos sociais que ela mascara. Para o autor, há em
qualquer sociedade uma coesão sólida de práticas burocráticas e uma estrutura social
institucionalizada, que é algo extensa e operacionalizada por um governo, e forma o que
ele chama de sistema estatal. Ou seja, há ações que acontecem de forma concreta e têm
efeitos sobre as vidas de pessoas em um dado território, que têm sentido e significado
simbólico/cultural de longo prazo por serem estruturalmente orientadas e que são
planejadas, executadas, controladas, reproduzidas, etc. por agentes públicos. Estas são,
assim, estatais. Isso, mesmo que tais ações concretas envolvam um exercício de
dominação e/ou também sejam rasas ou falaciosas em suas propostas ou objetivos.
Ao nos referirmos à matriz estrutural da colonialidade, que condiciona o
Estado/sistema estatal, referimo-nos à ferida aberta pela colonização do Brasil – que por
sua vez se caracterizou por ampla hierarquização social e pela racialização e
marginalização de pessoas não brancas e de suas heranças culturais – no presente ainda
sentida, posto que segue sustentando divisões de poder e comportamentos coloniais
internos, nunca superados (Restrepo e Rojas, 2010). Isso aponta, no limite, para a ideia
de que raça e racismo estão no centro da vida social brasileira – e do Estado também.
Com efeito, a expansão colonial da Europa, que levou à concepção e construção dos
Estados nacionais nas Américas, enxergou nas diferentes cores de pele o elemento central
para a diferenciação e classificação de pessoas na hierarquia de poder dos novos países
aqui criados (Quijano, 2005; Mignolo, 2008; Maldonado-Torres, 2008; Grosfoguel e
Mignolo, 2008; Walsh, 2008; Restrepo e Rojas, 2010).
Quijano (2005) explica que o conceito ocidental/moderno de raça foi construído
durante a colonização das Américas e traz em sua origem a noção/pretensão de
superioridade das pessoas de cor de pele (raça) branca sobre as não brancas. Isso também
inclui uma pretensa superioridade cultural e histórica. Assim, raça na modernidade supõe
serem superiores as pessoas brancas/europeias sobre todas as outras não brancas/não
europeias, bem como as ações, ideias, crenças, religiões, instituições, etc., daquelas sobre
essas. Igualmente, a crença na superioridade do cristianismo sobre religiosidades de
matrizes indígenas, africanas, etc., que serão consideradas racialmente inferiores.
Concordando com Quijano (2005), Segato acrescenta que

é importante lembrar que raça é efeito e não causa, um produto de séculos de


modernidade e do trabalho mancomunado de acadêmicos, intelectuais, artistas,
filósofos, juristas, legisladores e agentes da lei, que classificaram a diferença
dos povos conquistados como racialidade. Em outras palavras, a construção
permanente da raça obedece à finalidade da subjugação, a subalternização e a
expropriação: a ordem racial é a ordem colonial. A racialização, ou o que
defino como formação de um capital racial positivo para o branco e um capital
racial negativo para o não branco, é o que permite desalojar esse último do
espaço hegemônico, do território usurpado onde habita o grupo que controla
os recursos da nação e tem acesso aos selos e timbres estatais (Segato, 2007,
p. 24, em tradução livre).

