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RECHAÇO À IMIGRAÇÃO OU RECHAÇO

À POBREZA? CONSIDERAÇÕES SOBRE


A CRIANÇA MIGRANTE E REFUGIADA
A PARTIR DO FILME ADÚ16
Anna Paula Bagetti Zeifert
Schirley Kamile Paplowski

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os movimentos de migração ocorrem por diferentes motivos, em diferentes


tempos e percursos. Para alguns, para lazer; para outros, por necessidade. Nesse contexto
de sobrevivência, em que migrar ou buscar refúgio é parte imprescindível da busca ávida
pela vida, inserem-se pessoas, muitas já vulnerabilizadas por outros fatores, como gênero,
condição social, condição econômica e idade – com enfoque, sobretudo, à idade. A presente
investigação cuida de dois pontos dentro do tema das migrações. Um quanto ao rechaço
e desprezo suscitado em pessoas e nações que vêm a receber migrantes e refugiados, isto
é, acerca dos motivos pelos quais se rejeita outro ser humano extremamente necessitado.
O segundo ponto consiste em compreender como tais necessidades tomam dimensões
inimagináveis quando esses migrantes e refugiados são crianças (no sentido atribuído pela
Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, como toda pessoa com idade inferior a
18 anos).
Neste início de milênio, novos fluxos migratórios têm sido percorridos em
diferentes espaços. Alguns, no entanto, não são bem-vindos; pelo contrário, são fortemente
repudiados. Essa constatação tem sido observada especialmente no continente europeu,
que tem recebido apelos vindos de diferentes países, sobretudo de regiões fragilizadas em
termos de direitos, recursos econômicos e democracia. Considerando o impacto humano

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001.

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e as vidas em risco nesse cenário, em que tais apelos são rejeitados, a pesquisa se justifica
como mecanismo de compreensão das causas de rejeição e da tentativa de superá-las pela
sensibilização.
Os problemas orientadores são os seguintes: por quais motivos rejeita-se o
migrante? De quais vulnerabilidades estamos tratando a respeito de crianças em condição
de migração e refúgio? Como hipótese, consideramos a tese de Adela Cortina (2017, 2020),
para quem a rejeição não se explica exclusivamente pela condição de origem ou etnia, mas
pela pobreza. Embora o termo xenofobia e sua ideia central tenham explicado parte da
aversão ao estrangeiro, acreditamos, assim como Cortina, que essa aversão não se deve
exclusivamente a um fator de pertencimento, embora possa se somar a outros problemas.
A presente hipótese se apoia na possibilidade da rejeição se portar à condição
de pobreza em que o migrante se encontra (uma pobreza econômica, sim, mas
não exclusivamente financeira), isto é, a aporofobia. A criança, nesse contexto,
é hipervulnerabilizada. Isso porque sua idade e sua condição de pessoa em desenvolvimento
a tornam dependente de outrem para suprir muitas necessidades básicas, além de estar em
um estágio peculiar de desenvolvimento e mais suscetível a riscos. Os perigos incluem ser
violentada, explorada, afastada de sua família.
Os objetivos desta análise compreendem investigar, ainda que de forma breve, as
articulações de ordem social/moral na relação com migrantes e refugiados, que envolvem
seu desprezo e sua rejeição pelas pessoas naturais de determinado espaço/nação; além
disso, contribuir na divulgação dos estudos de Cortina e possibilitar, por esta forma, um
subsídio teórico na articulação de políticas públicas e relações sociais com pessoas em
condição de migração, sobretudo crianças, através de reflexão, sensibilização e empatia.
Para tanto, o método de abordagem é o hipotético-dedutivo, a partir dos dois
problemas de pesquisa mencionados, testados com as hipóteses, confirmadas ao
final. Acerca dos procedimentos técnicos de pesquisa, reúnem-se a forma de pesquisa
bibliográfica, de pesquisa documental, em fontes disponíveis em meios físicos e
eletrônicos, especialmente a produção audiovisual Adú (2020).

1 RECHAÇO E DESPREZO POR MIGRANTES E REFUGIADOS:


ANÁLISE A PARTIR DA VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

Quando se está diante de indivíduos sem Estado, destituídos de seus vínculos


jurídicos e imersos em um cenário que os identifica como estranhos e intrusos, há a
necessidade de, mais uma vez, voltar o olhar para a condição de ser humano, pois, mesmo
com o rompimento de todos os vínculos estatais, as normas morais ainda fazem dele um
sujeito de direitos e qualificam toda e qualquer reivindicação com vistas a um direito do
humano como humano. Referida situação se torna ainda mais relevante quando o que
motiva os deslocamentos dos sujeitos são cenários de violência, guerras e violações de
direitos que fazem com que a única possibilidade imediata de proteção seja o refúgio em
outro Estado.

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No entanto, desse deslocamento, nasce outra questão que deve ser analisada e se
expressa pela possibilidade, ou não, de aceitação do estranho como um igual, estranho
que se depara, muitas vezes, com um olhar de desprezo e violento do seu acolhedor. As
noções tradicionais de direitos humanos, dignidade e tolerância que sustentam as teses
de acolhimento, respeito e proteção aparecem fragilizadas quando o que está em jogo é a
preservação das identidades individuais, culturais e sociais de determinada comunidade
diante da presença do outro, estranho, estrangeiro, migrante e refugiado.
Nesse contexto, emerge a necessidade de pensar a estrutura de uma ordem política
capaz de refletir os interesses do universal ou da pluralidade humana. “A passagem da
caridade à justiça começa nesse momento, na necessidade de comparar outrem com o
terceiro e de refletir sobre a igualdade entre as pessoas” (CHALIER, 1996, p. 135). É
nesse instante, em que o outro se responsabiliza pelos outros, considerando-os iguais,
que floresce a noção de agir de acordo com a “sabedoria do amor”. Seria a primeira
manifestação em prol de uma ordem política justa, porém tal noção pressupõe-se como
diferente da trabalhada pelos filósofos contratualistas. Está orientada pela ideia do “viver
em um mundo de cidadãos” e pela noção de fraternidade. A exigência de uma fraternidade

