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Resumo Abstract
Ensaio com aproximações, pontos de contato The essay highlight approximations and points
entre tradições orais africanas em diáspora ao of contact between African oral traditions in its
Brasil a dinâmicas orais de povos Yanomami, Brazilian diaspora and the oral dynamics of
em palavras do xamã Davi Kopenawa, escritas Yanomami peoples, reasoned in the words of the
por Bruce Albert, que há décadas acompanha shaman David Kopenawa based on writings of
povos da Amazônia. Surpreendida por Bruce Albert, a French anthropologist who has
semelhanças culturais de povos de África a been accompanying indigenous groups of the
culturas desses povos nativos do Norte, em Amazon region for decades. In face of these
visões cósmicas, cognições corpóreas, culturas cultural similarities between peoples of Africa
orais, difícil ignorar analogias, metáforas, and cultures of native peoples in the northern
equivalências em seus modos de sentir, viver, part of Brazil in terms of cosmic visions,
pensar e constituírem-se com/na natureza. O corporeal cognitions, oral cultures, it became
estudo aborda potenciais críticos de culturas difficult to ignore analogies, metaphors, and
ancestrais à expansão voraz e predatória do equivalences in their ways of feeling, living,
mundo ocidental, consumindo e contaminando thinking and constituting themselves with and in
até o ar respirado. “Por mais que sejam nature. This study addresses potential criticism
numerosos e sabidos, seus médicos não poderão of ancestral cultures to the voracious and
fazer nada. Serão destruídos aos poucos, como predatory expansion of the Westernized world,
nós teremos sido antes” (profecia de consuming and contaminating even the breathing
Kopenawa). air. However numerous and knowledgeable,
‘civilized’ doctors will not be able to do
anything. They will be
destroyedlittlebylittle,aswewillhavepreviously
been (Kopenawa’s prophecy).
Palavras-chave: cosmovisão, vida comunitária, Key-words: worldview, community life, oral
lógica oral, razão sensorial, metáfora logic,
sensory reason, metapho
*
Doutora em História Econômica pela USP. Professora associada da PUC-SP. E-
mail: antonieta.antonacci@gmail.com.
INTRODUÇÃO
Com atenções voltadas, nos últimos anos, a pesquisas sobre tradições orais
africanas, suas reinvenções em diáspora ao Brasil, deslocando atividades acadêmicas
para UNIFESSPA, a idéia era retomar literatura de cordel, em acervos de Marabá, além
iniciar contatos a povos nativos da Amazônia, não focados até então. Ao abrir a porta1
de Marabá, novos e inéditos horizontes a lógicas orais e imagéticas emergiram, graças à
proximidade do Prof. Hiran a povos nativos da região.
Na abertura do ano 2019 e do Procad, com pesquisadores de outras regiões e IES
da Amazônia, o PDTSA2 organizou visita a Aldeia do Povo Gavião Kýikatêgê, com
alunos e professores ao encontro de pessoas da aldeia, percorrendo estrada onde há mais
15 aldeias. Experiência até então impensável. Fomos recepcionados pelo Cacique
Ronore Kõnxarti3 e esposa, Conselho de Anciãos, além jovens professores formados no
campus Marabá. Antes de visitar a aldeia e sua escola, ouvimos Cacique Zeca expor, em
mapa com desenho de pés e cabeça, série de problemas candentes atravessados por estas
áreas do corpo no seu território, com viveres e saberes da natureza em mutações
aceleradas.
Postes da Empresa Eletro Norte cruzam o céu da aldeia, Estrada de Ferro
Carajás, da Companhia Vale atravessam seus caminhos, transportando em 340 vagões –
metamorfose em serpente de ferro –, toneladas de minério ao porto São Luiz do
Maranhão, escoando derivados de petróleo e ferro ao exterior. Poluição, desgastes
ecológicos, prejuízos a saúde de moradores, de castanheiras de sua colheita, de caça e
pesca rareando, devassam terras jamais as mesmas. Territórios e povos nativos da
Amazônia enfrentam questões sem retorno.