Raça para Quijano (2005) é o elemento que está no centro do processo que ele
classificou como colonialidade do poder, em que a matriz colonial foi criada nas
Américas. Estabeleceu, ainda, a hierarquia social nessa parte do planeta e ordenou as
diferentes identidades sociais, classificando-as, em sequência, como branco, mestiço,
índio e negro, sendo o branco sempre superior e o negro sempre inferior. O trabalho foi
dividido nessa lógica, ficando brancos com a administração colonial e negros,
escravizados, com as tarefas mais pesadas. Para Quijano este é um sistema ainda vigente,
mesmo após a independência dos países das Américas, pois foi também a partir desta
lógica, violenta e antidemocrática, que os Estados-nação foram fundados.
Faz parte da ideia de colonialidade, e à própria e anterior colonização, o fato de
que a invasão das Américas implicou em uma ruptura completa do modo de vida dos
povos ameríndios, que antes ocupavam esta região do planeta, e dos povos africanos para
cá trazidos para fins de trabalho escravo. Essa quebra foi de suas vidas como pessoas e
de seus processos como coletivos de seres humanos, o que foi catastrófico também para
sua descendência como povos – catástrofe que segue operando de igual maneira, mesmo
que com novos senhores, no colonial/moderno presente (Segato, 2012).
Ampliando os debates sobre a colonialidade, Walsh (2008) defende ser a
colonialidade do poder um dos quatro pilares da modernidade/colonialidade hodierna nas
Américas, particularmente na América Latina. As colonialidades do saber, do ser e da
“mãe natureza e da própria vida” são os outros (ibid, p. 138).
Conforme a autora, colonialidade do saber é o processo que classifica a episteme
eurocentrada – em larga medida, a ciência – como superior e a única forma de
conhecimento válida, anulando, assim, outros saberes, outras formas de conhecimento
que não sejam aquela dos homens brancos e europeus. Colonialidade do ser, por sua vez,
é o processo que define um arquétipo de ser humano padrão/normativo, face a quem todos
os demais são rebaixados e desumanizados. E o ser humano padrão é o indivíduo racional
ou racionalizado, ou seja, civilizado. Colonialidade da mãe natureza, por fim, é a que
representa a “divisão binária natureza/sociedade, descartando o mágico-espiritual-social,
a relação milenar entre mundos biofísicos, humanos e espirituais, inclusive o dos
ancestrais, a que dá sustento aos sistemas integrais de vida e à própria humanidade” (ibid,
p. 138). Assim, saberes e formas de compreender o mundo não brancos/europeus são
subalternizados. Seres humanos não brancos/europeus, para além do mecanismo de
divisão do trabalho, são inferiorizados, considerados bárbaros, primitivos, o que vale para
a religiosidade afro-brasileira e o modo de vida afrorreligioso, expressado nos terreiros
em todo o Brasil.
Finalmente, são subalternizadas também, conforme Lugones (2008), as mulheres.
Essa autora apresenta um quinto pilar da colonialidade, que é o patriarcado, que, em sua
leitura, foi naturalizado por Quijano. Assim, a autora complementa o debate, recuperando
o conceito de interseccionalidade, originalmente cunhado pelo feminismo negro
estadunidense. Entende-se por este conceito que a vida social é composta por processos
sobrepostos, paralelos e potencialmente mutuamente influenciáveis. É o que ocorre com
preconceito de gênero e raça sofrido por mulheres negras, assim duplamente
subalternizadas, por serem mulheres e por não serem brancas.
Estados na América Latina e as sociedades que ordenam são referidos como
coloniais/modernos por trazerem a marca da colonialidade em seu processo de
construção. Conforme Mignolo (2008), referir-se à modernidade na América Latina é
referir-se à colonialidade. Descolonizar (o neologismo “decolonial” vem desse verbo) é
superar a matriz da colonial modernidade (colonialidade). Construir, com isso, sociedades
que incluam com igualdade a todas e todos, independentemente de pertencimentos
étnicos, gêneros, classes sociais, etc.
A evidenciação da colonialidade nos convida a, como analistas, pensarmos os
processos da gestão pública brasileira sob sua influência. É com isto em vista que nos
empreendemos aqui a analisar o IPHAN e seus trabalhos com terreiros afrorreligiosos.
O instituto do patrimônio foi fundado como organização em 1937, pelo Decreto-
Lei 25, com o nome de Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),
