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Apresentação
1
O IPHAN (o conjunto de processos burocráticos que compreende) recebeu diferentes nomes ao longo de
sua história (i.e. serviço do patrimônio, instituto do patrimônio, etc.) e fez parte da estrutura organizacional
de diferentes instituições do Estado brasileiro. Durante os governos Lula e Dilma fazia parte do MINC.
2
Um dos autores deste texto – Francisco Cunha Paz – foi consultor do IPHAN e fez parte do GTIT durante
dois anos. É esta experiência vivida que aqui tratamos como observação de campo, desde então referida
como ação na segunda pessoa do plural, até por envolver o esforço e reflexões analíticas de dois
pesquisadores. Para além da experiência com o GTIT, ambos os autores atuaram profissionalmente como
consultores para o governo federal durante os governos Lula e Dilma, ao mesmo tempo em que se
envolveram com organizações do Movimento Negro e Afrorreligioso, muito atuantes no controle social
daquelas administrações.
Salientamos, antes de seguir, que as observações e reflexões aqui feitas se referem
a uma experiência específica e a seus desafios à gestão do Estado, o que não implica dizer
que não haja outras questões que também afrontam o funcionamento da administração
pública e devem ser endereçadas em suas instituições. Pelo contrário, essas existem e
esforços diversos, mormente interpretados político-partidariamente, são feitos para
solucioná-las (Fontoura, 2018).
Estado, colonialidade e o papel do IPHAN
A colonialidade é uma matriz estrutural e, como tal, ela tem grande impacto –
fundante – sobre o Estado brasileiro e seu governo. É precisamente da colonialidade que
surgem as barreiras que condicionaram o trabalho do IPHAN, seu GTIT e os esforços de
valorização dos terreiros afrorreligiosos no país durante o governo Dilma e, antes desse,
do governo Lula. Para explicar melhor este ponto, chamamos a atenção para o fato de que
o Estado, lido sociologicamente, é uma abstração. Uma ideia, um construto mental, um
símbolo, uma ficção (Bastiat, 1848; Abrams, 1977). Como tal, só existe concretamente
na medida em que é encarnado por alguém – o mundo simbólico orienta a vida humana,
mas são os seres humanos que efetivamente vivem e o encarnam. Assim, em termos
coloquiais, não se pode esperar que o Estado “bata à porta” de ninguém, como se fora
uma entidade viva. Por outro lado, pessoas encarnando o Estado podem vir fazê-lo, e.g.,
agentes de saúde, policiais e outros.
Abrams (1977) já nos alertava na década de 1970, contudo, a não tomarmos a
projeção da ficção estatal pelos processos sociais que ela mascara. Para o autor, há em
qualquer sociedade uma coesão sólida de práticas burocráticas e uma estrutura social
institucionalizada, que é algo extensa e operacionalizada por um governo, e forma o que
ele chama de sistema estatal. Ou seja, há ações que acontecem de forma concreta e têm
efeitos sobre as vidas de pessoas em um dado território, que têm sentido e significado
simbólico/cultural de longo prazo por serem estruturalmente orientadas e que são
planejadas, executadas, controladas, reproduzidas, etc. por agentes públicos. Estas são,
assim, estatais. Isso, mesmo que tais ações concretas envolvam um exercício de
dominação e/ou também sejam rasas ou falaciosas em suas propostas ou objetivos.
Ao nos referirmos à matriz estrutural da colonialidade, que condiciona o
Estado/sistema estatal, referimo-nos à ferida aberta pela colonização do Brasil – que por
sua vez se caracterizou por ampla hierarquização social e pela racialização e
marginalização de pessoas não brancas e de suas heranças culturais – no presente ainda
sentida, posto que segue sustentando divisões de poder e comportamentos coloniais
internos, nunca superados (Restrepo e Rojas, 2010). Isso aponta, no limite, para a ideia
de que raça e racismo estão no centro da vida social brasileira – e do Estado também.
Com efeito, a expansão colonial da Europa, que levou à concepção e construção dos
Estados nacionais nas Américas, enxergou nas diferentes cores de pele o elemento central
para a diferenciação e classificação de pessoas na hierarquia de poder dos novos países
aqui criados (Quijano, 2005; Mignolo, 2008; Maldonado-Torres, 2008; Grosfoguel e
Mignolo, 2008; Walsh, 2008; Restrepo e Rojas, 2010).