Intensa presença de povos nativos sem futuro. Suas preocupações passam por
paradoxo – invocar o passado para sentir possível futuro –, em espoliações sem limites
de agentes históricos da região. Muito afetados pela ferrovia, em destruição ambiental
em vias de colapso, o Povo Gavião Kýikatêgê dialoga com suas dificuldades, discutindo
Plano de Licenciamento Ambiental e Plano de Vida, em negociações com a própria
Vale, perguntando-se como e por quais perspectivas sentir/pensar futuros.
1
Expressão do Prof. Dr. Djalma Trürle (UFBA), em encontro na UNIFESSPA.
2
Atualmente sou Bolsista PVNS no Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade
na Amazônia, da UNIFESSPA.
3
O Cacique Ronore Kõnxarti, na aldeia é conhecido como Cacique Zeca.
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 15
Marabá, atraiu A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, entre voz e escrita de
Davi Kopenawa e Bruce Albert. Leitura promissora por coincidir, na abertura do
semestre/2019, expor pesquisas de africanos em diáspora, ao lançamento de livros,
como Pyt Me Kaxêre: criação, história e resistência Kýikatêgê 4, com relatos do
Cacique Ropré Homprynti. Narrando trajetórias de seu povo forçado a sair do
Maranhão, em remoção compulsória do Estado, para a Reserva Indígena Mãe Maria,
direcionava-se ao recém ouvido. Sensibilizados, ao final conversamos, quando Cacique
Ropre entregou-me seu livro, de imediata leitura.
Assim, ao ler A queda do céu, palavras de Kopenawa escritas com maestria por
Albert, já mergulhara em oralidades nativas do mundo amazônico, tornando-se difícil
ignorar aproximações de suas narrativas a oralidades africanas no Nordeste do Brasil,
aprofundando contatos a ancestrais tradições orais entre nós.
4
Ropré Kwykti Homprynti. Pyt Me Kaxêre: criação, história e resistência Kýikatêgê, Lucivaldo da Costa
e Teresa Maracaipe Barboza (orgs). Cametá: Editora do Campus Tocantins/Cametá, 2018.
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 17
5
“Animistas/fetichistas? Dizem eles” (ANTONACCI, 2014, p. 245).
6
FRANTZ, Fanon. Les damnés de la terre, Paris: Maspero, 1961. (Os condenados da terra, 1968).
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos.
21
Em “operatórias distintas para lidar com o virtual porque regidos por lógicas
diferentes, resultando percepções de mundos diferentes”, situou “convergência entre a
perspectiva mítica Yanomami e a científica, da ZKM. A maquinação mítica e
simulações tecnocientíficas” apontam, na vida real, “dispositivos de antecipação de uma
catástrofe anunciada”: a morte da floresta Amazônica (SANTOS, 2013, p. 58-59).
A metáfora corpórea de Lucas reverbera na profecia A queda do céu7, livro do
xamã Davi Kopenawa e dop antropólogo Bruce Albert, editado na França (2011) e no
Brasil (2015). Conhecia o livro, mas ouvindo seus comentários em disciplina do Prof.
Hiran, tendo lido Amazônia Transcultural, as memórias transcritas por Albert, desde
décadas junto a povos da Amazônia, tornaram premente sua leitura, frente às violências
de atuais políticas públicas de extermínio da floresta e genocídio de seus povos nativos,
em escaladas sem palavras a dimensionar.
Além título, prefácio, prólogo, conclusões, o pacto intercultural de co-autoria –
ordenar e escrever a fluente sabedoria oral de Kopenawa, narrando visão cósmica e
ofício de xamã –; a par alteridade radical desse líder e pensador nativo, defendendo
mundo sentido, vivido com/na floresta, tornou impossível ignorar aproximações entre
práticas culturais de povos yanomami no Norte e africanos no Nordeste. Com
metáforas, em criativas ironias ao branco, delineia cosmologia e vidas comunitárias
Yanomami, equivalentes a culturas africanas em diáspora, inventariadas nesse ensaio.
Em dança de apresentação, Kopenawa (2015, p.71) narra nome assumido “quando
me tornei mesmo um homem”, época em que “os garimpeiros tinham começado a invadir
nossa floresta, acabado de matar quatro grandes homens yanomami”, sendo que “A Funai
me enviou para encontrar seus corpos na mata”. Como “só espíritos xapiri estavam do meu
lado, deram-me o nome Kopenawa, em razão da fúria que havia em mim para enfrentar os
brancos.” Nome advindo “dos espíritos vespas que beberam o sangue derramado por
Arowë, um grande guerreiro do primeiro tempo.”