pelo ditador Getúlio Vargas. Seu propósito àquele tempo – que se manteve
conceitualmente fidedigno ao longo dos anos – era o de materializar como símbolos
nacionais – da cultura nacional – obras, edifícios, locais, etc. escolhidos e chancelados
por seu corpo de intelectuais. Este era originalmente formado por pensadores brasileiros
identificados com o pensamento modernista, tais como Rodrigo Mello Franco de Andrade
e Mario de Andrade, que conceberam o instituto como projeto e instituição (Fonseca,
2005).
Em meio a mais de 80 anos de tombamentos patrimoniais, coube ao IPHAN desde
o início ser uma das organizações do sistema estatal – talvez a principal – a colecionar
símbolos que materializassem um projeto de nação no Brasil. As primeiras experiências
de patrimonialização serviram, ainda, para a institucionalização pelo então SPHAN de
critérios técnicos, estéticos e artísticos. Em outras palavras, em dizer o que era
oficialmente brasileiro, o que representava formalmente/estatalmente o Brasil. Este
objetivo político e organizacional do instituto foi reconhecido, com orgulho, por Mario
de Andrade. Conforme Chuva, “um ano antes de sua morte, em 1944, Mário de Andrade
lembrava a Rodrigo M. F. de Andrade seu orgulho de ser brasileiro. E mais, sua honra em
fazer parte daqueles privilegiados sujeitos históricos que, como agentes do poder público,
‘inventaram’ o Brasil” (Chuva, 2012, p. 149).
Esforços no sentido de se inventar uma nação, que corresponda a um Estado, não
são novidade no mundo moderno. Buscam, por sua vez, dar-lhe significado de unidade,
reifica-lo como um processo natural, lógico, consequência óbvia do curso inalterado da
história. Algo que una e dê sentido de povo ao conjunto de pessoas que vivem em um
território. Estados e nações, todavia, são invenções modernas. Suas tradições, que lhe
simbolizam e distinguem como processos humanos, também são inventadas. Mesmo nos
casos em que encontram lastro em construtos sócio-políticos do passado de um dado povo
e território, como fenômenos políticos do mundo atual não podem ser vistos como
continuidade de um passado antigo (Hobsbawn, 1983/2017).
Na América Latina em particular, faz ainda menos sentido falar em Estados-nação
como continuidade de qualquer processo de organização social e unidade de pessoas ao
longo de séculos. Isso, justamente porque todos os territórios dessa região do planeta
foram invadidos e colonizados e os países fundados a partir dessa violência nunca
envolveram a toda a população reunida em suas fronteiras. Nunca houve na prática uma
ideia ampla de inclusão, de democracia, de escolha de um futuro comum por todas e
todos, posto que a maioria populacional não branca permaneceu – ainda permanece –
alijada dos espaços de poder e das decisões sobre os rumos da vida coletiva (Quijano,
2005; Segato, 2007).
Na ausência de um Brasil representativo do imaginário de uma maioria
populacional coesa, uma imagem de Brasil precisou ser inventada e informada às pessoas
(Almeida, 1998). É neste sentido e com este peso que a ideia de invenção de um Brasil
pelos intelectuais do IPHAN deve ser pensada. O IPHAN, com seus atos de tombamento,
suas publicações, valorização de um determinado grupo de construções, obras artísticas,
etc., salvaguardou tudo aquilo que, ao seu ver, viesse a representa-la.
Da história construída/narrada pelo IPHAN, notamos que os símbolos escolhidos
pelos pensadores do instituto para representar o Brasil foram, quase sempre,
representativos da matriz populacional branca. Em outras palavras, símbolos que
representavam a passagem portuguesa por esse local do planeta, i.e. o conjunto
arquitetônico de Ouro Preto/MG; ou a presença católica no Brasil, i.e., todas as igrejas
coloniais tombadas; ou ainda a arquitetura inspirada por Le Courbusier, i.e. o conjunto
arquitetônico de Brasília. Ao que pese a beleza e o apelo turístico de símbolos como esses
– o que não está em debate neste texto –, outros locais de grande relevância histórica,
como terreiros afrorreligiosos, como lembra Cunha Paz (2017), quase nunca foram
tombados. Igualmente, é escasso o patrimônio tombado que relembre a escravidão ou o
genocídio de negros, indígenas e pobres. Busca-se não lembrar esses fatos na história
oficial brasileira, embora também representem a passagem dos portugueses por aqui.
A historiografia oficial da política patrimonial no Brasil e da formação do
SPHAN/IPHAN defende o seguinte:

a existência de apenas um instrumento jurídico e com foco na materialidade do


patrimônio também contribuiu para que vestígios materiais vinculados ao
universo cultural negro e indígena não fossem valorizados a ponto de fazerem
parte do conjunto de bens culturais (Lima, 2012, p.40-41).

Esse argumento, todavia, é facilmente refutável. Ao seu contrário, defendemos a


existência de uma operação patrimoniográfica, isto é, uma narrativa oficial, hegemônica,
sobre os bens culturais que poderiam compor “a lista” do patrimônio nacional e a
produção de um silêncio sobre tudo aquilo que estivesse fora dos padrões hegemônicos.
É importante problematizar qual o lugar nessa narrativa oficial destinado aos bens
culturais negros, da cultura afro-brasileira, das religiões afro-brasileiras e de outros povos
tradicionais de matriz não-hegemônica. Até o efetivo reconhecimento patrimonial por
parte do IPHAN dos bens dessas referidas matrizes, a instituição passou por grandes
mudanças em seu conjunto de pensamentos teóricos e conceituais, bem como por
mudanças políticas. Todavia, essas não necessariamente foram acompanhadas de uma
renovação de seu marco legal colonial/moderno e de seus instrumentos de proteção, o que
acabou por não gerar, até bem recentemente, uma política específica para a
patrimonizalização de bens não-hegemônicos.

