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‘aoer2019 [Enegrecer o Feminism: A Situagéo da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspactiva de génara - Goladés Enegrecer o Feminismo: A Situagao da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de género ‘So suficientemente conhecidas as condicées histéricas nas Américas que construiram a relogée de coisificagdo dos negros em geral e das mulheres negras em particular. Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominacdo, a apropriagdo social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos emblemdticos de afirmagao de superioridade do vencedor. * No Brasil e na América Latina, o violagdo colonial perpetrada pelos senhores brancos contra os mulheres negras e indigenas e a miscigenacéo dai resultante esta na origem de todas as construgdes de nosso identidade nacional, estruturando o decantado mito da democrocta racial latino-americana, que no Brasil chegou até as titimas conseqiléncas, Essa violéncia sexual colonial &, também, o“cimento” de todas as hierarquias de género e raga presentes em nossos sociedad, configurando aqulo que Angela Gillam define como “a grande teoria do esperma em nossa formagéo nacional, através de qual, segundo Gillom: "O pepel da mulher negra é negado na formagée da cultura nacional: a desiguoldade entre homens ¢ mulheres erotizada; a violéncia sexual contra os mulheres negras foi convertida em um romance" (© que poderia ser considerado como histéria ou reminiscéncias do periode colonial permanece, entretanto, vive ne imaginério social e adquire novos contornes e fungBes em uma ordem social supostamente democrittica, que mantém intactas as relagdes de género segundo a cor ou a raga instituldos no periode da escravidéo. As mulheres negras tiveram uma experiéncia histérico diferenciada que o discurso cldssico sobre a opresséo da mulher néo tem reconhecide, assim como do tem dade conta da diferenga qualitative que o efeito da opresséo sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras. Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justficou historicamente a protege poternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nés, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritério, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frdgeis. Fazemos porte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que ndo entenderam nada quando as ferinistas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabathar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a servico de frdgels sinhazinhas e de senhores de engenho tarados, ‘Sdo suficientemente conhecidas as condigées histéricas nas Américas que construfram a relagdo de coisificagao dos negros em geral e des mulheres negras em particular. Sabemos, também, que lem todo esse contexto de conquista e dominagao, a apropriagdio social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos emblematicos de afirmacao de superiaridade do vencedor. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportacao. Quando falamos em romper com o mite da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que no so rainhas de nada, que sao retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque 0 modelo estético de mulher & a mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas yes garantindo emprego ora que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os antincios de emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparéncia’ oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, e: Quando falamos que a mulher é um subproduto do homem, posto que foi feita da costela de Ado, de que mulher estamos falando? Fazemos parte de um contingente de mulheres origindrias de uma cultura que néo tem Adéo. Origindrias de uma cultura violada, folelorizada e marginalizada, tratada como coisa primitive, coisa do diabo, esse também um alienigena para a nossa cultura, Fazemos parte de um contingente de mulheres ignoradas pelo sistema de sadide na sua especialidade, porque o mito da democracia racial presente em todas nés torna desnecessério 0 registro da cor dos pacientes nos formuldris da rede piiblica,informago que seria indispensdvel pora avaliarmos as condigées de satide das mulheres negras no Brasil, pols sabemos, por dados de outros paises, que as mulheres brancas enegras apresentam diferengas significativas em termos de satide Portanto, para nés se impde uma perspectiva feminista na