Quijano (2005) explica que o conceito ocidental/moderno de raça foi construído
durante a colonização das Américas e traz em sua origem a noção/pretensão de
superioridade das pessoas de cor de pele (raça) branca sobre as não brancas. Isso também
inclui uma pretensa superioridade cultural e histórica. Assim, raça na modernidade supõe
serem superiores as pessoas brancas/europeias sobre todas as outras não brancas/não
europeias, bem como as ações, ideias, crenças, religiões, instituições, etc., daquelas sobre
essas. Igualmente, a crença na superioridade do cristianismo sobre religiosidades de
matrizes indígenas, africanas, etc., que serão consideradas racialmente inferiores.
Concordando com Quijano (2005), Segato acrescenta que
Raça para Quijano (2005) é o elemento que está no centro do processo que ele
classificou como colonialidade do poder, em que a matriz colonial foi criada nas
Américas. Estabeleceu, ainda, a hierarquia social nessa parte do planeta e ordenou as
diferentes identidades sociais, classificando-as, em sequência, como branco, mestiço,
índio e negro, sendo o branco sempre superior e o negro sempre inferior. O trabalho foi
dividido nessa lógica, ficando brancos com a administração colonial e negros,
escravizados, com as tarefas mais pesadas. Para Quijano este é um sistema ainda vigente,
mesmo após a independência dos países das Américas, pois foi também a partir desta
lógica, violenta e antidemocrática, que os Estados-nação foram fundados.
Faz parte da ideia de colonialidade, e à própria e anterior colonização, o fato de
que a invasão das Américas implicou em uma ruptura completa do modo de vida dos
povos ameríndios, que antes ocupavam esta região do planeta, e dos povos africanos para
cá trazidos para fins de trabalho escravo. Essa quebra foi de suas vidas como pessoas e
de seus processos como coletivos de seres humanos, o que foi catastrófico também para
sua descendência como povos – catástrofe que segue operando de igual maneira, mesmo
que com novos senhores, no colonial/moderno presente (Segato, 2012).
Ampliando os debates sobre a colonialidade, Walsh (2008) defende ser a
colonialidade do poder um dos quatro pilares da modernidade/colonialidade hodierna nas
Américas, particularmente na América Latina. As colonialidades do saber, do ser e da
“mãe natureza e da própria vida” são os outros (ibid, p. 138).
Conforme a autora, colonialidade do saber é o processo que classifica a episteme
eurocentrada – em larga medida, a ciência – como superior e a única forma de
conhecimento válida, anulando, assim, outros saberes, outras formas de conhecimento
que não sejam aquela dos homens brancos e europeus. Colonialidade do ser, por sua vez,
é o processo que define um arquétipo de ser humano padrão/normativo, face a quem todos
os demais são rebaixados e desumanizados. E o ser humano padrão é o indivíduo racional
ou racionalizado, ou seja, civilizado. Colonialidade da mãe natureza, por fim, é a que
representa a “divisão binária natureza/sociedade, descartando o mágico-espiritual-social,
a relação milenar entre mundos biofísicos, humanos e espirituais, inclusive o dos
ancestrais, a que dá sustento aos sistemas integrais de vida e à própria humanidade” (ibid,
p. 138). Assim, saberes e formas de compreender o mundo não brancos/europeus são
subalternizados. Seres humanos não brancos/europeus, para além do mecanismo de
divisão do trabalho, são inferiorizados, considerados bárbaros, primitivos, o que vale para
a religiosidade afro-brasileira e o modo de vida afrorreligioso, expressado nos terreiros
em todo o Brasil.
Finalmente, são subalternizadas também, conforme Lugones (2008), as mulheres.
Essa autora apresenta um quinto pilar da colonialidade, que é o patriarcado, que, em sua
leitura, foi naturalizado por Quijano. Assim, a autora complementa o debate, recuperando
o conceito de interseccionalidade, originalmente cunhado pelo feminismo negro
estadunidense. Entende-se por este conceito que a vida social é composta por processos
sobrepostos, paralelos e potencialmente mutuamente influenciáveis. É o que ocorre com
preconceito de gênero e raça sofrido por mulheres negras, assim duplamente
subalternizadas, por serem mulheres e por não serem brancas.
