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A revolução cubana e as intersecções de

gênero, raça e sexualidade.

Giselle Cristina dos Anjos Santos 1

Introdução

Existe uma vasta produção bibliográfica sobre a revolução cubana produzida


no Brasil, diversos aspectos foram enfatizados. Porém, poucos trabalhos
enfocaram nos temas das relações de gênero, raça e sexualidade no contexto de
transformações desta sociedade, e se investigou ainda menos a intersecção entre
esses diferentes marcadores sociais.
Neste artigo, possuo como objetivo discutir as intersecções entre os sistemas
de gênero, raça e sexualidade na sociedade cubana do contexto revolucionário,
entre 1959-2012, buscando problematizar se foram alteradas as representações
sociais atribuídas as mulheres negras. Para isto, serão utilizados dois grupos de
fontes de análise: discurso oficial e evidências orais. No primeiro, serão analisados
documentos da Federación de Mujeres Cubanas (FMC); Código de Família
(1975) e discursos de Fidel Castro, já no segundo, serão discutidos extratos de
entrevistas realizadas com mulheres negras moradoras da cidade de La Habana 2.
A revolução cubana de 1959 representa um marco histórico que inspirou as
esquerdas latino-americanas em suas estratégias para a construção dos projetos
políticos de emancipação na segunda metade do século XX. Antes da revolução
o grupo das mulheres negras possuía os maiores índices de vulnerabilidade,
ocupando a base da pirâmide social (MORALES, 2007, p. 209). Desta forma,
compreender a concepção político-ideológica que direcionou as ações voltadas às
mulheres e a população negra, mas em especial a mulher negra a partir de 1959,

1
Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); e-mail:
santos.gisellea@gmail.com.
2
As entrevistas utilizadas aqui foram realizadas durante os trabalhos de campos desenvolvidos
em Cuba, na cidade de Havana, para as minhas pesquisas de Iniciação Cientifica e Mestrado,
em março de 2009 e 2012 respectivamente.
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significa verificar o cerne e a magnitude do projeto político proposto e os níveis


de rupturas e permanências com o sistema anterior.
No tocante ao diálogo conceitual-metodológico, possuo como referências as
categorias analíticas de gênero 3 , raça 4 e sexualidade 5 , além do conceito de
interseccionalidade. Para este último, parto da definição da professora de Direito
Kimberlé Crenshaw (2002, p. 177), que aponta que a categoria de
interseccionalidade “busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da
interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. Assim, este conceito visa a
apreensão de como a articulação entre diferentes sistemas de opressão
particulariza e torna mais complexo o modo pelo qual determinados grupos
sociais vivenciam a desigualdade.
Para a categoria de representações sociais, assumo como referência a
formulação de Roger Chartier (1988), que a entende como figuras graças as quais
o presente pode adquirir sentido, ao permitir ver uma coisa ausente. Já com
relação a história oral, esta metodologia efetiva-se como um relevante instrumento
para a aproximação da história das mulheres negras, por definir-se como uma
alternativa documental frente aos “silêncios” sobre a experiência de grupos
historicamente invisibilizados pela historiografia tradicional (JELIN, 2002).

Antecedentes Históricos

A constituição de Cuba no século XVI, como colônia espanhola,


representou a formação de uma sociedade de estrutura hierárquica
fundamentada em assimetrias de gênero, classe e raça que inferiorizou as

3
A categoria analítica de gênero, definida por Joan Scott compreende as relações entre
mulheres e homens como construções histórico-culturais, marcadas por relações de poder
(SCOTT, 1992).
4
O conceito de raça não é entendido aqui a partir de uma noção biológica, mas como um
construto histórico que legitimou práticas de hierarquização e subordinação social de
diferentes grupos por meio de características do fenótipo (STOLCKE, 1991).
5
A categoria adotada parte das proposições de Foucault (2010), que entende que as práticas
eróticas são socialmente construídas a partir de relações de poder, articuladas por mecanismos
e dispositivos de saber-poder-prazer.
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sexualidade

mulheres, a população negra e pobre (STOLCKE, 1991). Porém, os grupos


marginalizados desenvolveram diferentes práticas de resistência, negociando sua
circulação nos espaços sociais (MENA, 2007).
Sob a administração espanhola, a ilha de Cuba teve um dos sistemas
escravistas mais importantes do século XIX 6 . Em 1817 a população negra
ultrapassou quantitativamente o percentual da população branca. Já nas décadas
de 1830 e 1840 cerca de 23% da população urbana era de negros livres (MENA,
2007). As ações de resistência da população negra se fizeram presentes ao longo
do período colonial. A partir de 1878, por exemplo, este grupo passou a se
articular politicamente nas Sociedades de Instrucción y Recreo de Pardos y
Morenos. Essas importantes Associações de Apoio Mútuo lutaram em defesa da
população negra, buscando a igualdade de direitos; a eliminação da discriminação
racial; a superação educacional e cultural; a independência de Cuba; a
perpetuação dos rituais e costumes ancestrais e a busca pela unidade política.
Estas associações possuíram também instâncias femininas que atuaram em defesa
das mulheres e famílias negras (MONTEJO, 2004).
Contudo, ademais da pressão, a abolição da escravidão só ocorreu em Cuba
no ano de 1886, sendo a penúltima do continente americano, ficando atrás
apenas do Brasil. O processo de independência cubano frente à Espanha foi
bastante longo e complexo, contando com a interferência direta do governo dos
Estados Unidos 7.

