Você está na página 1de 23

CAPÍTULO 2:

REPERTÓRIOS DOS MOVIMENTOS DE MULHERES INDÍGENAS EM ABYA


YALA: comparando Bolívia, Brasil, Colômbia e Venezuela.

Elizabeth Ruano-Ibarra
Elaine Moreira
Larissa C. de Sousa Ferro

Ruano-Ibarra, Elizabeth; Moreira, Elaine; Ferro, Larissa. Repertórios dos movimentos de


mulheres indígenas em Abya Yala: comparando Bolívia, Brasil, Colômbia e Venezuela.
In: Menezes, Roberto; Cavalcanti, Leonardo; Silva, Cristhian (Org). AMÉRICA
LATINA NO SÉCULO XXI: desigualdades, democracia e desenvolvimento. Curitiba:
CRV. 2020. pp. 44-58.

Introdução

No hay mujeres sin historia sino historia sin mujeres


(Damaris Elers, 2016, p. 221).

Nesse capítulo se analisam a segregação política e ocupacional, a maternidade


desprotegida, a violência física, sexual e jurídica no âmbito das agendas dos movimentos
de mulheres 1 indígenas da Bolívia, Brasil, Colômbia e Venezuela no corrido do século
21. Essa reflexão é relevante para o debate sobre os feminismos 2 e contribui com os
esforços por elucidar os desdobramentos das divisões hierárquicas de gênero 3 nas
democracias contemporâneas.

1
Em chave de gênero, o termo “feminino” não é equiparável ou sinônimo para a palavra “mulher”. O
primeiro abrange construções sociais sobre as relações e papéis de gênero. Já o termo mulher recolhe ideias
atreladas ao sexo biológico podendo comportar maior amplitude ou flexibilidade para incluir indivíduos
que, embora não performando os atributos do mandato da feminilidade, se auto identificam como tal.
2
Em plural para enfatizar o caráter plural desses movimentos e a multiplicidade desse debate político-
intelectual. Conforme Alba Carioso (2017, p. 33 e 36) nesses movimentos tem lugar “los feminismos
afrodescendientes, feminismos negros, mestiços, indígenas, populares, comunitarios, de la diversidade
sexual, lésbicos, ciberfeminismo, decoloniales […] antipatriarcales, anticapitalistas, socialistas […]
populares, comunitários, ciberfeminismo”.
3
Enquanto ‘questão política aguda’ revela as ligações entre democracia e vida doméstica, âmbitos
aparentemente compartimentalizados segundo a lógica ocidental. Na disputa por ‘direitos constituídos’, as
barreiras culturais e econômicas reverberam diferenciadamente para as mulheres indígenas e outros grupos
vulneráveis. Por exemplo, toda vez que a integridade física de uma mulher é sobrepujada não se revela
Em acordo com Maria Valdez4 (2017, p. 2) os conceitos de gênero e feminismos
alertam para a existência de relações sociais atravessadas por assimetrias de poder.
Embora a origem desse debate acadêmico e político se reporte aos movimentos sociais
hegemônicos ocidentais é relevante ponderar que as relações de gênero não são
culturalmente neutras. No campo dos estudos sobre povos indígenas apontam-se duas
perspectivas principais. De um lado, aquela que defende a ausência pré-intrusão ibérica
de hierarquia entre os gêneros (LUGONES, 2014; GARGALLO, 2014; CARIOSO, 2017;
VALDEZ, 2017). De outro, quem, como Lorena Cabnal (2010), Rita Segato (2012,
2014), Adriana Arroyo-Guzmán e Julieta Paredes (2014), entende que a invasão colonial
aprofundou o regime patriarcal preexistente. Assim, salienta-se a importância desse
debate para compreender os movimentos de mulheres indígenas em Abya Yala e sua
potência para desvendar a pretensão igualitária entre os gêneros.
Nosso ponto de partida analítico foi direcionado pela proximidade temática entre
os dados etnográficos coletados em três instâncias de pesquisa claramente diferenciadas 5.
A escrita deste capítulo concretizou uma parceria intelectual entre nós, três autoras, a
partir dos seguintes referentes: i) as mulheres Ticuna fundamentam seus movimentos
apropriando-se da educação ocidental, para complementar sem subordinar os
conhecimentos ancestrais. O ensino convencional enquanto legitimador de sua luta pela
inserção nas arenas políticas públicas; ii) os movimentos de mulheres indígenas na
Bolívia enfatizam o resgate pluricultural para denunciar as dificuldades de se combater a
violência de gênero sem que isso signifique a supressão da perspectiva intercultural e iii)
os esforços pela manutenção dos modos de vida e cuidados do povo Warao colocaram as
mulheres na liderança do fluxo migratório internacional entre a Venezuela e o Brasil.
Optamos pela noção Abya Yala para tratarmos da geolocalização dos movimentos
de mulheres indígenas sobre os quais tratamos, embora se localizem na Bolívia, Brasil,
Colômbia e Venezuela. De acordo con Ochy Curiel6 (2014), Abya Yala é uma nomeação
cunhada pelo povo indígena Kuna, localizado atualmente nos territórios de Colômbia e

