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Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades

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COSMOS/CORPO/CULTURA EM ORALIDADES DE POVOS YANOMAMI


E AFRICANOS
COSMOS/BODY/CULTURE IN ORALITY OF YANOMAMI AND AFRICAN
PEOPLE
Maria Antonieta Antonacci*
Ocird: https://orcid.org/0000-0002-5435-490X

Resumo Abstract
Ensaio com aproximações, pontos de contato The essay highlight approximations and points
entre tradições orais africanas em diáspora ao of contact between African oral traditions in its
Brasil a dinâmicas orais de povos Yanomami, Brazilian diaspora and the oral dynamics of
em palavras do xamã Davi Kopenawa, escritas Yanomami peoples, reasoned in the words of the
por Bruce Albert, que há décadas acompanha shaman David Kopenawa based on writings of
povos da Amazônia. Surpreendida por Bruce Albert, a French anthropologist who has
semelhanças culturais de povos de África a been accompanying indigenous groups of the
culturas desses povos nativos do Norte, em Amazon region for decades. In face of these
visões cósmicas, cognições corpóreas, culturas cultural similarities between peoples of Africa
orais, difícil ignorar analogias, metáforas, and cultures of native peoples in the northern
equivalências em seus modos de sentir, viver, part of Brazil in terms of cosmic visions,
pensar e constituírem-se com/na natureza. O corporeal cognitions, oral cultures, it became
estudo aborda potenciais críticos de culturas difficult to ignore analogies, metaphors, and
ancestrais à expansão voraz e predatória do equivalences in their ways of feeling, living,
mundo ocidental, consumindo e contaminando thinking and constituting themselves with and in
até o ar respirado. “Por mais que sejam nature. This study addresses potential criticism
numerosos e sabidos, seus médicos não poderão of ancestral cultures to the voracious and
fazer nada. Serão destruídos aos poucos, como predatory expansion of the Westernized world,
nós teremos sido antes” (profecia de consuming and contaminating even the breathing
Kopenawa). air. However numerous and knowledgeable,
‘civilized’ doctors will not be able to do
anything. They will be
destroyedlittlebylittle,aswewillhavepreviously
been (Kopenawa’s prophecy).
Palavras-chave: cosmovisão, vida comunitária, Key-words: worldview, community life, oral
lógica oral, razão sensorial, metáfora logic,
sensory reason, metapho
*
Doutora em História Econômica pela USP. Professora associada da PUC-SP. E-
mail: antonieta.antonacci@gmail.com.

Agenda Social, vol. 14, n.1, 2020, p. 13 - 41


ISSN: 1981-9862

INTRODUÇÃO

Com atenções voltadas, nos últimos anos, a pesquisas sobre tradições orais
africanas, suas reinvenções em diáspora ao Brasil, deslocando atividades acadêmicas
para UNIFESSPA, a idéia era retomar literatura de cordel, em acervos de Marabá, além
iniciar contatos a povos nativos da Amazônia, não focados até então. Ao abrir a porta1
de Marabá, novos e inéditos horizontes a lógicas orais e imagéticas emergiram, graças à
proximidade do Prof. Hiran a povos nativos da região.
Na abertura do ano 2019 e do Procad, com pesquisadores de outras regiões e IES
da Amazônia, o PDTSA2 organizou visita a Aldeia do Povo Gavião Kýikatêgê, com
alunos e professores ao encontro de pessoas da aldeia, percorrendo estrada onde há mais
15 aldeias. Experiência até então impensável. Fomos recepcionados pelo Cacique
Ronore Kõnxarti3 e esposa, Conselho de Anciãos, além jovens professores formados no
campus Marabá. Antes de visitar a aldeia e sua escola, ouvimos Cacique Zeca expor, em
mapa com desenho de pés e cabeça, série de problemas candentes atravessados por estas
áreas do corpo no seu território, com viveres e saberes da natureza em mutações
aceleradas.
Postes da Empresa Eletro Norte cruzam o céu da aldeia, Estrada de Ferro
Carajás, da Companhia Vale atravessam seus caminhos, transportando em 340 vagões –
metamorfose em serpente de ferro –, toneladas de minério ao porto São Luiz do
Maranhão, escoando derivados de petróleo e ferro ao exterior. Poluição, desgastes
ecológicos, prejuízos a saúde de moradores, de castanheiras de sua colheita, de caça e
pesca rareando, devassam terras jamais as mesmas. Territórios e povos nativos da
Amazônia enfrentam questões sem retorno.
Intensa presença de povos nativos sem futuro. Suas preocupações passam por
paradoxo – invocar o passado para sentir possível futuro –, em espoliações sem limites
de agentes históricos da região. Muito afetados pela ferrovia, em destruição ambiental
em vias de colapso, o Povo Gavião Kýikatêgê dialoga com suas dificuldades, discutindo
Plano de Licenciamento Ambiental e Plano de Vida, em negociações com a própria
Vale, perguntando-se como e por quais perspectivas sentir/pensar futuros.

1
Expressão do Prof. Dr. Djalma Trürle (UFBA), em encontro na UNIFESSPA.
2
Atualmente sou Bolsista PVNS no Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade
na Amazônia, da UNIFESSPA.
3
O Cacique Ronore Kõnxarti, na aldeia é conhecido como Cacique Zeca.
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Africanos. 15

Insensíveis aos primeiros aqui chegados. Suas questões étnicas, distantes da


memória como da inserção geográfica e acadêmica de Brasília e Sudeste, poucos
ouvem. Só pandemia cósmica acorda o gigante, encontrando sentido, eco em vozes do
Norte, a respeito d´A queda do céu, em profecia e palavras de Davi Kopenawa:
Por mais que sejam numerosos e sabidos, seus médicos não poderão fazer nada.
Serão destruídos aos poucos, como nós teremos sido, antes deles
(KOPENAWA, 2015, p. 492).

Desde sua iniciação científica (1988), em pesquisa no território do povo Gavião,


na Terra Indígena Mãe Maria, Hiran constrói relações de amizade na aldeia, com a
direção, professos@s, pedagog@s de pioneira e bem decorada com murais nativos,
Escola Estadual Tatakti Kýikatêgê. Em interações comunitárias, Hiran realizou seu TCC
“Escola para Kupê ou para Parkatêgê” (1992), organiza Cadernos de Memórias
Kýikatêjê Me Krã Peiti (2016), redige prefácio “Memórias e mitos do ‘País Timbira’:
pedagogias por Pyt e Kaxêre” (2018) e vem construindo rede de pesquisadores entre
PDTSA da Unifesspa e povos Kýikatêjê, com pessoas da aldeia realizando Pós-
Graduação na Unifesspa.
Entre outras, Hiran orienta Concita Guaxipiquara Sompré, esposa do Cacique
Zeca, em pesquisa de mestrado, recuperando via história oral, memórias e histórias do
povo Kýikatêgê. Ao final, dialogando com a bibliografia, em sua percepção Concita
mencionou desinteresse em conversar com “os mortos”. Impossível esquecer texto do
sábio Hampátê Bá, sobre dinâmicas de tradições orais, nomeado “A tradição viva”.
Ao convite de Hiran, usufrui oportunidade de participar do IV Dcima – Colóquio
Internacional Discurso e Mídia na Amazônia, realizado em agosto/2019 na Unifesspa.
Expressivo encontro entre povos e culturas da região, que mesmo sem financiamento de
agencias de pesquisa, ocorreu com auditórios e salas lotadas, reunindo pesquisadores de
muitas áreas e temas. Lideranças de mulheres nativas, quilombolas e do MST,
estudantes negros e indígenas de várias etnias, marcaram presença no Colóquio, um
encontro intercultural ímpar. Aproveitando participação de editoras do Norte, em seus
stands levantei bibliografia desconhecida no Sudeste, adquirindo livros relacionados a
povos indígenas e quilombolas, meio ambiente e agroecologia, literaturas afros, nativas
e de movimentos populares (PY & PEDLOWSKI,2018).
Convidada à conferência de encerramento do Dcima, estaria deslocada ao
abordar apenas culturas de povos da diáspora. De interesse a temas nativos no campus

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Marabá, atraiu A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, entre voz e escrita de
Davi Kopenawa e Bruce Albert. Leitura promissora por coincidir, na abertura do
semestre/2019, expor pesquisas de africanos em diáspora, ao lançamento de livros,
como Pyt Me Kaxêre: criação, história e resistência Kýikatêgê 4, com relatos do
Cacique Ropré Homprynti. Narrando trajetórias de seu povo forçado a sair do
Maranhão, em remoção compulsória do Estado, para a Reserva Indígena Mãe Maria,
direcionava-se ao recém ouvido. Sensibilizados, ao final conversamos, quando Cacique
Ropre entregou-me seu livro, de imediata leitura.
Assim, ao ler A queda do céu, palavras de Kopenawa escritas com maestria por
Albert, já mergulhara em oralidades nativas do mundo amazônico, tornando-se difícil
ignorar aproximações de suas narrativas a oralidades africanas no Nordeste do Brasil,
aprofundando contatos a ancestrais tradições orais entre nós.