[...] deriva da “minha responsabilidade perante um rosto que me olha como


absolutamente estranho” (TI, p. 189). O que constitui o facto original da
fraternidade é que cada homem, próximo ou longínquo, possa sair do
anonimato e tornar-se rosto para mim. Porque este frente a frente, pela
responsabilidade que ele não cessa de avivar, dá o sentido das minhas relações
com todos os homens. “É necessário que a sociedade seja uma comunidade
fraterna para estar à medida da rectidão – da proximidade por excelência –
na qual o rosto se apresenta ao meu acolhimento” (TI, p. 190). Um Estado
que proíbe essa fraternidade, ou a torna impossível, perde, portanto, toda a
legitimidade. Um Estado que dispensa os rostos e se deixa dominar pelas
suas próprias necessidades, como se o seu centro de gravidade repousasse
em si próprio, atesta da violência e da sua desumanidade; é com razão que os
homens lutam contra ele (CHALIER, 1996, p. 141).

A paz ética pensada por Levinas (apud CHALIER, 1996, p. 169-170) impõe não o
acomodar-se, mas o agir a partir de uma responsabilidade infinita pelo outro, denominada
pelo autor substituição, ilação indispensável para um projeto duradouro de paz. Há nesse
momento uma ruptura com a tradição filosófica com relação à existência humana,
imposta pela nova ética, a ética da alteridade. “Esta ética começa a partir do momento em
que ‘a-inquietude-pela-morte-do-outro-homem’, prevalece sobre a preocupação pela sua
própria sorte”. Ao manifestar-se sobre a questão dos conflitos bélicos entre Estados e suas
implicações para o convívio dos seres humanos,

Levinas rejeita a concepção de paz como armistício, como trama de arranjos


que propõe limites no âmbito das relações entre Estados, procurando, por um
lado, manter estratégias de tensão e, por outro, mostrar aparência civilizada
encobridora da violência submersa; defende a tese de que a paz não é o
oposto da guerra, mas outra da guerra, de que a não-violência é anterior
e mais profunda que a violência e, portanto, esta, não sendo primeira na
subjetividade, não incuba necessariamente as relações inter-humanas e pode
abrir perspectiva de sociabilidade e de história (PIVATTO, 2008, p. 109).

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Nesse contexto, a paz pensada por Levinas (apud CHALIER, 1996, p. 184) passa
pelo âmbito do Estado, mas, para além disso, configura-se como uma paz no interior de
cada indivíduo, visto que a paz advinda por meio dos poderes estatais pode representar
uma estabilidade insuficiente, por isso é necessária a presença de instituições justas que
efetivamente defendam os direitos do homem. Isso evidencia a verdadeira justiça, na
qual o eu adquire responsabilidade pelo outro, superando qualquer desejo de preservação
individual, no momento em que o Estado — ou melhor, o representante estatal —
responsabiliza-se por seus cidadãos e realmente deseja o bem de todos, e não somente
uma paz artificial motivada por interesses políticos. Assim, a construção de instituições
justas possibilitaria a permanência dos indivíduos em seus próprios Estados, evitando
deslocamentos e busca por refúgio em Estados supostamente mais democráticos e
estáveis, pois “quando a interioridade de cada um foge ao imperativo de responsabilidade
por outrem, até as instituições justas estão em perigo”.
A paz estaria para além da totalidade e da história. A “[...] possibilidade da paz,
portanto, está intrinsecamente ligada a uma nova concepção de subjetividade marcada
mais profundamente pela ética do que pela outorga [...]” (PIVATTO, 2008, p. 119). Por mais
que Levinas exponha sua tendência em acreditar naquilo que denomina uma possibilidade
para a guerra com vistas à paz, qual seja, a “escatologia da paz messiânica”, ele também
deixa dúvidas se ela seria uma alternativa utópica aceitável para um projeto de paz futuro.
Pensa-se, no entanto, que a questão da paz e sua relação com o respeito aos
direitos humanos encontrariam guarida quando analisada sob a ótica de Levinas (1997),
no momento em que o autor apresenta sua proposta de uma justiça que passaria pela ética
das instituições, mas, mais ainda, teria seu início numa nova cultura de paz que permeia
todas as sociedades e habitaria o humano.
Assim a figura do outro é presença constante nos debates que cercam a noção
de direitos humanos. A temática é recorrente em razão do maciço e constante fluxo
migratório que impõe uma nova realidade e altera a estabilidade interna dos Estados.
A chegada de migrantes e refugiados de diversos contextos, sujeitos que se apresentam
como rostos que vêm em busca de acolhimento e oportunidades, convocam uma diferente
forma de olhar, uma diferente forma de estar (ser) em convivência com outros povos,
outras realidades de uma profética concretude nos encontramos diante da experiência da
fragilidade mais frágil. Essa concretude nos convoca ao reconhecimento, ao acolhimento
do outro em sua condição mais básica e frágil, sua condição de ser humano.
O pensamento de Levinas (2003) aparece como esse espaço de onde o outro
surge como alteridade materialmente ética, de onde a convocação parte. No entanto,
o reconhecimento da emergência do outro não poderá se dar como empatia adotada
conscienciosamente, mas apenas como um responsabilizar-se involuntário:

na responsabilidade que responde da liberdade do outro, na assombrosa


fraternidade humana na que a fraternidade por si mesma – pensada com toda
sóbria frieza cainesca – não explicaria ainda a responsabilidade que proclama
entre seres separados. A liberdade do outro jamais poderia começar na

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minha, isto é, estabelecer-se no mesmo presente, ser contemporânea, ser-me


representável. A responsabilidade para com o outro não pode ter começado
em meu compromisso, em minha decisão (LEVINAS, 2003, p. 54).