apenas a vulnerabilidade dos corpos das mulheres tensionam-se também os valores democráticos e a
efetividade institucional das regras sociais.
4
Intelectual Mapuche, especialista em educação intercultural bilingue. Professora da Universidade
Nacional Comahue, bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET).
5
a) Povo Ticuna na fronteira do Brasil com a Colômbia, realizada entre 2014 e 2015; b) Acesso à Justiça
para as mulheres indígenas no Estado Plurinacional Boliviano, desenvolvida entre 2017 e 2018 e c)
Migração, Violência e Direitos Humanos na fronteira de Brasil e Venezuela, iniciada em 2016.
6
A autora se auto identifica como “feminista autônoma, lésbico antirracista e decolonial”, além de
“militante, compositora e cantante”. Nascida em República dominicana, com formação doutoral em
antropologia.
Panamá, para nomear o território denominado colonialmente como América Latina 7 e
Caribe. Esse questionamento ao termo de uso generalizado, não apenas no senso comum,
dialoga com Yuderkys Espinosa8 (2014, p. 8) quem entende ser chave a radicalização do
mal-estar diante de hierarquias discursivas. Essa hierarquização inconteste pode
contribuir perpetuando ou cristalizando subalternizações até em teorizações vistas como
emancipadoras.
Segundo Walter Mignolo (2007, p. 210-211), intelectualmente é injustificável a
simetria de “razões e direitos” que embasam a sobreposição hierárquica do termo
América Latina sobre a noção de Abya Yala. Isto é, a legitimidade dessa nomeação
reivindicada pelos povos indígenas “desde a Terra do Fogo até o Canadá” reflete os
projetos de descolonização em curso. Usamos essa noção crítica9 enquanto legado e
fundamento das lutas das mulheres indígenas, de seus processos de recuperação de
saberes e de resistência à colonialidade do poder-saber.
As trajetórias dos movimentos de mulheres indígenas contribuem para questionar o
termo ‘mulher’ enquanto categoria universal sinalizando uma pluralidade de repertórios
enquanto se posicionam como sujeitos políticos legítimos. Segundo Elizabeth Ruano
(2019), o conceito de repertório denota atributos e sentidos próprios construídos pelos
povos indígenas em torno da sua ação política. Compreende também os conhecimentos
compartilhados, padrões recorrentes, símbolos e interpretações recriados perante
espacialidades e temporalidades específicas.
Para esses movimentos de mulheres indígenas, o patriarcado 10 enquanto estrutura
colonial e racista operacionaliza padrões de desigualdade mediante entrecruzamentos que
produzem e reproduzem opressões. Os dados etnográficos nos permitiram acessar e

7
Segundo Feres (2004), o termo Latin American foi eficaz enquanto instrumento discriminatório enfocado
em denotar a inferioridade e irracionalidade para, desse modo, legitimar a intervenção continental dos
Estados Unidos. A construção sócio científica desse conceito se reporta à complexa relação entre as ciências
sociais e as políticas governamentais durante a segunda guerra, a guerra fria e a revolução cubana. A teoria
da modernização e a consolidação do projeto geopolítico estadunidense “para deter o comunismo”
coadjuvaram na conceituação do termo América Latina.
8
Nascida nos bairros populares da capital de República Dominicana se define como pensadora do
feminismo crítico, antirracista e descolonial. É candidata ao título de doutora em filosofia pela universidade
de Buenos Aires.
9
O pensamento latino-americano crítico tem dentre seus objetivos explorar as possibilidades de mudança
social localizando-se nas antípodas da resignação e do trabalho intelectual que justificam o avanço
capitalista, as ideologias, as hierarquias e as desigualdades que sustentam o padrão de poder vigente
(CARIOSO, 2017).
10
É o sistema mais antigo da história, geograficamente mais abarcador, ideologicamente mais ocultador, é
o menos reconhecido que naturaliza a submissão das mulheres como conjunto. Sustentado em um conjunto
de instituições políticas, sociais, econômicas, ideológicas e afetivas produz e reproduz práticas cotidianas,
coletivas e pessoais, no âmbito público e privado (CARIOSO, 2017, tradução livre).
refletir sobre as seguintes mazelas patriarcais: i) a segregação política, principalmente a
partir das mulheres Ticuna; ii) a violência contra as mulheres indígenas e o acesso à
justiça no caso boliviano e iii) a maternidade desprotegida e a segregação ocupacional
vivenciada pelas mulheres Warao em contexto migratório.
A abordagem deste capítulo alicerçada na perspectiva de gênero (CARIOSO, 2017;
CUMES, 2012; VALDEZ, 2017) e nos feminismos da Abya Yala (ARTEAGA, 2017;
CABNAL, 2012; CARIOSO, 2017; GARGALLO, 2014; GOMEZ, 2017; PANCHO,
2007) possibilitará compreender a complexidade da temática principalmente no que diz
respeito ao campo de engajamento cidadão. Nesse sentido, parece-nos que esses
movimentos de mulheres indígenas buscam consolidar ações de visibilização das
violências sofridas e em prol da garantia de seus direitos.
Complementando o arranjo conceitual adotado neste capítulo a noção de fronteira
é importante para adensar e iluminar as diferentes compreensões que revelam nossos
dados etnográficos em análise. Nesse sentido, a ideia, em certo modo em fricção, sobre
‘fronteira geográfica’ e/ou ‘fronteira político-administrativa’ entre Brasil e Venezuela e
a Colombo-brasileira. Mas também as ‘fronteiras simbólicas’ ou “fronteiras culturais’, ou
‘limites culturais’ como recomenda Oliveira (2004) que se sobressaem nos embates entre
a justiça convencional/ocidental e a justiça indígena/própria no caso boliviano.
O tema de fronteiras como campo de estudo não é novo na pesquisa social, Roberto
Cardoso de Oliveira (2000, p. 14) alertava sobre a importância do contexto fronteiriço e
a importância de pesquisa “nas” fronteiras:

Quero me referir agora ao contexto de fronteiras, isto é, de fronteiras entre países. E para quem se
habituou ao significado de “fronteira cultural” ou boundaries, bastante difundido, cabe dizer que
prefiro a expressão “limite cultural” para dar conta do sentido do termo que lhe atribui Fredrick
Barth, deixando o termo fronteira para expressar o conceito tradicional de “fronteira política”.
Naturalmente, não se trata de realizar pesquisas a respeito de fronteiras, mas apenas de realizá-las
na fronteira; e no caso de investigações sobre identidade étnica ou nacional, sublinhe-se que a
fronteira se impõe — como já disse — como um cenário privilegiado.

Como dito inicialmente este capítulo foi escrito a seis mãos. Na ideação deste
trabalho apenas uma pesquisa, das três que fundamentam a análise, estava ainda em curso.
Assim, a proximidade temática dessas pesquisas e o enfoque conceitual latino-americano
constituiu o fio condutor a partir do qual buscamos extrapolar os limites de cada caso. Por
tratar-se da nossa primeira coautoria e/ou interlocução intelectual adotamos como
estratégia discursiva e analítica a apresentação sintética e independentemente de cada
pesquisa. No entanto, tomamos o seguinte como questionamento comum: qual o caráter
do repertório das mulheres indígenas em cada contexto analisado? Além disso, cada uma
das seções deste capítulo respeitou os critérios conceituais e de extensão previamente
definidos pelos organizadores do livro.

