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CONFLITOS E VULNERABILIDADES NO PROCESSO MIGRATÓRIO♦

Carmem Lussi∗

A relação que o título pré-estabelece entre conflitualidade e vulnerabilidade referente à


migração é indicadora de uma perspectiva que pode ser ambígua e comprometedora ou
simplesmente potencialmente favorável. A prevalência de uma ou da outra abordagem
depende de vários fatores, cujo cúmplice principal é a complexidade dos fenômenos da
mobilidade humana1.
Objetivo deste artigo é refletir sobre as vulnerabilidades especificamente ligadas ao
fato migratório e sua interrelação com os conflitos causados pelos mesmos processos. Por
vulnerabilidade2, a concepção aqui adotada
não se refere à pessoa do migrante, mas à situação em que ela se encontra no ato migratório. Por
isso, ao invés de falar em “vulnerabilidade dos migrantes”, é mais correto falar de “migrantes em
situação de vulnerabilidade”, frisando, desta maneira, que a vulnerabilidade não é uma
característica inerente à pessoa migrante, mas à situação em que ela se encontra. Como realça
Jorge Bustamante, é o estado ou a condição de carencia de direitos e de acesso a recursos para sua
proteção o que [deve-se entender] por vulnerabilidade dos migrantes como sujeitos de direitos
humanos3.
De tais pessoas implicadas no deslocamento próprio da migração (diferente da do
turismo, por exemplo), trata-se de distinguir entre quem é tocado por razões e situações de
vulnerabilidade antes da migração, quem vive circunstâncias particulares e entra em condição
de vulnerabilidade por causa do deslocamento e quantos, por causas internas ou por razões
que podem ser até mesmo extranhas aos migrantes, são atingidos por fatores que geram


Palestra apresentada na Mesa redonda “Migrações e identidades étnicas” na Faculdade de Serviço Social –
Programa de Estudos de Gênero, Geração e Etnia – UERJ – Rio de Janeiro, 10 de julho de 2009.

Mestre em Missiologia. Trabalhou no serviço sócio-pastoral, na formação e na coordenação de projetos entre
migrantes italianos na Alemanha, entre sul-americanos e filipinos na Itália, entre refugiados angolanos no Congo
e em contexto de migração interna, no Brasil. Foi diretora do CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos
Migratórios de Brasília entre 2005 e 2008 e da Revista REMHU até 2009. Atualmente é doutoranda em Teologia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Email: eukarizando@yahoo.com.br .
1
Não é possível, neste espaço, tratar do tema dos direitos humanos dos migrantes. Sugere-se como uma fonte
rica de diferentes abordagens o volume da REMHU – Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, vol. 16,
n. 31, 2008, 592 pp., que publicou os atos do Seminário Migrações Internacionais e Direitos Humanos, onde
pode-se encontrar também ampla bibliografia sobre o tema.
2
Sobre conceito de vulnerabilidade e as questões metodológicas na abordagem acadêmica ao tema, interessantes
estudos foram realizados recentemente pelo Projeto Vulnerabilidade do NEPO/UNICAMP -
http://www.nepo.unicamp.br/vulnerabilidade . Cf também o artigo de Eduardo Marandola Jr (geógrafo) e Daniel
Joseph Hogan (demógrafo), apresentado na ABEP de 2008: “Vulnerabilidade do lugar vs. vulnerabilidade
sociodemográfica: implicações metodológicas de uma velha questão” disponível em
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=659&nivel=1. Os autores trabalham a
vulnerabilidade com abordagem qualitativa fenomenológica: “Essa abordagem coloca a experiência dos
fenômenos como foco principal, encarando a experiência espacial como a principal mediação do indivíduo com
o ambiente. Este é entendido de forma ampla, incluindo o ‘mundo’ de significados onde a pessoa está inserida,
desde as esferas mais imediatas (família, grupo, bairro, cidade) até as mais distantes (país, etnia, mundo). É uma
perspectiva que busca interligar as esferas sociais a partir da experiência, permitindo abordar as questões nem
pelo ambiente nem pela sociedade, mas a partir de sua relação” (p. 3).
3
LUSSI, Carmem e MARINUCCI, Roberto. “Vulnerabilidade social em contexto migratório” in
http://www.csem.org.br/artigos_port_artigos2007.html p. 2. A citação de Bustamante é de BUSTAMANTE, A.
Jorge. “La vulnerabilidad de los migrantes internacionales como sujetos de derechos humanos”. Revista Inter-
forum, n. 107, a. 3, (diz -2002), p. 3. Disponível em:
http://www.revistainterforum.com/espanol/pdfes/jorge_5Fbustamante_5Fvulner_5Fesp.pdf