6
Após a revolução no Haiti houve o auge da indústria açucareira cubana entre 1790 e 1820,
quando a população escravizada cresceu expressivamente.
7
A independência de Cuba foi bastante complexa, ocorreram três guerras contra o poderio
espanhol ao longo do século XIX. Porém, o governo dos Estados Unidos agiu de maneira
estratégica, intervindo na última guerra contra a Espanha. Com a derrota do país europeu, o
governo norte-americano assinou um acordo que garantia a administração política de Cuba e
a ilha passou a ser seu protetorado. Tal condição permaneceu de 1898 até 1902, quando foi
proclamada a República de Cuba, mas a interferência do governo dos EUA permaneceu até
1959.
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Mas seja durante o período colonial ou após a independência da ilha, as


mulheres negras tiveram sua experiência forjada pela interseccionalidade de
sistemas combinados de opressão de gênero, classe e raça. Durante o século XIX
e o início do século XX vigoraram discursos 8 médico-higienistas, de cunho
disciplinador, propagando que mulheres negras e mulatas 9 tinham uma libido
sexual exacerbada e o contato sexual com elas produziria enfermidades de ordem
física e moral (ÁLVAREZ, 2003; MENA, 2007). Estes discursos construíram
representações subalternizadas que conformaram um imaginário social
estereotipado sobre o grupo.
Assim, apesar do discurso oficial propagar a fundação de “una nación para
todos” – tal como indica o título do livro do historiador Alejandro De La Fuente
(2001) – durante a república as hierarquias de gênero, classe e raça seguiram
estruturando as relações de poder. Por exemplo, o doutor Ramón Alfonso,
secretário da Comisión de Higiene Especial, afirmou em 1902 que as mulheres
negras viviam “en constante promiscuidad (…) y favorecidas por todos los medios
de su instinto lascivo para que procreara. No podían ser más que unas prostitutas
y no podían dar más que hijas prostitutas también” (ALFONSO, 1902, p. 12 apud
GARCÍA, 2009, p. 42).
Ademais, a intervenção política estadunidense marcou a história de Cuba
em diferentes aspectos, inclusive no que tange as relações de gênero 10 e raça 11.

8
Foucault (1999) define o discurso como um arquivo de imagens e afirmações que forjam uma
linguagem comum, possibilitando representar sentidos e conhecimentos sobre um
determinado tema.
9
A categoria “mulata” é empregada aqui, mesmo com o entendimento sobre o seu significado
etimológico problemático, como expressão linguística que denota hierarquias coloniais. A sua
utilização busca respeitar as classificações sociais vigentes historicamente.
10
Em 1919 foi instaurada nos Estados Unidos a lei seca (Volstead Act), que proibia a venda
de bebidas alcoólicas, os empresários que tiveram seus negócios fechados passaram a abrir
bares e cabarés em La Habana, com isto cresceu expressivamente, o já latente, fenômeno da
prostituição.
11
Em 1928 foi criada a Ku Klux Klan Kubana, uma sucursal da organização racista
estadunidense. Ela disseminou um discurso de ódio racial contra a população negra e
desenvolveu ataques terroristas contra as Associações de Apoio Mútuo da população negra
(DE LA FUENTE, 2001).
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sexualidade

Pois, através da música e do cinema, o mercado turístico dos EUA construiu o


imaginário social de que Cuba era o país da desinibição sexual (ÁLVAREZ,
2003). A sociedade cubana ficou conhecida internacionalmente como “bordel
norte-americano” 12 e os produtores desta propaganda sexualizada se apropriaram
de hierarquias de gênero, classe e raça já existentes nesta sociedade, edificando
como ícones de uma sexualidade lasciva as mulheres negras e mulatas.
Neste sentido, fica explícito que a desigualdade que vigorou em Cuba entre
o contexto colonial e o período republicano, não foi determinada apenas pela
classe, mas também foi diretamente constituída pelos sistemas de opressão de
gênero, raça e sexualidade.

Revolução cubana: a constituição de novos valores e os temas de gênero, raça e


sexualidade

Com o êxito revolucionário em janeiro de 1959 o novo governo13 priorizou


investimentos nos setores de educação, saúde e emprego, considerados
fundamentais para o desenvolvimento social, gerando mudanças significativas,
principalmente para os mais pobres.
Os primeiros anos da revolução foram momentos de grande efervescência
política e participação popular. Os líderes da revolução defenderam ser
imprescindível a constituição de novos valores, compatíveis com a nova sociedade
socialista. Para Che Guevara, somente seria possível transformar o modo de
produção econômica com a mudança da consciência individual e a criação do
“homem novo”.

12
Os índices referentes ao turismo internacional passaram de 33.000 em 1914 para 200.000
turistas em 1945, e o número de cabarés e casas de prostituição registradas oficialmente, foram
de 4.000 em 1912 para mais de 13.000 estabelecimentos em 1950 (ÁLVAREZ, 2003, p. 23).
13
O governo revolucionário possuía orientação nacionalista e anti-imperialista, mas se declarou
socialista em abril de 1961, após a invasão da Praia Girón e a ruptura de relações definitivas
com o governo dos EUA. A partir de então, o vínculo político com a URSS se tornou cada
vez mais estreito (GOTT, 2006).
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Os princípios socialistas não foram valores isolados da vida cotidiana, eles


foram reafirmados nos espaços de trabalho, educação, na imprensa, produção
cultural, nas organizações de massa, na nova legislação, etc. Ou seja, abarcavam a
vida pública e privada. Segundo Baczkó (1985), o manusear de símbolos através
de elementos discursivos e empíricos é fundamental para a transformação de
imaginários sociais para justificar ações políticas, conflitos sociais e revoluções,
corroborando para a legitimação do grupo em exercício no poder.
No tocante das relações de gênero, o Estado socialista reconheceu a
existência de desigualdades sociais entre mulheres e homens. Assim, a
“emancipação feminina”, como passou a ser chamada, foi definida como uma
das prioridades no discurso político do governo (CASTRO, 1979;
MINISTERIO DE JUSTICIA, 1977).
Alegando defender a unidade política, o governo criou as organizações de
massas 14 , para aglutinar e direcionar a atuação popular. Dentre elas estava a
Federación de Mujeres Cubanas (FMC), que foi fundada em 1960 com a
finalidade de integrar a mulher à nova sociedade, visando o seu aperfeiçoamento
social e cultural, representando a ponte entre o Estado e a população feminina
(ESPÍN, 1990). Desta forma, as cerca de 920 associações e coletivos de mulheres
existentes em todo o país até 1959, foram extintas a partir da criação da FMC
(VASSI, 2006). A federação foi presidida por Vilma Espín 15, desde a sua fundação
em 1960 até 2007, quando a mesma faleceu aos 77 anos. Segundo as palavras de