A participação política das mulheres Ticuna na fronteira Colombo-brasileira

O acesso ao ensino superior enfatizou a índole política dos anseios das mulheres
por participarem da arena pública interétnica Ticuna. Esse processo aponta
desdobramentos, negociações e concessões nas relações de gênero, segundo Maria
Valdez (2017), intelectual Mapuche, na busca pela autonomia as mulheres indígenas são
aprisionadas em universos regidos por valores patriarcais que as subordinam. Desse
modo, o debate sobre os papeis de gênero interpela o campo intersocietário Ticuna no
Alto Solimões.
Segundo as lideranças entrevistadas, a luta etnopolítica Ticuna atual é pautada pela
reivindicação de garantia dos direitos constitucionais. Para tanto, a formação política e
intelectual constitui uma estratégia orientada para qualificar e legitimar suas demandas
perante os respectivos Estados nacionais. O diploma enquanto reconhecimento ocidental
de aptidão acadêmica e profissionalizante constitui um rito de passagem para a inserção
na esfera pública, seja em instancias governamentais, em organizações privadas ou do
indigenismo.
O fortalecimento da participação das mulheres indígenas no âmbito das políticas
públicas de educação, saúde, segurança alimentar, benefícios sociais, moradia e “políticas
femininas” propriamente ditas no Brasil e na Colômbia ocorreu a partir da década de
2000. Essa participação segmentada parece sustentar-se na divisão social do trabalho,
onde os cuidados têm sido atribuídos prioritariamente às mulheres. No entanto, a partir
das trajetórias analisadas apreendemos a transformação paradigmática do movimento
etnopolítico Ticuna.
O jovem líder Ticuna, Secretário-executivo do Conselho Distrital de Saúde
Indígena (Condisi) da Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da
Saúde-MS, contrastou o espaço conquistado afirmando que “muitas delas são candidatas
a cacique, mas não são eleitas porque ainda tem um certo preconceito” e ademais
relembrou que há três décadas as mulheres indígenas não tinham direito de discutir nas
reuniões. Um dos entrevistados relatou a eleição em 2014 de duas mulheres Ticuna, uma
como vice-cacique e outra como cacica em Belém do Solimões. Embora os cargos de
liderança tradicional sejam destinados preferencialmente ao sexo masculino e a
flexibilidade nos critérios ainda não seja amplamente visível no campo político Ticuna a
eleição de mulheres indica âmagos de transformação que esbarram em preconceitos e
disputas de poder (SOUZA et al., 2016).
Para Mislene Mendes, Coordenadora-geral da Funai na época em que foi realizada
a pesquisa, mulher Ticuna e liderança indígena, o reconhecimento do valor da juventude
e das mulheres constitui um desafio. “Somos filha ou filho de fulano”. Não temos nosso
nome próprio. É complicado”. […] Acabamos herdando as brigas de nossos pais, de
nossos avós. Mas a gente não quer continuar a briga de ninguém”. As mulheres jovens
questionam a resistência cultural e buscam inserir-se politicamente. “Ticuna é super
machista, falo isso dentro de casa, meu pai é machista […] as mulheres seremos
lideranças, querendo os homens ou não” (RUANO; SOUZA, 2017, p. 110).
Ruth Lorenzo, primeira mulher Ticuna eleita como curaca na Colômbia, comentou
que seguindo a tradição do relevo geracional, seus avós e seu pai desempenharam essa
função. “[yo no sería] porque lamentablemente nací mujer […]”. Essa narrativa destaca
o mandato dos papeis de gênero como legitimador da proibição das mulheres poderem
ser eleitas como curacas, até então. “En 1999 me eligieron curaca porque nadie quería el
cargo […] La mayoría son muy machistas […] Los hombres dijeron: “¡Huy, eso es
terrible!”. Hubo Mucha crítica, me asusté, […] Pero calladita empecé a trabajar más
duro […] después me aceptaron” (RUANO; SOUZA, 2017, p. 100).
Os empecilhos tensionados pelas trajetórias dessas lideranças femininas revelam a
colonialidade de gênero 11 e o patriarcado enquanto contradições que desafiam ao povo
Ticuna, às estruturas dos Estados nacionais e da sociedade como um todo. Assim, a ação
política das mulheres ao revelar-se na cena pública se ancora na legitimidade da formação
intelectual enquanto portadoras de competências e habilidades fundamentais na interação
com organizações étnicas, instituições governamentais e/ou do indigenismo.
Para as lideranças indígenas tradicionais “a visão da nossa juventude […] É se
formar e ter emprego […] A pessoa se forma, e o emprego só resolve a sua vida!”. Esse
questionamento ao caráter coletivo do ingresso à universidade é colocado sobre outro

11
Opressão de gênero racializada e capitalista que age na redução ativa das pessoas mediante a
desumanização e a classificação. Esse processo de sujeitificação sobre a(o) colonizada(o) se reproduz
mediante exercícios de poder concretos e intrincadamente relacionados no cotidiano do ‘corpo a corpo’,
por exemplo nos local-fábrica-prisão onde “mulheres indígenas fêmeas-bestiais-não-civilizadas são
obrigadas a tecer dia e noite” (LUGONES, 2014, p. 945).
prisma pelos discentes ou já formados ao defender que “a gente tem que ter nosso médico,
nosso enfermeiro, nosso antropólogo, nosso engenheiro”. “Queremos direito, medicina,
enfermagem, psicologia, comunicação” cursos que, na ótica das lideranças tradicionais
beneficiaram a comunidade como um todo (SOUZA et al., 2016, p. 208). Nesse sentido,
a escolha profissional indígena não se entende dissociada da agenda política étnica.
Segundo Gersem Luciano (2011), liderança indígena do povo Baniwa do Alto Rio
Negro e doutor em antropologia, a escolaridade tornou-se meio para apropriar a palavra,
em língua portuguesa. Uma vez que a escola, em que pesem suas idiossincrasias, pode
fornecer mecanismos para incidir na interlocução com a sociedade englobante. Conforme
uma jovem liderança Ticuna, entre 1970 e 1980, seus familiares lutaram pelo ensino
fundamental para aprenderam a ler visando conhecer os direitos indígenas consagrados
nas leis. Nessa perspectiva, seria equivocado supor que o ensino ocidentalizado distância
os indígenas da mobilização política. Porém, como a conquista do diploma escolar abre
outras possibilidades de ação política como a inserção no mercado de trabalho, em
especial aquele aberto pelo indigenismo, essa bifurcação de interesses desafia os anseios
de unicidade dos repertórios legitimados.
Embora o consenso relativo sobre o acesso ao ensino ocidentalizado como
instrumento de luta política esses povos o consideram desvinculado da cultura e das
necessidades indígenas. Em sala de aula, na “escola indígena bilíngue, intercultural e
diferenciada” gerida pelo Estado nos âmbitos municipal e estadual, fala-se Ticuna, porém
o currículo não é diferenciado etnicamente. No entendimento dos Ticuna, o currículo deve
incluir o debate sobre os direitos, a política indigenista e sobre o movimento indígena
como projeto ético-político.
As mulheres Ticuna defendem uma escolarização ocidental complementar aos
conhecimentos ancestrais, sem subordiná-los. Reafirmam o caráter insubstituível dos
saberes indígenas enquanto enraizados cultural e politicamente perante o trânsito, não é
sempre pacífico, entre o mundo indígena e o hegemônico. Os conhecimentos ancestrais
arraigados nas práticas da cultura como a festa da Moça Nova 12, nas assembleias e lutas