Estados na América Latina e as sociedades que ordenam são referidos como
coloniais/modernos por trazerem a marca da colonialidade em seu processo de
construção. Conforme Mignolo (2008), referir-se à modernidade na América Latina é
referir-se à colonialidade. Descolonizar (o neologismo “decolonial” vem desse verbo) é
superar a matriz da colonial modernidade (colonialidade). Construir, com isso, sociedades
que incluam com igualdade a todas e todos, independentemente de pertencimentos
étnicos, gêneros, classes sociais, etc.
A evidenciação da colonialidade nos convida a, como analistas, pensarmos os
processos da gestão pública brasileira sob sua influência. É com isto em vista que nos
empreendemos aqui a analisar o IPHAN e seus trabalhos com terreiros afrorreligiosos.
O instituto do patrimônio foi fundado como organização em 1937, pelo Decreto-
Lei 25, com o nome de Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),
pelo ditador Getúlio Vargas. Seu propósito àquele tempo – que se manteve
conceitualmente fidedigno ao longo dos anos – era o de materializar como símbolos
nacionais – da cultura nacional – obras, edifícios, locais, etc. escolhidos e chancelados
por seu corpo de intelectuais. Este era originalmente formado por pensadores brasileiros
identificados com o pensamento modernista, tais como Rodrigo Mello Franco de Andrade
e Mario de Andrade, que conceberam o instituto como projeto e instituição (Fonseca,
2005).
Em meio a mais de 80 anos de tombamentos patrimoniais, coube ao IPHAN desde
o início ser uma das organizações do sistema estatal – talvez a principal – a colecionar
símbolos que materializassem um projeto de nação no Brasil. As primeiras experiências
de patrimonialização serviram, ainda, para a institucionalização pelo então SPHAN de
critérios técnicos, estéticos e artísticos. Em outras palavras, em dizer o que era
oficialmente brasileiro, o que representava formalmente/estatalmente o Brasil. Este
objetivo político e organizacional do instituto foi reconhecido, com orgulho, por Mario
de Andrade. Conforme Chuva, “um ano antes de sua morte, em 1944, Mário de Andrade
lembrava a Rodrigo M. F. de Andrade seu orgulho de ser brasileiro. E mais, sua honra em
fazer parte daqueles privilegiados sujeitos históricos que, como agentes do poder público,
‘inventaram’ o Brasil” (Chuva, 2012, p. 149).
Esforços no sentido de se inventar uma nação, que corresponda a um Estado, não
são novidade no mundo moderno. Buscam, por sua vez, dar-lhe significado de unidade,
reifica-lo como um processo natural, lógico, consequência óbvia do curso inalterado da
história. Algo que una e dê sentido de povo ao conjunto de pessoas que vivem em um
território. Estados e nações, todavia, são invenções modernas. Suas tradições, que lhe
simbolizam e distinguem como processos humanos, também são inventadas. Mesmo nos
casos em que encontram lastro em construtos sócio-políticos do passado de um dado povo
e território, como fenômenos políticos do mundo atual não podem ser vistos como
continuidade de um passado antigo (Hobsbawn, 1983/2017).
Na América Latina em particular, faz ainda menos sentido falar em Estados-nação
como continuidade de qualquer processo de organização social e unidade de pessoas ao
longo de séculos. Isso, justamente porque todos os territórios dessa região do planeta
foram invadidos e colonizados e os países fundados a partir dessa violência nunca
envolveram a toda a população reunida em suas fronteiras. Nunca houve na prática uma
ideia ampla de inclusão, de democracia, de escolha de um futuro comum por todas e
todos, posto que a maioria populacional não branca permaneceu – ainda permanece –
alijada dos espaços de poder e das decisões sobre os rumos da vida coletiva (Quijano,
2005; Segato, 2007).