UNIDADE CÓSMICA EM CULTURAS ORAIS AFRICANAS E EM DIÁSPORA

Pesquisando matrizes culturais africanas em diáspora no Nordeste, atualizadas


desde cantorias registradas no século XVIII, por Leonardo Motta (1921), alcançamos
sagas de escravizados em literatura oral de folhetos, como Rabicho da Geralda (1792) e
ABC de Lucas de Feira (XIX). Iniciando pesquisa por literatura encenada em
performance, com ritmos, vozes e imagens; instrumentos musicais, valores e tradições
em códigos simbólicos e epistêmicos, percebera rastros de histórias silenciadas,
ignoradas em estudos e livros relacionados ao Brasil, desde colônia.
Em regimes de energia e simbologia oral, a relevância do corpo em culturas
africanas, ainda hoje, conforme Célestin Monga, em suas representações contemplam a
“inviabilidade de conceber o corpo africano sem sua comunidade”. Em “fisiologia
cósmica cada corpo é apenas fração de um conjunto”. “Toda espiritualidade e todo saber
são elementos físicos do que se é”. Esse intelectual bantu traz questão crucial: “A
escravidão era bem mais que um comércio. Representava debate sobre o corpo, isto é,
sobre as relações ambíguas e muitas vezes conflituosas que o ser humano mantém
consigo mesmo e com outros, para o bem ou mal” (MONGA, 2011, p. 354).
O corpo de povos de Áfricas e Américas era o alvo. Imunes ao individualismo,
como à acelerada expansão mercantil européia, seus corpos comunitários, sociabilizados

4
Ropré Kwykti Homprynti. Pyt Me Kaxêre: criação, história e resistência Kýikatêgê, Lucivaldo da Costa
e Teresa Maracaipe Barboza (orgs). Cametá: Editora do Campus Tocantins/Cametá, 2018.
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Africanos. 17

em razão sensorial – visão, audição, olfação, paladar, tato –, herdaram tradicionais


saberes incrustados em seus corpos. Conforme Zumthor (2007, p. 81), sentidos da
condição humana conectam-se a “cadeia epistemológica, pois nossos sentidos não são
apenas ferramentas de registro, são órgãos de conhecimento”.
Pensando uso do corpo como “primeiro e mais natural instrumento do homem”
(MAUSS, 2003, p. 407); atento a sensibilidades cognitivas de corpos moldados a
realidades vividas, para Merleau-Ponty (1994, p. 257) “o uso que um homem fará de
seu corpo transcende à relação desse corpo como ser apenas biológico”, enfatizando
“Nosso corpo é inseparável de uma visão de mundo e é essa mesma visão realizada”.
De corpos da escravidão africana e da servidão indígena fluem, em “actos vitales
de transferencia”, segundo Diana Taylor (2015, p. 34), estudiosa de performance na
transmissão oral de memórias e saberes em Mesoamérica (XVI); ou, em escritas
performativas, do dramaturgo nigeriano Esiaba Irobi (2012, p. 273), em pesquisa a
corpos “africanos que sobreviveram à travessia do Atlântico trazendo consigo as
chamadas escritas performativas” (performative literacies).
Povos nativos e africanos em diáspora expressaram outra forma “de conocer y
ser en el mundo”, materializando “cognición corporalizada” (TAYLOR, 2015, p.18).
Em cosmos, imagens, mitos e cantos; festas e danças, rituais e linguagens audiovisuais,
conjugando voz/som/corpo, enfrentaram colonização europeia em linguagens que hoje
permitem ver/ouvir/sentir saberes e poderes em outra arqueologia cognitiva.
Vivenciando interações cósmicas, o sábio e filósofo Hampátê Bá (1982, p.173),
à contramão de Descartes, traduz “imaginário de unidade cósmica”, em culturas
africanas: “O mundo não foi cartesianamente fatiado em reino mineral, vegetal, animal,
humano (...), o universo visível é concebido e sentido como sinal, concretização ou
envoltório de universo invisível e vivo, constituído por forças em perpétuo movimento”.
Nessa dimensão, tornou-se vital a povos africanos preservar equilíbrio de forças e seres
cósmicos, em universo físico/simbólico, reinventado na diáspora ao Brasil.
Em natureza viva e atuante, povos africanos sentem seus universos sem
disjunções cultura/natureza, corpo/saberes, arte/vida. Sua forte sensibilidade a seres da
natureza, “animista” para europeus, alcança outras palavras. Ali Mazrui, diante “forte
sensibilidade sensorial de povos africanos” alude a “teologia da proximidade”, por “bem
expressar percepção quase dérmica que africanos sentem ante tudo que existe”.5

5
“Animistas/fetichistas? Dizem eles” (ANTONACCI, 2014, p. 245).

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A memória do corpo, fulcro de produção/transmissão de mensagens e saberes,


fundamento da vida comunitária, alcança sentido em filosofia proverbial africana –“As
pessoas da pessoa são inúmeras na pessoa” –, provérbio bambara e peul recolhido por
Hampátê Bá, em “A tradição viva” (1982, p. 176).
Em reflexões sobre letramento além habilidades técnicas, em “crítica a poderes
inerentes a alfabetização”, o antropólogo Brian Street, ciente “do papel da oralidade na
história da cultura humana, da mescla meios orais e letrados”, rejeitou “a grande divisão
oral e letrado” (STREET, 2014, p. 37).
Com essas abordagens, estudamos oralidades africanas no Nordeste, onde a
expansão da palavra impressa em XIX adveio de antigas tipografias do Rio de Janeiro lá
compradas. Poetas, cantadores, xilógrafos passaram a imprimir suas composições orais
em folhetos de cordel, em processo de letramento de poetas e contadores de histórias.
Suas vibrantes narrativas orais, rítmicas e iconográficas permitem sondar confluências
de linguagens entre letra/voz/som/imagem.
O folheto Rabicho da Geralda narra fuga do boi Rabicho, escravo da senhora
Geralda, datado na poética: Chega enfim noventa e dois/aquela seca comprida/logo vi
que era causa/d’eu perder minha vida. Em 1792, forte desequilíbrio na natureza marcou
o final da “tragédia grega”, assim nomeada por José de Alencar. Anotando cantorias
africanas em noites de trabalhos da memória, em fazenda no Ceará, Alencar escreveu
“O cantor é o espectro do próprio boi”, registrando performance animal entre africanos.
Poética oral anônima, datada - 1792 -, noticiava rebeliões escravas de agosto/1791, no
Haiti. Perspectiva inferida de estudo aos silêncios à Revolução Haitiana, escrito por
Trouillot, antropólogo e historiador haitiano, comentando
A existência de extensas redes de comunicações entre os escravos, das quais
temos apenas indícios, não chegou a se tornar um tema sério de pesquisa
histórica (TROUILLOT, 2016, p.168).

Entrevendo redes de comunicações em laços dialógicos conectando regiões


intercontinentais da diáspora africana, Trouillot aludia ao potencial comunicativo de
corpos negros, burlando o “poder do arquivo” senhorial. Perspectiva respaldada pelo
linguísta Emílio Bonvini, referindo-se a tradição oral africana no Brasil: “tal como
tomou forma no Brasil, não é resíduo degradado no curso da escravidão, ao contrário
soube guardar o essencial da tradição oral africana” (BONVINI, 2001, p. 42).
Em meados do XIX, o folheto ABC de Lucas de Feira, com xilogravura de seu
corpo na capa, projeta luta de escravizados sob respaldo a forças de animais simbólicos
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Africanos. 19

de seus imaginários. Foragido em 1824 de Fazenda em Feira de Santana, preso em 1848,


Lucas traz a luz comunidade de fugitivos que assaltaram por 24 anos sertões da Bahia,
matando e roubando víveres distribuídos a outros aquilombados. Enforcado e esquartejado
(1849), seu corpo foi representado em forma híbrida.
Em postura humana, utensílios de trabalho nas mãos, perfil associado a corpos
de animais da terra, água, ar e fogo – fundamentos de culturas humanas –, com rabo de
escorpião (terra), corpo de serpente (terra/água), cabeça de ave ecoando palavras
insurgentes no ar, em língua em flecha de serpente, produziu fogo, transfigurando
Lucas. Em metamorfose de dragão, conjugou reino mineral/vegetal/animal/humano, em
jogo metafórico de imagens superpostas. Matriz de pensamento simbólico, a metáfora
projeta enigma de corpo humano, usando “comunicação corporal onde signo e símbolo
não se desligam da realidade que designam” (GIL, 1997, p.55).

Dragão da Maldade: representação de Lucas de Feira (1808/1849)

Claro/escuro ressaltam corpo híbrido; esfumaçado, o transcendental de povos


africanos, renascendo em mutação Dragão da Maldade. Em arte xilográfica, artistas
afros esculpiram cosmos/corpo/cultura com símbolos de insurgência. Representando
três séculos de escravidão, seu corpo replicou em tempos, espaços, lugares e linguagens
de memória, respaldando lutas de trabalhadores escravizados. Sua metáfora imagética
configura “astúcias de lógica oral” (DIAGNE, 2005, p.53).
Cantado e esculpido em folheto oral, sua saga circulou em teatro; Mural de
Cultura Popular da Rodoviária de Feira de Santana, do artista Lênio Braga (1967),
sendo filmada em 1969, por Glauber Rocha. Mergulhado no jogo metafórico, em
“Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, Glauber assumiu lutas raciais e por
terra em “anos de chumbo” daquele regime militar, encenando dramas messiânicos do
Sertão Nordestino, inflamado por Ligas Camponesas em anos 1960.