12
Ritual de iniciação feminina reconhecido como o mais importante da sua tradição pelo povo Ticuna.
“Entre os Ticuna, a moça que menstruou pela primeira vez fica reclusa até que seja aprontada sua festa, que
dura três dias, quando ouvirá os “conselhos” dos trompetes e dos cantores(as). Neste ritual, a menina ficará
reclusa (aure) em um quarto feito de talos de buriti (turi), anexo à casa de festas. Na manhã do último dia
de festa, depois de ter sido pintada de jenipapo e adornada, a moça deverá sair do local de reclusão com os
olhos tapados por um parente, rompendo os talos de buriti que formam suas paredes. Nesta primeira festa
após a menarca, depois de sair da reclusão, a moça tem seus cabelos arrancados pelas senhoras mais velhas
que a aconselham cantando” (MATAREZIO, 2014).
contribuem com conteúdo étnico insubstituível para avançar perante os desafios
enfrentados pela sua ação política de mulheres Ticuna.
Em meio à dinâmicos processos políticos interétnicos esse transitar entre os dois
mundos e, simultaneamente, aperfeiçoar a qualidade da ação política – distribuição do
poder, manter a discussão interna, fortalecer as redes de alianças e valorizar a coletividade
– as mulheres Ticuna convergem pela inserção política, em sentido amplo, incidindo nas
discussões para “fora” e para “dentro”. Perante a vigência do patriarcado nas estruturas
dos Estados nacionais e na organicidade desses povos, incidir na transformação constitui
o desafio não apenas das mulheres Ticuna.