qual o género seja uma varidvel teérica, ‘mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que ndo “pode ser separada de outros eixos de opressio" e que ndo “é possivel em uma tinica andlise, Se o feminismo deve liberar os mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas de opresstio". A partir desse ponte de vista, é possivel tfirmar que um feminisme negro, construldo no contexto de sociedades multrraciais, pluriculturais e racistas ~ como séo os sociedades latino-americanas - tern como principal eixo articulador 0 racismo e seu impacto sobre as relagdes de género, uma vez que ele determina a prépria hierarquia de género em noses sociedades. Em geral, a unidade na luta das mulheres em nossas sociedades nao depende apenas do nosso capacidade de superar as desigualdades geradas pela histérica hegemonia masculina, mas exige, também, a superagéo de ideologias complementares desse sistema de opressio, como 0 caso do racismo, O racisme estabelece a inferioridade social dos segmentas negros da populacéio em geral das mulheres negras em particular, operando ademais come fator de diviso na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta dos mulheres negras contra a opressio de género e de raga vem desenhando novos contomnos ora a a¢do politica feminista e anti-racista, enriquecendo tanto a discussie da questdo racial, como a questdo de género na sociedade brasileira, Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradiges de luta do movimento negro como a tradicéo de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade politica decorrente da condigao especifica do ser mulher negra. O atual movimento de mulheres negras, ao trozer pare a cena poltica as contradigdes resultantes da articulacao das varidveis de raga, classe € género, promove a sintese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimento negro ¢ de mulheres do pais, enegrecendo de um lado, as reivindicagdes das mulheres, tornando- {5 assim mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras,e, por outro lado, promovendo a feminizagao das propostas e reivindicacdes do movimento negro, Enegrecer 0 movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e insttuir na ‘agenda do movimento de mulheres 0 peso que a questo racial tem na configuracao, por exemplo, dos politicos demogréticas, na caracterizagdo da questo de violéncia contra a mulher pela introdugao do conceite de violencia racial como aspecto determinante das formas de violéncia sofridas por metade da populace feminina do pais que néo é branco; introduzir a discussao sobre 1s doencas étnicas/raciais ou as doencas com maior incidéncia sobre a populagdo negra como uestdes fundamentais na formulagdo de politicas piblicas na drea de satide; institu a critica aos mecanismos de selecdo no mercado de trabalho como a “boa aparéncia’, que mantém as desiguoldades os privilégios entre as mulheres brancas e negras. Tem-se, ainda, estudado e atuado politicamente sobre os aspectos éticos e eugénicos colocados pelos avangos das pesquisas nas dreas de biotecnologia, em particular da engenharia genética Um exemplo concreto refere-se, por exemplo, &s questdes de saiide e de populagio. Se, historicamente, as préticas genocidas tais como a violencia policial, 0 exterminio de criancas, 0 uséncia de politicas sociais que assegurem 0 exercicio dos direitos basicos de cidadania tém sido objetos prioritérios de a¢do politica dos movimentos negros, os problemas colocados hoje pelos temas de satide e de populagao nos situam num quadro talvez ainda mais alarmante em relagao 005 processos de genacidio do pove negro no Brasil Portanto, esse nove contexte de reduce populacional fruto da esterilizagtio macica oliada tanto {& progresséo da AIDS quanto do uso de droga entre a nossa populagdo - e das novas biotecnologias, em particular a engenharia genética, com as possiblidades que ela oferece de préticas eugénicas, constitui novo e alarmante desafio contra o qual o conjunto do movimento negro precisa otuar. ‘A importdincia dessas questées para as populacdes consideradas descartdveis, como so os negros, e o crescente interesse dos organismos internacionais pelo controle do crescimento dessas populagées, levou o movimento de mulheres negras a desenvolver uma perspectiva intemacionalista de luta, Essa visdo internacionalista esté promovendo a diversificagdo das temédticas, com o desenvolvimento de novos acordos € associacdes € a ampliagéo