Na ausência de um Brasil representativo do imaginário de uma maioria
populacional coesa, uma imagem de Brasil precisou ser inventada e informada às pessoas
(Almeida, 1998). É neste sentido e com este peso que a ideia de invenção de um Brasil
pelos intelectuais do IPHAN deve ser pensada. O IPHAN, com seus atos de tombamento,
suas publicações, valorização de um determinado grupo de construções, obras artísticas,
etc., salvaguardou tudo aquilo que, ao seu ver, viesse a representa-la.
Da história construída/narrada pelo IPHAN, notamos que os símbolos escolhidos
pelos pensadores do instituto para representar o Brasil foram, quase sempre,
representativos da matriz populacional branca. Em outras palavras, símbolos que
representavam a passagem portuguesa por esse local do planeta, i.e. o conjunto
arquitetônico de Ouro Preto/MG; ou a presença católica no Brasil, i.e., todas as igrejas
coloniais tombadas; ou ainda a arquitetura inspirada por Le Courbusier, i.e. o conjunto
arquitetônico de Brasília. Ao que pese a beleza e o apelo turístico de símbolos como esses
– o que não está em debate neste texto –, outros locais de grande relevância histórica,
como terreiros afrorreligiosos, como lembra Cunha Paz (2017), quase nunca foram
tombados. Igualmente, é escasso o patrimônio tombado que relembre a escravidão ou o
genocídio de negros, indígenas e pobres. Busca-se não lembrar esses fatos na história
oficial brasileira, embora também representem a passagem dos portugueses por aqui.
A historiografia oficial da política patrimonial no Brasil e da formação do
SPHAN/IPHAN defende o seguinte:
O primeiro terreiro tombado foi o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, a Casa Branca do
Engenho Velho da Federação, Salvador/BA, considerado o primeiro templo
candomblecista brasileiro. Seu acautelamento foi votado e aprovado pelo Conselho
Consultivo do IPHAN em 1984, quase cinquenta anos após a fundação do instituto e em
um cenário interessado/enviesado, em que o regime militar buscava apoio popular e
tentou se aproximar e ganhar a simpatia de parcelas da população que sempre
negligenciara, como a afrorreligiosa (Netto, 2013; Nascimento, 2016; Silva, 2017).
Em outras palavras, o Estado (leia-se, as elites que o detém), representado pelo
IPHAN, não passou em 1984 a valorizar o que vinha negligenciando desde sempre, que
era a massiva e importante herança cultural negra no país. Apenas ofereceu salvaguardar
um símbolo cultural importante ao povo negro, em troca de popularidade. Prova disso é
o fato de que até 2017 apenas dez terreiros, contando com a Casa Branca, haviam sido
tombados pelo instituto (Cunha Paz, 2017) e um décimo-primeiro foi tombado em 2018.
Igualmente, poucos exemplares negros e indígenas fazem parte da lista de patrimônios
tombados pelo IPHAN, vasta em exemplares brancos (Lima, 2012).
No que tange a terreiros, o GTIT aspirava mudar este quadro. Aproximar-se ainda
mais das/dos afrorreligiosas/os e dar mais destaque à sua história nos anais da nação.
Todavia, esta não foi uma conquista do grupo e a história permanece mal contada no
Brasil.
Destacamos nos itens acima dois grupos de barreiras que interferiram e
condicionaram a administração do trabalho do GTIT de valorização da temática
afrorreligiosa, por meio de seus terreiros. Entendemos, como indicamos anteriormente,
que essas barreiras são externas – sócio-políticas – e internas – processos de gerência e
trabalho personalistas e pouco racionais, bases de informações atrasadas/inexatas, etc.
A colonialidade do Estado brasileiro é em si a grande barreira sócio-política – que
se reflete também na organização interna do IPHAN – que condiciona a gestão pública
no país. Assim, ainda que o governo Dilma e o governo Lula antes daquele tenham tido
caráter progressista e tenham buscado por vezes realizar projetos, políticas e ações
práticas de inspiração decolonial sobre o Estado brasileiro, como a criação do próprio
GTIT e seu trabalho no IPHAN, não foram capazes de romper com essa matriz estrutural.
Seria, com efeito, concordando aqui com o que antes já teorizou Walsh (2008), necessário
refundar o Estado, reconstruir suas bases desde sua própria concepção.