Mulheres indígenas pelo acesso à justiça na Bolívia

No contexto boliviano, as demandas das mulheres indígenas pelo acesso à justiça,


tanto no sistema ordinário quanto nas justiças indígenas originárias campesinas (JIOC),
buscam a consolidação de direitos coletivos e individuais. A defesa, pelos movimentos
de mulheres, dos seus direitos vem concomitante à defesa do viver em harmonia e a busca
da complementaridade, preceitos culturais chave nas cosmovisões andinas. Destaca-se o
avanço no reconhecimento constitucional das JIOC enquanto modos legítimos de
resolução de conflitos, com o peso simétrico diante de jurisdições ordinárias, podendo
apenas que suas decisões sejam revisadas pelo Tribunal Constitucional Superior
(FERRO, 2019). Contudo como mostraremos a seguir, essas inovações do pluralismo
jurídico boliviano denotam possibilidades, mas também limites para os movimentos de
mulheres no país.
As JIOC se expandiram ao constituir-se como resposta para o acesso à justiça apesar
das distâncias geográfica e cultural, empecilhos linguísticos e custos econômicos.
Constituídas de saberes, valores, práticas e procedimentos comunitários criam resoluções
flexíveis e dinâmicas para certos conflitos prescindindo do marco positivo ocidental. A
reflexão comunitária e as particularidades dos casos em julgamento nas JIOC
fundamentam que:
[…] um fiscal que dá uma sentença de inocência sobre algo que desconhece, não
sabe como viviam a vítima e o assassino, se sempre foi violento, se era
desrespeitoso, se contribui com a comunidade. Em contraposição, a justiça em
comunidade não julga somente o crime, mas também o caminho, a história dos
envolvidos. Não julga apenas o assassino, mas também sua mãe, seu pai, seu
envolvimento com a comunidade (ADRIANA GUZMÁN in: FERRO, 2019).
Entretanto, ainda existem barreiras à representação direta das mulheres nas JIOC já
que em muitos casos, não se permite seu envolvimento nas decisões políticas
comunitárias. Nesse sentido, os movimentos de mulheres indígenas mediante arranjos
coletivos questionam tais estruturas, principalmente no tocante às denúncias sobre
violências domésticas e abusos sexuais em que o acusado é membro da comunidade e/ou
familiar da vítima. Segundo Adriana Guzmán, mulher Aymara líder do movimento
Feminismo Comunitário Antipatriarcal, a justiça comunitária revela-se machista ao
negar-se a falar dessas denúncias que muitas vezes “não consideram como delito”
(FERRO, 2019).
Na justiça estatal, apesar dos avanços normativos do novo texto constitucional
(BOLÍVIA, 2009) e as leis subsequentes (BOLÍVIA, 2018a, 2018b) que apontam
mecanismos de prevenção e punição das violências contra as mulheres, ainda persistem
variados desafios. Obstáculos como a disseminação de informação e ao acesso à
conhecimento sobre os direitos das mulheres constituem os entraves primários que
reverberam na persistência da discriminação e racismo institucionais. Ademais, o
despreparo dos policiais e funcionários que recepcionam as denúncias desdobra-se muitas
vezes na recusa daquelas enquadradas como violências psicológicas em razão de
desconsiderar os elementos que provem a agressão. A recorrência dessas más práticas
institucionais repercute na desconfiança das mulheres indígenas no sistema de justiça
ordinária. A interiorização dessas discriminações institucionais transforma-se em medo
ao maltrato ou incompreensão pelo idioma, cor da pele e cultura, especificamente sua
vestimenta (FERRO, 2018).
Esses obstáculos enfrentados pelas mulheres indígenas bolivianas são estruturais no
continente e requerem enfrentamento a partir de uma perspectiva multidisciplinar e
interinstitucional. Os pilares de prevenção, investigação, punição e reparação, devem ser
baseados em entendimentos respeitosos de visões interculturais. A participação ativa das
mulheres indígenas demandantes de justiça é um fator essencial para a ideia de reparação,
auxiliando a vítima a reaver o sentido de sua vida, assim como a identificação de desafios
e prioridades (CIDH, 2017).
O adensamento de movimentos de mulheres indígenas na luta por seus direitos,
inclusive o direito de acesso à uma justiça de gênero e intercultural, tem investido em
oficinas de capacitação, sensibilização e cura. Tal trabalho promove a reflexão de homens
e mulheres sobre as violações de direitos das mulheres, ao mesmo tempo em que promove
apoio para elas. Esses espaços para as mulheres objetivam a capacitação sobre os direitos
existentes como também a escuta ativa e reflexão conjunta sobre as violências vividas e
a busca pela emancipação. A partir desses trabalhos de base constroem-se também
conceitos e categorias para compreender as múltiplas dimensões das violações de direitos
levando em consideração seus valores e preceitos culturais, como o caso da
ressignificação do conceito de chacha-warmi como ponto de mudança e tradição entre
diversos grupos de mulheres dentro das comunidades indígenas andinas.
Tal conceito tem sua origem na cultura Aymara e Quéchua, mas também é usado
nas comunidades andinas em geral, onde o matrimônio e a complementaridade entre o
casal são entendidos como a base da família e da comunidade em si. Entretanto, é
importante ressaltar que tal princípio não deve ser entendido a partir de uma perspectiva
ocidental dicotômica e excludente, mas a partir de uma perspectiva dualista e
complementar (ARTEGA, 2017).
Segundo Amalia Mamani, citada por Ana Cecilia Artega (2017, p. 164), “en el
chacha-warmi la esposa posee la misma posición y categoría que el esposo. Ella no es
un sujeto de supeditación al marido, ni el marido a la esposa, sino que ambos tienen
igualdad de condiciones, poseen el mismo rango y son complementarios entre sí”. Apenas
a partir do contato com outras culturas, como a europeia colonizadora, que possuem
papéis de gêneros desiguais nas sociedades, que tal conceito foi se transformando,
adquirindo inclusive características heteronormativas, que possivelmente não existiam
em seus primórdios.
A literatura de referência, especialmente Lorena Cabnal (2010), Estela Cumes
(2012), Francesca Gargallo (2014) e Marina Gomez (2017), ademais de as entrevistas
realizadas sugerem que em diversos contextos atuais, os movimentos de mulheres
indígenas retomam conceitos ancestrais enquanto fundamento ético e político na luta
pelos seus direitos. Contudo, o resgate desse conceito cultural chacha-warmi não
constitui um mero legitimador de denúncias das discriminações e violências que sofrem,
é também fundamentalmente um exercício reflexivo para compreender as múltiplas
dimensões das violações de direitos a partir de valores e preceitos culturais específicos.
As pensadoras feministas comunitárias bolivianas apontam nesse sentido por
exemplo que mesmo com o reconhecimento de um patriarcado ancestral – um sistema
sexo/gênero, com algumas diferenciações entre os papéis de gênero, distinto do
encontrado na Europa onde as mulheres não tinham acesso à terra, não participavam de
ritos e se o fizessem eram perseguidas; nas Américas as mulheres tinham direito à terra
(metade dos homens), e manejavam os ritos da Lua. Foi apenas com a colonização, e a
formação do “entronque patriarcal” onde o resultado não se deu com a simples soma dos
dois sistemas, mas sim a abordagem de uma nova realidade muito mais hierarquizada e
brutal para as mulheres indígenas da região (GÚZMAN; PAREDES, 2014).