da cooperacdo interétnica. Cresce ente as mulheres negras @ consciéncia de que o processo de globalizacé determinado pela ordem neoliberal que, entre outras coisas, acentua 0 processo de feminizagdo da pobreza, coloca a necessidade de articulagdo e intervengao do sociedade civil a nivel mundial Essa nova consciéncia tem nos levado ao desenvolvimento de acées regionals no émbito da América Latina, do Caribe, e com as mulheres negras des palses do primeiro mundo, além da potticipagao crescente nos féruns internacionais, nos quais governos e sociedade civil se defrontam e definem a insergao dos povos terceiro-mundistas no terceiro milénio, Essa intervengdo internacional, em especial nas conferéncias mundiais convocadas pela ONU a portir da década de 1990, tem nos permitide ampliar o debate sobre a questo racial a nivel nacional e internacional e sensibilizar movimentos, governos e a ONU para a inclusdo da perspectiva anti-racista e de respeito & diversidade em todos os seus temas. A partir dessa perspectiva, atuamos junto & Conferéncia Internacional sobre Populacéo e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 194, em relagdo & qual as mulheres negras operaram a partir da idéia de ue “em tempos de difusto do conceite de populagées supérfluas, liberdade reprodutiva ¢ essencial para as etnias discriminadas para barrar as politicas controladoras e racistas" Assim, estivemos em Viena, na Conferéncia de Direitos Humanos, da qual saiu 0 compromisso sugeride pelo governo brasileiro, de realizagde de uma conferéncia mundial sobre racismo e outra sobre imigragao, para antes de ano 2000, Atuamos no processo de preparacao da Conferéncia de Beijing, durante o qual foi realizado um conjunto de ages através das quais é possivel medir 0 crescimento da temética racial no movimento de mulheres do Brasil eno mundo, Vale destacar que @ Conferéncia de Viena assumiu que os direitos da mulher sdo direitos humanes, 0 que est consubstanciado na Declaragae e no Programa de Agao de Viena, que dao grande destaque & {questo do mulher e pregam a sua plena participacao, em condigdes de igualdade, na vida polltica, civil, econémica, social e cultural nos niveis nacional, regional e internacional, ¢ a erradicagao de todas as formas de discriminagao sexual, considerando-as objetivos prioritérios da comunidade internacional Se a Declaragéo de Viena avanga na compreensio da universalidade dos direitos humanos dos ‘mulheres, para nés mulheres ndo brancas era fundamental uma referéncia explicita & violacdo dos direitos do mulher baseada na discriminagao racial, Entendiames que a Cenferncia de Beijing deveria fazer uma referéncia explicita & opresséo sofrida por um contingente significative de mulheres em funcéo da origem étnica ou racial. Essas conferéncias mundiais se tornaram espacos importantes no processo de reorganizacao do mundo apés a queda de muro de Berlim & constituem hoje féruns de recomendagées de politicas publicas para o mundo. (© movimento feminista internacional tem operado nesses féruns como o lobby mais eficiente entre (5 segmentos discriminados do mundo. Isso explica o avango da Conferéncia de Direitos Humanos de Viena em relagdo as questées da mulher, assim como os avancos registrados na Conferéncia do Cairo e ne Conferéncia das Nagdes Unidas sobre Meio Ambiente ¢ Desenvolvimento (ECO 92), realizada no Rio de Janeiro em 1992, Nos esforgos desenvolvidos pelas mulheres na Conferéncia de Beijing, um dos resultados foi que o Brasil, pela primeira vez na diplomacia internacional obstruiu uma reunido do G-77, grupo dos pafses em desenvolvimento do qual faz porte, para discordar sobre a retirada do termo étnico-racial do Artigo 32 da declaragdo de Beijing, questao inegocidvel para as mulheres negras do Brasil e dos paises do Norte. A firmeza da posigéo brasileira assegurou que a redacdo final do Artigo 32 afirmasse a necessidade de “intensificar esforcos para garantir o desfrute, em condigées de igualdade, de todos os direitos humanos & liberdades fundamentals a todas as mulheres e meninas que enfrentam miltiplas barreiras para seu desenvolvimento e seu avango devido a fatores como raca, idade, origem étnica, cultura religio..” O préximo passo serd a monitoragéo desses acordos por parte de nossos governos, Conclustes ‘A origem branca € ocidental do feminismo estabeleceu sua hegemonia na equacao das diferengas de género e tem determinado que as mulheres nao brancas e