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vulnerabilidades no local de chegada. A relação entre conflitos e vulnerabilidades sugere que
nas primeiras duas etapas, posivelmente, o conflito tem menor peso nos processos que
determinam vulnerabilidades, enquanto que no contexto de destino, a pessoa migrante mais
facilmente é sujeita a ser influenciada e fragilizada pelos conflitos que vive, que gera ou que
deve enfrentar. Nas fases iniciais dos processos migratórios os conflitos são energias que
podem ser utilizadas a favor da migração e para acelerar processos que subtraem os sujeitos a
situações de maior vulnerabilidade; todavia, quando o projeto migratório entra em etapas de
realização, com as primeiras conquistas, como a que representa a chegada em um destino –
mesmo temporário – os conflitos podem ser desgastantes e gerar fortes vulnerabilidades4.
Vale notar que a pergunta clássica dos estudos sobre vulnerabilidade, a saber,
“vulnerabilidade a que” é insuficiente para estudar a questão referida a migrantes, pois estes
não podem ser definitos, a priori, “população em situação de risco”. Nem tem se revelado
pertinente ao contexto migratório o uso da categoria de “desvantagem social”5 pois a
migração, normalmente, vem a incrementar o capital humano de uma pessoa, apesar de
colocá-la, temporariamente, em provável situação de vulnerabilidade, que não é – no caso –
só social, mas sobretudo psicológica e jurídica.
Sendo a vulnerabilidade uma categoria relacionada às pessoas físicas, indivíduos ou
famílias, um discurso geral corre o risco de ser generalizante; portanto, as reflexões valem em
geral somente à condição de sucessivas análises em contexto microestrutural. Para homens,
mulheres e crianças em situação de migração, não é tanto a relação com um contexto no qual
estariam expostos a “riscos e perigos” que define a situação de vulnerabilidade, mas as
fragilidades e complexidades de sua situação psico-física, jurídica e socioeconômica,
enquanto migrante, a que determina as vulnerabilidades que podem causar, não somente
formas genéricas de risco social, mas também ameaças bem específicas como deportação,
tortura, perda de identidade e de equilíbrio psicológico ou até morte6, para citar alguns
exemplos. Isto não significa que os e as migrantes não vivem as mesmas vulnerabilidades de
toda população, em relação a riscos e perigos contingentes, que a categoria “lugar”7, entre
outras, ajuda a identificar e a gerenciar; mas unidas a estas, vivem muitas outras, que
dependem direta ou indiretamente de seu envolvimento em processos migratórios próprios ou
de pessoas às quais estão ou estavam estritamente ligados/as. Estudos sobre migrações
internas, no Brasil, vêm mostrando traços específicos da situação de vulnerabilidade ligada ao
status migratório8.

4
Cf. também interessante artigo de FRANCO LEAL, Giuliana. “‘Populações excluídas’: uma categoria de
pesquisa viável?” Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado
em Caxambu-MG, Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008. Disponível em:
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=659&nivel=1 , no qual a autora explica os
termos de “exclusão social” e de “não-cidadania” como equivalentes e pertinente ao que neste texto é
identificado com situação de vulnerabilidade. No mesmo texto a autora considera não adequado o uso do termo
“população(s) excluída(s)”, p. 2.
5
Cf. VANICE DESCHAMPS, Marley. Vulnerabilidade socioambiental na Região Metropolitana de Curitiba.
(Tese de Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, 2004, p. 80-84.
6
A Rede dos Casa del Migrante de Tijuana, no México, fixa a cada ano um caixão no muro entre México e
Estados Unidos, com o número de migrantes mortos na travessia, dos quais é conhecido o nome. Muitos de tais
nomes estão registrados em cruzes, fixadas no mesmo muro.
7
Categoria explicada no estudo de DE PAOLA, Fernanda Cristina e HOGAN, Daniel Jospeh. “Discutindo
vulnerabilidade do Lugar: Riscos e Perigos em Bairros de Campinas (SP)”. Trabalho apresentado no XVI
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de
outubro de 2008. Disponível em
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=659&nivel=1 .
8
No caso das migrações internas estudos mostram a mesma dinâmica. Cf. a tese doutoral de Antonio Tadeu
Ribeiro de Oliveira. A mobilidade espacial da população e as transformações do processo produtivo no Brasil

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...quanto à condição migratória do indivíduo, poder-se-ia supor que o seu tempo de permanência
no local de residência seria um importante indicativo do grau de sociabilidade e/ou captação de
capital social, na medida em que os laços sociais e conhecimentos tenderiam a se incrementar com
o passar do tempo. Por outro lado, o tempo de vivência em uma determinada zona ou região
também poderia ter influência na quantidade e qualidade das informações sobre as oportunidades
disponíveis, sejam elas em termos do mercado de trabalho, ou mesmo em outras dimensões
essenciais para a reprodução social como a assistência social, mercado habitacional etc.. ...o fato
do indivíduo ser migrante recente teria impacto sobre sua inserção laboral, particularmente no caso
daquelas pessoas com mais baixa qualificação que, via de regra, migram para a região sem um
emprego garantido9.
Já o elemento conflitivo, relacionado à migração10, pode incluir desde as tensões
psicosociais do processo de decisão de migrar, prevalentemente individual ou familiar, até as
manifestações agressivas contra a imigração em países cujas políticas migratórias têm
influencias xenófobas e cujas consequencias podem chegar a extremos como as atitudes do
governo italiano em relação aos migrantes no meio do mar Mediterrâneo, expulsos em direção
da Libia 11 ou de Malta ou como as conhecidas não admissões acontecidas, mesmo com
brasileiros/as, em muitos aeroportos, especialmente em Madrid e em Londres. Sem poder
aprofundar o tema dos conflitos neste texto, adota-se a concepção de conflitos em latu sensu,
que inclui conflitos de ordem psicológica como as frustrações pessoais e as tensõoes nas
relações, as formas da rejeição da imigração por uma sociedade como slogans xenófobos,
estereótipos contra imigrantes ou segregação espacial, por exemplo; assim como as formas
mais fortes de conflitos sociais e políticos como a tendência política e até a legislação, em
alguns países, criminalizando a imigração irregular e declarando a caça e a perseguição dos
imigrantes não desejados no terrítório nacional. Neste artigo serão considerados alguns destes
conflitos, somente em relação às vulnerabilidades que provocam ou pressupõem.
Por processo migratório entende-se aqui o conjunto de motivações, relações,
estratégias, iniciativas, metas e ações intrapreendidas em e por causa de projetos migratórios
individuais (no sentido de relacionados a pessoas e não propriamente a grupos), no contexto
das migrações internacionais. É válido sublinhar, todavia, que devido às macro-tendencias em
tema de políticas e leis de migração na última década, os conflitos criados pelos governos e
suas visões das migrações internacionais têm gerado situações crônicas de ameaça, de medo,
de violência, de precariedade juridica e econômica e até de perseguição dos migrantes, cujas
vulnerabilidades causadas por tal situação podem ser identificadas por “situação generalizada
de violação de direitos humanos” – parafraseando a Declaração de Cartagena que alargou o
conceito de refugiado, em 1984 – a qual (situação de vulnerabilidade) depende de uma nova
ordem internacional para ser superada, cuja luz ninguém pode dizer quando surgirá.