Situando o povo Yanomami no mesmo nível e status, contrapôs o potencial de
suas palavras, memórias e pensares ancestrais, a estranha urgência de brancos
bloquearem em “peles de imagens” desenhos, impedindo fugirem de suas mentes:
Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos
se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas.
Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos como os brancos,
de peles de imagens para impedi-las de fugir de nossa mente.
7
A queda do céu está “inspirado por mito que conta o cataclismo que acabou com a primeira humanidade
e que, para os Yanomami, pode prefigurar o destino do nosso mundo, invadido pelas emanações
mortíferas dos minérios e combustíveis” (ALBERT, 2015, p.547).
Comentando “os brancos acham que deveríamos imitá-los em tudo. Mas não é o
que queremos. Não quero de modo algum ser um deles. A meu ver, só poderemos nos
tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami. ” De modo
não menos incisivo, reconhece o valor de seus saberes. “Eu não aprendi a pensar as
coisas da floresta fixando os olhos em peles de papel. Vi-as de verdade, bebendo o
sopro de vida com meus amigos, o pó de yãkoana” (KOPENAWA, 2015, p.76). Em
ironias firma viveres, saberes e modos de ser Yanomami.
Em sua apresentação, Albert revela minucioso, complexo trabalho intelectual de
décadas. Com desafios próximos ao pesquisar culturas orais africanas, ciente de
percalços, recorto alguns. Como o “desconcerto” a etnografias nativas que “remetiam
aos mesmos conceitos sociológicos africanistas, inadaptados à Amazônia indígena, e de
modo idêntico limitavam suas abordagens da cosmologia yanomami a registros
esparsos, meros apêndices imaginários” (ALBERT, 2015, p.516). Africanismos que
ignoram tradições orais em Áfricas dificultam apreender saberes, viveres, dons
silenciados pela “violência epistêmica” 8 do letramento europeu.
Em “profunda identificação com o narrador, para poder habitar sua voz”,
“transmitir as palavras de seu modelo”, “escrevendo-as em seu lugar”, “me tornei outro
para restituir a riqueza de suas palavras” (ALBERT, 2015, p.538). Alcançar
“formulações que permanecessem próximas do sistema de metáforas embutido na trama
da língua yanomami” (ALBERT, 2015, p.545), como sua “tentativa de recriação de um
tom e formulações que fizessem justiça ao modo de expressão oral de Kopenawa e às
emoções que o impregnam”, marcam seu esforço. A “busca por justa aliança entre o
som da voz, a fidelidade documental e o prazer do texto” (ALBERT, 2015, p.546),
nesse encontro de dois universos culturais, adveio do pacto ímpar entre “lógica oral” e
“lógica escrita” (DIAGNE, 2011, p.632).
Em trabalho intelectual dessa envergadura, Albert organizou e traduziu ao
mundo letrado palavras de Kopenawa, “que recebeu rudimentos de alfabetização em sua
8
Expressão de SPIVAK (2010).
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 23
própria língua de missionários da New Tribes Mission9. Sua escolarização parou por aí”
(ALBERT, 2015, p. 688). Estando Kopenawa longe do raciocínio linear da escrita,
Albert viu-se na contingência de abordar tradições orais em notas, ou narrar hábitos
“para atrair a chuva (...) e afugentarem o ser do tempo seco” (Kopenawa, 2015, p. 202),
à lembrança de fazedores de chuva em África, ou adivinhos do tempo no Nordeste. No
“esforço de fazer ressoar por escrito a voz do narrador”, alheio a estrutura narrativa oral,
Albert enfrentou dificuldades, pois
Os relatos dos episódios cruciais de sua vida mesclam inextricavelmente
história pessoal e destino coletivo. Ele se expressa por intermédio de uma
imbricação complexa de gêneros: mitos e narrativas de sonho, visões e
profecias xamãnicas, falas reportadas e exortações políticas (ALBERT,
2015, p.50-51).
9
Naquela década de 1960, evangélicos tentaram explicar histórias da Bíblia traduzida em Yanomami.
Nessa época Kopenawa conheceu Teosi e Sesusi, que “sem aparecerem” não quis “mais ouvir suas
palavras” (p. 274).