14
As organizações de massas foram criadas a partir da iniciativa estatal para engajar a população
nas ações da revolução, elas possuíam comitês nos bairros e espaços de trabalho. As criadas
inicialmente foram: Comités de Defensa de la Revolución; Asociación de Jóvenes Rebeldes;
Asociación Nacional de Agricultores Pequeños, etc. Surgiram outras organizações no decorrer
dos anos, chegando a cerca de 170 no total.
15
Vilma Espín Guillois foi uma das mulheres que atuou no processo revolucionário,
combatendo na luta armada na Sierra Maestra. Ela se casou em 1959 com Raul Castro, irmão
e sucessor de Fidel. Além de presidenta da FMC, Vilma presidiu a Comisión Nacional de
Prevención y Atención Social e a Comisión de la Niñez, la Juventud y la igualdad de derechos
de la Mujer, atuou na Asamblea Nacional del Poder Popular, e ainda, foi uma das poucas
mulheres que integrou o Comité Central del Partido Comunista Cubano. Vilma presidiu a
FMC desde a fundação em 1960 até a sua morte aos 77 anos de idade, em julho de 2007.
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sexualidade

Vilma: “Las mujeres cubanas, bajo la orientación directa de nuestro gran líder
Fidel, tomamos el camino de la unidad, fundiéndonos en una sola organización.”
(ESPÍN, 1990, p. 6).
Com o apoio da FMC, as mulheres dos diferentes grupos raciais, foram
convocadas a integrar a sociedade socialista em construção, cumprindo as novas
funções sociais que lhes foram arrogadas pelo governo revolucionário, como:
trabalhadoras, mães e formadoras das novas gerações (ESPÍN, 1990, p. 86).
O fenômeno da prostituição foi definido como um desafio a ser superado.
Estima-se que no ano de 1958, quando a população cubana representava 6
milhões de pessoas, cerca de 100 mil mulheres se prostituíam na ilha
(ELIZALDE, 1996). Para combater o problema o governo fechou todos os
bordéis, ofereceu qualificação profissional para as mulheres e disponibilizou
atenção aos seus filhos. Segundo Díaz e González (1997, p. 169) foi realizado o
“internamiento en granjas agrícolas y medidas carcelarias para las pocas que aún
continuaban ejerciendo” tal função. Assim, a prostituição foi declarada
oficialmente extinta em 1965. No entanto, ela não deixou de existir no contexto
revolucionário, ainda que restritamente 16.
Corroborando com a perspectiva de constituir novos valores sociais, o
Código de Família foi aprovado em 1975. Baseado na moral socialista e com
inspirações na legislação vigente na Rússia, este Código passou a definir o papel
de mulheres e homens no lar, ratificando os preceitos defendidos na nova
sociedade. Em resumo, seus principais objetivos eram:

Al fortalecimiento de la familia y de los vínculos de cariño,


ayuda y respeto recíproco entre sus integrantes;

16
Segundo Teresa Díaz e Graciela González (1997, p. 173) existiram focos de prostituição
associados à atividade marítima e portuária durante os anos 1970 e 1980. Além da prostituição
dirigida a homens que ocupavam altos postos do escalão do governo, do exército e do corpo
diplomático.
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Al fortalecimiento del matrimonio legalmente formalizado o
judicialmente reconocido, fundado en la absoluta igualdad de
derechos de hombre y mujer;
Al más eficaz cumplimiento por los padres sus obligaciones con
respecto a la protección, formación moral y educación de los
hijos para que se desarrollen plenamente en todos los aspectos
y como dignos ciudadanos de la sociedad socialista;
A la plena realización del principio de la igualdad de todos los
hijos. (MINISTERIO DE JUSTICIA, 1977, p. 284-285)

O Código de Família demonstrou um avanço político ao proclamar a


igualdade de direitos entre mulheres e homens, indicando inclusive, a divisão de
responsabilidades com as tarefas do lar. Entretanto, este extrato explícita que o
modelo familiar postulado no documento é unidimensional e se baseia em
referenciais da família nuclear, monogâmica e heteronormativa. Ou seja, a moral
socialista defendida pelo governo cubano esteve norteada por parâmetros que
poderiam ser vinculados a valores da velha moral burguesa, que historicamente
privilegiou a figura do homem branco, proprietário e heterossexual.
Na prática, vigorou uma lógica conservadora com relação ao tema da
sexualidade. Por exemplo, a homossexualidade foi definida como uma
experiência incompatível com os novos valores instituídos, o governo a
considerou como uma forma de desvio social que deveria ser corrigida. Entre
1965 e 1968, aproximadamente, as pessoas classificadas com “conducta
impropria” 17 , dentre elas os homossexuais, foram presas e enviadas para as
Unidades Militares de Ayuda a la Producción (UMAP’s), que funcionaram como
campos de trabalhos forçados para reeducar os desvios mediante o trabalho
político, ideológico e produtivo (SIERRA, 2006).
O I Congresso Nacional de Educação e Cultura de 1971, que representa um
marco na política cultural da revolução (MISKULIN, 2009), também definiu