O outro é tão livre quanto o eu, e sua liberdade não começa na minha, isto é,
minha responsabilidade para com o outro, não começa como uma decisão consciente, e
a minha liberdade não é anterior à do outro; não no sentido de aprisionamento, mas no
sentido de responsabilidade que não habita o mesmo presente, o que me torna refém do
outro em minha responsabilidade irrepresentável para com ele. O primado da dominação
do outro pelo eu ainda é um espectro da tradição filosófica em que Levinas levanta sua
crítica, sendo que tal responsabilidade para com o outro é “uma dívida contraída antes de
toda liberdade, antes de toda consciência, antes de todo presente” (LEVINAS, 2003, p.
56). É uma anterioridade que pode ser compreendida pelo trecho a seguir:

O para-o-outro é evento do sujeito transcendente, que tem no outro o seu


libertador e a sua fonte de significação; ser para-o-outro é um modo de ser
que revela a abertura ao infinito de maneira pessoal-responsável, porque é
inteiramente obsesso pelo outro. [...] O para-o-outro não é senão o modo de ser
existente, o para-o-outro é toda materialidade da pessoa humana, é o sujeito
frente a frente à realidade do outro, como um outro, como uma totalidade.
[...] O para-o-outro é completa abertura ao mistério do outro como Totalidade
Outro. Somente nesse contexto de abertura ao mistério do outro, do outro
que me liberta, torna-se possível uma relação social; somente nesse contexto
é possível entender a relação ética como anterioridade metafísica, pois ela é
a primeira relação social e o primeiro mandamento a ser observado (MELO,
2003, p. 83-84).

Porém, estamos diante de um enorme desafio, em razão da retomada de ondas


nacionalistas autoritárias que fomentam uma reação negativa com relação às migrações,
mas sustentam a ideia de abertura econômica das fronteiras. Como destaca Brand (2021),
uma orientação contraditória parte de um liberalismo progressista/autoritário que tem na
sua essência a discriminação racial.

2 ADÚ(S), ALIKA(S) E MASSAR(S): CENAS AMARGAS DE


UMA REALIDADE CRUEL

Estaríamos vivendo sob um fracasso coletivo? Um fracasso de dimensões globais


que não efetiva um mínimo de dignidade aos mais vulneráveis, que não promove a
proteção de meninos e meninas, que não se constrange por sua triste condição, sem notar
e indignar-se pela sua presença nos espaços de dor, tampouco a chorar por sua perda, por
sua morte? Essas são algumas indagações promovidas pelo longa-metragem de Salvador
Calvo, Adú, um drama espanhol lançado em 2020. O filme retrata três histórias diferentes
que ocorrem simultaneamente, sem influência direta uma sobre a outra.
O desenvolvimento das três histórias se ampara em dramas próprios que envolvem
a região entre a Espanha e o continente africano. Na primeira, um refugiado político do

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Congo (Tatou) busca ingressar no país espanhol ao tentar atravessar a cerca que reveste
a cidade de Melilla, contudo o homem fica preso entre os arames da cerca e acaba sendo
morto por um policial da Guarda Civil, cuja consciência do visto atormenta e culpa outro
policial, Mateo. O filme se inicia, justamente, na fronteira entre a União Europeia e o
Marrocos, na cidade de Melilla. Já no seu início, contém cenas angustiantes da proporção
dos riscos que os imigrantes estão dispostos a correr, como ficar preso na cerca, em uma
tentativa desesperadora de atravessar a fronteira para viver, ou melhor, de sobreviver.
Nos primeiros minutos, o drama de Tatou explicita o fim de seu direito humano mais
elementar (a vida), no escape de sangue negro que cobre o espaço em que seu corpo
despenca (ADÚ, 2020).
A segunda história se desenvolve entre um espanhol ambientalista (Gonzalo) e
sua filha (Sandra). Ele trabalha em uma reserva de elefantes e experiencia as dificuldades
de proteger os animais e seu habitat natural, ao mesmo tempo que despreza as pessoas
com as quais convive. Já a terceira dessas histórias é a que dá nome ao filme, a respeito
da realidade do menino Adú; em um primeiro momento, com sua família (em uma aldeia
situada em Mbouma, no país africano de Camarões), e depois na jornada dolorosa pela
sobrevivência, apesar da pouca idade, na companhia do jovem Massar (ADÚ, 2020;
FARINHA, 2020; FERNÁNDEZ-SANTOS, 2020).
Três narrações que objetivam conformar um doloroso retrato e seus percursos, um
cruel mapa de idas e vindas sobre um continente e uma população mundial condenados ao
indizível, face à desigualdade, à pobreza, à ganância e à miséria humana (FERNÁNDEZ-
SANTOS, 2020). Uma jornada cruel provocada por perversidades que se realizam em
ambos os cenários: daquele nos quais as pessoas buscam sair e naquele intentam ingressar,
mas são duramente rechaçados, quando não extirpados do plano da existência. Cenas de
desespero e busca enlouquecida pelo ingresso na Espanha são detalhes da indignação
e do incômodo que o filme provoca, a par de toda a angústia ao acompanhar a jornada
sofrida de Adú. Dessas três histórias paralelas, é sobre a última que a presente pesquisa
se concentra.
A realidade do menino Adú é — também para a crítica — a mais difícil delas.
O longa-metragem “[...] se detiene ante una tragedia humana de tales proporciones que
cuesta digerir sus 90 minutos” (FERNÁNDEZ-SANTOS, 2020). E custa fazê-lo, porque
a apresentação dos fatos não provém da imaginação humana e sua arte inventiva, mas de
situações reais — e, infelizmente, múltiplas. São meninas e meninos perdidos nas ruas
e no mar; enganados por exploradores; invisíveis aos órgãos de proteção; escondidos no
trem de pouso dos aviões; enfrentando absurdamente sozinhos o medo, a fome, a doença,
a dor e a morte; explorados sexualmente em troca de alimento. A conexão entre as três
histórias paralelas no filme concentra-se no aspecto geográfico, porque exploram as
proximidades da Espanha e do continente africano, bem como na crise dos refugiados. Adela
Cortina (2020, p. 17) observa como essa crise recrudesceu na Europa depois de 2007, diante de
questões políticas, conflito bélico e da pobreza. São pessoas desesperadas que fogem de suas
casas, quando as possuem. “Suas histórias não são fictícias, mas contundentemente reais”.