Mulheres indígenas Warao em situação de mobilidade entre Venezuela e Brasil.

Na intensificação do fluxo da migração venezuelana para o Brasil a partir de 2016,


a presença indígena ganhou um espaço considerável nas inquietações humanitárias,
jurídicas e sociais (MOREIRA; PALOMINO; SILVA, 2019). Hoje o Estado Brasileiro,
sabe quem são, de onde vieram e as suas principais motivações para empreender um
deslocamento que alcançou significativa distância geográfica, como no caso dos
migrantes indígenas dos povos Warao, originários do Delta Amacuro e Monagas, ou os
Eñepa oriundos do estado Bolívar, em território venezuelano.
Quando no Brasil chegam em novas capitais brasileiras do norte e nordeste
brasileiro13, praças e mercados são tomados pela presença altiva de mulheres Warao
trajando seus vestidos coloridos, em geral acompanhadas de crianças pequenas, que ficam
sob seus cuidados. Esta presença foi motivo de advertência de conselhos tutelares, e
condenação moral por parte da opinião pública em várias cidades por onde passaram. A
superioridade moral alegava o uso destas crianças na mendicância ou a falta de cuidado
para com seus filhos, sobrinhos e netos. Olhemos com mais cuidado as reações que
sugerem preconceito ou xenofobia para usar um conceito do debate sobre migração
humana.
Ao cruzar as fronteiras nacionais, o povo Warao experimentou a deportação, em
2014 e 2015, a vida em situação de rua em Roraima, Amazonas e Para, e a política de
abrigamento, nestes mesmo estados onde foram os primeiros a registrar um circuito
migratório desde o ano de 2016. Ha vários registros sobre esta experiência, especialmente
produzidos pelos antropólogos do Ministério Público Federal (MPF, 2017). A experiência
do abrigamento, tem trazido inúmeros problemas, e em resposta os Warao continuam a
sua mobilidade, para outros estados brasileiros. O caráter disciplinador, não consultivo,
militarizado e com rígidas regras de convívio e sociabilidade, sugerem tratar-se de uma

13
Atualmente no fluxo migratório Venezuelano, registra-se também a presença do povo Pemon, no limite
da fronteira entre Brasil e Venezuela. Os Eñepa estão em Roraima e Para, já os Warao, registra-se sua
presença em mais de 15 estados da federativos do Brasil, incluindo a região, sul, sudeste e centro oeste.
política de confinamento que apaga a agência Warao e os consensos dos direitos
humanos.
No entanto, reduzidos a estatísticas e indicadores quantitativos na maioria dos
relatórios governamentais ou das agências internacionais, a sua mobilidade e suas
relações com seu território, permanecem invisibilizadas e silenciadas. Para os Warao, sua
compreensão sobre o território passa pelos usos das plantas para alimento e fornecimento
de fibras que transformam em manualidades. Essa expertise manual é adquirida ao longo
da vida pelas artesãs e artesãos, e os cuidados de viverem juntos. Entender-se como
Warao, embora em situação de mobilidade internacional, indica esforços para manter
modos de vida e cuidados particulares, que inclui manter os cuidados com os familiares
que estão longe, no Brasil ou na Venezuela.
Por mais que os indígenas Warao, desde o início de sua chegada ao Brasil,
indicassem o seu desejo por trabalho digno e o comércio de seus artesanatos nos centros
urbanos, geralmente as autoridades idealizam que o melhor seria encontrar uma terra para
que possam viver, plantar e colher até a resolução da crise na Venezuela. Em outras
palavras, aos povos indígenas é negada sua autodeterminação e sua decisão por estar nos
centros urbanos. Isso também é sentido pelos indígenas brasileiros que vivem nos centros
urbano. É possível que algumas famílias comunguem com esta proposta governamental,
ou seja, de um local para viver que nao seja os espaços urbanos, mas há também uma
negativa em ouvir que as cidades podem ser um local para acolhê-los. Esse equívoco
remete aos essencialismos e maniqueísmos, sobre os quais a reflexão antropológica é
relativamente consensual, que como adverte Oliveira (2000), visam congelar no tempo
espaço a reprodução cultural desses povos. E de forma autoritária nega o acesso as
cidades.
O que registramos ao lado dos Warao em situação de mobilidade internacional, é
que as diferentes propostas de abrigo governamental, não foram eficazes para impedir sua
busca por novos espaços urbanos como destino migratório. Atualmente, além de
Pacaraima, Boa Vista, em Roraima, se deslocaram para Amazonas-Manaus, Santarém e
Belém no Pará, São Luís-Maranhão e Terezina-Piaui, Fortaleza e Recife. Dizemos antes
que a confecção artesanal constitui um dos pilares na reprodução social desse povo, nesse
sentido os espaços urbanos enquanto promessa de demanda de seu trabalho de
comercialização de artesanato, e a renda segura realizada de forma, majoritáriamente
pelas mulheres, com seus pedidos de doações (monetarias ou não) nas ruas das cidades
coadunam na compreensão de manter uma autonomia frente a um estado que se propõe a
protege-los, mas que os controlam ao mesmo tempo.
As barreiras que o Estado brasileiro quer impor mediante a política de abrigo
denotam a compreensão governamental da cidade como lugar privilegiado para sujeitos
elegidos. Essa política orientada para a distinção discriminatória atribuí aos indígenas
migrantes o “fora” e, desse modo, nega seus corpos, suas línguas e sua memória enquanto
testemunho de outras possibilidades de aliança e existência. Para os indígenas em geral e
para os Warao em particular ocupar a cidade torna-se fato político na esperança de criar
vínculos, encontros e diálogos.
Até o momento o Estado brasileiro não tem um censo que permita estimar esse
contingente migratório. Contudo, nossas observações da situação de abrigamento
permitem inferir que os menores de 18 anos constituem uma presença significativa. É
significativo que os filhos adultos das mulheres migrantes ficaram em seus territórios
tradicionais na Venezuela. Há também uma significativa presença de mulheres, sendo que
em alguns abrigos a metade são menores de idade. Homens e mulheres Warao, trouxeram
suas crianças, e argumentam como motivação principal protegê-las e cuidá-las até que
possam criar suas próprias unidades familiares.
Desde um enfoque antropológico e sociológico, atento aos julgamentos morais e
precipitados, podemos dizer que o protagonismo dessas mulheres no fluxo migratório está
relacionado com suas práticas de cuidado e reprodução social e cultural dos Warao.
Práticas estas que não se revelam apenas no alimentar ou amamentar, mas observar e
acompanhar fazendo acontecer boas pessoas, em outras palavras ver crescer.
Esta compreensão do cuidado Warao coloca as mulheres na liderança na busca de
alimento e condições melhores de vida. Como povoWarao não pode compreender-se fora
de uma práxis de cuidado. Em outras palavras, o que desde o ponto de vista hegemônico
se compreende como mendicidade poderia constituir uma tática pela permanência como
povo frente condições de extrema vulnerabilidade (Segato,2014). Assim o ato de comer,
quando conseguem da sua forma mais familiar, um alimento feita por parentes não se
limita a suprir uma necessidade meramente biológica. Nenhuma fronteira, geopolítica ou
simbólica, irá impedi-los de praticar este cuidado de permanecer como povo Warao. As
mulheres indicam um dos caminhos.