17
Conduta imprópria e anti-sociais, foram classificações empregadas para designar pessoas
consideradas perigosas para a sociedade revolucionária por diferentes motivos. Os grupos
mais perseguidos foram os considerados contra-revolucionários, homossexuais, hippies ou
indivíduos que faziam apologia aos “estrangeirismos” e alguns religiosos, como os integrantes
da igreja Testemunhas de Jeová e os abakuás (SIERRA, 2006).
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sexualidade

diretrizes sobre a sexualidade, em especial o tratamento que deveria ser destinado


aos homossexuais:

Não se pode permitir que por seus ‘méritos artísticos’,


reconhecidos homossexuais influenciem a formação de nossa
juventude. Consequentemente, é necessário analisar como se
deverá encarar a presença de homossexuais nos diversos
organismos da frente cultural. Sugeriu-se o estudo de medidas
que permitam o encaminhamento para outros organismos
daqueles que, sendo homossexuais, não devam ter participação
direta na formação de nossa juventude a partir de atividades
artísticas ou culturais. Deve-se evitar que nosso país seja
representado artisticamente no estrangeiro por pessoas cuja
moral não corresponda ao prestígio de nossa Revolução.
(RESOLUÇÕES, 1980, p. 29)

Portanto, a política de perseguição aos homossexuais que já se encontrava


vigente desde os anos 1960, teria se institucionalizado em 1971. Porém, Álvarez
(2003) defende que a homofobia, que já era um elemento da identidade cultural
cubana, não foi apenas institucionalizada, mas convertida efetivamente em valor
nacional no contexto revolucionário.
No tocante ao aspecto racial, reafirmando a antiga leitura dos políticos no
poder que a compreenderam como uma temática “divisionista”, o governo
assumiu a existência de desigualdades entre negros e brancos, mas declarou tê-las
superado em 1962, alegando a eliminação do racismo com a supressão de
aspectos jurídicos que impediam a igualdade de direitos (DE LA FUENTE,
2001). Segundo Morales (2007), já que para as autoridades o racismo havia sido
superado, passou-se a tratar a temática racial como um tabu e os que tentaram
questionar tal silenciamento foram reprimidos. Criou-se um ambiente onde se
autoafirmar racialmente ou tratar sobre o tema era interpretado como um
retrocesso e sinônimo de racismo às avessas.
Não foi criada uma organização de massas para aglutinar e mobilizar a
população negra enquanto grupo, tal como aconteceu com as mulheres, mas
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ocorreu o contrário. Já que as centenas de unidades das Sociedades de


Instrucción y Recreo de Pardos y Morenos existentes desde 1878, foram fechadas
a partir de 1960 (GOTT, 2006). Encerraram-se inclusive, as instâncias femininas
dessas associações, dedicadas a valorizar as mulheres e as famílias negras.
Ou seja, além de o Estado não ter desenvolvido políticas direcionadas para
a superação do racismo, ainda baniu os espaços de promoção da identidade e da
luta negra existentes até então.
Analisar a trajetória de alguns intelectuais e artistas negros(as) evidencia as
tensões entre incorporação e ostracismo existentes na conduta do Estado
destinada a quem coadunou18 ou questionou a política racial, como demonstra o
episódio que antecedeu o Congreso Cultural de La Habana em janeiro de 1968.
Dias antes deste congresso o ministro da educação José Llanusa, convocou
uma reunião com intelectuais e artistas negros(as) considerados
“problemáticos” 19 . Eles foram acusados de articular reuniões para redigir um
“manifesto negro” sobre as desigualdades raciais em Cuba para apresentar no
referido congresso. Llanusa afirmou que o Estado não iria tolerar atividades que
“dividissem o povo cubano” em termos raciais e somente “inimigos da
Revolução” iriam insistir em um assunto já resolvido pelo governo. Esses(as)
intelectuais foram proibidos de comparecer no Congreso Cultural de La Habana,

18
Nicolás Guillén, o principal expoente da poesia negrista em Cuba na década de 1930, exaltou
a contribuição da cultura africana para a identidade nacional, denunciando o racismo
vivenciado pela população negra em suas poesias. Integrante do Partido Comunista desde
1937, após a revolução Guillén foi eleito o “poeta nacional de Cuba”, passando a presidir a
UNEAC (Unión Nacional de Escritores y Artistas de Cuba) em 1961, posição onde
permaneceu até a sua morte em 1989. Porém, após 1959 Guillén passou a defender que a
desigualdade racial havia sido totalmente superada (DE LA FUENTE, 2001).
19
Os(as) intelectuais e artistas negros(as) convocados(as), foram: Walterio Carbonell (jornalista
e etnólogo), Rogelio Matinez Furé (etnólogo e poeta), Nancy Morejón (poetiza), Nicolás
Guillén Ladrian e Sara Goméz (cineastas), Alberto Pedro e Pedro Deschamps Chapeaux
(etnologistas), Luis Saenz e Juan Manuel Casanova (escritores e jornalistas), Eugenio
Hernández e Gerardo Fulleda León (dramaturgos), Esteban Cárdenas, Pedro Pérez Sarduy,
Wichy el negro, Manuel Granados, Serafin Quiñones e Ana Justina (escritores).
268 A revolução cubana e as intersecções de gênero, raça e
sexualidade