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Na ficção que escancara a realidade, Adú tem 6 anos e mora em uma aldeia de
Mbouma, em Camarões, com a mãe e a irmã (de aproximadamente 10 anos de idade). Nas
primeiras cenas, o menino e a irmã (Alika) brincam na Reserva Natural de Dja, quando
presenciam a morte de um elefante da reserva e caçadores perto do animal. É desse
testemunho que, possivelmente, originou a invasão da casa da família, com o objetivo de
eliminar as crianças. Em uma noite, a casa é repentinamente invadida por homens que
acabam matando a mãe delas, que, antes de sofrer o desfecho, consegue alertar os filhos para
fugirem. Neste momento, inicia uma jornada desesperadora para as crianças (ADÚ, 2020).
Adú e Ali buscam chegar até uma familiar, para entrar em contato com o pai. O
percurso até ela já demonstra as dificuldades próprias de deslocamento, condição física
e capacidade, contextos que apresentam de diferentes formas a dor de continuar vivendo
e com esperança. Destemida, Ali é uma criança que se torna responsável por si e pelo
irmão, a principal e única referência de Adú.
Quando chegam até a familiar, são direcionados a um rapaz, pago pelo pai das
crianças, para que as leve até Marrocos. Todavia, essa pessoa coloca Adú e Alika em um
caminho sem alternativa: viajar não por terra, mas escondidos no trem de pouso de um
avião. Sem oportunidade de escolha, é o que fazem. Novamente, em uma das cenas mais
fortes da produção, Adú experimenta a dor da morte. Para proteger o irmão, Alika preza
por aquecê-lo, ao passo que ela morre por hipotermia. No momento em que o avião se
prepara para aterrissar, seu corpo, já sem vida, é lançado do alto dos céus (ADÚ, 2020).
Perdido e sozinho, Adú aterrissa em Dacar, no Senegal. Logo, aquele corpo, negro
e pobre, é percebido por fiscais. É percebido por ser “alguém” não autorizado a circular na
área restrita, não pelo fato de ser criança, de ser frágil e vulnerável; uma criança confusa
e tomada pelo abandono. O que se apresenta diante dos olhos de fiscais não tem nada de
peculiar ou apto a gerar comoção. A isso, a interpretação que promovemos pode explicar:
talvez pela naturalização daquela circunstância, a não gerar comoção ou indignação;
talvez pelo fato de aquela criança ser uma entre as desprezadas, porque pobre, porque
perturbadora da ordem em que se insere ou na qual busca se inserir para autopreservar-se
(CORTINA, 2017, 2020).
Adú é invisível diante de todos os olhos como criança. Sua condição de pessoa
extremamente vulnerável e com necessidades próprias da idade não reclama a atuação de
entidades especializadas no cuidado da criança, com exceção de um momento ou outro;
quando o fazem, tratam-no como caso de polícia. Aparenta inexistir lugar para a infância
neste mundo, como ocorria até por volta do século XII, conforme observava Philippe
Ariès (2014). Ou, por outro lado, é possível dizer que inexiste lugar para a infância e a
adolescência pobres (ZEIFERT; PAPLOWSKI, 2020), salvo na condição de objetos de
repressão, controle e disciplina.
Sua apreensão na pista de pouso é antecedida pelo desmaio do menino, que é levado
para um aparente departamento policial. Lá estando, conhece um adolescente, Massar
(que aparenta ter saído da Somália), iniciando uma jornada compartilhada entre ambos,
na qual Massar age como se fosse irmão mais velho do menino. Juntos, empreendem fuga