pós-1980: o caso do Estado do Rio de Janeiro. Campinas, 2009. O autor mostrou que as estatísticas sobre
trabalho precário no estado e na RM do Rio de Janeiro têm índices maiores entre os migrantes, com – por
exemplo, na década de ’80 – 48,2% dos migrantes estavam em ocupações de baixa qualificação (p.119) e no
período 1986-1991 a porcentagem de relações precárias de trabalho entre os imigrantes foi de 5,3% maior que a
da população economicamente ativa do Rio (p. 132). Outro exemplo de situação de vulnerabilidade ligada ao
processo migratório, mais do que às características contingentes dos sujeitos individuais é discutida por José
Marcos Pinto da Cunha e Alberto Augusto Eichman Jakob. “Segregação socioespacial e inserção no mercado de
trabalho na Região Metropolitana de Campinas”. Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos
Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú - MG - Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.
Disponível em http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=659&nivel=1 .
9
PINTO DA CUNHA, Marcos & EICHMAN JAKOB, Alberto Augusto. op. cit., p. 6.
10
Não é possível considerar nesse breve artigo o tema em relação a prófugos e refugiados pela especificidade de
tais fluxos e respectivas causas. O volume citado da REMHU publicou diversos estudos sobre direitos humanos
de refugiados, todavia, a fonte principal para o tema são os relatórios anuais do ACNUR – Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados disponíveis em http://www.unhcr.org/pages/49c3646c4b8.html.
11
Cf. http://beta.vita.it/news/view/91812 a denúncia de Anistia Internacional no caso do re-envio à Líbia de
imigrantes socorridos no Mediterrâneo.

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Processo humano e social transformado em problema
A primeira questão na abordagem às migrações com interesse nas pessoas que
compõem tais fluxos é uma crítica sobre a visão ou o ponto de vista do qual é feita a leitura e
a interpretação dos fatos migratórios e seus significados.
A abordagem na perspectiva dos sujeitos dos processos migratórios sugere a
necessidade da explicitação de uma premissa que explica uma conflitualidade de fundo, causa
de muitas das situações de vulnerabilidade específicas das pessoas em mobilidade, a saber, o
“processo de inimização”12 ou de criminalização do migrante, ou mais originariamente ainda,
do ‘outro’ em geral. Já foi utilizada a categoria de bode expiatório13 para explicar tal
fenômeno. A criminalizaçao é um processo mais recente e está ligada ao enrigidecimento das
políticas migratórias ligadas a sua identificação com políticas, leis, tratados e discursos sobre
segurança nacional, já a inimização do ‘outro’ é, literalmente, o medo da alteridade14 ou
xenofobia. Estes mecanismos mentais, psico-sociais e culturais representam e reproduzem
uma visão da migração como problema ou como solução extrema de uma série de problemas
sócioeconomicos, primordialmente, mas que podem também ser ambientais ou culturais. Tal
visão, que não é propriamente do contexto acadêmico, mas da sociedade em geral e, neste
sentido, implica também a concepção adotada ou ao menos pressuposta na academia, baseia-
se fundamentalmente em estereótipos e, além de perder o foco nos sujeitos, não dá conta de
explicar aspectos fundamentais do fenômeno como o caráter intrínseco da migração na
história da humanidade, a intensificação de fluxos originados de contextos onde os problemas
socioeconomicos que os teriam desencadeado já não persistem e, sobretudo, a presença de
índices expressivos de migrantes nos fluxos das assim chamadas “migrações econômicas” que
não respondem ao perfil estabelecido pelo estereótipo do migrante expulso de sua terra.
O ponto de vista das vulnerabilidades também não é absoluto, nem consegue respeitar
a abrangência e as diversidades que o complexo tema das migrações comporta. O que a
reflexão acerca das vulnerabilidades exige é a capacidade teórica e prática de incluir e
respeitar a complexidade na abordagem das migrações para que seus sujeitos sejam foco
determinante na compreensão e na respectiva ação e para que os processos migratórios de tais
sujeitos e os processos sociais e políticos das sociedades de onde estes partem, por onde
passam e onde se instalam sucessivamente, sejam considerados em sua reciproca interrelação.
As situações de vulnerabilidade pelas quais os e as migrantes passam e os conflitos que geram
ou dos quais são parte, muitas vezes injustamente ou sem saber, não necessariamente
representam ameaça para as sociedades implicadas em seus processos migratórios; no entanto,
o tema não raramente é tratado exatamente enquanto problema para a população autóctone ou
nativa, prescindindo das relações de força e as ambiguidades das tensões que o encontro com
os migrantes pode suscitar ou simplesmente revelar próprio por parte de quem não quis ou
não precisou recorrer à migração em seu trajeto em busca de sucesso na vida.
Um dos temas transversais, hoje muito estudado no Brasil, é a relação migração versus
situação urbana. Uma das hipóteses é a convicção que problemas como a violência urbana e o

12
Categoria usada por PERRONE, Luigi. Da straniero a clandestino. Lo straniero nel pensiero sociologico
occidentale. Napoli: Liguori, 2005 e amplamente desenvolvida também por DAL LAGO, Alessandro. Non-
persone. L’esclusione dei migranti in una società globale. Milano: Feltrinelli, 2005, entre outros textos.
13
GIRARD, René. Bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
14
Em oposição ao medo da alteridade, Mary Castro trabalha com a categoria de ‘reconhecimento’ como
possibilidade e indicação de percurso para políticas migratórias na perspectiva dos direitos humanos dos e das
migrantes. Cf. GARCIA CASTRO, Mary. “Migrações internacionais e direitos humanos e o aporte do
reconhecimento” in REMHU vol 16, n. 31, 2008, p. 7-35.