além de terem sido reprimidos de diferentes maneiras individualmente


(MOORE, 1988, p. 310 apud MISKULIN, 2009, p. 186).
Um dos casos mais emblemáticos neste sentido, envolve o intelectual negro
Walterio Carbonell. Ele era integrante do Partido Comunista de Cuba desde a
década de 1940, publicou o livro Critica: Cómo surgió la cultura nacional em
1961, mas passou a sofrer retaliações do governo. Neste livro, Carbonell
demonstrou a contribuição da população negra à sociedade cubana e se
utilizando de conceitos teóricos marxistas defendeu a necessidade de tratar a
desigualdade racial mesmo após o êxito revolucionário (CARBONELL, 2008).
Porém, sua posição não condizia com o discurso oficial e por este motivo o livro
foi recolhido das livrarias. Mais tarde, Carbonell foi preso e enviado para uma
UMAP, onde passou anos. Após a sua libertação, com sérios problemas de saúde
adquiridos no período em que esteve preso, Walterio viveu no ostracismo
absoluto 20.
A trajetória de Carbonell evidencia que não foram apenas os homossexuais
que foram enviados para as UMAP’s, aspecto geralmente mais visibilizado. Fora
ele, outros intelectuais e artistas negros e negras que não coadunaram com a
retórica do Estado sobre a temática racial foram perseguidos no contexto
revolucionário (DE LA FUENTE, 2001). Além disso, adeptos das religiões de
matriz africana também foram alvos de repressão. Por exemplo, a religião Abakuá
foi criticada durante o I Congresso Nacional de Educação e Cultura de 1971, por
supostamente conduzir a juventude à delinquência (MISKULIN, 2009, p. 228).
Morales (2007, p. 209) defende que houve distinções no tratamento entre
as temáticas de raça e de gênero no contexto revolucionário, pois enquanto as
mulheres se articularam em uma organização e receberam políticas específicas, a
população negra foi anulada enquanto grupo social. No entanto, acredito que tais

20
O livro Critica: Cómo surgió la cultura nacional teve uma reedição comemorativa em 2004,
mas o livro não foi vendido livremente e pouquíssimas pessoas tiveram acesso ao mesmo.
Carbonell morreu no ano de 2008.
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distinções foram apenas aparentes, pois no cerne das ações empreendidas para
ambos os grupos encontra-se o mesmo ideal de homogeneização. Como exemplo
disto, a FMC, única organização de mulheres existente, não possuía autonomia
efetiva e foi conduzida pelo governo, constituído majoritariamente por homens.
Ao analisar o discurso de representantes da FMC, é possível apreender que
a autonomia política das mulheres cubanas e a sua presença nos espaços de poder
não foi uma prioridade, nem mesmo no interior da própria organização:

Al hablar de los logros alcanzados y de la línea de trabajo


seguida por la Federación, debemos resaltar que en ellos a sido
factor fundamental la acertada dirección de Fidel, conductor
excepcional de la Revolución y su Partido, que ha tenido una
profunda y real concepción acerca del papel de la mujer en la
sociedad, y ha depositado su plena confianza en la masa
femenina y en la Federación, situándonos tareas de alta
responsabilidad en el proceso, desde los días gloriosos de la
Sierra Maestra hasta la etapa actual de construcción del
socialismo, trazando siempre las proyecciones adecuadas de
nuestro trabajo. (ESPÍN, 1990, p. 86)

Com o direcionamento e a imputação dos aspectos positivos de seu trabalho


à figura de um homem, ficam evidentes a falta de autonomia política da FMC, a
postura paternalista do Estado, tal como a vigência de uma concepção
personalista nesta sociedade. Desta forma, sem problematizar e desconstruir as
representações de gênero, foi mantida a naturalização da presença dos homens 21

21
Uma pesquisa realizada pela FMC em 1988 com cinco mil cubanos, com igual número de
mulheres e homens, buscou compreender a preferência por candidatos do sexo masculino
nas eleições do Poder Popular. Ao serem questionados sobre as suas predileções, 60% dos
entrevistados responderam que não havia distinções entre serem dirigidos por uma mulher ou
por um homem. Porém, mais da quarta parte declarou possuir preferência pela autoridade
masculina. Esta resposta foi dada tanto por homens como por mulheres, 28,5% e 24,2%
respectivamente. Quando foram questionados se consideravam os homens melhores
dirigentes, 37,9% das mulheres e 43,3% dos homens responderam que sim. Dos 2.110
entrevistados que responderam positivamente à pergunta, 56% justificaram afirmando que os
homens possuem mais oportunidade e tempo que as mulheres, e 30% afirmaram que os
homens têm maior capacidade por natureza para exercer tais funções (ÁLVAREZ, 1998).
270 A revolução cubana e as intersecções de gênero, raça e
sexualidade

nos espaços de decisão política do país (BOBES, 2000), constituindo um


“modelo deliberadamente masculinista de autoridad” (MOLYNEUX, 2003, p.
201) na sociedade cubana. E além da supremacia masculina, os espaços de poder
também estiveram racialmente definidos pelo símbolo da branquitude 22.
Ademais, as novas funções sociais atribuídas às mulheres no período
revolucionário, enquanto trabalhadoras, mães e formadoras das novas gerações,
não foram de fato novas tarefas, tal como não foram necessariamente pautadas
por novos valores. Até mesmo a proposta de inserção ao trabalho remunerado,
não foi totalmente inovadora, pois parcelas significativas de mulheres pobres,
principalmente as mulheres negras, já trabalhavam antes de 1959.
Portanto, mesmo que os líderes da revolução tenham enfatizado na
necessidade da constituição de novos valores sociais a partir de 1959, pelo menos
com relação aos temas de gênero, raça e sexualidade foram mantidos muitos dos
repertórios vigentes no contexto anterior. Neste sentido, cabe questionar se ainda
assim foi possível transformar as representações historicamente atribuídas para as
mulheres negras durante o contexto revolucionário?

Crise do Período Especial: reaparecimento ou visibilidade das desigualdades de


gênero, raça e sexualidade?

Com a queda do bloco soviético, a base de relações políticas e econômicas


de Cuba a partir de 1959, adentrou-se em uma profunda crise econômica
denominada de “período especial em tempos de paz”. Ocorreram mudanças
estruturais significativas desde então, como a reforma da constituição; aprovação
da lei de investimento estrangeiro; abertura para o turismo internacional,
despenalização do dólar e a criação do CUC, etc. (BOBES, 2001; HOLGADO,
2002).