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e desenvolvem vínculos de afeto após marcas de dor e perda. Em cada dia, estão em um
lugar diverso, buscando sobreviver de acordo com as circunstâncias, submetendo-se ao
trabalho infantil e, inclusive, à exploração sexual (como é o caso de Massar), em troca
de poder calar a fome que atinge ambos (ADÚ, 2020). A realidade constante da violência
sexual com a contraprestação para assegurar a sobrevivência se insere no rol das violações
de direitos humanos a que crianças e adolescentes se deparam, prejudicando a integridade
física e mental, inclusive em longo prazo.
O caminho de Adú está repleto de ansiedade sobrevivencialista, perigos e
separações, como de tantas outras crianças em igual situação (MARTINEZ, 2020). Já
consciente de que as poucas pessoas que ele tem, ama e confia acabam falecendo, Adú
indaga se Massar vai morrer e pede ao jovem para prometer que não faleceria, como se
isso dependesse de sua vontade; para Adú, Massar não é o mesmo que aos olhos dos
demais, que veem, em ambos, “vidas precárias, desperdiçadas, nuas, sem papéis, [...]
como refugos, como sobras da globalização” (LUCAS, 2016, p. 98).
Adú e Massar chegam a uma espécie de acampamento, ao norte de Marrocos.
Nesse momento, a debilidade de Massar é enfatizada. Doente, o jovem se recusa a ir a
um hospital, sob a justificativa de que não tem documentos. Nessa passagem, a produção
expõe a proporção da vulnerabilidade diante da ausência de coisas elementares para a
consideração de cidadania, como possuir documentos pessoais de identificação e registro.
A invisibilidade de crianças e adolescentes como Adú e Massar não se limita, portanto,
a entidades de proteção, fiscais, agentes públicos e pessoas em geral: eles inexistem para
o sistema, salvo quando sua presença gera incômodo na paisagem, quando sua chegada a
determinado território não traz recursos, mas problemas (CORTINA, 2020).
O episódio de não portar documentos implica graves consequências e pode revelar a
existência de outra situação, igualmente complexa, que é a apatridia. Considera-se apátrida
a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a legislação, seu nacional
(consoante a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas). Em estudo desenvolvido por
Estela Cristina Vieira de Siqueira e Amanda Eiras Testi (2019), a respeito de crianças em
situação de refúgio e apatridia, verifica-se a dupla vulnerabilidade a que são submetidas
as pessoas nessa circunstância, a compreender uma verdadeira lacuna normativa, a qual
afeta com maior intensidade, justamente, crianças.
Gera dupla vulnerabilidade, porque soma os riscos próprios da idade e do período
em desenvolvimento, com a ausência de proteção, os abusos e abalos suscetíveis do
deslocamento. O apátrida se traduz em alguém que vê a si em uma lacuna, na qual inexiste
vínculos formais e materiais com um Estado apto a exigir dele a proteção de seus direitos.
“O fato de não portar documentos exclui essas crianças do acesso a direitos básicos,
como o acesso à saúde e à educação, sendo que tais garantias são fundamentais para o
desenvolvimento pleno de todo ser humano [...]” (SIQUEIRA; TESTI, 2019, p. 240). Nesse
passo, não ter vínculo com o Estado e ser rejeitado por outro reforçam a desconsideração
da pessoa — e, neste caso, da criança — como sujeitos de direitos, como portador de
direitos humanos por algo que lhe é inerente: a condição de pessoa humana.

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Como se pode vislumbrar, um indivíduo desprovido de documentação que


comprove sua identidade, não é visto como um sujeito de direitos, logo, quando
seus Direitos Humanos são violados, não lhe resta nada a não ser o silêncio
advindo da sua inserção em uma condição de vulnerabilidade (SIQUEIRA;
TESTI, 2019, p. 236).

É possível falar de uma hipervulnerabilidade da criança, quando presentes


múltiplos fatores que geram vulnerabilidade, ou seja, sua intersecção (como gênero, raça/
etnia e a condição de pobreza, que se somam ao fator etário).
A “terra prometida” de Melilla passa a ser o próximo destino de esperança a Adú e
Massar, como significa para muitos africanos. A tentativa de ingresso não seguiu a lógica
de atravessar a cerca, mas por meio do mar, ainda que inúmeros os riscos, sobretudo
diante do frio e das condições físicas próprias da pessoa humana. Nesta tentativa, Adú e
Massar se separam no mar, já que a corda que prendia o pneu de um ao outro arrebenta.
Não fosse o tempo certo para a Guarda Civil encontrá-los, a vida de ambos estaria findada
ali. Salvador Calvo optou, neste caso, por um desfecho diferente. Adú acaba encaminhado
ao chamado Centro de Menores de Melilla; Massar, que deveria ter a “mesma sorte” é
levado por agentes públicos forçadamente a um local não explicitamente demonstrado
(ADÚ, 2020).
Neste momento, Adú e Massar sofrem uma dolorosa separação; desta vez, causada
justamente por quem deveria protegê-los, por quem não se comove, novamente, às
suas desesperadas lágrimas. Com o objetivo de sensibilizar e fazer conhecer exemplos
da realidade cruel sobre a qual milhões de pessoas se encontram e veem, como única
alternativa, fugir, o filme, ao mesmo tempo, exibe “[...] como o privilégio branco e
europeu pode ser cego para com os problemas muito maiores de que essas outras pessoas
sofrem. Sobretudo quando são pessoas que estão à porta desses países, a implorarem
para entrar e para terem uma oportunidade na vida” (FARINHA, 2020). Quando essas
pessoas são crianças, as adversidades enfrentadas são ainda maiores, dada sua condição
de vulnerável. No caso de crianças pobres, o rótulo de “sobrante” incide desde muito
pequenas, acompanhada de outros adjetivos, como perigosa, problema, delinquente,
indesejável (EYNG; CARDOSO, 2020).