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degrado ambiental das cidades de grande e de médio porte sejam consequencias da migração.
O tema é complexo e não é possível tratá-lo neste espaço. A sugestão de perspectiva pode ser
assim formulada: estão os migrantes na origem de tais problemas ou são as principais vítimas
de tais problemas? Estudos em nível macroestrutural favorecem uma melhor compreensão da
questão.
Originariamente, quem migra não pensa em si próprio segundo a perspectiva das
vulnerabilidades que pode encontrar ou que leva consigo. Nem – normalmente – é consciente
dos conflitos que o/a pressionam por trás, o/a sobrecarregam no percurso e o/a atingirão de
modo desgastante no destino. Esta inconsciencia, que Perotti indicava em seus estudos como
“necessária ignorância”15, é condição de possibilidade para o desencadear-se do processo
migratório e ao mesmo tempo sua força, pois dela a pessoa toma orientação e força para
reformular o projeto migratório toda vez que os conflitos ou as vulnerabilidades ameacem seu
sucesso e sempre que novas perspectivas ou simplemente novas promessas ofereçam metas
melhores.

Situações de conflito que geram vulnerabilidades para migrantes


A relação conflitos-vulnerabilidades leva à relação contextos-vulnerabilidades, uma
vez que as situações de conflitos referem-se a um conjunto, micro ou macro que seja, de
fatores e interlocutores que interferem (e são influenciados) pelo fato migratório. Os sujeitos
em migração podem, portanto, estar na origem ou ser atingidos pelos conflitos que se
alimentam ou até surgem por causas ligadas aos movimentos populacionais.
A vulnerabilidade... envolve as qualidades intrínsecas (do lugar, das pessoas, da comunidade, dos
grupos demográficos) e os recursos disponíveis (na forma de ativos) que podem ser acionados nas
situações de necessidade ou emergência... A relação entre o coletivo (o que não está no alcance
direto de intervenção individual, pois é produzido socialmente e historicamente) e o particular
(aquilo que pessoas e lugares podem construir de forma direta) é uma chave importante para
compreender o desenho das diferentes vulnerabilidades16.
Dentro dos limites do presente artigo, seguem algumas macrocategorias de conflitos,
de alguma maneira específicos dos processos migratórios. Restam à margem conflitos que
causam migrações (push factors) e os conflitos nas sociedades de destino, supostamente
causados remotamente pelo aumento dos fluxos de imigração como a crise do welffare state
em alguns países, atribuida ao aumento de imigrantes, cuja discussão requer uma
complexidade e argumentação especializada. Na vivencia desses traços, que são indicativos
dos principais conflitos, a exposição dos e das migrantes a vulnerabilidades típicas dos
processos migratórios pode ser relevante.
Migração como drama existencial. Apesar de toda a poesia e todos os argumentos em
defesa da liberdade e do direito de emigrar, da grandeza simbólica e da potencialidade real
que o ato de deixar sua terra em busca de sonhos e conquistas para uma vida melhor no
exterior traz consigo, o ato de migrar é também um drama, um luto e até um trauma
existencial. A incidencia de tais características é muito maior entre quantos não decidem
pessoalmente de entrar em processo migratório, como o caso de menores que devem seguir
seus pais ou o caso de pessoas que, por razões contingentes – como podem ser uma crise
financeira ou o matrimonio – precisam aderir, mesmo com resistência, a um projeto
migratório de outra pessoa17. Estudiosos de etnopsiquiatria mostraram registros de alta

15
Cf. LUSSI, Carmem. “Progetti migratori e pastorali: la sfida missionaria” in REMHU, vol. 14, n. 26&27, p.
209-237.
16
MARANDOLA JR, Eduardo e HOGAN, Daniel Joseph, op. cit., p. 6.
17
Não é possível contemplar aqui os casos de tráfico de pessoas, pela sua complexidade e especificidade.

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incidência de doenças psíquicas entre migrantes, por causa da impossibilidade de elaboração
satisfatória das frustrações existenciais relacionadas aos processos migratórios vividos. Um
dos maiores especialistas, Tobie Nathan18, sugere até mesmo a necessidade de se repensar os
modelos de tratamento de saúde pública em contextos de alta densidade de imigrantes, pois a
somatização das tensões psicológicas vividas já nas primeiras fases do projeto migratório, se
não tratadas, podem tornar-se causa de vulnerabilidade a doenças psiquicas mais graves, no
decorrer do tempo.
Em sua forma mais radical, o drama existencial que o luto não elaborado por
abandonar a própria terra e as fragilidades psicológicas causadas pelas perdas em termos de
relações, referenciais valoriais e de sentido típicos de processos migratórios podem causar, em
termos de desequilibrio mental, formas depressivas e trasgressivas, forjaram o conceito de
Síndrome de Ulisses, conhecido pela apresentação feita por Santiago Gamboa, em seu
romance do mesmo título, publicado na Europa em 200619. Além das doenças psíquicas e
psico-somáticas, os conflitos psicológicos vividos por muitos migrantes podem ser uma das
principais razões de vulnerabilidade de tais pessoas à interrupção brusca do projeto migratório
(com respectivas consequencias no caso de migração de retorno não planejada, com outros
agravantes como endividamento, frustrações e chantagens sucessivas), formas de violência e
até microcriminalidade, guetização ou formas de exclusão (buscada ou sofrida) por não
aprendizagem do idioma e rejeição da cultura e da mentalidade do meio onde o percurso
migratório o/a levou.