Refundar o Estado é um trabalho muito mais profundo do que aquele que praticou
o lulopetismo, mesmo com a criação da SEPPIR e com a valorização simbólica da
temática dos direitos humanos. Tampouco com refundação nos referimos à realização de
reformas em legislações, instituições públicas e sua gestão, contemporização defendida
pelas administrações do Presidente Fernando Henrique Cardoso e de seu partido, o PSDB,
e adotada por alguns prefeitos petistas (Fontoura, 2018), bem como comumente proposta
na mídia e no jogo político brasileiro, e.g. reforma política, reforma da previdência,
reforma tributária, etc. Aliás, Albernaz e Azevêdo (2011) chamam a atenção para o fato
de que esse tipo de iniciativa reformista, baseada em orientações internacionais, fundadas
a partir de teorias, lógicas e/ou experiências forâneas, jamais teve fôlego para solucionar
as desigualdades fundantes do Estado brasileiro, que se veem refletidas em seu sistema
político e em sua gestão. Tampouco teve este objetivo, tendo mais relação com o aumento
de eficiência na gestão pública. Visto por um olhar decolonial, refundar o Estado implica,
por outro lado, necessariamente começar novamente sua construção, partindo do
princípio de que disparidades originais motivadas por raça, classe e gênero devem ser
superadas antes da institucionalização de novas ideias. Implicaria, portanto, em um novo
concerto social em solo brasileiro, mas um que jamais foi proposto por partidos políticos
– e talvez não possa sê-lo – nos curtos anos do recente e combalido regime democrático.
É a mesma Walsh (ibdid), contudo, que nos informa que o esforço de refundar o
Estado – ainda que com variadas críticas – não seria pioneiro, caso proposto no Brasil.
Os exemplos das fundações dos Estados plurinacionais nos vizinhos Bolívia e Equador
citados pela autora – mesmo que fortemente questionáveis e mormente criticados
internacionalmente e pelas próprias populações daqueles países – indicam haver a
possibilidade de se pensar sobre isso, mesmo na colonial modernidade latino-americana.
A leitura de que seria necessário refundar-se o Estado para erradicar seu racismo
e só assim promover uma efetiva valorização do patrimônio cultural afrodescendente é
de grande impacto sobre o IPHAN. Como buscamos pontuar, esta instituição sempre foi
– e segue sendo – central na estrutura sócio-política brasileira como consolidadora da
própria colonialidade. Isso ocorre porque, mesmo que seja ocupado por um corpo
burocrático progressista, o IPHAN existe para escolher e salvaguardar símbolos nacionais
– do Estado-nacional – que precisariam ser repensados em um novo Estado. É nesse
sentido que é problemático falar em mitigar o racismo como barreira organizacional de
uma instituição colonial/moderna. A colonialidade é a própria barreira organizacional. E
este é um problema de difícil solução.
A nível interno, recuperamos do relato outras barreiras organizacionais que
obstaculizaram a sequência de trabalhos e um maior sucesso do GTIT. A primeira e mais
óbvia foi a ausência de informações institucionalizadas para se trabalhar com a pauta dos
terreiros. Com efeito, em uma primeira leitura, causa estranheza a constatação de que o
IPHAN não possuía informações aprofundadas sobre um conjunto de comunidades de
pessoas e seus templos religiosos que já vinham sendo considerados como patrimônio
nacional desde a década de 1980. Não se deve exigir que em uma organização haja
informações acessíveis e conhecidas por seus profissionais sobre toda e qualquer
temática. Mas na década de 2010 terreiros estavam longe de serem novidades no IPHAN.
Mais do que isso, não havia no instituto um corpo de profissionais que tivessem
alguma especialização no tema das religiões afro-brasileiras. Havia uma profissional de
referência, mas que entendia do assunto por sua própria conta e como adepta, não como
analista. Conhecimento é um construto da mente humana (Davenport, 1998) e, mesmo
que a biblioteca do IPHAN fosse vasta de informações sobre o tema, sem pessoas que o
conhecessem seria difícil trabalha-lo. Buscou-se com o GTIT contornar esta limitação
com o convite ao grupo de representantes das próprias religiões. Ademais, foram
organizadas capacitações para servidores do instituto (cf. IPHAN, 2018), em gestão do
patrimônio cultural dos povos de matriz africana, ministradas por lideranças e/ou
representantes das principais tradições mapeadas até o momento pela organização, com a
participação de representantes do Candomblé, Jarê, Jurema, Batuque, Egungun e Tambor
de Mina. Essas nos parecem ter sido propostas acertadas. Infelizmente, pouco efetivas.