3 VULNERABILIDADES QUE ATINGEM CRIANÇAS EM


DESLOCAMENTOS FORÇADOS

A mobilidade humana e seus fluxos migratórios são tão antigos quanto a


humanidade. Estão presentes em um dos textos mais antigos de que se tem conhecimento,
a Bíblia, a exemplo da busca pela terra prometida. As razões desse deslocamento não são
lazer ou turismo, mas assegurar a salvação, um lugar melhor para viver: “Fugir da guerra,
fome, violências, estabelecer novos lugares de poder, conquistar mais riqueza. Vivemos
esses sonhos da terra prometida até os dias atuais” (SANTOS; LUCAS, 2016, p. 13).
Se tais fluxos tiveram diferentes motivações, hoje elas também são várias, todavia,
em grande medida, revelam uma intensidade de tragédia não antes constatada, dada a

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miséria, a violência e a intolerância que afligem grupos humanos no tempo presente


(SANTOS; LUCAS, 2016). Ao lado dessa insuficiência do poder público, quando não
ele é o agente violador da liberdade e da dignidade humana, há outros obstáculos que
envolvem o “Estado de destino”, como sua soberania, seus limites e a relação de identidade
nacional. “O nacional afirma sua identidade, sua presença, numa relação ambivalente
com o seu oposto, o estranho, o estrangeiro. É nesse sentido [...] que a cidadania nacional
une separando, inclui necessariamente excluindo.” (SANTOS; LUCAS, 2016, p. 20).
A definição de quem é vinculado a um determinado Estado e conforma seu povo implicará,
por consequência, dizer quem dele não faz parte, sobretudo se esse outro desafia seus
limites territoriais, de segurança, de recursos.
Santos e Lucas (2016, p. 21) argumentam que “todos conhecemos um pouco
do outro e as percepções sobre a sua diferença fundem um novo tipo de expectativa.”
No caso de este outro ser pobre, as expectativas sobre ele não são animadoras e são
generalizadas: despertam o sentimento de aversão, de desprezo, temor; medo de que vão
trazer problemas e utilizar recursos, sem qualquer contraprestação à sociedade da qual se
beneficiarão. Espera-se que ele, o outro, não contribua com o PIB daquele país, além de
aumentar os custos da saúde pública, tomar o emprego dos nacionais e ser um potencial
terrorista (CORTINA, 2020).
Em um momento em que os deslocamentos continuam sendo frequentes,
enfaticamente os deslocamentos forçados, esses sentimentos (movidos por medo e
desprezo ao pobre e à sua condição) são desafiadores. Circunstâncias de migração, refúgio
e apatridia se tornam constantes. A migração compreende tanto o imigrante quanto o
emigrante — o primeiro é aquele que chega a um Estado com o objetivo de nele residir,
ao passo que o segundo é o que o deixa com o propósito de se estabelecer em outro.
O refúgio, por seu turno e em síntese, compreende o movimento devido a fundado temor,
seja por motivos de perseguição com base na opinião política, crença, nacionalidade,
entre outros. O termo “refugiado(a)” também se aplica às pessoas que fugiram de seus
países de origem “[...] porque sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela
violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação massiva dos
direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem
pública” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2014, p. 18).
A apatridia, consoante antes abordado, é a ausência de vínculos de nacionalidade com
qualquer Estado.
Em 2018, mais de 70 milhões de pessoas abandonaram suas casas, seus vínculos
com o espaço em que viviam, na busca de uma vida mais digna. Metade dessas pessoas
era crianças (ADÚ, 2020). Na análise empreendida por Siqueira e Testi (2019), com base
em dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), igualmente se estima que
mais da metade do número total de 65,6 milhões de refugiados no mundo seja pessoas
com menos de 18 anos de idade. Em termos de apátridas, estima-se que sejam 10 milhões,
metade também são crianças.

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Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos

Essa análise não pretende perquirir legislações ou omissões normativas no cuidado


e proteção da criança em condição de migração, refúgio e apatridia, embora cientes de
que os documentos sobre o tema são, em grande medida, de ordem internacional, mas
poucos os que interseccionam a condição da idade e suas vulnerabilidades com o refúgio
e a apatridia infantil (SIQUEIRA; TESTI, 2019).
Quando o tema é sobre crianças em condição de migração e refúgio —
na acepção de criança conforme a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989)
—, as vulnerabilidades são flagrantes. A exclusão, em si, configura uma forma de
vulnerabilidade, que despreza a dignidade humana. Siqueira e Testi (2019) destacam que
a vida humana está enraizada na dignidade, tanto que o próprio texto da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948) assentou, em seu art. I, “Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e
devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (ONU, 2009, p. 4).
A gênese da dignidade no texto da Declaração encontra suas bases em Immanuel
Kant, para o qual cada pessoa é um fim em si mesma, devendo ser tratada como tal,
não como meio (LAFER, 2008). O surgimento da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, inclusive, tem uma relação íntima com as violações de direitos decorrentes da
soberania do Estado e da prática da guerra, forçando um enorme contingente populacional
ao status de migrantes e refugiados.
A Declaração Universal (1948) modificou a lógica implementada com o Tratado
da Paz de Westfália, assinado trezentos anos antes. Este último traçou liberdades e termos
voltados aos próprios Estados soberanos, sem versar sobre as pessoas que estavam sob
sua jurisdição. A Declaração Universal, por seu turno, dirigiu-se justamente às pessoas e
aos povos, independentemente de onde estivessem e das circunstâncias do Estado. Tanto
um quanto o outro resultaram em disposições após conflitos de guerra, seja a Guerra dos
Trinta Anos (1618-1648), seja a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) (LAFER, 2008).
Logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, foi formada a Sociedade ou Liga
das Nações de 1919, considerada a primeira organização de alcance mundial. No ambiente
destrutivo e cruel causado pela Segunda Guerra Mundial e a insuficiência das disposições
anteriores — inclusive da Sociedade das Nações para manter a paz —, a Carta da ONU
é desdobrada em outro documento: a Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948. “A Declaração é o primeiro texto de alcance internacional que trata de maneira
abrangente da importância dos direitos humanos” (LAFER, 2008, p. 298).
O que leva à criação da Declaração Universal, segundo Lafer (2008), é justamente
a sensibilidade em relação às violações de direitos. No período, assim como houve práticas
cruéis, também foram articuladas mobilizações; as bases materiais para o surgimento do
documento. Uma delas ocorreu no século XIX, em prol da dignidade humana para a
proibição do tráfico de pessoas para fins de escravidão. Também cabe referência ao início
do direito internacional humanitário, pela criação da Cruz Vermelha. “A fonte material
deste direito – o do jus in bello (o direito dos conflitos armados) – está ligada à percepção
e à consciência do que sofrem os seres humanos nas guerras” (LAFER, 2008, p. 301).