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Em relação ao continente África, importa saber como seus povos enfrentaram a


expansão imperial européia, iniciada em 1890. Relato de Henry Stanley, explorador
contratado por Leopoldo II, da Bélgica, para tomar posse do Congo, dimensiona abismo
entre concepções cósmico ontológicas de africanos e europeus, manifestas em usos do
corpo.
No dia 18 de dezembro, para cúmulo de nossas misérias, estes canibais
tentaram um grande esforço para nos destruir, uns empoleirados nos ramos
mais altos das árvores que dominavam a aldeia Vinya Ndjara, outros
emboscados como leopardos entre as plantas ou enroscados como
serpentes na cana de açucar (STANLEY, Apud KI-ZERBO, J. História da
África,Lisboa, 2002, p. 83).

Corpos africanos empoderados por técnicas de animais de seu imaginário


cósmico, frente tecnologias de guerra europeias, evidenciam dramas da expansão
imperial. Cosmogonias, corpos comunitários, tradições e práticas culturais africanas,
profundamente abaladas, suportaram transplante de costumes e valores aleatórios aos
seus universos. Europeus instalaram sua vontade e poder de domínio a mundos de
povos e culturas outras. Precisa e insuperável síntese desses confrontos adveio de
Fanon, denunciando os que perderam seus dons em Les damnés de la terre.6
Confrontos entre razão racional e razão sensorial desde muito nos impactam. Na
hegemonia letrada somos país de analfabetos, ignorando heranças orais milenares de
povos indígenas e africanos em diáspora, contestando física e simbolicamente moral e
preceitos senhoriais que perduram entre nós no século XXI.

A QUEDA DO CÉU: ENCONTROS ENTRE “LÓGICA ORAL” E “LÓGICA


ESCRITA”

Mediando voz, som, imagem; cosmos e corpo; arte-tecnologia-alteridade


cultural, Amazônia Transcultural - xamanismo e tecnociência na Ópera, de Laymert
dos Santos, em parceria com Goethe-Institut, SESC/SP, ZKM (multimídia alemã),
encena culturas distintas acessando dimensões virtuais da realidade. Entre saberes
europeus, brasileiros e yanomami, a ópera apresentada em Munique, Viena e SESC
Pompéia, realizou “paralelo xamanismo-tecnociência”. Para “construir diálogo entre o
mundo virtual da máquina técnica e o mundo espiritual dos xamãs,” abriu para
pensarmos como imaginário e realidade articulam-se, em convivências singulares.

6
FRANTZ, Fanon. Les damnés de la terre, Paris: Maspero, 1961. (Os condenados da terra, 1968).
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos.
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Em “operatórias distintas para lidar com o virtual porque regidos por lógicas
diferentes, resultando percepções de mundos diferentes”, situou “convergência entre a
perspectiva mítica Yanomami e a científica, da ZKM. A maquinação mítica e
simulações tecnocientíficas” apontam, na vida real, “dispositivos de antecipação de uma
catástrofe anunciada”: a morte da floresta Amazônica (SANTOS, 2013, p. 58-59).
A metáfora corpórea de Lucas reverbera na profecia A queda do céu7, livro do
xamã Davi Kopenawa e dop antropólogo Bruce Albert, editado na França (2011) e no
Brasil (2015). Conhecia o livro, mas ouvindo seus comentários em disciplina do Prof.
Hiran, tendo lido Amazônia Transcultural, as memórias transcritas por Albert, desde
décadas junto a povos da Amazônia, tornaram premente sua leitura, frente às violências
de atuais políticas públicas de extermínio da floresta e genocídio de seus povos nativos,
em escaladas sem palavras a dimensionar.
Além título, prefácio, prólogo, conclusões, o pacto intercultural de co-autoria –
ordenar e escrever a fluente sabedoria oral de Kopenawa, narrando visão cósmica e
ofício de xamã –; a par alteridade radical desse líder e pensador nativo, defendendo
mundo sentido, vivido com/na floresta, tornou impossível ignorar aproximações entre
práticas culturais de povos yanomami no Norte e africanos no Nordeste. Com
metáforas, em criativas ironias ao branco, delineia cosmologia e vidas comunitárias
Yanomami, equivalentes a culturas africanas em diáspora, inventariadas nesse ensaio.
Em dança de apresentação, Kopenawa (2015, p.71) narra nome assumido “quando
me tornei mesmo um homem”, época em que “os garimpeiros tinham começado a invadir
nossa floresta, acabado de matar quatro grandes homens yanomami”, sendo que “A Funai
me enviou para encontrar seus corpos na mata”. Como “só espíritos xapiri estavam do meu
lado, deram-me o nome Kopenawa, em razão da fúria que havia em mim para enfrentar os
brancos.” Nome advindo “dos espíritos vespas que beberam o sangue derramado por
Arowë, um grande guerreiro do primeiro tempo.”
Situando o povo Yanomami no mesmo nível e status, contrapôs o potencial de
suas palavras, memórias e pensares ancestrais, a estranha urgência de brancos
bloquearem em “peles de imagens” desenhos, impedindo fugirem de suas mentes:
Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos
se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas.
Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos como os brancos,
de peles de imagens para impedi-las de fugir de nossa mente.

7
A queda do céu está “inspirado por mito que conta o cataclismo que acabou com a primeira humanidade
e que, para os Yanomami, pode prefigurar o destino do nosso mundo, invadido pelas emanações
mortíferas dos minérios e combustíveis” (ALBERT, 2015, p.547).

Agenda Social, vol. 14, n.1, 2020, p. 13 - 41


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Não temos de desenhá- las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão
desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e
forte (KOPENAWA, 2015, p.75).

Comentando “os brancos acham que deveríamos imitá-los em tudo. Mas não é o
que queremos. Não quero de modo algum ser um deles. A meu ver, só poderemos nos
tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami. ” De modo
não menos incisivo, reconhece o valor de seus saberes. “Eu não aprendi a pensar as
coisas da floresta fixando os olhos em peles de papel. Vi-as de verdade, bebendo o
sopro de vida com meus amigos, o pó de yãkoana” (KOPENAWA, 2015, p.76). Em
ironias firma viveres, saberes e modos de ser Yanomami.
Em sua apresentação, Albert revela minucioso, complexo trabalho intelectual de
décadas. Com desafios próximos ao pesquisar culturas orais africanas, ciente de
percalços, recorto alguns. Como o “desconcerto” a etnografias nativas que “remetiam
aos mesmos conceitos sociológicos africanistas, inadaptados à Amazônia indígena, e de
modo idêntico limitavam suas abordagens da cosmologia yanomami a registros
esparsos, meros apêndices imaginários” (ALBERT, 2015, p.516). Africanismos que
ignoram tradições orais em Áfricas dificultam apreender saberes, viveres, dons
silenciados pela “violência epistêmica” 8 do letramento europeu.
Em “profunda identificação com o narrador, para poder habitar sua voz”,
“transmitir as palavras de seu modelo”, “escrevendo-as em seu lugar”, “me tornei outro
para restituir a riqueza de suas palavras” (ALBERT, 2015, p.538). Alcançar
“formulações que permanecessem próximas do sistema de metáforas embutido na trama
da língua yanomami” (ALBERT, 2015, p.545), como sua “tentativa de recriação de um
tom e formulações que fizessem justiça ao modo de expressão oral de Kopenawa e às
emoções que o impregnam”, marcam seu esforço. A “busca por justa aliança entre o
som da voz, a fidelidade documental e o prazer do texto” (ALBERT, 2015, p.546),
nesse encontro de dois universos culturais, adveio do pacto ímpar entre “lógica oral” e
“lógica escrita” (DIAGNE, 2011, p.632).
Em trabalho intelectual dessa envergadura, Albert organizou e traduziu ao
mundo letrado palavras de Kopenawa, “que recebeu rudimentos de alfabetização em sua

8
Expressão de SPIVAK (2010).
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 23

própria língua de missionários da New Tribes Mission9. Sua escolarização parou por aí”
(ALBERT, 2015, p. 688). Estando Kopenawa longe do raciocínio linear da escrita,
Albert viu-se na contingência de abordar tradições orais em notas, ou narrar hábitos
“para atrair a chuva (...) e afugentarem o ser do tempo seco” (Kopenawa, 2015, p. 202),
à lembrança de fazedores de chuva em África, ou adivinhos do tempo no Nordeste. No
“esforço de fazer ressoar por escrito a voz do narrador”, alheio a estrutura narrativa oral,
Albert enfrentou dificuldades, pois
Os relatos dos episódios cruciais de sua vida mesclam inextricavelmente
história pessoal e destino coletivo. Ele se expressa por intermédio de uma
imbricação complexa de gêneros: mitos e narrativas de sonho, visões e
profecias xamãnicas, falas reportadas e exortações políticas (ALBERT,
2015, p.50-51).