pobres, de todas as partes do mundo, lutem para integrar em seu idedrio as especificidades raciais, étnicas, culturais, religiosas e de classe social. Até onde as mulheres brancas avangaram nessas questées? As alternativas de esquerda, de direita e de centro se constroem a partir desses paradigmas instituidos pelo feminismo que, segundo Lélia Gonzalez, apresentam dois tipos de dificuldades para as mulheres negras: por um lado, a inclinagae eurocentrista do feminismo brasileiro constitui um eixe articulador o mais da democracia racial e do ideal de branqueamento, ao omitir o cardter central do questiio da raca nas hierarquias de género e ao universalizar os valores de uma cultura porticular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem medié-los na base da interagdo entre brancos e nao brancos; por outro lado, revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar “toda uma histéria feito de resistencia e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista gracas & dindmica de uma meméria cultural ancestral (que nada tem a ver com o eurocentrisme desse tipo de feminismo)" . Nesse contexto, quais seriam os novos contetidos que as mulheres negras poderiam. ‘oportar & cena politica para além do “toque de cor” nas propostas de género? A feminista negra norte-americana Patricia Collins argumenta que © pensamento feminista negro seria “(..) um. conjunto de experiéncias e idéias compartihadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ngulo particular de visdo de si, da comunidade e da sociedade... que envolve interpretacbes teéricas da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem..” A partir dessa visio, Collins lege alguns “temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro” Entre eles, se destacam: 0 legado de uma histéria de luta, a natureza interconectada de raga, género & classe e 0 combate aos esterestipos ou "imagens de autoridade”. ‘Acompanhando o pensamento de Patricia Collins, Luizo Barros usa come paradigma a imagem da empregada doméstica como elemento de andlise da condigdo de marginalizagéo da mulher negra €.0 partir delo, busca encontrar especificidades copazes de rearticular os pontos colocados pela feminista norte-americana, Conclui, entao, que “eso marginalidade peculiar é o que estimula um onto de vista especial da mulher negra, (permitindo) uma visio distinta das contradigdes nas ‘cies e ideologia do grupe dominante”. "A grande tarefa é potencializé-la afirmativamente através da teflexdo e da acéo polltica” © poeta negro Aimé Cesaire disse que “as duas maneiras de perder-se sido: por searegagao, sendo enquadrado na particularidade, ou por diluigGo no universal”. A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensdo humana e a Universolidade acidental hegemSnica que cnula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Aleangar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades oportunidades para alm de sue condigdo de raca e de género. Esse é o sentido final dessa luta, Acredito que nessa década, as mulheres negras brasileiras encontraram seu caminho de autodeterminagio politica, soltaram as suas vozes, brigaram por espago e representagdo e se fizeram presentes em todos os espacos de importéncia para 0 avango da questao da mulher brasileira hoje. Foi sua temética a que mais cresceu paliticamente no movimento de mulheres do Brasil, integrando, espera-se que definitivamente, a questéo racial ne movimento de mulheres. 0 ‘que impulsiona essa luta é a crenga “na possibilidade de construgto de um modelo civilizatério humano, fraterno e solidério, tendo como base os valores expressos pela luta anti- racista, feminista e ecolégica, assumidos pelas mulheres negras de todos os continentes, pertencentes que somos & mesma comunidade de destinos" Pela construgdo de uma sociedade multrracial e pluricultural, onde a diferenca seja vivida como equivaléncia e néo mais como inferioridade. Fundadora e coordenadora-executiva do Geledés Instituto da Mulher Negra Séo Paulo SP 5 comentarios Classica por| mai caine ‘Adicione um comentéro ‘Ande Faria Perso Patricia Patrick again BBE Weiey Moura ‘SensaconallPalavas que vem dar mals cor ao mau pensar: Taber lto multe porn. Gra CGabrala Araujo porque o madeo esto de mulher &a mulher banca joven tps: goledes. rg brlenagrecer-o-fominismo-situacao.da-mulher-nogra-na-americalatina-parti-de-uma-perspectva-de-genero!

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