A questão de que havia uma única profissional com afinidade com a temática e o
fato de que a ela foi entregue a coordenação da pauta devido a essa afinidade – e não a
outro critério – também é aqui interpretada como uma barreira organizacional. Isso, pois
indica que a divisão do trabalho é/foi feita em função de afinidades pessoais, sem outro
critério mais cuidadoso. Isso contraria os princípios da Administração – pública ou
privada – e, mais do que isso, aponta para o fato de que o Estado – a burocracia, a coisa
pública – é gerido de forma personalista. Isso contraria, também, os princípios do próprio
Estado moderno, que na acepção weberiana deve ser impessoal.
Chamamos a atenção para uma última barreira interna indicada nas observações
de campo, que é aquela de gênero. Mesmo que o GTIT tenha envolvido,
democraticamente, técnicas/os do IPHAN, consultoras/es e afrorreligiosas/os, foi difícil
para as/os técnicas/os entenderem que as decisões tomadas junto aos homens dos terreiros
deviam ser validadas/confirmadas pelas mulheres – mais especificamente por suas mães
de santo. E isso implicava em voltar ao terreiro e debater o assunto internamente, só
retornando com uma posição em um segundo momento. Essa não é a forma como os
profissionais do Estado colonial/moderno trabalham. Mas o Estado brasileiro deveria se
adaptar às comunidades com que se relaciona, jamais o contrário. O GTIT, mesmo
especializado em terreiros e entendendo essa especificidade, não conseguiu fazer a
instituição entender a questão.
Mesmo com todas essas barreiras e sem solução à colonialidade que estrutura o
Estado e assola o IPHAN, o trabalho apresentou alguns resultados. Terreiros tombados
foram visitados por técnicos e as eventuais demandas de suas comunidades puderam ser
ouvidas/atendidas. Ainda que com limites, houve trabalho pela continuidade de sua
preservação.
Cada superintendência estadual do IPHAN (são 27 – todos os Estados da
federação e a do Distrito Federal) propôs ações de preservação e salvaguarda de terreiros
em suas regiões de atuação, o que possibilitou a iniciação e/ou continuidade (quando já
iniciada) de um esforço de mapeamento de terreiros, mesmo que sem objetivar
tombamento. Este contribuiu para a reunião de informações pelo instituto e conhecimento
por seus servidores das diferentes casas afrorreligiosas e suas religiões, o que já endereça
uma das barreiras mencionadas acima. Com isso, diferentes terreiros de Candomblé,
Umbanda, Batuque, Tambor de Mina, etc., puderam ser visitados por equipes de
pesquisadores, que passaram a conhecer e documentar suas especificidades. Novos livros
e outros textos foram escritos e publicados sobre as religiões afro-brasileiras, o que é
reconhecido no IPHAN como parte de sua razão de ser. Cabe problematizar, todavia, até
que ponto a publicação de livros não interessa mais ao próprio IPHAN do que a povos e
comunidades que mantém e reproduzem suas tradições pela oralidade. Ou seja, até que
ponto este tipo de ação, ainda que bem-intencionada – e neste contexto qualificadora da
gestão pública – não reflete a mesma colonialidade.
Reconhecendo mais adiante suas barreiras de limitações de compreensão dos
terreiros e suas comunidades, o IPHAN se uniu com representantes dessas e com a
Universidade Federal da Bahia em convênio para a realização do projeto Gestão e
Salvaguarda do Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades de Terreiro – este tratava
da complexidade das demandas de proteção e salvaguarda dos terreiros, pensando
territorialidade, sustentabilidade e tradição. E criou e realizou o I Prêmio Patrimônio
Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana no âmbito do
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI), com o objetivo de reconhecer ações
de preservação, valorização e documentação do patrimônio cultural dos povos e
comunidades tradicionais de matriz africana.