Em apreço a ancestrais culturas orais de equilíbrio cósmico ecológico avant la


lettre,10 a contrapelo de tempos modernos, povos ameríndios e africanos diversificam
fertilidade da Terra diante “Povo da mercadoria”. Ao sentir semelhanças, sabendo de
diferenças locais, temporais, espaciais, ciente que em narrações, desenhos, palavras de
Kopenawa ecoam saberes de outros povos de culturas orais, nesse repertório elencamos
o que têm a dizer aos civilizados do mundo ocidental.
Apalavrando vivências yanomami em imaginário cósmico de humanos/não-
humanos, convivendo com seres e espíritos da natureza,11 Kopenawa remete a práticas e
tradições em ressonância a matrizes culturais africanas, renovadas no Brasil.

RASTREANDO A FLORESTA E VISÃO CÓSMICA EM PALAVRAS DE


KOPENAWA

Nas invasões de brancos a floresta amazônica, Kopenawa contraiu tuberculose


em anos 1960, e malária década após. Além “fumaças de epidemia” 12, a abertura da
Perimetral Norte vitimou aldeias, moradores começaram “a arder em febre” e “Não era
uma doença de tosse qualquer”, comentou Kopenawa (2015, p. 297). Em nota, Albert

9
Naquela década de 1960, evangélicos tentaram explicar histórias da Bíblia traduzida em Yanomami.
Nessa época Kopenawa conheceu Teosi e Sesusi, que “sem aparecerem” não quis “mais ouvir suas
palavras” (p. 274).
10
SODRÉ, 1994.
11
“Além espíritos/ancestrais animais; espíritos da floresta (árvores, folhas, cipós, méis selvagens,
cupinzeiros, pedras, terra, água, corredeiras), incluindo xapiri, perfazem mitologia e cosmologia
yanomami” (ALBERT, p. 622).
12
Os Yanomami consideram que doenças contagiosas se propagam em forma de “fumaça de epidemia”.

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situa “vírus de gripe transmitido por intermédio de objetos infectados” (ALBERT, 2015,
p. 651), permitindo avaliar o teor de infecções e genocídio, assolando povos da floresta,
que podiam “ouvir de sua casa a voz dos grandes tratores que remexiam a terra. Jamais
tinham escutado um ruído assim na floresta” (KOPENAWA, 2015, p. 307). Em
oralidade tudo têm voz e ouvidos, em circuitos boca ouvidos voam sons e palavras.
Doenças trazidas por madeireiros e garimpeiros13 - “comedores de terra”-,
chegaram com outras barbáries. Em palavras de Kopenawa “Desmataram por toda
parte para abrir pistas a seus aviões e helicópteros14 (...), os caminhos tinham virado
lodaçais e rios reduzidos a poças de água barrenta, com a floresta empesteada pela
fumaça da epidemia xawara de seus motores”15 (KOPENAWA, 2015, p. 345); enquanto
a Perimetral Norte chegou aos yanomami em 1973. “Foram os primeiros a ver brancos
arrancarem o chão da floresta com suas máquinas gigantes, para abrir a estrada”:
tratores, escavadeiras, niveladoras e caminhões Caterpillar (KOPENAWA, 2015, p.
305).
“Máquinas chegaram à floresta sem que nenhuma palavra as tivesse precedido” –
Kopenawa estranha, em oralidade palavras anunciam devires –, enquanto “pude
observar o rastro de destruição que os brancos deixavam atrás de si. Observava a
floresta ferida” (KOPENAWA, 2015, p. 324). Muitas “as mulheres, crianças e velhos
que morreram entre nós por causa da estrada (...) ver morrer os meus assim me
revoltou” (KOPENAWA, 2015, p.306).
Vinculado à Funai, em confrontos de garimpeiros com mortes yanomami,
Kopenawa era enviado, acompanhava o desenterro de mortos e o luto familiar. “Ao ver
os cadáveres serem arrancados da terra, também eu chorei. Pensei ‘O ouro não passa de
poeira brilhando na lama’. Quantos mais dos nossos ainda vão assassinar? ” Foi quando
“meu pensamento ficou firme” (KOPENAWA, 2015, p. 344). “Então, por fim resolvi
fazer visita a outros brancos (CCPY16), que falam defender nossa floresta, para escutar
suas verdadeiras palavras” (KOPENAWA, 2015, p. 325). Foi o encontro de duas fontes

13
“Em 1987-9 a corrida por ouro em Roraima estava no auge e a atenção da mídia internacional se
concentrou nos Yanomami no Brasil, que morriam às centenas de malária e pneumonia ou vítimas da
violência” (Albert, 2015, p. 558).
14
“Nada menos que noventa pistas de pouso clandestinas foram abertas (...) estimava-se que houvesse 40
mil garimpeiros em atividade, aproximadamente cinco vezes o total de sua própria população” (ALBERT,
2015, p. 562).
15
Motobombas utilizadas no garimpo para desmanchar margens dos rios com jatos de água sob alta
pressão.
16
CCPY formada pela fotógrafa Claudia Andubar, padre Carlo Zacquini, Bruce Albert, criada em 1978,
lutando pelo território Yanomami; a inserção de Kopenawa em 1983 foi fundamental para seu sucesso
em 1992 (Albert, 2015, p. 659).
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 25

de energia, uma nativa e outra vinda do norte de África, formado em antropologia na


França, aclimatado na floresta. Em tempo de Kopenawa ciente da ganância pela floresta
e dos imensos desafios para preservá-la e mantê-la fértil.
Ingerindo yãkoana, em sonho17 e mitos, Kopenawa enuncia floresta com seres
visíveis e invisíveis – espíritos xapiri evocados por xamãs –, quando “o peito do céu
emitir ruídos ameaçadores”, evitando serem “esmagados pela queda do céu como
escutei da boca dos homens mais velhos, quando criança” (KOPENAWA, 2015, p.194).
Era o primeiro tempo, no qual os ancestrais foram pouco a pouco virando animais
de caça. Quando o centro do céu finalmente despencou vários deles foram
arremessados para o mundo subterrâneo. Lá se tornaram os aõpatari, ancestrais
vorazes de dentes afiados que devoram os restos de doença que os xamãs jogam
para eles, embaixo da terra. Continuam morando lá, junto do ser vendaval,
Yariporari, e do ser do caos, Xiwãrip (KOPENAWA, 2015, p. 195, grifos nossos).

Depois, outro céu desceu e se fixou acima da terra, substituindo o que tinha
desabado. Foi Omama [demiurgo mítico] que fez o projeto, como dizem os
brancos. Pensou no melhor modo de torná-lo sólido e introduziu em todo o céu
varas de seu metal, enfiado na terra, como se fossem raízes (Idem).

No intercâmbio entre seus saberes e termos de brancos, em oralidade plena de


imagens, poesia e política de seu mundo sob impactos do “Povo da mercadoria”, de
18
“comedores de terra”, com desenhos em “pele de papel” –, Kopenawa representa
invasores em irônicas metáforas. Em imaginário cósmico, habitado por humanos/não-
humanos, personalizando seres e espíritos da natureza, configura universo
físico/simbólico de povos yanomami na magia da floresta. Alheio à dicotomia
cartesiana, a abstrações conceituais que subtraem o vivido e minam cognições
19
corpóreas, em sentipensar a floresta longe de disjunções ocidentais, Kopenawa
delineia cosmos e vida comunitária yanomami.
Em “rede de intercasamentos e interações rituais”, os yanomami “constituem
conjuntos multicomunitários de estabilidade e composição variáveis”. Os de Watoriki –
“Kopenawa e família formam cerca de 260 grupos locais yanomami” (ALBERT, 2015,

17
“O sonho é considerado estado de ausência temporária da imagem corpórea/essência vital, que se destaca do
invólucro corporal para ir mais longe” (Albert, 2015, nota p. 616).
18
“Os Yanomami chamam páginas escritas de ‘peles de imagens’. Escrever é ‘desenhar traços’
(ALBERT, 2015, nota, p. 610).
19
Sentipensar é termo de Orlando Fals Borda. In: ESCOBAR, Arthur. Sentipensar con la terra, Medellin:
Ediciones UNAULA, 2014. “Sentipensar con el território implica pensar desde el corazón y desde la
mente, o corazonar, como bien lo enuncian colegas de Chiapas” (ESCOBAR, 2014, p. 16).

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p.564). Comunidades de diferentes aldeias, em encontros intercomunitários, realizam


festas reahu, iniciadas em praça da casa que acolhe, em “cantos curtos, em geral uma
frase, repetida por um cantor principal e retomada por coro de dançarinos” (ALBERT,
2015, p. 620). Festas com alimentos, diálogos cantados, ritual de ingestão de cinzas
funerárias em cabaça com mingau de banana, último cuidado aos mortos. Seus
vestígios, saberes, memórias ficam em corpos vivos, compartilhados com os que
preservam hábitos e tradições orais do grupo.
No imaginário ameríndio, em estágio originário de indiferença entre humanos e
animais, em logos míticos houve tempo de convívio: seres com atributos singulares,
enlaçando forças, energias cósmicas, intercomunicavam-se vivendo metamorfoses, sem
separar humanidade da animalidade, em cosmos avesso à civilização ocidental.
A “capacidade de se identificar com não-humanos em função de seu suposto
grau de proximidade com a espécie humana (...) lembra como povos pré-modernos
representam relações com o ambiente: respeito pela natureza, com plantas e animais ou
cuidado de não por em perigo o equilíbrio dos ecossistemas” (DESCOLA, 1998,p.24).
Viveiros de Castro (2002, p. 355) apontara “A condição original comum a
humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica
mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da
cultura: os mitos contam como os animais perderam atributos herdados ou mantidos por
humanos. ” Na cosmologia yanomami, palavras de Kopenawa narram mutações.
As costas desse céu que caiu no primeiro tempo tornaram-se a floresta onde
vivemos o chão no qual pisamos. Por isso chamamos a floresta o velho céu,
os xamãs a chamam hutukara, nome desse antigo nível celeste
(KOPENAWA, 2015, p. 195, grifos nossos).