10
SODRÉ, 1994.
11
“Além espíritos/ancestrais animais; espíritos da floresta (árvores, folhas, cipós, méis selvagens,
cupinzeiros, pedras, terra, água, corredeiras), incluindo xapiri, perfazem mitologia e cosmologia
yanomami” (ALBERT, p. 622).
12
Os Yanomami consideram que doenças contagiosas se propagam em forma de “fumaça de epidemia”.
situa “vírus de gripe transmitido por intermédio de objetos infectados” (ALBERT, 2015,
p. 651), permitindo avaliar o teor de infecções e genocídio, assolando povos da floresta,
que podiam “ouvir de sua casa a voz dos grandes tratores que remexiam a terra. Jamais
tinham escutado um ruído assim na floresta” (KOPENAWA, 2015, p. 307). Em
oralidade tudo têm voz e ouvidos, em circuitos boca ouvidos voam sons e palavras.
Doenças trazidas por madeireiros e garimpeiros13 - “comedores de terra”-,
chegaram com outras barbáries. Em palavras de Kopenawa “Desmataram por toda
parte para abrir pistas a seus aviões e helicópteros14 (...), os caminhos tinham virado
lodaçais e rios reduzidos a poças de água barrenta, com a floresta empesteada pela
fumaça da epidemia xawara de seus motores”15 (KOPENAWA, 2015, p. 345); enquanto
a Perimetral Norte chegou aos yanomami em 1973. “Foram os primeiros a ver brancos
arrancarem o chão da floresta com suas máquinas gigantes, para abrir a estrada”:
tratores, escavadeiras, niveladoras e caminhões Caterpillar (KOPENAWA, 2015, p.
305).
“Máquinas chegaram à floresta sem que nenhuma palavra as tivesse precedido” –
Kopenawa estranha, em oralidade palavras anunciam devires –, enquanto “pude
observar o rastro de destruição que os brancos deixavam atrás de si. Observava a
floresta ferida” (KOPENAWA, 2015, p. 324). Muitas “as mulheres, crianças e velhos
que morreram entre nós por causa da estrada (...) ver morrer os meus assim me
revoltou” (KOPENAWA, 2015, p.306).
Vinculado à Funai, em confrontos de garimpeiros com mortes yanomami,
Kopenawa era enviado, acompanhava o desenterro de mortos e o luto familiar. “Ao ver
os cadáveres serem arrancados da terra, também eu chorei. Pensei ‘O ouro não passa de
poeira brilhando na lama’. Quantos mais dos nossos ainda vão assassinar? ” Foi quando
“meu pensamento ficou firme” (KOPENAWA, 2015, p. 344). “Então, por fim resolvi
fazer visita a outros brancos (CCPY16), que falam defender nossa floresta, para escutar
suas verdadeiras palavras” (KOPENAWA, 2015, p. 325). Foi o encontro de duas fontes
13
“Em 1987-9 a corrida por ouro em Roraima estava no auge e a atenção da mídia internacional se
concentrou nos Yanomami no Brasil, que morriam às centenas de malária e pneumonia ou vítimas da
violência” (Albert, 2015, p. 558).
14
“Nada menos que noventa pistas de pouso clandestinas foram abertas (...) estimava-se que houvesse 40
mil garimpeiros em atividade, aproximadamente cinco vezes o total de sua própria população” (ALBERT,
2015, p. 562).
15
Motobombas utilizadas no garimpo para desmanchar margens dos rios com jatos de água sob alta
pressão.
16
CCPY formada pela fotógrafa Claudia Andubar, padre Carlo Zacquini, Bruce Albert, criada em 1978,
lutando pelo território Yanomami; a inserção de Kopenawa em 1983 foi fundamental para seu sucesso
em 1992 (Albert, 2015, p. 659).
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 25
Depois, outro céu desceu e se fixou acima da terra, substituindo o que tinha
desabado. Foi Omama [demiurgo mítico] que fez o projeto, como dizem os
brancos. Pensou no melhor modo de torná-lo sólido e introduziu em todo o céu
varas de seu metal, enfiado na terra, como se fossem raízes (Idem).