22
Ware define a branquitude como uma categoria que “se afigura o estado normal e universal
do ser, o padrão pelo qual todo o resto é medido e em cotejo com o qual todos os desvios são
avaliados.” (WARE, 2004, p. 17).
Giselle Cristina dos Anjos Santos 271

Essas transformações geraram desigualdades entre a população, criando


divisões entre os que teriam ou não, acesso à economia do dólar 23. Segundo Velia
Bobes (2001, p. 84), a homogeneização austera do consumo desde os anos 1960
havia atenuado, em certa medida, as tensões das identidades individuais como
campo problemático na sociedade socialista. No entanto, a partir dos anos 1990
as novas condições sociais demonstraram o fim do projeto de uniformidade, visto
que os diferentes grupos começaram a distanciar-se em relação aos níveis e tipos
de consumo, e com isto surgiram “estilos de vida” muito distintos entre si. Além
disso, ocorreu o fenômeno denominado por Ana Alcázar (2009) como
“apartheid turístico”, entre os nacionais e os estrangeiros24.
Ademais, a crise econômica não foi vivenciada da mesma forma por
mulheres e homens. Pois elas, que já eram vítimas da dupla jornada de trabalho,
se viram ainda mais sobrecarregadas durante o período especial. Com a redução
ou o fim de políticas sociais que atenuavam algumas atividades do lar, além da
imposição de uma economia de escassez e racionamento, aumentou
significativamente a jornada do trabalho doméstico para as mulheres.
Evidenciando que o Código de Família não foi capaz de superar as hierarquias
de gênero no interior das famílias 25.

23
Com a despenalização da moeda norte-americana; o aumento das remessas de dinheiro de
familiares do exterior; a criação do CUC (também denominado de peso convertible) e as
Tiendas de Recuperácion de Divisas, além do pagamento de alguns trabalhos ligados ao
turismo internacional com o CUC (que vale 25 vezes mais que o peso nacional, que seria
equiparável ao EURO), potencializaram-se as diferenciações de consumo entre os cubanos.
24
Com a grande valorização do aporte econômico proveniente do setor turístico, foram
sancionadas leis que concederam certos “privilégios” aos investidores e turistas estrangeiros,
em detrimento dos direitos da população nacional, como a restrição dos últimos, para acessar
espaços destinados ao turismo. Desta forma, foi negado o direito aos nacionais de entrarem
em determinadas zonas do país, principalmente praias (como Varadero e Los Cayos), além da
restrição de ingresso em hotéis. Somente no ano de 2008, o presidente Raúl Castro revogou
as leis que proibiam o acesso de cubanos a determinados locais voltados para o turismo.
25
Uma pesquisa sobre o uso do tempo constatou que as mulheres trabalhadoras dedicavam
trinta e seis horas por semana do seu tempo livre no desenvolvimento de tarefas domésticas.
Em contraposição os homens trabalhadores destinavam doze horas semanais para as
atividades do lar. Ademais, as tarefas executadas por eles eram mais leves em comparação as
272 A revolução cubana e as intersecções de gênero, raça e
sexualidade

Outra problemática explicitada com a crise, após a reabertura do país para


o turismo internacional, foi o “retorno da prostituição”, fenômeno que passou a
ser chamado de jineterismo 26 neste período. Mas ainda que a prostituição
feminina tenha se tornado muito mais visível, elas não foram as únicas a exercer
essa atividade 27. Até porque, o jineterismo representa uma atividade complexa,
que além de ter sido fomentada por uma ampla rede 28 envolvida no turismo
sexual, ainda extrapolava o sentido econômico para a pessoa que se prostituía.
Pois, mais do que dinheiro propriamente, o(a) turista poderia oferecer acesso à
bens e serviços inalcançáveis para a maioria da população cubana, sendo também
uma alternativa para a imigração legal, já que o casamento com estrangeiros
consistia em uma das poucas alternativas para obter a permissão legal para sair do
país 29.
A crise também afetou a FMC, que diminuiu as suas atividades devido à
queda nos recursos econômicos e na disponibilidade para o trabalho voluntário
por parte das federadas. Porém, segundo Molyneux (2003) o fator preponderante
para a desmobilização, encontra-se na pouca (ou quase nenhuma) renovação na

atividades desenvolvidas pelas mulheres (OFICINA NACIONAL DE ESTADÍSTICAS,


2001).
26
Segundo Alcázar (2009) este neologismo se reinventa constantemente e expressa os limites
na interação entre nacionais e estrangeiros, a origem da expressão seria a derivação do
substantivo “jinete”, em referência ao ato sexual de “cavalgar o turista”, pois a noção sexual
seria o sentido mais empregado ao termo.
27
Apesar do “silêncio” sobre a prostituição masculina, muitos cubanos utilizaram os
relacionamentos com estrangeiras como estratégia para inserção à nova economia e alternativa
para sair do país. Mas segundo Holgado (2002, p. 263), “En una sociedad que glorifica los
atributos masculinos, los hombres no se cosifican. Ellos seducen y conquistan, mientras ellas
se entregan y comercian su cuerpo. Son ellas las únicas que deben ser reeducadas.”
28
A rede ligada ao turismo sexual incluía desde funcionários de hotéis e restaurantes, taxistas,
fotógrafos, funcionários de agências de viagens no exterior, proxenetas e, até mesmo, policiais,
que realizavam extorsões em troca de poupar as jineteras da prisão (HOLGADO, 2002).
29
Até o ano de 1998 os matrimônios com estrangeiros já ultrapassavam os 30 mil, sendo os
maiores índices de casamentos com italianos (HOLGADO, 2002). Homens de meia idade
passaram a encontrar em Cuba um mercado matrimonial para abandonar a solidão, como
demonstra o filme Flores de otro mundo (1999) de Icíar Bollaín.
Giselle Cristina dos Anjos Santos 273