Observações de campo – os trabalhos do GTIT

A partir de sua institucionalização como Secretaria da Presidência da República,


em 2003, a SEPPIR determinou que cada ministério brasileiro pensasse em três
propostas/projetos/ações para a redução do racismo a partir de suas pastas.
Particularmente para os terreiros afrorreligiosos, as propostas ganharam robustez
institucional com a publicação em 2007 da Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) – Decreto 6.040 de 07 de
fevereiro de 2007 (BRASIL, 2007), que forneceu a base para, já no governo Dilma, a
criação do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais de Matriz Africana – plano este que foi criado, mas por negociações políticas
que uma vez mais refletem a colonialidade do poder no Brasil, teve sua oficialização
vetada e jamais se tornou um documento do Estado (Fernandes e Oliveira, 2017). Ainda
assim, algumas de suas propostas foram colocadas em prática, como aquela de
valorização de terreiros, o que significou uma continuidade da política de 2007.
Foi nesse contexto que o MINC formatou e repassou ao IPHAN a proposta de
valorização dos terreiros (tombamentos como patrimônio material e registro como
patrimônio imaterial), que reuniu ações pensadas para a valorização de comunidades
afrorreligiosas e templos. Essas contaram com levantamento de informações sobre os
terreiros já tombados, demandas de suas comunidades ao Estado, informações sobre
outros terreiros, etc. Já em 2013, a estratégia criada pelo instituto para seguir respondendo
a esta demanda foi a contratação de uma consultoria técnica junto à UNESCO e a criação
do GTIT.
O grupo começou por recuperar os debates sobre a preservação dos templos desde
sua concepção mais abstrata. Problematizou, portanto, inclusive, se fazia sentido tombar
terreiros, se tinham valor patrimonial-histórico, se eram locais de interesse ou memória
(Cunha Paz, 2017), ou mesmo se deveriam ser tombados como patrimônio material,
registrados como patrimônio imaterial ou ambos. Como princípio, o GTIT considerou
ponto passivo continuar a tombar terreiros, o que já era praxe. Sendo assim, o debate
deveria primeiro se centrar no cuidado com os templos já tombados.
Lembramos que, como o Estado existe como abstração, igualmente a SEPPIR, o
MINC, o IPHAN e seu GTIT são abstrações. Organizações públicas (concretas para a
Administração, não obstante ficções para a Sociologia) não podem tomar decisões por
sua própria conta sobre o que fazer em qualquer situação. Quem faz isso são as pessoas
que as encarnam – a todo o Estado e suas instituições. E essas pessoas se orientam por
suas formas de enxergar o mundo e alianças políticas. Decidem, assim, os rumos do
Estado, ainda que constrangidas em suas decisões por legislações e pela estrutura social
– que é anterior e dita a razão de ser do próprio Estado, das leis e da vida pública brasileira.
Sobre a SEPPIR, com suas tentativas de mitigar o racismo brasileiro – que não acabou no
governo petista – chamamos atenção para a proximidade que sempre possuiu com
ativistas do Movimento Negro, muitos dos quais candomblecistas. A proximidade da
política estatal com terreiros passa por essas pessoas.
Ainda assim, a colonialidade brasileira encampa o Estado e limita a SEPPIR e o
IPHAN. Limitou o governo Lula e o governo Dilma após esse. Se manifesta nas políticas
públicas, inclusive as de caráter integrador, reparatório e de valorização da diversidade.
E complexifica o quadro. Fundar a SEPPIR e instituir uma agenda inovadora de direitos
humanos, ou ainda alcançar o poder executivo, não possibilitou ao lulopetismo
descolonizar o Estado.
No IPHAN, chamamos a atenção para a continuidade e poder de seu corpo de
intelectuais, mesmo no ápice das propostas progressistas petistas e do GTIT. Membros
desse corpo de intelectuais tomavam parte nos debates do grupo e obstaculizavam seu
avanço. Em outras palavras, a chegada ao IPHAN de pessoas sustentando uma agenda
com propostas decoloniais não eliminou as análises sociais e posicionamentos
conservadores do instituto. E isso torna evidente a continuidade do racismo institucional
na cultura organizacional da instituição. Mais do que isso, leva aos holofotes a
colonialidade da organização. O mesmo grupo de intelectuais, ademais, sustentava pontos
de vista teóricos já ultrapassados sobre os terreiros – mas que são vistos como clássicos
na bibliografia da área. E isso impossibilitava que o GTIT se apropriasse de compreensões
mais recentes, embasadas em pesquisas mais atuais. Além de legislações, servidores e
cultura organizacional conservadores, processos, um corpo de conhecimentos internos e
outras barreiras marcadas pela colonialidade igualmente emparelhavam o IPHAN
naquele momento.
E por mais que sejam tecnicamente fundamentadas e que se pareçam lógicas as
decisões, é preciso problematizar quem são os tomadores de decisões e qual saber
fundamenta o que pensam. Por mais participativos que se mostrem os espaços, temos que
nos perguntar qual o seu limite. Por mais científica e neutra que pareça uma instituição –
e talvez essa seja a razão – é preciso questionar quais saberes são silenciados e negados
nesses espaços de construção de políticas públicas de preservação patrimonial/cultural.
Nesses espaços opera uma lógica racional moderna que não reconhece ou aceita aquilo
que foge ao universo dos especialistas.
O GTIT, mesmo limitado, foi concebido com base em valores democráticos.
Assim, para além de servidoras/es e consultoras/es do IPHAN, era composto também por
representantes das religiões afro-brasileiras, como mães e pais de santo. Esta composição
possibilitava que os debates fossem sempre positivos para a pauta. Ainda assim, tinha
seus limites coloniais/modernos, como uma diferença de linguagem entre técnicos e
mulheres afrorreligiosas – que mormente e historicamente são as principais lideranças em
seus terreiros (Nogueira, 2016). Na ausência dessas, os homens afrorreligiosos não
tomavam decisões e sempre optavam por voltar aos terreiros e consulta-las, o que nunca
era compreendido pelos técnicos.
A coordenação do grupo era feita por uma servidora do IPHAN, que não
coincidentemente era próxima/simpatizante do Candomblé e das demais religiões afro-
brasileiras. Mesmo competente, sua escolha para liderar o GTIT passou pela ausência de
apropriação da temática afrorreligiosa internamente no instituto, com consequente
escolha de alguém que tinha identificação pessoal com a mesma. Aliás, isso se repetia
com outras pautas consideradas “negras”, que sempre eram personalizadas, jamais
apropriadas pelo corpo burocrático do IPHAN naquela época. A coordenadora, por sua
vez, contribuía para os debates no GTIT e trabalhava bem em equipe com consultoras/es
e afrorreligiosas/os. Todavia, o trabalho seguiu nos primeiros anos como se fora uma
pauta pessoal dos componentes do grupo, jamais apropriada pelo corpo de funcionários
do IPHAN.
Outro problema da personalização são os limites que as convicções pessoais
exercem sobre o trabalho, não sendo superados. Igualmente, a coordenação não tinha
poder para vencer barreiras burocráticas internas do IPHAN em que o trabalho esbarrava.
Pelo contrário, encontrava mais dificuldades internas do que espaço para seguir com os
trabalhos.