17
“O sonho é considerado estado de ausência temporária da imagem corpórea/essência vital, que se destaca do
invólucro corporal para ir mais longe” (Albert, 2015, nota p. 616).
18
“Os Yanomami chamam páginas escritas de ‘peles de imagens’. Escrever é ‘desenhar traços’
(ALBERT, 2015, nota, p. 610).
19
Sentipensar é termo de Orlando Fals Borda. In: ESCOBAR, Arthur. Sentipensar con la terra, Medellin:
Ediciones UNAULA, 2014. “Sentipensar con el território implica pensar desde el corazón y desde la
mente, o corazonar, como bien lo enuncian colegas de Chiapas” (ESCOBAR, 2014, p. 16).
Lembrando “É com os cantos dos xapiri que meu pensamento pode se estender
até os pés do céu”, palavras de Kopenawa representam vasto cosmos corpóreo, povoado
por seres e personagens, como o espírito macaco-aranha, corajoso e com mãos
habilidosas, à semelhança de aranhas. Mesclados, seres da floresta atuam em perfis
acentuados por potencial de espíritos animais, com subjetivas ações reforçadas por
“espíritos celestes”, seres chuva, sol e tempo seco, em dinâmica cósmica plena de
interações. Todos os tipos de seres, animais, fenômenos naturais, adjetivos culturais
constroem mundo articulado, em correspondência de uns nos outros. Sem serem
inanimados, são seres vivos, ativos, compartilhando fertilidade e defesa da floresta.
Partindo de interesse recente da etnologia ameríndia, “no pretendemos echar mas
leña al fuego del juego simbólico-político actual de identidades exclusivas. Por el
contrario”, estudiosos Latino Americanos situam: “nuestro objetivo es transgredir
muros políticos e romper barreras conceptuales e historicas”, segundo Stolke e Coello,
abalando certezas ocidentais (STOLKE & COELLO, 2008, p.10).
Ao dualismo ocidental, o antropólogo Descola (1998, p. 27) situa que “as
cosmologias amazônicas estabelecem uma diferença de grau, não de natureza, entre os
homens, as plantas e os animais.” Em pesquisa a povos Achuar, da Amazônia
equatoriana, analisando dimensões culturais em interações com “espíritos invisíveis”,
em “interlocuções extralinguísticas”, que “só podem ser apreendidas em toda sua
plenitude no curso de sonhos e transes induzidos por alucinógenos”, como sucede a
heróis míticos, apontou:“os mitos o atestam a condição inicial é cultural, não natural.”
A característica comum a todas essas cosmologias é não separar o universo
da cultura, que seria apanágio exclusivo dos humanos, do universo da
natureza, que incluí o restante de entidades do mundo. (...) A identidade de
cada um está sujeita a mutações e metamorfoses, já que fundada em campos
de relações que variam segundo os tipos de percepção recíproca (DESCOLA,
1998, p. 28).
Ciente “poder contar mais uma história” povos que convivem com animais,
plantas, seres e energias celestes, perturbando civilizados por interações sem limites –
reúnem tudo e todos os seres da natureza –, e que pelo “tipo de capacidade imaginativa
e de existência”, usufruem vidas comunitárias, preservando injunções que a
modernidade letrada levou séculos a dissociar e higienizar. Intolerância a povos
comunitários, por corporações racionais, advém de suas dinâmicas a distância de
mercados.
ISSN: 1981-9862
29
Sabendo “se defender com seus xapiri”, espíritos invisíveis, auxiliares de xamãs,
imagens descidas20 em ações decisivas, Kopenawa relembra sua iniciação: “solicitei aos
xamãs mais velhos me transmitirem cantos dos xapiri para poder sonhar de verdade”.
Cantando, sonhando, ouvindo palavras de Omama, foi virando outro (KOPENAWA,
2015, p. 497).
Em “Palavras de Omama”, criador dos xapiri “com palavras tão incontáveis
quanto eles mesmos”, pois “não param de se renovar dentro de nós, que não temos
necessidade de desenhá-las para lembrá-las” – oposições Teosi e Omama, escrito e oral
delineiam-se 21. Em sua alteridade, Kopenawa (2015, p. 509) reforça “Para nós, é esse o
verdadeiro modo de conseguir sabedoria”. Entre africanos, “sabedoria é arte de saber
viver, de dar sentido à vida” (Stamm,1999). Povos com saberes comuns, dinâmica de
palavras, unidade cósmica, memória do corpo usufruem potencial para renovar a Terra.