Migração como desenraizamento cultural. Estreitamente ligado, mas ao mesmo


tempo distinto do conflito existencial, o desenraizamento cultural é normalmente indicado
pela expressão “estresse de transculturação”. Trata-se dos conflitos internos e, sobretudo,
interpessoais, que surgem a causa da diferença cultural entre o quadro de referencia do país de
origem dos/das migrantes e o dos interlocutores com os quais a pessoa encontra e entra em
contato no país de destino. Este conflito pode acontecer também mutatis mutandis com
autóctones, ao entrar em relação com imigrantes de outro background cultural e valorial.
Cohen-Emerique20 estudou este fenômeno em termos de shock cultural, em base ao fato que
trata-se de conflitos sem conotação moral ou agressiva, pois seriam somente choques de
visões e valores diferentes, por vezes até contrapostos, que podem gerar conflitos e até mal-
estar, mas não seriam, normalmente, expressão de contraposição, rejeição ou negação do
‘outro’.
Os valores embuidos dos traços da cultura de origem, sobretudo os que se referem à
família, à religião e ao âmbito da sexualidade e da afetividade, em caso de choques culturais,
podem causar tensões e desencadear problemas maiores21. Tais processos, por sua vez,
estigmatizam as respectivas coletividades, prejudicando radicalmente as possibilidades de
integração no respectivo território e de reconhecimento de dignidade e igualdade no que se

18
Cf. NATHAN, Tobie. L’influence qui guérit. Paris : Odile Jacob, 2004 ; IDEM. Nous ne sommes pas seuls au
monde. Les enjeux de l’ethnopsychiatrie. Paris : Le Seuil, 2001 ; IDEM. A qui j’appartiens ? Paris: Le Seuil,
2007.
19
Cf no Brasil interessante volume curado por DeBiaggi, Sylvia Dantas (orgs.); Paiva, Geraldo José de.
Psicologia, e/imigração e cultura. São Paulo : Casa do Psicólogo, 2004.
20
CAMMILLERI, Carmel e COHEN-EMERIQUE, Magalit. Choc de culture? Concepts et enjeux pratiques de
l’interculturel. Paris: L’Harmattan, 1989.
21
Vale como exemplo o uso do véu islâmico na França, usado ao mesmo tempo como bandeira de afirmação da
comunidade muçulamana no país e expressão identitaria das migrantes e, em contraposição, proibida nas escolas
– e talvez em todo o país proximamente – pela oposição política da direita francesa, usando como argumentação
uma certa concepção “religiosa” da laicidade ou laicismo francês.

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refere aos direitos humanos. Os conflitos relativos às diferenças culturais podem ser muito
mais complexos, pois muitos têm origens históricas e se fortalecem por estereótipos e
preconceitos, como o caso de imigrantes de ex-colônias e os casos de discriminação sobre
bases de fenotipia ou de sotaque, como o caso dos imigrantes de origem latino-americana
indígena, mesmo no Brasil e muitos casos de migração interna interestadual, entre algumas
regiões.
Mais do que todos os conflitos relacionados ao desenraizamento cultural, a principal
causa de vulnerabilidade é o esforço contante e prolongado no tempo de reconstrução
identitaria que o processo migratório comporta, se a pessoa quer ter sucesso em seu projeto. A
rejeição de tal reelaboração é por si mesma uma forma de perda irreparável no percurso e
premissa para a falência de qualquer projeto migratório. Neste processo, talvez mais do que
qualquer outro, os conflitos do processo migratório revelam sua grande potencialidade por
forjar identidades novas e renovadoras22, complexas, robustas e capazes de toda a
flexibilidade que o mundo desafiador da era da globalizaçao exige para quem quer vencer,
passando pelos riscos que a migração impõe aos sujeitos que passam por ela.

Migração como indicador de desequilíbrio socioeconomico de uma nação (origem).


Considera-se que a emigração é um dos principais indicadores do estado de saúde de uma
nação. Com a globalização, o foco dos estudos e das problemáticas em tema de migração não
é mais porque emigrar, mas como imigrar e por que não migrar. Assim, mais do que indicar
que um país esteja em condições internas precárias tais que só uma homorragia populacional
pode trazer equilíbrio socioeconomico, os deslocamentos populacionais levam cada vez mais
pessoas de países com menor PIB para países de desenvolvimento avançado, onde
desencadeiam tensõem e revelam problemáticas nos sistemas de serviços de base, assim como
nos frágeis equilíbrios nas relações entre grupos étnicos e entre interesses econômicos
prevalentes. O Brasil vive, nos últimos anos, uma situação particularmente característica em
tema de conflitos relacionados à emigração de seus conacionais, considerando o aumento
acelerado de emigrantes e os respectivos problemas de direitos de cidadania a que tais fluxos
chamaram a atenção. Questiona-se a configuração e o papel do Ministério das Relações
Exteriores, que agora, além de ocupar-se de comércio e exportação, precisa dotar-se de meios
e recursos humanos para ocupar-se de pessoas e de coletivos de cidadãos e cidadãs que
reclamam direitos, morando no exterior. A situação vivida como de “abandono” ou de
negligência pelo país de origem em momentos de vulnerabilidade em terra estrangeira é
considerada pelos migrantes como grave violação de direitos humanos e pode incidir
psicologicamente em modo determinante.
À diferença do Brasil, que sempre se rejeitou de firmar tratados bilaterais de
antiemigração ou acordos de repatriação, países da América Central, do Leste Europeu e do
Norte da África reforçaram os riscos a que podem ser expostos seus conacionais, favorecendo
exclusão, expulsão coletiva, detenção e outras violações de direitos de imigrantes ao aceitar
de formalizar procedimentos que aumentam os índices de situações de vulnerabilidade de
migrantes.

Migração como campo de prova de relações internacionais (passagem). Trata-se do


problema normalmente chamado de “extensão de fronteiras”, cujos exemplos mais
conhecidos são, por um lado, o caso do México que atua uma política na fronteira sul com o

22
Ver o elogio das identidades complexas feita pelo premio novel da literatura Amin Maalouf em IDEM.
L’identità. Milano: Bompiani, 2005.