As barreiras da colonialidade à gestão da preservação do patrimônio

O primeiro terreiro tombado foi o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, a Casa Branca do
Engenho Velho da Federação, Salvador/BA, considerado o primeiro templo
candomblecista brasileiro. Seu acautelamento foi votado e aprovado pelo Conselho
Consultivo do IPHAN em 1984, quase cinquenta anos após a fundação do instituto e em
um cenário interessado/enviesado, em que o regime militar buscava apoio popular e
tentou se aproximar e ganhar a simpatia de parcelas da população que sempre
negligenciara, como a afrorreligiosa (Netto, 2013; Nascimento, 2016; Silva, 2017).
Em outras palavras, o Estado (leia-se, as elites que o detém), representado pelo
IPHAN, não passou em 1984 a valorizar o que vinha negligenciando desde sempre, que
era a massiva e importante herança cultural negra no país. Apenas ofereceu salvaguardar
um símbolo cultural importante ao povo negro, em troca de popularidade. Prova disso é
o fato de que até 2017 apenas dez terreiros, contando com a Casa Branca, haviam sido
tombados pelo instituto (Cunha Paz, 2017) e um décimo-primeiro foi tombado em 2018.
Igualmente, poucos exemplares negros e indígenas fazem parte da lista de patrimônios
tombados pelo IPHAN, vasta em exemplares brancos (Lima, 2012).
No que tange a terreiros, o GTIT aspirava mudar este quadro. Aproximar-se ainda
mais das/dos afrorreligiosas/os e dar mais destaque à sua história nos anais da nação.
Todavia, esta não foi uma conquista do grupo e a história permanece mal contada no
Brasil.
Destacamos nos itens acima dois grupos de barreiras que interferiram e
condicionaram a administração do trabalho do GTIT de valorização da temática
afrorreligiosa, por meio de seus terreiros. Entendemos, como indicamos anteriormente,
que essas barreiras são externas – sócio-políticas – e internas – processos de gerência e
trabalho personalistas e pouco racionais, bases de informações atrasadas/inexatas, etc.
A colonialidade do Estado brasileiro é em si a grande barreira sócio-política – que
se reflete também na organização interna do IPHAN – que condiciona a gestão pública
no país. Assim, ainda que o governo Dilma e o governo Lula antes daquele tenham tido
caráter progressista e tenham buscado por vezes realizar projetos, políticas e ações
práticas de inspiração decolonial sobre o Estado brasileiro, como a criação do próprio
GTIT e seu trabalho no IPHAN, não foram capazes de romper com essa matriz estrutural.
Seria, com efeito, concordando aqui com o que antes já teorizou Walsh (2008), necessário
refundar o Estado, reconstruir suas bases desde sua própria concepção.
Refundar o Estado é um trabalho muito mais profundo do que aquele que praticou
o lulopetismo, mesmo com a criação da SEPPIR e com a valorização simbólica da
temática dos direitos humanos. Tampouco com refundação nos referimos à realização de
reformas em legislações, instituições públicas e sua gestão, contemporização defendida
pelas administrações do Presidente Fernando Henrique Cardoso e de seu partido, o PSDB,
e adotada por alguns prefeitos petistas (Fontoura, 2018), bem como comumente proposta
na mídia e no jogo político brasileiro, e.g. reforma política, reforma da previdência,
reforma tributária, etc. Aliás, Albernaz e Azevêdo (2011) chamam a atenção para o fato
de que esse tipo de iniciativa reformista, baseada em orientações internacionais, fundadas
a partir de teorias, lógicas e/ou experiências forâneas, jamais teve fôlego para solucionar
as desigualdades fundantes do Estado brasileiro, que se veem refletidas em seu sistema
político e em sua gestão. Tampouco teve este objetivo, tendo mais relação com o aumento
de eficiência na gestão pública. Visto por um olhar decolonial, refundar o Estado implica,
por outro lado, necessariamente começar novamente sua construção, partindo do
princípio de que disparidades originais motivadas por raça, classe e gênero devem ser
superadas antes da institucionalização de novas ideias. Implicaria, portanto, em um novo
concerto social em solo brasileiro, mas um que jamais foi proposto por partidos políticos
– e talvez não possa sê-lo – nos curtos anos do recente e combalido regime democrático.
É a mesma Walsh (ibdid), contudo, que nos informa que o esforço de refundar o
Estado – ainda que com variadas críticas – não seria pioneiro, caso proposto no Brasil.
Os exemplos das fundações dos Estados plurinacionais nos vizinhos Bolívia e Equador
citados pela autora – mesmo que fortemente questionáveis e mormente criticados
internacionalmente e pelas próprias populações daqueles países – indicam haver a
possibilidade de se pensar sobre isso, mesmo na colonial modernidade latino-americana.
A leitura de que seria necessário refundar-se o Estado para erradicar seu racismo
e só assim promover uma efetiva valorização do patrimônio cultural afrodescendente é
de grande impacto sobre o IPHAN. Como buscamos pontuar, esta instituição sempre foi
– e segue sendo – central na estrutura sócio-política brasileira como consolidadora da
própria colonialidade. Isso ocorre porque, mesmo que seja ocupado por um corpo
burocrático progressista, o IPHAN existe para escolher e salvaguardar símbolos nacionais
– do Estado-nacional – que precisariam ser repensados em um novo Estado. É nesse
sentido que é problemático falar em mitigar o racismo como barreira organizacional de
uma instituição colonial/moderna. A colonialidade é a própria barreira organizacional. E
este é um problema de difícil solução.
A nível interno, recuperamos do relato outras barreiras organizacionais que
obstaculizaram a sequência de trabalhos e um maior sucesso do GTIT. A primeira e mais
óbvia foi a ausência de informações institucionalizadas para se trabalhar com a pauta dos
terreiros. Com efeito, em uma primeira leitura, causa estranheza a constatação de que o
IPHAN não possuía informações aprofundadas sobre um conjunto de comunidades de
pessoas e seus templos religiosos que já vinham sendo considerados como patrimônio
nacional desde a década de 1980. Não se deve exigir que em uma organização haja
informações acessíveis e conhecidas por seus profissionais sobre toda e qualquer
temática. Mas na década de 2010 terreiros estavam longe de serem novidades no IPHAN.
Mais do que isso, não havia no instituto um corpo de profissionais que tivessem