As costas do céu “tornaram-se a floresta”, “o chão no qual pisamos”, enunciando


mutações cósmicas. Na floresta do velho céu “viemos à existência depois deles, de modo
que somos os fantasmas da gente que saiu do céu” (KOPENAWA, 2015, p. 196).
Pontuando laços entre a gente passada e a sua, delineia arranjos comunitários, sob céu que
“se move, é sempre instável, o centro ainda está firme, mas as beiradas já estão bastante
gastas, ficaram frágeis”. Enquanto,
Os pés que o sustentam nos confins da terra tremem tanto que até os xapiri
ficam apreensivos! Um deles, porém, o espírito do macaco-aranha, mostra ser
de todos mais corajoso. Sempre é o primeiro a segurar pedaços do céu que se
desgarram e a tentar reforçá-lo. Não é macaco da floresta, é ser celeste, um
espírito antigo e poderoso, com mãos muito habilidosas. Ele, no entanto, não
conseguiria sozinho fazer os consertos. Muitos outros espíritos o auxiliam
como os do macaco-da-noite, do jupará, da irara, do esquilo. Mas ele também
/
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 27

chama como reforço espíritos celestes hutukari, os espíritos raio yãpirari e


os espíritos trovão yãrimari (KOPENAWA, 2015, p.196-197, grifos nossos).

Lembrando “É com os cantos dos xapiri que meu pensamento pode se estender
até os pés do céu”, palavras de Kopenawa representam vasto cosmos corpóreo, povoado
por seres e personagens, como o espírito macaco-aranha, corajoso e com mãos
habilidosas, à semelhança de aranhas. Mesclados, seres da floresta atuam em perfis
acentuados por potencial de espíritos animais, com subjetivas ações reforçadas por
“espíritos celestes”, seres chuva, sol e tempo seco, em dinâmica cósmica plena de
interações. Todos os tipos de seres, animais, fenômenos naturais, adjetivos culturais
constroem mundo articulado, em correspondência de uns nos outros. Sem serem
inanimados, são seres vivos, ativos, compartilhando fertilidade e defesa da floresta.
Partindo de interesse recente da etnologia ameríndia, “no pretendemos echar mas
leña al fuego del juego simbólico-político actual de identidades exclusivas. Por el
contrario”, estudiosos Latino Americanos situam: “nuestro objetivo es transgredir
muros políticos e romper barreras conceptuales e historicas”, segundo Stolke e Coello,
abalando certezas ocidentais (STOLKE & COELLO, 2008, p.10).
Ao dualismo ocidental, o antropólogo Descola (1998, p. 27) situa que “as
cosmologias amazônicas estabelecem uma diferença de grau, não de natureza, entre os
homens, as plantas e os animais.” Em pesquisa a povos Achuar, da Amazônia
equatoriana, analisando dimensões culturais em interações com “espíritos invisíveis”,
em “interlocuções extralinguísticas”, que “só podem ser apreendidas em toda sua
plenitude no curso de sonhos e transes induzidos por alucinógenos”, como sucede a
heróis míticos, apontou:“os mitos o atestam a condição inicial é cultural, não natural.”
A característica comum a todas essas cosmologias é não separar o universo
da cultura, que seria apanágio exclusivo dos humanos, do universo da
natureza, que incluí o restante de entidades do mundo. (...) A identidade de
cada um está sujeita a mutações e metamorfoses, já que fundada em campos
de relações que variam segundo os tipos de percepção recíproca (DESCOLA,
1998, p. 28).

Acompanhando essas questões entre razoável número de autores, em linhas de


argumentação, o antropólogo Arturo Escobar situa grupos indígenas e comunidades rurais
que “constroem” a natureza de modos distintos da forma moderna. Sem “visão unificada”
de modelos locais de natureza, remete a investigações de “modelos culturais da natureza” e
a “sociedades da natureza” (ESCOBAR, 2005, p.139).

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Em relação à “instituição do sonho”, Ailton Krenak, outro pensador nativo – na


Constituinte 87/88 defendeu a causa indígena em performance inusitada – , aborda o
sonho “como uma experiência relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de
diferentes povos que tem no sonho caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre
a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e outras
pessoas”, enfrentando “o assalto que fazem à nossa ideia de natureza, corporações que
devoram florestas, montanhas e rios” (KRENAK, 2019, p. 53).
Distanciado da ideia de natureza ocidental, conversando com figurações da
natureza, Krenak acentua “fomos alienando-nos desse organismo de que somos parte, a
Terra, e passamos a pensar ser ela uma coisa e nós outra: a Terra e a humanidade”.
Como neto do “velho avô” rio Doce, aprendeu “aquela serra tem nome, Takukrat e
personalidade”, dialogando com os “lá do terreiro da aldeia”, anuncia tempo bom.
“Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser” (KRENAK, 2019, p.17-18).
Sem pensar algo sem ser natureza, ciente do “absurdo” de “nós, humanos, nos
descolarmos da terra, vivendo em abstração civilizatória”, acompanha Kopenawa. Mas,
ao investir contra o consumo, idéia que “dispensa a experiência de viver numa terra
cheia de sentidos, numa plataforma para diferentes cosmovisões”, surpreende-se com a
especificidade cósmica Yanomami. Plataforma a diferentes cosmos, a povos que
preservam o “cara a cara” de culturas orais, impacta Krenak (2019, p.22-25), que
reconhece:
O livro tem a potência de mostrar para a gente, que está nessa espécie de fim
dos mundos, como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda
seja capaz de habitar uma cosmovisão, habitar um lugar neste planeta que
compartilhamos de maneia tão especial, em que tudo ganha um sentido. As
pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na
floresta. Não estou falando do filme Avatar, mas da vida de vinte e tantas mil
pessoas - conheço algumas -, que habitam o território yanomami, na fronteira
com Venezuela.
Esse território está assolado pelo garimpo, ameaçado por mineração, pelas
mesmas corporações perversas que não toleram esse tipo de cosmos, o tipo
de capacidade imaginativa e de existência que um povo originário como os
Yanomami é capaz de produzir (...) e poder contar mais uma história. Se
pudermos fazer isso estaremos adiando o fim (KRENAK, 2019, p. 25-27).

Ciente “poder contar mais uma história” povos que convivem com animais,
plantas, seres e energias celestes, perturbando civilizados por interações sem limites –
reúnem tudo e todos os seres da natureza –, e que pelo “tipo de capacidade imaginativa
e de existência”, usufruem vidas comunitárias, preservando injunções que a
modernidade letrada levou séculos a dissociar e higienizar. Intolerância a povos
comunitários, por corporações racionais, advém de suas dinâmicas a distância de
mercados.
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29

A escrita de Krenak remete ao advogado Sioux, Vine Delória, que “lembra a


persistência de formas de memória que não só oferecem religiões alternativas, mas mais
importante ainda, alternativas ao conceito de religião fundamental na arquitetura do
imaginário da civilização ocidental” (MIGNOLO, 2005, p.100).

Temas que realçam palavras de Kopenawa – “A floresta é inteligente ela tem um


pensamento igual ao nosso”, ecoando em “Nós somos a floresta. E a floresta somos
nós”, impresso na Agenda 2020 do ISA, sob foto de mulheres nativas na floresta.

Sabendo “se defender com seus xapiri”, espíritos invisíveis, auxiliares de xamãs,
imagens descidas20 em ações decisivas, Kopenawa relembra sua iniciação: “solicitei aos
xamãs mais velhos me transmitirem cantos dos xapiri para poder sonhar de verdade”.
Cantando, sonhando, ouvindo palavras de Omama, foi virando outro (KOPENAWA,
2015, p. 497).
Em “Palavras de Omama”, criador dos xapiri “com palavras tão incontáveis
quanto eles mesmos”, pois “não param de se renovar dentro de nós, que não temos
necessidade de desenhá-las para lembrá-las” – oposições Teosi e Omama, escrito e oral
delineiam-se 21. Em sua alteridade, Kopenawa (2015, p. 509) reforça “Para nós, é esse o
verdadeiro modo de conseguir sabedoria”. Entre africanos, “sabedoria é arte de saber
viver, de dar sentido à vida” (Stamm,1999). Povos com saberes comuns, dinâmica de
palavras, unidade cósmica, memória do corpo usufruem potencial para renovar a Terra.