Ainda como produtos do GTIT foram publicadas em 2016 duas portarias, a saber,
a Portaria nº 188 que diz sobre aprovação das ações para preservação de bens culturais
dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana e a Portaria nº 194 que dispõem
sobre diretrizes e princípios para a preservação de seu patrimônio cultural, considerando
os processos de identificação, reconhecimento, conservação, apoio e fomento.
Todas essas ações, em conjunto, resultaram do trabalho do GTIT. Não obstante,
cabe problematizar que foram tímidas e ineficazes em mitigar a colonialidade que o
próprio IPHAN reflete. Não alteraram a lógica da operação patrimoniográfica.
Relacionaram-se mais proximamente com um aprendizado pelo instituto, interno, sobre
a temática afrorreligiosa – o que reduz uma barreira organizacional, mas não mais do que
isso. Tampouco resultaram no acautelamento e proteção jurídica a mais terreiros, o que
seria de se esperar/desejar, ou em uma mudança de paradigmas, com elevação de seu
status ao mesmo de outros templos religiosos, como as igrejas barrocas. Pelo contrário,
terreiros afrorreligiosos e suas comunidades seguem sendo violentados e sujeitos a amplo
racismo religioso no Brasil – tanto institucional quanto em suas relações com a sociedade
englobante nacional – e sua história segue ocupando páginas de uma alteridade excluída
(Mathias e Nogueira, 2017), que se busca esquecer, muito mais do que reconhecer,
respeitar e preservar.
Considerações finais
Objetivamos com este texto mostrar que o trabalho do GTIT era moroso, truncado
e inefetivo para a ampliação da preservação/patrimonialização de terreiros afrorreligiosos
no Brasil e consequente valorização de suas comunidades. Isso, em função de barreiras
estruturais e organizacionais que refletem a colonialidade presente no Estado brasileiro
que, no limite, trabalhos como o do GTIT buscam mitigar.
Comunidades de terreiro possuem um longo histórico de marginalização no
Brasil, razão pela qual a maior parte dos terreiros de Candomblé, Umbanda, Tambor de
Mina, Jurema, Terecô, etc. se encontram nas periferias urbanas brasileiras. Não obstante,
a prática da afrorreligiosidade, ademais de outras práticas e traços culturais
afrodescendentes, é parte fundante da cultura brasileira – ou do que se pode, com maior
ou menor aproximação, afirmar sobre a mesma. Vida cultural, todavia, não significa vida
política. Ou seja, a divisão/organização do poder em um dado território não precisa refletir
o arranjo cultural ali vigente.
O IPHAN foi fundado e, ao longo de sua história, sempre existiu como instituto
responsável por criar símbolos – patrimoniais – que representassem uma ideia de nação
no Brasil. Que valorizassem a cultura do país. Mas isso jamais pôde ser feito à despeito
das barreiras organizacionais criadas pela lógica da divisão do poder, pelo que, sua
operação patrimoniográfica sempre o levou a valorizar um único sentido de cultura no
Brasil, que reflete traços brancos. E mesmo com a criação do GTIT, durante um governo
progressista e que trabalhou pela igualdade racial, essa lógica não foi alterada. Isso mostra
que objetivos organizacionais na gestão pública devem sempre ser contextualizados ao
Estado e sua estrutura. E nos informa que é esta a que precisa ser refundada para que
propostas e políticas reformistas possam ser efetivas – jamais o contrário.
Finalmente, lembramos que este trabalho apresenta um estudo de caso, o que
implica que suas conclusões apresentam indícios de uma situação mais geral, mas não
devem ser generalizadas. Ou seja, o estudo de barreiras coloniais/modernas à gestão do
sistema estatal brasileiro pode se beneficiar de outros trabalhos. Esses podem reiterar ou
refutar os resultados que aqui alcançamos. Em todos os casos, ampliam o arcabouço de
informações e valorizam o trabalho de análises sócio-político-gerenciais do Estado
brasileiro.
Referências bibliográficas
CUNHA PAZ, F.P. Do “só espaço” ao lugar de memória. Revista Calundu, Brasília, v.1,
n.1, p.93-116, jan./jun. 2017.