alguma especialização no tema das religiões afro-brasileiras. Havia uma profissional de
referência, mas que entendia do assunto por sua própria conta e como adepta, não como
analista. Conhecimento é um construto da mente humana (Davenport, 1998) e, mesmo
que a biblioteca do IPHAN fosse vasta de informações sobre o tema, sem pessoas que o
conhecessem seria difícil trabalha-lo. Buscou-se com o GTIT contornar esta limitação
com o convite ao grupo de representantes das próprias religiões. Ademais, foram
organizadas capacitações para servidores do instituto (cf. IPHAN, 2018), em gestão do
patrimônio cultural dos povos de matriz africana, ministradas por lideranças e/ou
representantes das principais tradições mapeadas até o momento pela organização, com a
participação de representantes do Candomblé, Jarê, Jurema, Batuque, Egungun e Tambor
de Mina. Essas nos parecem ter sido propostas acertadas. Infelizmente, pouco efetivas.
A questão de que havia uma única profissional com afinidade com a temática e o
fato de que a ela foi entregue a coordenação da pauta devido a essa afinidade – e não a
outro critério – também é aqui interpretada como uma barreira organizacional. Isso, pois
indica que a divisão do trabalho é/foi feita em função de afinidades pessoais, sem outro
critério mais cuidadoso. Isso contraria os princípios da Administração – pública ou
privada – e, mais do que isso, aponta para o fato de que o Estado – a burocracia, a coisa
pública – é gerido de forma personalista. Isso contraria, também, os princípios do próprio
Estado moderno, que na acepção weberiana deve ser impessoal.
Chamamos a atenção para uma última barreira interna indicada nas observações
de campo, que é aquela de gênero. Mesmo que o GTIT tenha envolvido,
democraticamente, técnicas/os do IPHAN, consultoras/es e afrorreligiosas/os, foi difícil
para as/os técnicas/os entenderem que as decisões tomadas junto aos homens dos terreiros
deviam ser validadas/confirmadas pelas mulheres – mais especificamente por suas mães
de santo. E isso implicava em voltar ao terreiro e debater o assunto internamente, só
retornando com uma posição em um segundo momento. Essa não é a forma como os
profissionais do Estado colonial/moderno trabalham. Mas o Estado brasileiro deveria se
adaptar às comunidades com que se relaciona, jamais o contrário. O GTIT, mesmo
especializado em terreiros e entendendo essa especificidade, não conseguiu fazer a
instituição entender a questão.
Mesmo com todas essas barreiras e sem solução à colonialidade que estrutura o
Estado e assola o IPHAN, o trabalho apresentou alguns resultados. Terreiros tombados
foram visitados por técnicos e as eventuais demandas de suas comunidades puderam ser
ouvidas/atendidas. Ainda que com limites, houve trabalho pela continuidade de sua
preservação.
Cada superintendência estadual do IPHAN (são 27 – todos os Estados da
federação e a do Distrito Federal) propôs ações de preservação e salvaguarda de terreiros
em suas regiões de atuação, o que possibilitou a iniciação e/ou continuidade (quando já
iniciada) de um esforço de mapeamento de terreiros, mesmo que sem objetivar
tombamento. Este contribuiu para a reunião de informações pelo instituto e conhecimento
por seus servidores das diferentes casas afrorreligiosas e suas religiões, o que já endereça
uma das barreiras mencionadas acima. Com isso, diferentes terreiros de Candomblé,
Umbanda, Batuque, Tambor de Mina, etc., puderam ser visitados por equipes de
pesquisadores, que passaram a conhecer e documentar suas especificidades. Novos livros
e outros textos foram escritos e publicados sobre as religiões afro-brasileiras, o que é
reconhecido no IPHAN como parte de sua razão de ser. Cabe problematizar, todavia, até
que ponto a publicação de livros não interessa mais ao próprio IPHAN do que a povos e
comunidades que mantém e reproduzem suas tradições pela oralidade. Ou seja, até que
ponto este tipo de ação, ainda que bem-intencionada – e neste contexto qualificadora da
gestão pública – não reflete a mesma colonialidade.
Reconhecendo mais adiante suas barreiras de limitações de compreensão dos
terreiros e suas comunidades, o IPHAN se uniu com representantes dessas e com a
Universidade Federal da Bahia em convênio para a realização do projeto Gestão e
Salvaguarda do Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades de Terreiro – este tratava
da complexidade das demandas de proteção e salvaguarda dos terreiros, pensando
territorialidade, sustentabilidade e tradição. E criou e realizou o I Prêmio Patrimônio
Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana no âmbito do
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI), com o objetivo de reconhecer ações
de preservação, valorização e documentação do patrimônio cultural dos povos e
comunidades tradicionais de matriz africana.
Ainda como produtos do GTIT foram publicadas em 2016 duas portarias, a saber,
a Portaria nº 188 que diz sobre aprovação das ações para preservação de bens culturais
dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana e a Portaria nº 194 que dispõem
sobre diretrizes e princípios para a preservação de seu patrimônio cultural, considerando
os processos de identificação, reconhecimento, conservação, apoio e fomento.
Todas essas ações, em conjunto, resultaram do trabalho do GTIT. Não obstante,
cabe problematizar que foram tímidas e ineficazes em mitigar a colonialidade que o
próprio IPHAN reflete. Não alteraram a lógica da operação patrimoniográfica.
Relacionaram-se mais proximamente com um aprendizado pelo instituto, interno, sobre
a temática afrorreligiosa – o que reduz uma barreira organizacional, mas não mais do que
isso. Tampouco resultaram no acautelamento e proteção jurídica a mais terreiros, o que
seria de se esperar/desejar, ou em uma mudança de paradigmas, com elevação de seu
status ao mesmo de outros templos religiosos, como as igrejas barrocas. Pelo contrário,
terreiros afrorreligiosos e suas comunidades seguem sendo violentados e sujeitos a amplo
racismo religioso no Brasil – tanto institucional quanto em suas relações com a sociedade
englobante nacional – e sua história segue ocupando páginas de uma alteridade excluída
(Mathias e Nogueira, 2017), que se busca esquecer, muito mais do que reconhecer,
respeitar e preservar.