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Janaína Machado Sturza (Organizadora)

No caldo de eventos que o século XX abarcou, o período presenciou as duas


grandes guerras, momento em que houve “[...] uma contestação à democracia, ao estado
de direito e à relevância dos direitos humanos” (LAFER, 2008, p. 302), posto que, sob
o abrigo da lei, da soberania e do Estado, “[...] a União Soviética e a Alemanha nazista
inauguraram o cancelamento em massa da nacionalidade pelo arbítrio discricionário de
motivações político-ideológicas”.
O desdobramento disso foi um contingente enorme de pessoas na condição de
refugiadas ou apátridas (displaced people), as quais se viram coisificadas, expelidas,
eliminadas da ótica e do conceito de “ser humano”. O tratamento decorrente foi de intenso
sofrimento, de morte.

[...] Acabaram destituídos dos benefícios do princípio da legalidade por


falta de vínculo efetivo com qualquer ordem jurídica nacional. Tornaram-se
indesejáveis erga omnes (em relação a todos) e desempossados da condição
de sujeitos de direitos, privados de valia e, por isso, no limite, supérfluos e
descartáveis (LAFER, 2008, p. 302).

A experiência humana coletada em um curto período demonstrou que, para


preservar a dignidade humana, era necessário mais do que assegurar direito dentro do
âmbito de cada país. O “direito a ter direitos” de Hannah Arendt (1989) dependia de uma
tutela internacional, era o que se mostrava aos olhos da humanidade. Tais circunstâncias
foram a base dos motivos para o surgimento da Declaração Universal de 1948, os quais
explicam, também, “[...] como a plena internacionalização dos direitos humanos pode ser
qualificada como uma relação jurídica ao problema do mal” (LAFER, 2008, p. 303).
A lógica da Declaração “[...] não é a de um legislador nacional ou internacional.
É a das vítimas que padecem a violação dos seus direitos humanos [...]” (LAFER, 2008,
p. 316). Os destinatários das disposições da Declaração são todas as pessoas integrantes
da família humana, bem como povos e Estados. Os direitos são compreendidos como
interdependentes e indivisíveis, de modo que não há que se falar em respeito a uma
parcela dos direitos humanos. No entanto, há pessoas para as quais esse arcabouço teórico,
normativo e principiológico mostra-se distante, insuficiente, abstrato. Há edificações que
impedem a hospitalidade e a solidariedade defendidas nos textos de declarações sobre
direitos humanos, como muros, cercas e fronteiras (SANTOS; LUCAS, 2016).
Uma das vulnerabilidades causadas pela situação de refúgio e de apatridia às
crianças está diretamente vinculada à ideia de dignidade, consistente nos vínculos, no
sentimento de identidade, de pertença a determinado local, suas práticas de origem,
sua língua, cultura, seus hábitos, suas memórias, seus afetos. Os aspectos sentimental
e emocional, portanto, sofrem abalos e prejuízos pela condição de migração, refúgio
e apatridia, a impactar no desenvolvimento dessa criança em curto e longo prazo. São
memórias que reúnem, a depender da motivação para o deslocamento, sofrimento e trauma.
No caso da apatridia, essas crianças não estão apenas privadas de um status
jurídico, de um vínculo jurídico-político de nacionalidade, “mas do próprio direito de
serem crianças – brincar, de se sentirem seguras, de terem acesso aos mais básicos dos
direitos, como a educação” (SIQUEIRA; TESTI, 2019, p. 226).

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Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos

Os riscos a que essas crianças estão expostas foram em boa parte destacados na
produção de Adú, por meio das separações, da violência, da fome, do risco constante à
morte, de inúmeras formas, além dos perigos de tráfico de pessoas para a exploração
sexual, dos abusos sexuais, do recrutamento para o tráfico de drogas e para os conflitos
armados. Imersas em uma realidade cruel que negligencia os direitos mais básicos da
pessoa humana (os direitos humanos), são milhões de crianças alheias à efetivação de
direitos como “[...] saúde, educação, o direito ao seu nome, sem ter como provar sua
identidade ou saber sua idade, além de estarem mais vulneráveis a violações de Direitos
Humanos” (SIQUEIRA; TESTI, 2019, p. 236).
A exploração da mão de obra infantil também se insere no rol das vulnerabilidades
e violações comuns a que crianças em condição de pobreza enfrentam, o que inclui as
crianças em refúgio, inclusive quando acompanhadas das famílias. A América Latina
tem exemplos sobre o tema, como a exploração de bolivianos na indústria da moda.
Considerando as condições de vida na Bolívia, um dos países latino-americanos mais
pobres, o desejo de sair do país para viver sob condições melhores torna-se um ponto fácil
para aliciamento de mão de obra barata, que se converte em escravidão contemporânea e
impõe sua exploração inclusive sobre as crianças (SIQUEIRA; TESTI, 2019).
Crianças são pessoas com necessidades específicas da idade e do desenvolvimento.
Em condição de migração e refúgio, se desacompanhadas ou em famílias monoparentais,
encontram-se em maior vulnerabilidade quando comparadas àquelas que estão sob a
proteção de ambos os genitores, observa Martuscelli (2017), para quem a condição de
meninas refugiadas igualmente demanda observação, dadas as necessidades específicas
pelo gênero e os riscos a que são submetidas a depender da região, como escravidão
sexual e mutilação genital (fatores que, muitas vezes, motivam o deslocamento).
Siqueira e Testi (2019, p. 230) são enfáticas ao afirmar que o grupo mais vulnerável
nesse contexto é o conformado por crianças refugiadas e apátridas: “[...] Há indivíduos que
permanecem até 20 anos fora de seus lugares de origem, o que significa que há crianças
que jamais vivenciaram experiências além daquelas da guerra. Há crianças que, apartadas
de sua origem, não possuem sequer um lugar para chamar de lar”. O sofrimento dessa
população, que reúne negligência, exploração, violência, crueldade e opressão, exige uma
sensibilização global sobre o assunto, tanto mais a considerar que atualmente há múltiplos
movimentos forçados, em diferentes espaços e regiões no mundo.
Desenvolver um rol de vulnerabilidades não se propõe, exatamente, a uma tarefa
adequada, tendo em vista que cada criança tem relações sociais, familiares e pessoais
próprias, bem como uma história de vida peculiar que demandou o deslocamento. Isso
exige, em verdade, que saibamos desta realidade e que não nos conformemos com ela;
que sejamos acolhedores, não aporófobos; que reconheçamos que uma família humana,
como estampado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não é composta apenas
por pessoas que compartilham dos mesmos hábitos e da mesma condição econômica e de
nacionalidade. Uma família humana demanda empatia e acolhimento, sobretudo aos mais
vulneráveis, na ampla acepção do termo, com um cuidado particular às necessidades mais
urgentes de crianças e adolescentes.

