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Introdução
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Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); e-mail:
santos.gisellea@gmail.com.
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As entrevistas utilizadas aqui foram realizadas durante os trabalhos de campos desenvolvidos
em Cuba, na cidade de Havana, para as minhas pesquisas de Iniciação Cientifica e Mestrado,
em março de 2009 e 2012 respectivamente.
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Antecedentes Históricos
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A categoria analítica de gênero, definida por Joan Scott compreende as relações entre
mulheres e homens como construções histórico-culturais, marcadas por relações de poder
(SCOTT, 1992).
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O conceito de raça não é entendido aqui a partir de uma noção biológica, mas como um
construto histórico que legitimou práticas de hierarquização e subordinação social de
diferentes grupos por meio de características do fenótipo (STOLCKE, 1991).
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A categoria adotada parte das proposições de Foucault (2010), que entende que as práticas
eróticas são socialmente construídas a partir de relações de poder, articuladas por mecanismos
e dispositivos de saber-poder-prazer.
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sexualidade
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Após a revolução no Haiti houve o auge da indústria açucareira cubana entre 1790 e 1820,
quando a população escravizada cresceu expressivamente.
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A independência de Cuba foi bastante complexa, ocorreram três guerras contra o poderio
espanhol ao longo do século XIX. Porém, o governo dos Estados Unidos agiu de maneira
estratégica, intervindo na última guerra contra a Espanha. Com a derrota do país europeu, o
governo norte-americano assinou um acordo que garantia a administração política de Cuba e
a ilha passou a ser seu protetorado. Tal condição permaneceu de 1898 até 1902, quando foi
proclamada a República de Cuba, mas a interferência do governo dos EUA permaneceu até
1959.
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Foucault (1999) define o discurso como um arquivo de imagens e afirmações que forjam uma
linguagem comum, possibilitando representar sentidos e conhecimentos sobre um
determinado tema.
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A categoria “mulata” é empregada aqui, mesmo com o entendimento sobre o seu significado
etimológico problemático, como expressão linguística que denota hierarquias coloniais. A sua
utilização busca respeitar as classificações sociais vigentes historicamente.
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Em 1919 foi instaurada nos Estados Unidos a lei seca (Volstead Act), que proibia a venda
de bebidas alcoólicas, os empresários que tiveram seus negócios fechados passaram a abrir
bares e cabarés em La Habana, com isto cresceu expressivamente, o já latente, fenômeno da
prostituição.
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Em 1928 foi criada a Ku Klux Klan Kubana, uma sucursal da organização racista
estadunidense. Ela disseminou um discurso de ódio racial contra a população negra e
desenvolveu ataques terroristas contra as Associações de Apoio Mútuo da população negra
(DE LA FUENTE, 2001).
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Os índices referentes ao turismo internacional passaram de 33.000 em 1914 para 200.000
turistas em 1945, e o número de cabarés e casas de prostituição registradas oficialmente, foram
de 4.000 em 1912 para mais de 13.000 estabelecimentos em 1950 (ÁLVAREZ, 2003, p. 23).
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O governo revolucionário possuía orientação nacionalista e anti-imperialista, mas se declarou
socialista em abril de 1961, após a invasão da Praia Girón e a ruptura de relações definitivas
com o governo dos EUA. A partir de então, o vínculo político com a URSS se tornou cada
vez mais estreito (GOTT, 2006).
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As organizações de massas foram criadas a partir da iniciativa estatal para engajar a população
nas ações da revolução, elas possuíam comitês nos bairros e espaços de trabalho. As criadas
inicialmente foram: Comités de Defensa de la Revolución; Asociación de Jóvenes Rebeldes;
Asociación Nacional de Agricultores Pequeños, etc. Surgiram outras organizações no decorrer
dos anos, chegando a cerca de 170 no total.
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Vilma Espín Guillois foi uma das mulheres que atuou no processo revolucionário,
combatendo na luta armada na Sierra Maestra. Ela se casou em 1959 com Raul Castro, irmão
e sucessor de Fidel. Além de presidenta da FMC, Vilma presidiu a Comisión Nacional de
Prevención y Atención Social e a Comisión de la Niñez, la Juventud y la igualdad de derechos
de la Mujer, atuou na Asamblea Nacional del Poder Popular, e ainda, foi uma das poucas
mulheres que integrou o Comité Central del Partido Comunista Cubano. Vilma presidiu a
FMC desde a fundação em 1960 até a sua morte aos 77 anos de idade, em julho de 2007.
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Vilma: “Las mujeres cubanas, bajo la orientación directa de nuestro gran líder
Fidel, tomamos el camino de la unidad, fundiéndonos en una sola organización.”
(ESPÍN, 1990, p. 6).