TORNANDO-SE XAMÃ

“Só após beber o pó de yãkoana por muito tempo”, em companhia do sogro,


atingiu “o sonho dos espíritos, que permite a imagem dos xamãs viajar longe [para]
contemplar as coisas do tempo de nossos ancestrais”, poder “ver o que eram de fato o
trovão, o céu, a lua, o sol, a chuva, a escuridão e a luz” (KOPENAWA, 2015, p. 499).
Por transmissão de cantos, imagens, danças e bebida inalada, Kopenawa tornou-se
xamã, autoridade com “sopro vital”, capacitado a manter equilíbrios da floresta e de
seus habitantes nativos.
“É desse modo que habitantes da floresta estudam, virando espíritos. Os brancos
são outra gente. A imagem da yãkoana só tem amizade por quem nasceu na floresta”
(KOPENAWA, 2015, p. 499). Saberes da floresta advém de experiências de quem nasce
e vive em defesa de sua lógica vital, usufruindo conhecimentos do mundo natural e suas

20
“Todos seres da floresta possuem uma imagem, xamãs a chamam e fazem descer” (KOPENAWA,116).
21
“Ignoramos aquilo que a gente de Teosi, para nos assustar, chama a todo instante de pecado. Não somos
ruins, só não somos brancos!”, comenta Kopenawa (2015, p. 278).
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propriedades. É possível apreender saberes de povos da floresta, ao Kopenawa interagir


com animais, energias e espíritos celestes, distinguindo-os por sons e ritmos, ou contato
com suas texturas, rememorando o ritual de sua iniciação.
Sob efeito da yãkoana fiquei estendido no chão, inconsciente. Então, os
espíritos onça e veado se aproximaram a me lamber a pele com a ponta de
suas línguas ásperas. Provaram minha carne para saber se ainda estava ácida
ou salgada. (...) Em seguida, os espíritos dos carrapatos agarraram minha
imagem com a boca, enquanto os espíritos do céu a levaram. Eu via tudo de
cima, de altura assustadora. Então compreendi que estava me tornando outro
de verdade. Essas imagens só descem se tivermos o corpo esvaziado de carne
de caça. São muito belas e de valor muito alto.
Os xapiri não se revelam de imediato (...) começam a fazer sua dança de
apresentação só depois de estenderem o iniciando sobre seus espelhos. No
começo apenas ouvimos suas vozes das lonjuras (...). Eles se aproximam
devagar, dançando em caminhos luminosos até formarem uma multidão
barulhenta. Então espíritos extraviam nosso pensamento e nossa língua, para
nos ensinar a sua (KOPENAWA, 2015, p.142-146).

Todo o cenário e ritual realçam sentidos do corpo, potencial situado no entre


meio dos recortes acima – “enxergá-los”, “a luz explodiu num estrondo”; ouvir “cantos
ao xapiri tirarem de nossas orelhas tudo que as entope e nos impede de ouvi-los”,
“escutar aos poucos sua cantoria”; sem cheiro de carne de caça “de nossas próprias
presas ou fedendo a pênis”; sem “comer bananas e mandioca e até beber água” – ,
“assim passaram vários dias sem que os espíritos se manifestassem aos meus olhos”.
Em purificação do corpo e seus sentidos, em razão sensorial tornou-se xamã,
usufruindo a condição humana em patamares físico/espirituais a contramão de valores e
ações de brancos, devoradores da natureza e da vida. Assoprando o pó da yãkoana em
suas narinas,23 seu sogro “lhe transmite seus espíritos xapiri com seu sopro vital”, wixia
– traduzido por “força, riqueza” / “vida, energia” –; “além respiração wixia é associado
à abundância de sangue, aos batimentos cardíacos e, portanto, à imagem do
corpo/essência vital da pessoa” (ALBERT, 2015, p.612). Com “sopro vital”, Kopenawa
encarnou imagem do corpo/essência vital da pessoa.
Essa imagem, no logos cósmico yanomami, os aproxima a noções de
pertencimento a outros povos e culturas tradicionais, ampliando desafios ao mundo
ocidental. Mais que sentipensar saber local e cultural da natureza, povos yanomami,
como outros povos tradicionais detém possibilidades de superar a relação binária
natureza / cultura. Para Escobar, “A ‘natureza’ e a ‘cultura’ devem ser analisadas não
23
“O pó é fabricado a partir da resina tirada da parte interna da casca da árvore Virola elongata, que
contém poderoso alcalóide alucinógeno (DMT), com estrutura química próxima da serotonina”
(ALBERT, 2015, p. 612).
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 31

como entes dados e pré-sociais, e sim como construções culturais” (ESCOBAR, 2005,
p. 139). Além do mais, e

(...) a diferença de construções modernas com sua estrita separação entre o mundo
biofísico, o humano e o supranatural, entende-se que os modelos locais, em muitas
conexões não ocidentais, são concebidos como sustentados sobre vínculos de
continuidade entre as três esferas. Esta continuidade está culturalmente arraigada
através de símbolos, rituais e práticas, plasmada em especial em relações sociais
que se diferenciam do tipo moderno, capitalista.
Desta forma, os seres vivos e não vivos, e com frequência supranaturais não são
vistos como entes que constituem domínios distintos e separados (...) como esferas
opostas da natureza e da cultura, considera-se que as relações sociais abarcam algo
mais que aos seres humanos (ESCOBAR, 2005, p.140).

PALAVRAS INTERATIVAS EM DIÁLOGOS CANTADOS

Em relação a comunicações, a palavras interativas entre povos sob regimes orais,


em recortes de seu viver xamã, Kopenawa narra que aos poucos começou a “dar
palavras à gente de minha casa”, “me contentava em transmiti-las nos diálogos cantados
wayamuu da primeira noite de festas reahu”; “depois, no meio da noite, os homens mais
velhos, anfitriões e visitantes, se agacham cara a cara, muito perto um do outro. Dão
início a outro diálogo cantado – dizemos fazer yãimuu”, “palavras mais próximas e
mais inteligentes”. “São o âmago de nossa fala” (KOPENAWA, 2015, p. 377/8). Ao
“adquirir sabedoria, nas pegadas dos que o precederam nas falas de grande homem,
começa a fazer discursos de hereamuu” 24, discursos formais, cerimoniais, relacionados
a mitos, rituais, cosmologia yanomami. “Os brancos ignoram completamente nossos
modos de dialogar” (KOPENAWA, 2015, p. 392).
Em wayamuu, relatam o ouvido em outras casas, “como notícias de rádio dos
brancos”; no yãimuu veiculam notícias políticas “cara a cara”, compartilhando costume
de povos que não abrem mão da palavra frente a frente, olho no olho, preservando suas
tradições orais; fazer hereamuu pressupõe tom vocal específico e Kopenawa comenta
“Se eu não os fizer ouvir minha voz em hereamuu, minhas palavras não vão entrar em

24
“A raiz desse verbo (-here) é a dos termos que designam os pulmões e os movimentos de respiração”
(ALBERT, 2015, p. 664). Entre povos da África do Oeste, a antropóloga Calame-Griaule abordou
circuitos da palavra no corpo até a língua, dentes, boca (CALAME-GRIAULE, 2003).

Agenda Social, vol. 14, n.1, 2020, p. 13 - 41


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seu pensamento (...), preciso falar com eles desse modo muitas vezes” (KOPENAWA,
2015, p. 380).
Em meio a experiências dialógicas cantadas; a incentivos de sua gente – “Você
irá falar em hereamuu aos brancos. Você sabe imitar a língua deles. Irá dar a eles nossas
palavras” –; e, como “levo esta floresta em meu pensamento. Cabe-me defendê-la”
(KOPENAWA, 2015, p. 383), ao aliar ser xamã à diplomacia, em luta pela floresta.
Preparando-se para levar palavras Yanomami a brancos distantes, recorreu a
habilidades de animais e outras energias da floresta. “Para ser capaz de proferir
discursos em hereamuu com firmeza”, valeu-se de expertises vocais de seres da floresta:
como a imagens do gavião kãokãoma, voz vigorosa para “proferir exortações longas e
potentes”; a de Remori, “espírito zangão que deu aos forasteiros sua língua de fantasma”
e de Porepatari, “ser fantasma rondando pela floresta”, que:
colocaram em mim suas gargantas de espírito para eu poder imitar a fala dos
brancos. Ensinaram-me a pronunciar suas palavras uma após a outra com
destreza e firmeza. Introduziram em mim a língua dos antepassados
napënapëri. Sozinho eu não teria conseguido e jamais teria sido capaz de
fazer discursos nessa linguagem outra! (KOPENAWA, 2015, p. 384-385).

Usufruindo recursos da floresta em sua trajetória, esse conjunto de proveitos


sinaliza sentido comunitário da vida na floresta: “sozinho não teria atingido voz firme e
articulada”, incorporando a língua de antepassados.
Em buen vivir com todos e toda cultura da floresta25, em diferentes momentos
Kopenawa menciona o “desconhecido” a brancos. Sem saberem dinâmicas da floresta,
“palavras da gente da floresta” e seus “sonhos”, não invocam seus seres, nem sentem
ações diante desequilíbrios no “espírito fertilidade da floresta”, quando,
Então, acabamos pedindo ajuda aos xamãs mais antigos, conhecedores do ser
da chuva Maari, para que o convençam a parar. Então, logo bebem yãkoana
e começam a trabalhar. Seus espíritos limpam o peito do céu, e depois vão
chamar o ser sol Mothkari e Omoari, o do tempo seco. Depois, viram a
chave das águas de chuva e trazem de volta a claridade do céu, (...) para fazer
a chuva recuar e alegrar a floresta. Chamamos isso de fazer payëmuu.
Os brancos não conhecem as imagens do ser da chuva e de seus filhos. Com
certeza acham que a chuva cai do céu à toa! Eu, ao contrário, as contemplei
muitas vezes em meu sonho, do mesmo modo que meus maiores. Assim é.
As palavras da gente da floresta são outras (KOPENAWA, 2015, p.198,
grifos nossos).