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foco em combater possíveis imigrantes nos Estados Unidos mais do que em base a uma sua
própria política migratória interna; e, por outro lado, o caso dos países europeus que
obrigaram países norte-africanos a assinar compromissos antiemigração e até mesmo aceitar
campos de detenção de migrantes23 em seus territórios como condição de tratados de
cooperação internacional. O peso simbólico e político de tais estratégias sobre os sujeitos que
passam por tais áreas geográficas em seus itinerários de migração e, em especial, sobre os
migrantes oriundos de tais países exerce uma força de exclusão, ameaça, discriminação e
descaso pelas suas vidas que torna até mesmo sua identidade um motivo de vulnerabilidade.
Trata-se da forma mais radical de “intolerância institucional”24 elevada a princípio de gestão
da coisa pública, que nega totalmente o princípio do reconhecimento como base do respeito
da dignidade do ser humano.
Mary Castro, citando Segato e outros autores, defende, neste sentido, a necessidade de
uma dimensão ética na política, uma capacidade de adotar os direitos humanos como motor e
fundamento para pessoas e instituições, “e a marca definidora de tal impulso é a
disponibilidade para a interpelação pelo outro”25, o que na realidade seria possível em uma
“história social de sensibilidade”, não alcançável pelo mecanismo das leis.

Migração como problema de convivencia intercultural versus xenofobia (chegada).


Considerados como causa dos problemas, mais do que ocasião para a emersão dos mesmos,
os migrantes são percebidos como culpados e como tais são tratados pelos discursos
midiáticos e políticos, especialmente em alguns países como Itália e França, e se tornam até
mesmo critério para a formatação de leis anti-imigração, como o caso da Diretiva do Retorno,
aprovada pela União Europeia em meados de 2008. A vitimização imposta facilmente se torna
vitimização auto-precebida e até mesmo internalizada; e, portanto, adotada pelos sujeitos
interessados, que passam a viver em estado constante de medo de represálhas, de agressão e
até mesmo de expulsão, no caso dos que vivem em situação irregular26, a qual é a principal
causa de vulnerabilidades entre migrantes internacionais.
A perseguição ideológica aos imigrantes como um dos maiores problemas de ameaça à
segurança dos estados-nação27 uniu-se, especialmente nos últimos anos, aos discursos sobre a
crise econômica internacional, o que fez convergir sobre os migrantes as tensões sobre falta
ou precariedade de emprego e diminuição dos ganhos, em alguns setores. Os migrantes
sofrem duplamente o problema, por serem os anéais mais fracos na cadeia produtiva e por
serem considerados pelos autóctones como fossem os causadores do problema ou ao menos
agravarem a situação por aumentarem a concorrência na busca pelo reduzido número de
empregos disponíveis. Idêntica tensão no mercado imobiliário e, em certos espaços, na busca
por vaga em creches e no serviço público de saúde. De todas as problemáticas o fato de
muitos migrantes estarem vulneráveis à irregularidade é a mais grave e determinante de todas.

23
Cf. RAHOLA, Federico. “La macchina della detenzione. I campi come dispositivo di governo delle
migrazioni” in REMHU vol 14, n. 31, 2008, p. 401-411.
24
Cf. GARCIA CASTRO, Mary., op. cit., aqui p. 22-23.
25
IDEM, p. 19.
26
É em aumento o número de migrantes que entram em situação de irregularidade após anos de regular
permanêencia em países como os da União Europeia pelo aumento das dificuldades de manter emprego e as
condições exigidas para manter-se em situação de regularidade migratória. Estudos mostram que a regularidade
migratória e certos direitos fundamentais como o direito à reunião familiar para menores de 18 anos é uma
condição cada vez menos segura e mais difícil de ser obtida nos principais destinos migratórios atuais.
27
Cf. SEYLA BENHABIB AND JUDITH RESNIK (ed). Migrations and Mobilities. Citizenship, Borders, and
Gender. New York and London: New York University Press, 2009, p. 333-386.

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Um dos fatores que mais provoca vulnerabilidades no sentido que fragiliza a pessoa,
fecha portas de percursos institucionais, dificulta relações e paraliza a pessoa é uma cultura
xenófoba, adotada como princípio sociopolítico, para fomentar mentalidades e vitórias
eleitorais antimigratórias. Castels28 lembra que as migrações são processos históricos longos e
que as políticas, além de terem vida muito mais breve, podem reduzir-se a períodos eleitorais,
o que faz com que o impacto que a imigração tem sobre uma sociedade de chegada supera sua
capacidade de gestão da mesma, considerando também que as principais transformações que
uma sociedade sofre pela imigração29 passa pelas relações interpessoais e pelas práticas
socioculturais, as quais se substraem absolutamente ao controle das políticas públicas.
Todavia, até este resultado ser alcançado, quem paga os golpes do processo,
psicologicamente, socialmente e até economicamente são as pessoas concretas que, no dia a
dia precisam lutar contra a discriminação, as formas subtis de rejeição, o desprezo e a
agressão pública assim como todas as modalidades de atuação de estereótipos e preconceitos.
Viver em contexto hostil é um desgaste que vulnerabiliza a pessoa em diferentes frentes,
podendo até suscitar reações equivalentes àquelas das quais é vítima. Mary Castro, no artigo
já citado30, indica na luta pelo reconhecimento como uma oportunidade de transformar o
conflito em possibilidade de empoderamento, pois a mesma atitude diante da alteridade que se
quer dos autóctones precisa ser desenvolvida também nos homens e mulheres que migram, o
que significa que o esforço de superação da indiferença e da xenofobia do interlocutor chama
ao compromisso de superação das próprias resistências à abertura ao outro e ao seu mundo de
valores, de visões e de história, para que o reconhecimento aconteça e o desafio que o conflito
põe em campo se transforme em força e capacidades.