Considerações finais

Objetivamos com este texto mostrar que o trabalho do GTIT era moroso, truncado
e inefetivo para a ampliação da preservação/patrimonialização de terreiros afrorreligiosos
no Brasil e consequente valorização de suas comunidades. Isso, em função de barreiras
estruturais e organizacionais que refletem a colonialidade presente no Estado brasileiro
que, no limite, trabalhos como o do GTIT buscam mitigar.
Comunidades de terreiro possuem um longo histórico de marginalização no
Brasil, razão pela qual a maior parte dos terreiros de Candomblé, Umbanda, Tambor de
Mina, Jurema, Terecô, etc. se encontram nas periferias urbanas brasileiras. Não obstante,
a prática da afrorreligiosidade, ademais de outras práticas e traços culturais
afrodescendentes, é parte fundante da cultura brasileira – ou do que se pode, com maior
ou menor aproximação, afirmar sobre a mesma. Vida cultural, todavia, não significa vida
política. Ou seja, a divisão/organização do poder em um dado território não precisa refletir
o arranjo cultural ali vigente.
O IPHAN foi fundado e, ao longo de sua história, sempre existiu como instituto
responsável por criar símbolos – patrimoniais – que representassem uma ideia de nação
no Brasil. Que valorizassem a cultura do país. Mas isso jamais pôde ser feito à despeito
das barreiras organizacionais criadas pela lógica da divisão do poder, pelo que, sua
operação patrimoniográfica sempre o levou a valorizar um único sentido de cultura no
Brasil, que reflete traços brancos. E mesmo com a criação do GTIT, durante um governo
progressista e que trabalhou pela igualdade racial, essa lógica não foi alterada. Isso mostra
que objetivos organizacionais na gestão pública devem sempre ser contextualizados ao
Estado e sua estrutura. E nos informa que é esta a que precisa ser refundada para que
propostas e políticas reformistas possam ser efetivas – jamais o contrário.
Finalmente, lembramos que este trabalho apresenta um estudo de caso, o que
implica que suas conclusões apresentam indícios de uma situação mais geral, mas não
devem ser generalizadas. Ou seja, o estudo de barreiras coloniais/modernas à gestão do
sistema estatal brasileiro pode se beneficiar de outros trabalhos. Esses podem reiterar ou
refutar os resultados que aqui alcançamos. Em todos os casos, ampliam o arcabouço de
informações e valorizam o trabalho de análises sócio-político-gerenciais do Estado
brasileiro.

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