liderança política da FMC. Ao passo que prevaleceram concepções


conservadoras que priorizaram o apoio e a legitimação do governo, ao invés de
apresentar respostas compatíveis com as necessidades das mulheres no novo
cenário político e econômico. Inclusive, o discurso de Vilma Espín com relação
ao jineterismo evidência não apenas uma perspectiva conservadora, como um
posicionamento machista 30.
Ademais, a crise também foi vivenciada de modo diferenciado pela
população negra. As desigualdades raciais cresceram substancialmente durante o
período especial, pois no processo de reestruturação econômica, a população
negra não teve o mesmo acesso ao CUC que os brancos. Até porque, os índices
da população negra vivendo no exterior são significativamente inferiores aos de
cubanos brancos31, o que reduz as possibilidades de receber dinheiro de familiares
por parte dos(as) integrantes deste grupo. Além disso, mesmo constituindo um
número considerável dos funcionários do setor de serviços até a década de 1980,
a população negra ficou sub-representada na área turística a partir da reabertura,
encontrando obstáculos para empregar-se neste campo, que se tornou a principal
fonte de ingresso da economia do dólar no país (MORALES, 2007). De La
Fuente (2001) aponta que mulheres e homens negros foram depreciados no setor
turístico, de grande influência dos investidores estrangeiros, devido a
permanência de representações subalternas como a imagem de preguiçosos,
sujos, feios e com tendência a desenvolverem atividades ilícitas 32.

30
Em 1995 Vilma Espín declarou: “dolorosos son los casos de prostitución que han aparecido
entre gente débil, familias sin ética, muchachas que son una gran verguenza para el país y no
reparan en la degradación moral que padecen. (...) La mayoría proceden de hogares con poca
ética o sencillamente, gente muy depravada que acepta que sus hijas vivan así porque también
se benefician. Muchas son jóvenes desarticuladas del hogar y unas pocas sin que la familia lo
sepa. Al menos ésas tienen un mínimo de moral, sienten alguna verguenza.” (PERIÓDICO
GRANMA 28/02/1995 apud HOLGADO, 2002, p. 258).
31
A partir do censo realizado nos Estados Unidos no ano de 1990, constatou-se que 83,5%
dos cubanos que vivem naquele país se autodeclaram racialmente como brancos (DE LA
FUENTE, 2001, p. 437).
32
Como a população negra não teve as mesmas chances de inserção na economia do dólar,
muitos utilizaram como estratégia de adaptação à crise atividades ilícitas, como a atuação no
274 A revolução cubana e as intersecções de gênero, raça e
sexualidade

Neste sentido, o fenômeno cunhado por Alcázar (2009) como “apartheid


turístico”, estaria nitidamente marcado pelo fator racial, onde os(as) turistas,
majoritariamente brancos(as), não deveriam ser atendidos por funcionários(as)
cubanos(as), caso eles/elas fossem negros(as). Entretanto, essas representações
não estariam reservadas apenas a concepção dos administradores do setor
turístico. Segundo De La Fuente (2001), uma pesquisa realizada na capital do país
revelou que 58% dos(as) brancos(as) consideravam que a população negra era
menos inteligente; além disso, outro estudo realizado em Santiago de Cuba e La
Habana em 1994, apontou que 75% dos(as) entrevistados(as) estavam de acordo
que o preconceito racial seria uma prática comum na ilha33.
Ocorreu um nítido crescimento nos casos de discriminação, pois no início
da revolução o preconceito racial foi vinculado a uma postura anti-igualitária e,
consequentemente, contra-revolucionária, porém no cenário político
desencadeado pela crise, onde o apoio à revolução deixou de ser tão significativo,
abriu-se espaço para o desenvolvimento de expressões públicas de discriminação
racial. Até porque, o próprio Estado se tornou o principal responsável por
promover práticas públicas de discriminação, por meio de abordagens policiais
sistemáticas contra a população negra nas ruas (SANTOS, 2013).
Portanto, o contexto da crise trouxe à tona que mais de três décadas de
políticas igualitárias não foram suficientes para desconstruir o fardo de
representações inferiores atribuídas às mulheres e homens negros. Até porque,
como discutido anteriormente, o governo não realizou a desconstrução dos
estereótipos raciais, acreditando na superação do racismo por meio de um

mercado de câmbio paralelo e no jineterismo. De La Fuente denominou isto como a


concretização da “tragedia del racismo” (2001, p. 451), onde são cerceadas as oportunidades
de um grupo racial devido à existência de supostos vícios e características negativas, e assim, a
falta de oportunidades condiciona o desenvolvimento de ações “negativas” por parte de seus
membros, cumprindo o papel de justificar a exclusão e naturalizar as representações de
inferioridade formulada.
33
Na pesquisa realizada por Selier e Hernández (2002, p. 87) na cidade de La Habana no ano
de 2001, 94% dos entrevistados reconheceram a existência de discriminação racial em Cuba.
Giselle Cristina dos Anjos Santos 275

decreto. Contudo, existe uma diferença entre uma proposta discursiva de não-
discriminação, com sentido abstrato, e o desenvolvimento efetivo de políticas de
promoção da equidade racial. Assim, a lógica de silenciamento imposta gerou
efeitos nefastos, tanto no imaginário dos brancos, como para o processo de
construção identitária da população negra 34.
Somente em 2003, ou seja, quarenta e quatro anos após o êxito
revolucionário, que o Estado socialista reconheceu a permanência de
desigualdades raciais na ilha 35 . Neste discurso Fidel estabeleceu comparações
entre o impacto da revolução na vida das mulheres e dos negros:

Dicho con palabras más crudas y fruto de mis propias


observaciones y meditaciones: habiendo cambiado
radicalmente nuestra sociedad, si bien las mujeres, antes
terriblemente discriminadas y a cuyo alcance estaban sólo los
trabajos más humillantes, son hoy por sí mismas un decisivo y
prestigioso segmento de la sociedad que constituye el 65 por
ciento de la fuerza técnica y científica del país, la Revolución,
más allá de los derechos y garantías alcanzados para todos los
ciudadanos de cualquier etnia y origen, no ha logrado el mismo
éxito en la lucha por erradicar las diferencias en el status social
y económico de la población negra del país, aun cuando en
numerosas áreas de gran trascendencia, entre ellas la educación
y la salud, desempeñan un importante papel. (CASTRO, 2003)

Tal discurso evidência as concepções de Fidel sobre mulheres e negros. Ele


os apresenta como grupos sociais monolíticos e uniformes, desconsiderando a
classificação racial das mulheres, apesar de transparecer o entendimento de que
todas são brancas, tal como ignora a diversidade de gênero da população negra,
demonstrando a noção de que todos são homens. Neste sentido, fica explicita a

34
Na investigação de Selier e Hernández (2002, p. 85) sobre a identidade racial da população
negra em La Habana, foi constatado o desconhecimento sobre a contribuição do negro na
história da nação cubana por parte dos entrevistados, e assim as autoras questionaram: “¿Hacia
dónde va un grupo privado de su historia?”.
35
Vale apontar que já tinha sido reconhecida por Fidel, durante o III Congresso do PCC em
1986, a necessidade de aumentar o número de mulheres, jovens e negros nos altos níveis de
hierarquia do PCC.
276 A revolução cubana e as intersecções de gênero, raça e
sexualidade

complexidade que marca a experiência das mulheres negras em Cuba, e a


importância da utilização do conceito de interseccionalidade, pois mesmo entre
os grupos sociais historicamente marginalizados dos quais faz parte, a figura das
mulheres negras foi ainda mais invisibilizada e silenciada.
Porém, para além da lógica de anulação, defendo que a imagem da mulher
negra passou a ser interpretada em Cuba a partir de um paradoxo entre
invisibilidade e silêncio versus representações subalternas, que ficaram ainda mais
visíveis durante a crise, com a reabertura para o turismo internacional. Inclusive,
na pesquisa de Guillard (2004) sobre a representação gráfica e os estereótipos da
mulher negra na publicidade, foi constatada a sua quase inexistência e
invisibilidade, mas quando a sua figura está representada é basicamente em
anúncios de turismo onde jovens negras e mestiças aparecem seminuas.
A vigência de tal ambivalência marca não apenas o plano discursivo, mas
impacta na experiência cotidiana das integrantes deste grupo. Uma de nossas
entrevistadas36, ao ser questionada se as imagens atribuídas as mulheres negras
teriam mudado em Cuba a partir do período especial, respondeu:

No creo que las imágenes hayan cambiado, ellas ya estaban y


ahora peyoraron, pero siempre estuvieran hay. Las imágenes
son reproducidas en la televisión, en el cine, en el arte, en la
artesanía y la literatura, en todas las partes existe este tipo de
imagen. Tienen imágenes sexistas en muchas películas cubanas,
donde se ponen las mujeres negras generalmente como las más
sensuales, las más calientes. Así lo construye un marco sensual,
como si tú no pudieras ser más nada que eso. (Freddy, 23 anos)

Já outra interlocutora, afirmou:

De manera que se yo nací una mujer negra cubana y soy joven,


no puedo ser otra cosa, incluso se soy universitaria, que
prostituta. Yo de alguna manera voy a intentar prostituirme,
para sacar partido de esto, para la sociedad, voy tentar

36
Para preservar a identidade das entrevistadas estão sendo utilizados nomes fictícios.
Giselle Cristina dos Anjos Santos 277
acercarme de esto, mismo que yo aun pertenezca al mundo de
la intelectualidad, soy una negra cubana. (Odaymara, 45 anos)

Portanto, de acordo com a compreensão das duas entrevistadas, a


representação hegemônica sobre as mulheres negras em Cuba além de
subalternizada, estava intrinsicamente vinculada a símbolos de hiper-sexualização.
Logo, a crise não fez reaparecer, mas explicitou a vigência de estereótipos
existentes no imaginário social desde o período colonial e republicano.

Considerações finais

Apesar da aparente distinção entre as políticas de gênero, raça e sexualidade


durante o período revolucionário, uma mesma lógica permeou o cerne das ações,
pois o governo cubano compreendeu esses temas enquanto questões secundárias.
No entanto, a população negra foi significativamente prejudicada, com a
imposição da lógica de “silêncio” sobre o tema racial.
Contudo, as mulheres negras foram afetadas de um modo ainda mais
complexo, devido a intersecção dos sistemas de opressão de gênero, raça e
sexualidade, que conformou o paradoxo entre a posição de invisibilidade e
silêncio versus a vigência de representações subalternas, atreladas a imagens
hipersexualizadas. Portanto, ainda que a escolarização massiva e o crescimento
da qualificação profissional de que as mulheres negras também foram
beneficiárias a partir de 1959 tenham favorecido a diversificação dos espaços de
inserção do grupo, isso não foi suficiente para a construção de um novo quadro
simbólico de representações.
Até porque, o racismo (assim como a opressão de gênero) não é apenas um
problema de distribuição desigual de recursos, mas é também um sistema de
valores que erige símbolos hierárquicos sobre os diferentes grupos raciais. O
governo socialista não desconstruiu as representações de inferioridade presentes
no imaginário sobre as mulheres negras, tal como não apresentou um novo corpo
de referenciais simbólicos a respeito deste grupo, pois preferiu silenciar o debate
278 A revolução cubana e as intersecções de gênero, raça e
sexualidade

sobre o tema racial e a FMC ignorou a classificação racial das federadas e a


histórica desigualdade existente entre elas.

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