25
Acosta (2016) dirigindo a Assembléia Constituinte do Equador, em 2008, alcançou torná-la a primeira
Constituição a incluir Direitos da Natureza.
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 33

Conhecendo o âmago da vida florestal espezinha recurso a “chave” por brancos,


que ignoram ações de seus seres. Mas são “as coisas que os brancos extraem das
profundezas da terra com avidez, minérios e petróleo”, que confrontaram seus
habitantes e garimpeiros, resultando em assassinatos de Yanomami. Ciente da vida na
floresta, Kopenawa acusa “não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas,
impregnadas de tosses e febres” (KOPENAWA, 2015, p. 357). “Antes, só Omama tinha
metal, trabalhado na sua roça”.
Penso que na verdade não foi Omama que criou esse metal. Encontrou-o no
solo e com ele escorou a nova terra que acabara de criar, antes de cobri-la
com árvores e espalhar os animais de caça. É por isso que tememos arrancar
essas coisas ruins da terra. Preferimos caçar e abrir roças na floresta
(KOPENAWA, 2015, p. 358).

Alimentando-se de caça e pesca; frutos e roças, decoração corpórea com


plumagens, adereços e pinturas corporais com rastros de animais, atento a esses seres,
Kopenawa mantém traços éticos nessas relações. Em interações alheias a ocidentais:
“Os animais também são humanos. Por isso se afastam de nós quando maltratados. No
tempo do sonho ouço suas palavras de desgosto (...) é preciso flechar a presa com
cuidado, para que morra na hora. Caso contrário, fugirá para longe, ferida e furiosa com
os humanos” (KOPENAWA, 2015, p. 206).
Nessa subjetividade caça/caçadores aproxima-se de povos Achuar, que Descola
(1996, p. 14) pesquisara: “em tais ‘sociedades da natureza’, plantas, animais e outras
entidades pertencem a uma comunidade socioeconômica, submetida às mesmas regras
que os humanos”, avaliando difícil perder de vista convivências, intercâmbio florestal
ou receio de desequilibrar viveres em metamorfose, pois
Os animais que caçamos são os fantasmas de nossos ancestrais transformados
em caça. Uma parte de antepassados foi arremessada no mundo subterrâneo;
outra ficou na floresta, na qual viemos a ser criados, e virou caça. Damos a
eles o nome de caça, mas o fato é que somos todos humanos. Assim é.
(KOPENAWA, 2015, p. 215, grifos nossos)

Como os “seres no universo são ‘criados’ ou ‘nutridos’ com princípios similares,


em muitas culturas não modernas, o universo inteiro é concebido como um ser vivente
no qual não há uma separação estrita entre humanos e natureza, indivíduo e
comunidade, comunidade e deuses”, na “medida em que a natureza é vista como
possuidora de uma essência para além do controle humano” (ESCOBAR, 2005, p. 141).

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Nessa dimensão “para além do controle humano”, Kopenawa aprofunda


divergências a brancos, afastando-se mais de atitudes que, desconhecendo a vida da
floresta, agridem suas dinâmicas com prepotência.
As árvores da floresta e as plantas de nossas roças também não crescem
sozinhas, como pensam os brancos. Nossa floresta é vasta e bela. Mas não o é
à toa. É seu valor de fertilidade que a faz assim, sendo o que chamamos
nërope, que vai e vem como um visitante, faz crescer a vegetação por onde
passa, impregnando a floresta a faz úmida e fresca. A imagem da riqueza da
floresta parece de um ser humano, mas é outro (KOPENAWA, 2015, p. 207,
grifos nossos).

Como “brancos não sabem nada dessas coisas, se contentam em pensar que
somos mais ignorantes que eles, apenas por saberem fabricar máquinas, papel e
gravadores! ” (KOPENAWA, 2015, p. 201), além desenharem em “pele de papel” para
nada esquecerem. Ironiza escrita de brancos, que sem sentipensar a floresta, “se
contentam em pensar que somos mais ignorantes”.
Em sentipensar a natureza em “interconexiones simbólicas” de povos nativos,
pesquisa do historiador alemão Aby Warburg, em viagem a Norte América (1896),
repensa relações entre humanos e animais. Junto aos Pueblos, de Novo México e
Arizona, analisou interações indígenas com animais e vegetais. Sapo e aranha referem-
se a pontos cardeais; arbustos e serpentes ao “símbolo vital del culto”, legando ensaio a
rever lógica cultural da presença de animais entre povos ameríndios e africanos:
La actitud interior del índio hacia el animal (...) para poder apropriar-se de un
elemento mágico de la naturaleza a través de la metamorfosis personal, algo
que no podia obtener sin ampliar y modificar su condición humana. (...)
Considera al animal como un ser superior, porque la integridad de su
naturaleza lo convierte en un ser mucho mejor dotado que el débil ser
humano. Los humanos solo hacen en parte lo que el animal es enteramente
(WARBURG, 2004, p. 29-30).

Expõe percepção “probablemente universal en la representación del cosmos” de


povos nativos de Américas e Áfricas, que “encarnan la experiência primigenia de la
humanidad”, contrapondo-se ao Ocidente, em expansão incontrolável, consumindo
forças e energias de outras culturas. Referindo-se a “la condición primordial del ser
humano, en cuja domesticación, abolición y sustitución está empeñada la civilización
moderna”, que “destruye aquello que el conocimiento de la naturaleza, derivado del
mito, había conquistado con grandes esfuerzos”, Warburg (2004, p. 65-66) percebera,
em fins do XIX, barbáries da primazia ocidental. Alertava para não perdermos mais
dádivas insuspeitas de interações com a natureza, que as já perdidas.
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 35

Como metamorfoses na aparência deslocam ângulos para identificar agentes da


floresta, o perspectivismo cósmico de ameríndios, retomando Viveiros de Castro (2002,
p. 387-389), contribui a situar o lugar do humano na Amazônia. Local onde “o corpo
aparece como o grande diferencial nas cosmologias amazônicas”; “ganha fundamento
cosmológico por meio de idiomas corporais, em particular alimentação e decoração
corporal”. Ressalta: “Sua máxima particularização expressa na decoração e exibição
ritual é, ao mesmo tempo, sua máxima animalização, quando são recobertos por plumas,
grafismos, máscaras e outras próteses animais. ”
Reforçando o corpo como “o lugar de emergência da diferença”, acentua “os
corpos ameríndios não são pensados sob o modo do fato, mas do feito”, pois além
“ênfase nos métodos de fabricação contínua do corpo”, atribui-lhes construção cultural
– “a forma humana como um corpo dentro do corpo”.

Viveiros de Castro acrescenta ângulo distinguindo: “os brancos pensam que


existem muitas culturas e uma natureza; os povos indígenas da América pensam que
existe uma cultura e muitas naturezas.” Em pensar distante ao ocidental, Laymer dos
Santos intervém: “Significa que existe um substrato, um plano de realidade comum
onde plantas, animais, enfim tudo que é vivo existe ou existiu em plano cultural comum,
não se naturaliza de modos diferentes. O plano de realidade comum é o plano do pré-
individual” (SANTOS, 2006, p. 6). Preferimos pensar o plano comunitário (PY,2020).
Descola também considera que a condição de homens e animais, sem ser
natural, é cultural e encontra-se referendada em mitos – “não o homem enquanto
espécie, mas a humanidade enquanto condição”, encaminhando suas reflexões finais:
Em continuum inicial, onde os humanos não se distinguem das plantas e animais,
onde uns e outros falam, tocam música ou fazem cerâmica, uma série de
acontecimentos catastróficos vai introduzir descontinuidade de aparências e de
pontos de vista, que condenarão os sujeitos do cosmos a certa forma de ilusão:
doravante, salvo exceções, os homens não poderão mais ver os animais como
congêneres ligados a um destino comum, e é então pelo trabalho da memória,
alimentado pela tradição oral, que se poderá restabelecer uma continuidade que os
sentidos não permitem mais averiguar (DESCOLA, 1998, p. 28-29).

Aproximando práticas culturais de povos yanomami e africanos, enraizados em


logos cósmico e viveres comunitários semelhantes, em idiomas corporais, povos africanos

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como Yanomami, expressam-se em infralíngua (GIL, 1997, p. 42), da linguagem oral


yanomami. Em anexos finais, Albert menciona serem as línguas yanomami
“tradicionalmente línguas não escritas”, “todas vogais podem ser nasalizadas, sendo
grafadas com til” (ALBERT, 2015, p. 554). A nasalização caracteriza fonética de povos
sociabilizados oralmente, por produzir sons sustentáveis a longas horas de diálogos
cantados, conforme narrativas de Kopenawa.
Referindo-se “aos processos xamanísticos de comunicação com o mundo
animal”, em corpos desvirtuados em sua lógica e humanidade, como de nativos de
Áfricas e Américas, o filósofo José Gil apreende “corpo que abarca e atravessa todos os
corpos individuais: é um corpo que contém em si a herança dos mortos e a marca social
dos ritos” (GIL, 1997, p. 52). Sendo movimentos do corpo intraduzíveis em linguagem
articulada, o “médium utilizado” torna-se o corpo, atuando como “transdutor de
códigos”. O corpo “permitia coesão social fundada em comunicação comunitária”, de
infralíngua gestual, que “faz falar” o corpo.