Com o apoio da FMC, as mulheres dos diferentes grupos raciais, foram
convocadas a integrar a sociedade socialista em construção, cumprindo as novas
funções sociais que lhes foram arrogadas pelo governo revolucionário, como:
trabalhadoras, mães e formadoras das novas gerações (ESPÍN, 1990, p. 86).
O fenômeno da prostituição foi definido como um desafio a ser superado.
Estima-se que no ano de 1958, quando a população cubana representava 6
milhões de pessoas, cerca de 100 mil mulheres se prostituíam na ilha
(ELIZALDE, 1996). Para combater o problema o governo fechou todos os
bordéis, ofereceu qualificação profissional para as mulheres e disponibilizou
atenção aos seus filhos. Segundo Díaz e González (1997, p. 169) foi realizado o
“internamiento en granjas agrícolas y medidas carcelarias para las pocas que aún
continuaban ejerciendo” tal função. Assim, a prostituição foi declarada
oficialmente extinta em 1965. No entanto, ela não deixou de existir no contexto
revolucionário, ainda que restritamente 16.
Corroborando com a perspectiva de constituir novos valores sociais, o
Código de Família foi aprovado em 1975. Baseado na moral socialista e com
inspirações na legislação vigente na Rússia, este Código passou a definir o papel
de mulheres e homens no lar, ratificando os preceitos defendidos na nova
sociedade. Em resumo, seus principais objetivos eram:
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Segundo Teresa Díaz e Graciela González (1997, p. 173) existiram focos de prostituição
associados à atividade marítima e portuária durante os anos 1970 e 1980. Além da prostituição
dirigida a homens que ocupavam altos postos do escalão do governo, do exército e do corpo
diplomático.
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Al fortalecimiento del matrimonio legalmente formalizado o
judicialmente reconocido, fundado en la absoluta igualdad de
derechos de hombre y mujer;
Al más eficaz cumplimiento por los padres sus obligaciones con
respecto a la protección, formación moral y educación de los
hijos para que se desarrollen plenamente en todos los aspectos
y como dignos ciudadanos de la sociedad socialista;
A la plena realización del principio de la igualdad de todos los
hijos. (MINISTERIO DE JUSTICIA, 1977, p. 284-285)
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Conduta imprópria e anti-sociais, foram classificações empregadas para designar pessoas
consideradas perigosas para a sociedade revolucionária por diferentes motivos. Os grupos
mais perseguidos foram os considerados contra-revolucionários, homossexuais, hippies ou
indivíduos que faziam apologia aos “estrangeirismos” e alguns religiosos, como os integrantes
da igreja Testemunhas de Jeová e os abakuás (SIERRA, 2006).
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Nicolás Guillén, o principal expoente da poesia negrista em Cuba na década de 1930, exaltou
a contribuição da cultura africana para a identidade nacional, denunciando o racismo
vivenciado pela população negra em suas poesias. Integrante do Partido Comunista desde
1937, após a revolução Guillén foi eleito o “poeta nacional de Cuba”, passando a presidir a
UNEAC (Unión Nacional de Escritores y Artistas de Cuba) em 1961, posição onde
permaneceu até a sua morte em 1989. Porém, após 1959 Guillén passou a defender que a
desigualdade racial havia sido totalmente superada (DE LA FUENTE, 2001).
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Os(as) intelectuais e artistas negros(as) convocados(as), foram: Walterio Carbonell (jornalista
e etnólogo), Rogelio Matinez Furé (etnólogo e poeta), Nancy Morejón (poetiza), Nicolás
Guillén Ladrian e Sara Goméz (cineastas), Alberto Pedro e Pedro Deschamps Chapeaux
(etnologistas), Luis Saenz e Juan Manuel Casanova (escritores e jornalistas), Eugenio
Hernández e Gerardo Fulleda León (dramaturgos), Esteban Cárdenas, Pedro Pérez Sarduy,
Wichy el negro, Manuel Granados, Serafin Quiñones e Ana Justina (escritores).
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O livro Critica: Cómo surgió la cultura nacional teve uma reedição comemorativa em 2004,
mas o livro não foi vendido livremente e pouquíssimas pessoas tiveram acesso ao mesmo.
Carbonell morreu no ano de 2008.
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distinções foram apenas aparentes, pois no cerne das ações empreendidas para
ambos os grupos encontra-se o mesmo ideal de homogeneização. Como exemplo
disto, a FMC, única organização de mulheres existente, não possuía autonomia
efetiva e foi conduzida pelo governo, constituído majoritariamente por homens.