TORNANDO-SE XAMÃ
20
“Todos seres da floresta possuem uma imagem, xamãs a chamam e fazem descer” (KOPENAWA,116).
21
“Ignoramos aquilo que a gente de Teosi, para nos assustar, chama a todo instante de pecado. Não somos
ruins, só não somos brancos!”, comenta Kopenawa (2015, p. 278).
ISSN: 1981-9862
como entes dados e pré-sociais, e sim como construções culturais” (ESCOBAR, 2005,
p. 139). Além do mais, e
(...) a diferença de construções modernas com sua estrita separação entre o mundo
biofísico, o humano e o supranatural, entende-se que os modelos locais, em muitas
conexões não ocidentais, são concebidos como sustentados sobre vínculos de
continuidade entre as três esferas. Esta continuidade está culturalmente arraigada
através de símbolos, rituais e práticas, plasmada em especial em relações sociais
que se diferenciam do tipo moderno, capitalista.
Desta forma, os seres vivos e não vivos, e com frequência supranaturais não são
vistos como entes que constituem domínios distintos e separados (...) como esferas
opostas da natureza e da cultura, considera-se que as relações sociais abarcam algo
mais que aos seres humanos (ESCOBAR, 2005, p.140).
24
“A raiz desse verbo (-here) é a dos termos que designam os pulmões e os movimentos de respiração”
(ALBERT, 2015, p. 664). Entre povos da África do Oeste, a antropóloga Calame-Griaule abordou
circuitos da palavra no corpo até a língua, dentes, boca (CALAME-GRIAULE, 2003).
seu pensamento (...), preciso falar com eles desse modo muitas vezes” (KOPENAWA,
2015, p. 380).
Em meio a experiências dialógicas cantadas; a incentivos de sua gente – “Você
irá falar em hereamuu aos brancos. Você sabe imitar a língua deles. Irá dar a eles nossas
palavras” –; e, como “levo esta floresta em meu pensamento. Cabe-me defendê-la”
(KOPENAWA, 2015, p. 383), ao aliar ser xamã à diplomacia, em luta pela floresta.
Preparando-se para levar palavras Yanomami a brancos distantes, recorreu a
habilidades de animais e outras energias da floresta. “Para ser capaz de proferir
discursos em hereamuu com firmeza”, valeu-se de expertises vocais de seres da floresta:
como a imagens do gavião kãokãoma, voz vigorosa para “proferir exortações longas e
potentes”; a de Remori, “espírito zangão que deu aos forasteiros sua língua de fantasma”
e de Porepatari, “ser fantasma rondando pela floresta”, que:
colocaram em mim suas gargantas de espírito para eu poder imitar a fala dos
brancos. Ensinaram-me a pronunciar suas palavras uma após a outra com
destreza e firmeza. Introduziram em mim a língua dos antepassados
napënapëri. Sozinho eu não teria conseguido e jamais teria sido capaz de
fazer discursos nessa linguagem outra! (KOPENAWA, 2015, p. 384-385).
25
Acosta (2016) dirigindo a Assembléia Constituinte do Equador, em 2008, alcançou torná-la a primeira
Constituição a incluir Direitos da Natureza.
Antonacci, Cosmos/corpo/cultura em oralidades de povos Yanomami e
Africanos. 33
Como “brancos não sabem nada dessas coisas, se contentam em pensar que
somos mais ignorantes que eles, apenas por saberem fabricar máquinas, papel e
gravadores! ” (KOPENAWA, 2015, p. 201), além desenharem em “pele de papel” para
nada esquecerem. Ironiza escrita de brancos, que sem sentipensar a floresta, “se
contentam em pensar que somos mais ignorantes”.
Em sentipensar a natureza em “interconexiones simbólicas” de povos nativos,
pesquisa do historiador alemão Aby Warburg, em viagem a Norte América (1896),
repensa relações entre humanos e animais. Junto aos Pueblos, de Novo México e
Arizona, analisou interações indígenas com animais e vegetais. Sapo e aranha referem-
se a pontos cardeais; arbustos e serpentes ao “símbolo vital del culto”, legando ensaio a
rever lógica cultural da presença de animais entre povos ameríndios e africanos:
La actitud interior del índio hacia el animal (...) para poder apropriar-se de un
elemento mágico de la naturaleza a través de la metamorfosis personal, algo
que no podia obtener sin ampliar y modificar su condición humana. (...)