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Janaína Machado Sturza (Organizadora)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta breve e limitada análise objetivou investigar as articulações na relação com


migrantes e refugiados, que envolvem o tratamento de desprezo e rejeição pelas pessoas
naturais de determinado espaço em face daqueles que se veem obrigados a se deslocar.
Além disso, contribuir na divulgação dos estudos de Adela Cortina e possibilitar, por esta
forma, um subsídio teórico na articulação de políticas públicas e relações sociais com
pessoas em condição de migração, sobretudo crianças, através da reflexão, sensibilização
e empatia.
O recurso para a sensibilização sobre o tema é amparado no longa-metragem Adú.
Uma infância castigada pelo medo, pela fome, pela ausência de vínculos familiares, pela
ausência de alguém sobre quem o menino pôde confiar, inclusive de que não o deixaria
(como ocorreu com a irmã e mãe, ambas mortas); sem qualquer responsável que pudesse
garantir o mínimo de segurança de que uma criança precisa, sobretudo porque este mundo
tem sido cruel com a infância e a adolescência, particularmente em algumas regiões,
nesta nova década. Adú é um entre tantos, cuja história foi visibilizada pela ficção, a
demonstrar uma perversa realidade.
O contexto em que o filme se passa não encerra o plano dos fatos sobre si, isto
é, não significa que os deslocamentos forçados estão presentes apenas nos continentes
africano e europeu, separados por cercas em Melilla. O fenômeno ocorre também em
outras regiões, inclusive na América Latina. Assim, embora a produção não seja específica
sobre o Estado brasileiro, importa também considerar que somos todos integrantes de
uma família, a família humana. É fundamental pensar em laços de cooperação, empatia,
solidariedade e afeto, porquanto, no mais das vezes, a ajuda necessária para que pessoas
possam viver sob condições mais dignas provém de esforços humanitários internacionais.
As questões que orientaram a investigação foram: por quais motivos se rejeita o
migrante? De quais vulnerabilidades estamos tratando a respeito de crianças em condição
de migração e refúgio? Em sede de considerações finais, reafirmamos a tese de Adela
Cortina (2017, 2020), para quem a rejeição não se explica exclusivamente pela condição
de origem ou etnia, mas pela pobreza, o que não significa negar a existência da xenofobia,
mas aderir ao argumento de que há alguns males que estão na raiz de outros.
A criança, nesse contexto, é hipervulnerabilizada. Somado ao fato de que ela
perpassa por um estágio peculiar de desenvolvimento e com necessidades próprias
decorrentes da idade, são muitos os riscos que se apresentam, principalmente quando
desacompanhada ou sem ambos os genitores. O medo, a dor, a fome, a violência, a
exploração, a negligência são apenas exemplos. Em outro aspecto, há uma carga na saúde
mental, muitas vezes vinculada com os motivos que ensejaram o deslocamento, isto é, os
traumas de uma perseguição.
A própria condição da infância pode ser uma causa de perseguição, tendo em vista
que, em determinadas regiões, crianças são recrutadas para conflitos armados, o que
motiva o deslocamento, como forma de manter o vínculo familiar e a própria existência

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Saúde, Gênero e Inclusão Social dos Migrantes: Propostas de Diálogos ao Encontro dos Direitos Humanos

com dignidade. Outrossim, meninas sofrem perseguições provenientes da escravidão


sexual, dos casamentos forçados, da mutilação genital, além daquelas e daqueles cujos
corpos são usados para rituais e feitiçarias (MARTUSCELLI, 2017).
Esta proposta não busca encerrar o tema, nem é este seu intuito, mas propiciar
uma análise interseccional do tema, a partir de uma linguagem comum, traduzida pelas
lentes de Salvador Calvo. A produção é capaz de sensibilizar e de traduzir o que, talvez,
palavras tenham maior dificuldade. Adú permite ver como a fome, a pobreza, a ausência
de vínculos, o frio, as doenças e a morte são naturalizadas por alguns e elementos do
cotidiano de outros, que sentem na própria pele o tratamento aporófobo e o sofrimento
que dele sucede.

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