Migração como (falsa) solução (mito e ambiguidades das remessas). Se por um lado
o empobrecimento de determinadas classes sociais, a ampliação das desigualdades entre
nações e a busca por oportunidades de mobilidade social e melhores condições de vida
sintetizam as principais causas das migrações internacionais, por outro lado uma
consequencia expressivamente positiva a justificou por um certo tempo aos olhos de muitos:
as remessas, que foram consideradas a grande chave de solução da pobreza para muitos países
como Equador ou alguns países da América Central, por exemplo. Cedo revelaram-se
também, para quem quer reconhecer, as ambiuidades e vulnerabilidades geradas pelo
“império das remessas”. Se é verdade que no Brasil o valor das remessas supera o que o país
ganha com a exportação da soja, deveria ser igualmente importante saber como se produzem,
a quais preços humanos e sociais tais valores são conquistados e quais as consequencias para
as gerações mais jovens que tais rendas “gratuitas” produzem, quando provindas de genitores
ausentes. O leque da população exposta a vulnerabilidades, neste caso, aumenta porque inclui
quem emigra, quem recebe as remessas e quem, no lugar de origem, não recebe remessas mas
tem que conviver com os efeitos que tais remessas produzem na economia local, para todos e
todas, não somente para quem vive recebendo dólares ou euros, todo mês31. A longo prazo,
projetos migratórios finalizados ao acúmulo financeiro e ao retorno têm-se revelado
humanamente insustentáveis pelas condições psicosociais e trabalhistas a que as pessoas têm
que se submeter para alcançar as metas planejadas. Os fluxos Brasil-Japão das últimas
décadas estão entre os mais sintomáticos e os mais estudados sobre o tema.
28
CASTELS, Stephen. “The factors that make and unmake migration policies” in DeWind Josh and PORTES,
Alejandro (ed.). Rethinking migration. New theoretical and empirical perspectives. New York&Oxford:
Gerghahn Books, 2007, p. 29-61.
29
VERTOVEC, Steven. “Migrant transnationalism and modes of transformation” in DeWind Josh and PORTES,
Alejandro (ed.)., op. cit., p. 156-157.
30
Op. cit., p. 20.
31
Exemplo clássico é o aumento desproporcional dos valores no mercado imobiliário de Governador Valadares.

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Os problemas relacionados com as remessas são ponta de iceberg do que o Relatório
da Comissão Global sobre Migrações Internacionais (2005) chamou das carências sintetizadas
nos 3 Cs: falta de coerência na gestão das migrações e no respeito dos marcos jurídicos
internacionais estabelecidos, falta de capacidade dos formuladores de políticas e programas
sobre migrações e falta de cooperação entre todos os atores em campo, incluindo sociedade
civil e os protagonistas dos fluxos que são os homens e as mulheres que migram32.

Vulnerabilidades e vitimizações no processo migratório


Migrante só erroneamente pode ser identificado como vítima em relação a sua situação
migratória, todavia, a incidência de violações de direitos humanos que transformam migrantes
em vítimas sugere a necessidade de um aprofundamento na reflexão sobre o tema.
É necessária uma distinção prévia. Vulnerabilidade não coincide com violação de
direitos nem com baixa renda, ipso facto. Por um lado, a pobreza é decisamente um fator de
vulnerabilidade para migrantes, no entanto, as especificidades dos processos migratórios,
podem, paradoxalmente, encontrar maior capacidade de resiliência em migrantes que
originariamente provém de contextos de pobreza que em quantos não conheceram antes da
migração muitos aspectos das vulnerabilidades socioeconomicas próprias das classes de
menor renda. Por outro lado, a violação de direitos humanos de migrantes, que atualmente
tem um marco juridico internacional consistente33, é desproporcional respeito à condições
sociais de origem, por causa do enrijedecimento das políticas migratórias e da concepção
pretamente xenófoba dos controles de fronteira, seja no tratamento dos irregulares que na
leitura em geral do fato migratório, sobretudo de alguns grupos religiosos ou nacionais, como
muçulmanos ou chineses, por exemplo. O que significa, entre outras consequencias, que
certas situações de vulnerabilidades de migrantes devem ser entendidas pela relevância
política do fato migratório, mais do que pelas suas intrínsecas características enquanto
fenômeno de mobilidade humana.
Assim como a violação de direitos cria vítimas, também a fragilização psicológica,
sociocultural, economica, juridica... decorrente da opção, mais ou menos livre, de emigrar e
dos percalsos no desenvolver do projeto migratório, também pode produzir vítimas. Estas,
aparecem sobretudo nos casos de conflitos externos à pessoa, que influenciam em modo
deterninante e negativamente suas possibilidades de mobilidade social e econômicocultural.
Por sua vez, a falta de sucesso em projetos migratórios, a medio e longo prazo, determina a
desadaptção que subtrai à pessoa sua capacidade de autoproteção e de reatividade diante das
dificuldades, caindo assim nas formas tradicionais de vulnerabilidade, agravadas pelo fator
saudade e todas as demais variantes do estresse de transmigração.
32
Cf. IDEM, p. 30-32.
33
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Art. 7 afirma: “Os Estados Partes comprometem-se, em
conformidade com os instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos, a respeitar e a garantir os
direitos previstos na presente Convenção a todos os trabalhadores migrantes e membros da sua família que se
encontrem no seu território e sujeitos à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de qualquer
consideração de raça, cor, sexo, língua, religião ou convicção, opinião política ou outra, origem nacional, étnica
ou social, nacionalidade, idade, posição econômica, patrimônio, estado civil, nascimento ou de qualquer outra
situaçã”. Cf também a Declaração sobre a Proteção dos Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, aprovada pela
ONU em 1990 e entrada em vigor em 01 de julho de 2003. A Declaração foi ratificada por 41 países e assinada
por mais 15, até março de 2009. O Brasil e nenhum dos países da União Europeia assinaram-na. Cf. artigo
escrito por um dos membros do Comitê das Nações Unidas sobre a Declaração in ALBA, Francisco. “El papel
de los instrumentos internacionales sobre derechos humanos en la salvaguardia de los mismos. El caso de la
Convención Internacional sobre los Derechos de los Trabajadores Inmigrantes”, REMHU, vol. 16, n. 31, p. 37-
62. O texto completo da Convenção encontra-se disponível em muitos idiomas no site
http://www.december18.net/web/general/page.php?pageID=79&menuID=36&lang=EN .