Considera al animal como un ser superior, porque la integridad de su
naturaleza lo convierte en un ser mucho mejor dotado que el débil ser
humano. Los humanos solo hacen en parte lo que el animal es enteramente
(WARBURG, 2004, p. 29-30).
Os xamãs yanomami não trabalham por dinheiro, como os médicos dos brancos.
Trabalham unicamente para o céu ficar no lugar, para podermos caçar, plantar
nossas roças e viver com saúde. Nossos maiores não conheciam o dinheiro.
Omama não lhes deu nenhuma palavra desse tipo. O dinheiro não nos protege,
não enche o estômago, não faz nossa alegria. Para os brancos, é diferente. Eles
não sabem sonhar com os espíritos como nós. Preferem não saber que o trabalho
dos xamãs é proteger a terra, tanto para nós e nossos filhos como para eles e os
seus (KOPENAWA, 2015, p. 216).
Não foi à toa que Omama soterrou o ferro, o ouro, a cassiterita e o urânio,
deixando acima do solo só nossos alimentos. Escondeu seu metal lá no meio dos
morros de terras altas, onde também fez jorrar os rios. Quando fazemos dançar a
imagem desse pai dos minérios, se apresenta a nós como montanha de ferro
subterrânea, cheias de imensas hastes fincadas de todos os lados. Assim, esse
metal está enfiado na terra como as raízes das árvores. Ele a mantém firme como
espinhas fazem com a carne dos peixes e esqueletos com a de nosso corpo. Sem
essas raízes de metal, a terra começaria a balançar e acabaria desabando sob
nossos pés (KOPENAWA, 2015, p. 360-361).
É para acabar com isso que quero fazer com que eles ouçam as palavras
que os xapiri me deram no tempo do sonho. O que os brancos chamam de
futuro, para nós, é um céu protegido das fumaças de epidemia xawara e
amarrado com firmeza acima de nós (KOPENAWA, 2015, p. 494).
Prevendo com sabedoria um futuro onde “só restarão pedras, cascalho e areia”,
com palavras do tempo do sonho, “com cantos dos xapiri” o estendendo “até os pés do
céu”, após “raízes do céu sustentadas pelo metal de Omama”, Kopenawa sentiu toda
extensão da cobiça de brancos, consumindo futuros, dos seus, de todos, de tudo. Em
tempo de lutas contra máquinas, políticas predatórias, governos sem interesse por
florestas e seus povos, rios, vegetais, animais, saberes da floresta, enquanto xamã com
sopro vital enunciou levar experiências vividas a outros povos, outras regiões e
continentes, línguas e interesses, em palavras diante incertezas previsíveis.
Sem xamãs, a floresta é frágil e não consegue ficar de pé sozinha. As águas
do mundo subterrâneo amolecem seu solo e ameaçam irromper e rasgá-lo.
Seu centro, firmado pelo peso das montanhas, é estável. Mas suas bordas
não param de balançar, sacudidas por vendavais. Se os seres da epidemia
proliferarem, os xamãs acabaram morrendo e ninguém mais poderá
impedir a chegada do caos. A floresta vai virar outra (Kopenawa, p. 492).
Nosso sopro torna-se curto. Se nosso sopro de vida se apagar, a floresta vai
ficar vazia e silenciosa. O céu, tão doente quanto nós por causa da fumaça
dos brancos, vai gemer e se rasgar. A engenhosidade deles com as
máquinas não vai torná-los capazes de segurar o céu e consolidar a
floresta. A fumaça do ouro deixou a floresta quase desabitada
(KOPENAWA, 2015, p. 501).
Sem pensarmos na floresta quase desabitada – “suas rotas passaram a dar o rumo
das epidemias” –, vazia e silenciosa ameaça de perdermos saberes e habilidades, visões
cósmicas, viveres comunitários e povos nativos reivindicando vida na floresta, como
políticas ambientais, histórias e memórias alheias a poderes autoritários.
REFERÊNCIAS
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