Deve-se entender a infralíngua como resultado de processo de


incorporação (embodiement) da linguagem verbal, de sua inscrição
sedimentação no corpo e nos seus órgãos. O corpo transforma-se: adquire
uma inteligência, uma plasticidade do seu próprio espírito. Esta
inteligência do mundo específico do corpo vai nele induzir movimentos
sutis, associações, contaminações imperceptíveis, mas decisivas que
testemunham a transformação do espírito em espécie de grande corpo
felino capaz de intuições, fulgurações, pressentimentos, sextos sentidos que
só o pensamento por imagens pode fornecer (GIL, 1997, p. 46).

Ressaltando “os códigos contém um intenso investimento afetivo” e “Sem o


afeto que os liga, códigos são línguas mortas”, Gil alcança noção de comunicações que
“assentam neste corpo”, em jogo de corpo, que “sem as mediações habituais da
linguagem, entram diretamente em contato.” Corpo comunitário “supõe coesão
extremamente poderosa, permite ‘acesso ao simbólico’, assegurando jogo sutil e
precário entre o simbólico e o imaginário” (GIL, 1997, p. 47-48).

A infralíngua“oferece ao pensamento e à linguagem procedimento geral para


pensar o mundo, para o mundo sensível, variável, caótico, adquirir ordem e sentido”,
enquanto o “laço que une todos os membros fundamenta-se no corpo comunitário,”
quando:
cada corpo individual, fragmento momento do corpo comunitário, compõe e analisa os
seus ritmos, deixando-se atravessar pelos ritmos de todos os outros. Aí se encontra o
meio onde circula realmente o significante flutuante, ligando as potências singulates às
do grupo, transmitindo as energias dos animais aos homens, dos homens a terra e ao
céu. Sua dinâmica implica todas as presenças do universo (GIL, 1997, p. 56).
s Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos.

Conectando cosmos / corpo comunitário / cultura da palavra, suas reflexões


permitem retomar Kopenawa na defesa da floresta e de viveres ameaçados por brancos,
revirando suas entranhas, em amplidão de termos. Contradições entre vidas
comunitárias e valores mercantis, prontos a prestar serviços ocidentais, marcam sua
mente e palavras amazônicas.

Os xamãs yanomami não trabalham por dinheiro, como os médicos dos brancos.
Trabalham unicamente para o céu ficar no lugar, para podermos caçar, plantar
nossas roças e viver com saúde. Nossos maiores não conheciam o dinheiro.
Omama não lhes deu nenhuma palavra desse tipo. O dinheiro não nos protege,
não enche o estômago, não faz nossa alegria. Para os brancos, é diferente. Eles
não sabem sonhar com os espíritos como nós. Preferem não saber que o trabalho
dos xamãs é proteger a terra, tanto para nós e nossos filhos como para eles e os
seus (KOPENAWA, 2015, p. 216).

Em outro enunciado do poder da palavra em lógica oral, paralelos de Kopenawa


expressam contundentes críticas ao homem branco e seu mundo, distinguindo-os em
atitude moral, compromisso, perfil de consumo e mercado. Em relação aos termos
utilizados, interações de ancestrais saberes a conhecimentos recentes, de últimas
décadas, revelam o acesso sem limites a múltiplas intervenções de brancos na floresta.
Individualismo e falta de atenções a desestabilizações profundas no horizonte de seus
universos – genocídios, epidemias, assassinatos, razias pela “caça” a madeiras e
minérios, poluições, alterações fluviais, erosão de montanhas, plantações à deriva, por
abertura de caminhos nocivos à frágil fertilidade florestal e seus viveres solidários –
colocam-se frente a frente.
Inúmeras agressões minando vidas presentes e futuras, comprometendo a saúde
da floresta e de seus habitantes, práticas cósmicas e arranjos com a natureza, forjados
por demiurgos e ancestrais, resultaram em intensa indignação, reverberando em
memoráveis palavras e imagens plasmadas por Kopenawa, transcritas por Albert.

Não foi à toa que Omama soterrou o ferro, o ouro, a cassiterita e o urânio,
deixando acima do solo só nossos alimentos. Escondeu seu metal lá no meio dos
morros de terras altas, onde também fez jorrar os rios. Quando fazemos dançar a
imagem desse pai dos minérios, se apresenta a nós como montanha de ferro
subterrânea, cheias de imensas hastes fincadas de todos os lados. Assim, esse
metal está enfiado na terra como as raízes das árvores. Ele a mantém firme como
espinhas fazem com a carne dos peixes e esqueletos com a de nosso corpo. Sem
essas raízes de metal, a terra começaria a balançar e acabaria desabando sob
nossos pés (KOPENAWA, 2015, p. 360-361).

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Entremeando saberes e recursos a metáforas estruturantes de sua língua oral,


associou metal “enfiado na terra” a raízes de árvores, espinhas de peixe, esqueleto do
nosso corpo, interpondo seu universo físico geográfico à parafernália tecnológica de
meios e modos de explorações ocidentais. Expressando intercomunicações entre a
floresta, suas palavras e imaginário metafórico, provocado por agressões do homem
branco ao solo e subsolo da Amazônia, sob governo de elites gananciosas, corruptas,
acima de quaisquer suspeitas, Kopenawa fez de suas palavras um libelo no avesso
discursivo de empresários e políticos do Brasil.
Se os brancos arrancarem o pai do metal das profundezas do chão com
seus grandes tratores, como espíritos de tatu-canastra, logo só restarão
pedras, cascalho e areia. Escavando tanto, vão acabar até arrancando as
raízes do céu, também sustentadas pelo metal de Omama.

É para acabar com isso que quero fazer com que eles ouçam as palavras
que os xapiri me deram no tempo do sonho. O que os brancos chamam de
futuro, para nós, é um céu protegido das fumaças de epidemia xawara e
amarrado com firmeza acima de nós (KOPENAWA, 2015, p. 494).

Prevendo com sabedoria um futuro onde “só restarão pedras, cascalho e areia”,
com palavras do tempo do sonho, “com cantos dos xapiri” o estendendo “até os pés do
céu”, após “raízes do céu sustentadas pelo metal de Omama”, Kopenawa sentiu toda
extensão da cobiça de brancos, consumindo futuros, dos seus, de todos, de tudo. Em
tempo de lutas contra máquinas, políticas predatórias, governos sem interesse por
florestas e seus povos, rios, vegetais, animais, saberes da floresta, enquanto xamã com
sopro vital enunciou levar experiências vividas a outros povos, outras regiões e
continentes, línguas e interesses, em palavras diante incertezas previsíveis.
Sem xamãs, a floresta é frágil e não consegue ficar de pé sozinha. As águas
do mundo subterrâneo amolecem seu solo e ameaçam irromper e rasgá-lo.
Seu centro, firmado pelo peso das montanhas, é estável. Mas suas bordas
não param de balançar, sacudidas por vendavais. Se os seres da epidemia
proliferarem, os xamãs acabaram morrendo e ninguém mais poderá
impedir a chegada do caos. A floresta vai virar outra (Kopenawa, p. 492).

Nosso sopro torna-se curto. Se nosso sopro de vida se apagar, a floresta vai
ficar vazia e silenciosa. O céu, tão doente quanto nós por causa da fumaça
dos brancos, vai gemer e se rasgar. A engenhosidade deles com as
máquinas não vai torná-los capazes de segurar o céu e consolidar a
floresta. A fumaça do ouro deixou a floresta quase desabitada
(KOPENAWA, 2015, p. 501).

Compromissos de xamãs com a vida, em atenção a contínuas intervenções que


se abatem à floresta, em lutas por preservar fertilidade da maior riqueza ambiental da
Terra, em alerta proclama “a floresta vai virar outra”. Em vazio e silêncio de terra quase
desabitada, palavras de Kopenawa reiteram “Somos habitantes da floresta. É esse o
nosso modo de ser e são estas as palavras que quero fazer os brancos entenderem”
(KOPENAWA, 2015, p. 511).
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Sem pensarmos na floresta quase desabitada – “suas rotas passaram a dar o rumo
das epidemias” –, vazia e silenciosa ameaça de perdermos saberes e habilidades, visões
cósmicas, viveres comunitários e povos nativos reivindicando vida na floresta, como
políticas ambientais, histórias e memórias alheias a poderes autoritários.

Substituir energias fósseis, reduzir produção massiva de mercadorias, substituir


agronegócio por agricultura camponesa orgânica, sem afetar a natureza por “ruptura do
metabolismo”, políticas ambientais em particular na Amazônia, defesa de sua floresta
em solidariedade a povos indígenas, não perdendo de vista povos quilombolas que lá
habitam há séculos. Sem esquecer que a era do racismo científico começou junto ao
comércio transatlântico de escravos e à servidão indígena, como justificativa àquelas
brutalidades.

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