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O movimento (ligado à velocidade e à hipermobilidade) ajuda no estabelecimento de relações
espaciais e culturais mais efêmeras. Sem o tempo necessário para o envolvimento (Tuan, 1983),
tais relações são frágeis, deixando a pessoa vulnerável. Claudelir Clemente, estudando migrantes
transnacionais, notou com propriedade esta problemática: “Hoje [...] não se pode deixar de
entender que estas maneiras de socialização do espaço e do tempo apontam para um aspecto do
território que, por vezes, não se presta atenção: a sua efemeridade, o seu movimento.” Tanto
pequenos grupos de migrantes morando em outros países quanto aqueles que vivem em
movimento (seja transnacional ou não) possuem suas relações identitárias estremecidas,
aumentando com isso sua vulnerabilidade diante de diferentes riscos34.
A pista mais acreditada para a superação das vulnerabilidades próprias da migração,
paradoxalmente, não vem das políticas públicas, as quais podem ajudar pois são a principal
causa de vulnerabilidades provocadas pela migração atualmente, mas são moventes externos
aos processos migratórios e os penetram marginalmente respeito a sua qualidade. Os
mecanismos de embate, resgate de dignidade e superação ou ao menos proteção em situações
de vulnerabilidade por migração podem e devem ser forjados e estimulados dentro das
relações e dos significados dos mesmos processos migratórios. Amizade, cultura e família são
os eixos principais de possibilidade. Apesar dos consensos que Bauman35 tem encontrado
sobre suas teorias da liquefação das relações, as quais incluem a convicção que a vida dos
migrantes não tem algum respaldo nem valor em terra estrangeira, é exatamente nas
comunidades étnicas – nas diferentes modalidades de agregação precaria ou consolidada entre
migrantes em contexto de emigração – que as vulnerabilidades têm sido enfrentadas, com
menor incidencia de efeitos perversos36.

Perguntas ao invés de conclusões


Apesar de ser inegável que os processos migratórios determinam formas e situações de
vulnerabilidade nos sujeitos que migram e por vezes também em sujeitos a estes diretamente
relacionados, a tendencia a considerar que ipso facto que a/o migrante é sinônimo de pessoa
vulnerável e outras atribuições similares tem se revelado motivo de raforçamento das
perspectivas xenófobas e criminalizantes de tais sujeitos.
O foco da análise parte do fato que, entre as pessoas que mais sofrem violações de
direitos humanos estão também migrantes, deslocados e refugiados, isto porém não legitima o
discurso que estabele interdependencia entre migração, conflitos e vitimização. As situações
que geram vulnerabilidades são parte de um processo e enquanto tal devem ser interpretadas e
gerenciadas. Na mídia, nas políticas e também na academia. O problema é o risco da
criminalização dos migrantes que transforma risco em culpa, anula potencialidades e,
consequentemente, inflama os conflitos, que fragilizam as pessoas e aumentam o peso das
situações de vulnerabilidade sobre os sujeitos dos processos migratórios.
Onde iniciam e onde vão parar estes mecanismos? A linguagem tem o poder de fazer
acontecer o real, fazer acontecer o que anuncia; é assim também que estudiosos explicam o
poder dos estereótipos e do efeito bode expiatório aplicado aos migrantes. Qual o papel
efetivo dos e das migrantes nestes conflitos latentes? Estão bem formuladas as questões da

34
MARANDOLA JR., Eduardo. “Mobilidade e Vulnerabilidade nos Espaços de Vida de Campinas” Trabalho
apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú - MG – Brasil,
de 18 a 22 de setembro de 2006, p. 3-4.
35
Cf volumes de BAUMAN, Zigmund. A Editora Zahar já publicou 18 títulos:
http://www.zahar.com.br/catalogo_autores_detalhe.asp?aut=Zygmunt+Bauman .
36
A referenzia à categoria de “efeitos perversos” refere-se às consequencias negativas das ações positivas
realizadas por instituições que atuam, nos países de imigração, em progetos e programas de proteção e defesa
dos direitos humanos dos e das imigrantes.

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relação... ou o modo de tratá-las denuncia um preconceito que criminaliza os e as migrantes e
silencia muitas responsabilidades e perpectivas de leitura, que colocariam o tema com seus
devidos contornos e interrelações com outros temas legislativos e sociais, fundamentais para
uma sociedade?

Referências bibliográficas
DE MORAES FREIRE, Silene (org.). Direitos humanos. Violência e pobreza na América
Latina contemporânea.
DE PAOLA; Fernanda Cristina e HOGAN, Daniel Jospeh. “Discutindo vulnerabilidade do
Lugar: Riscos e Perigos em Bairros de Campinas (SP)”. Trabalho apresentado no XVI
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29
de setembro a 03 de outubro de 2008. Disponível em
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=659&nivel=1 .
FRANCO LEAL, Giuliana. “‘Populações excluídas’: uma categoria de pesquisa viável?”
Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP,
realizado em Caxambu-MG, Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.
Disponível em:
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=659&nivel=1 ,
LUSSI, Carmem e MARINUCCI, Roberto. “Vulnerabilidade social em contexto migratório”
in http://www.csem.org.br/artigos_port_artigos07.html.
MARANDOLA JR., Eduardo e HAGAN, Daniel Joseph. “Vulnerabilidade do lugar vs.
vulnerabilidade sociodemográfica: implicações metodológicas de uma velha questão”
Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado
em Caxambu - MG – Brasil, de 29 de Setembro a 03 de Outubro de 2008. Disponível em
http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=659&nivel=1 .
MARINUCCI, Roberto. “Migrações e direitos humanos” disponível em
http://www.csem.org.br/artigos_port_artigos08.html.
Migrações internacionais e direitos humanos in REMHU – Revista Interdisciplinar da
Mobilidade Humana, vol. 16, n. 31, 2008.
SEYLA BENHABIB AND JUDITH RESNIK (ed). Migrations and Mobilities. Citizenship,
Borders, and Gender. New York and London: New York University Press, 2009.

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