Ao analisar o discurso de representantes da FMC, é possível apreender que
a autonomia política das mulheres cubanas e a sua presença nos espaços de poder
não foi uma prioridade, nem mesmo no interior da própria organização:
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Uma pesquisa realizada pela FMC em 1988 com cinco mil cubanos, com igual número de
mulheres e homens, buscou compreender a preferência por candidatos do sexo masculino
nas eleições do Poder Popular. Ao serem questionados sobre as suas predileções, 60% dos
entrevistados responderam que não havia distinções entre serem dirigidos por uma mulher ou
por um homem. Porém, mais da quarta parte declarou possuir preferência pela autoridade
masculina. Esta resposta foi dada tanto por homens como por mulheres, 28,5% e 24,2%
respectivamente. Quando foram questionados se consideravam os homens melhores
dirigentes, 37,9% das mulheres e 43,3% dos homens responderam que sim. Dos 2.110
entrevistados que responderam positivamente à pergunta, 56% justificaram afirmando que os
homens possuem mais oportunidade e tempo que as mulheres, e 30% afirmaram que os
homens têm maior capacidade por natureza para exercer tais funções (ÁLVAREZ, 1998).
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Ware define a branquitude como uma categoria que “se afigura o estado normal e universal
do ser, o padrão pelo qual todo o resto é medido e em cotejo com o qual todos os desvios são
avaliados.” (WARE, 2004, p. 17).
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Com a despenalização da moeda norte-americana; o aumento das remessas de dinheiro de
familiares do exterior; a criação do CUC (também denominado de peso convertible) e as
Tiendas de Recuperácion de Divisas, além do pagamento de alguns trabalhos ligados ao
turismo internacional com o CUC (que vale 25 vezes mais que o peso nacional, que seria
equiparável ao EURO), potencializaram-se as diferenciações de consumo entre os cubanos.
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Com a grande valorização do aporte econômico proveniente do setor turístico, foram
sancionadas leis que concederam certos “privilégios” aos investidores e turistas estrangeiros,
em detrimento dos direitos da população nacional, como a restrição dos últimos, para acessar
espaços destinados ao turismo. Desta forma, foi negado o direito aos nacionais de entrarem
em determinadas zonas do país, principalmente praias (como Varadero e Los Cayos), além da
restrição de ingresso em hotéis. Somente no ano de 2008, o presidente Raúl Castro revogou
as leis que proibiam o acesso de cubanos a determinados locais voltados para o turismo.
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Uma pesquisa sobre o uso do tempo constatou que as mulheres trabalhadoras dedicavam
trinta e seis horas por semana do seu tempo livre no desenvolvimento de tarefas domésticas.
Em contraposição os homens trabalhadores destinavam doze horas semanais para as
atividades do lar. Ademais, as tarefas executadas por eles eram mais leves em comparação as
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Em 1995 Vilma Espín declarou: “dolorosos son los casos de prostitución que han aparecido
entre gente débil, familias sin ética, muchachas que son una gran verguenza para el país y no
reparan en la degradación moral que padecen. (...) La mayoría proceden de hogares con poca
ética o sencillamente, gente muy depravada que acepta que sus hijas vivan así porque también
se benefician. Muchas son jóvenes desarticuladas del hogar y unas pocas sin que la familia lo
sepa. Al menos ésas tienen un mínimo de moral, sienten alguna verguenza.” (PERIÓDICO
GRANMA 28/02/1995 apud HOLGADO, 2002, p. 258).
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A partir do censo realizado nos Estados Unidos no ano de 1990, constatou-se que 83,5%
dos cubanos que vivem naquele país se autodeclaram racialmente como brancos (DE LA
FUENTE, 2001, p. 437).
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Como a população negra não teve as mesmas chances de inserção na economia do dólar,
muitos utilizaram como estratégia de adaptação à crise atividades ilícitas, como a atuação no
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decreto. Contudo, existe uma diferença entre uma proposta discursiva de não-
discriminação, com sentido abstrato, e o desenvolvimento efetivo de políticas de
promoção da equidade racial. Assim, a lógica de silenciamento imposta gerou
efeitos nefastos, tanto no imaginário dos brancos, como para o processo de
construção identitária da população negra 34.
Somente em 2003, ou seja, quarenta e quatro anos após o êxito
revolucionário, que o Estado socialista reconheceu a permanência de
desigualdades raciais na ilha 35 . Neste discurso Fidel estabeleceu comparações
entre o impacto da revolução na vida das mulheres e dos negros:
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Na investigação de Selier e Hernández (2002, p. 85) sobre a identidade racial da população
negra em La Habana, foi constatado o desconhecimento sobre a contribuição do negro na
história da nação cubana por parte dos entrevistados, e assim as autoras questionaram: “¿Hacia
dónde va un grupo privado de su historia?”.
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Vale apontar que já tinha sido reconhecida por Fidel, durante o III Congresso do PCC em
1986, a necessidade de aumentar o número de mulheres, jovens e negros nos altos níveis de
hierarquia do PCC.
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Para preservar a identidade das entrevistadas estão sendo utilizados nomes fictícios.
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acercarme de esto, mismo que yo aun pertenezca al mundo de
la intelectualidad, soy una negra cubana. (Odaymara, 45 anos)
Considerações finais
Bibliografia