Conclusão
As pesquisas junto aos movimentos de mulheres indígenas de Bolívia, Brasil,
Colômbia e Venezuela permitiram uma aproximação ao cotidiano de subordinação de
gênero nos diferentes âmbitos da vida social. Essas experiências se configuram como fato
tipicamente político ao revelarem a reprodução de mandatos, padrões, práticas e
estereótipos de gênero cristalizados historicamente. As desvantagens e assimetrias
produzidas e reproduzidas pela matriz de poder patriarcal se instauram nas relações
cotidianas e na existência das mulheres. Assim, o posicionamento na arena pública dos
movimentos de mulheres indígenas se revela enquanto transgressão de estruturas e da
prerrogativa masculina.
A ação política das mulheres Ticuna, na fronteira entre Brasil e Colômbia, desponta
ancorada na formação acadêmica convencional e na trajetória profissional nos moldes
ocidentais. Ambas emergem como dimensão complementar aos conhecimentos
ancestrais. Os percursos pioneiros de mulheres indígenas Ticuna enquanto lideranças são
reconhecidos pelo movimento como um todo pela sua incidência no deslocamento da
ação política do âmbito doméstico para a arena pública nas dinâmicas etnopolíticas em
curso. “Hoje a voz de Mislene [Mendes] é ouvida. Então a gente [mulheres Ticuna
iniciantes na ação política pública] se inspira muito nela. E como mulher mesmo que a
gente a cita” (RUANO; SOUZA, 2017, p. 112).
Esse reconhecimento no âmbito dos movimentos de mulheres indígenas se reporta
à luta pelo direito à educação, a participação política e a autodeterminação perante a
vigência do patriarcado nos Estados nacionais e na organicidade desses povos. Segundo
Geraci Mendes, discente Ticuna na Universidade de Brasília, reconhecer a importância
das trajetórias das mulheres do seu povo na liderança contribui com o fortalecimento da
resistência e preservação do legado ancestral na agenda pela efetivação de seus direitos
coletivos.
A legitimidade galgada pelas mulheres indígenas Ticuna se apresentou nessa
pesquisa no contexto da sua inserção na esfera pública seja chefiando organizações
étnicas ou funções governamentais. Ademais, sua ação política em ambos os países se fez
evidente nas narrativas sobre o fortalecimento social das mulheres no âmbito de políticas
públicas de educação, saúde, segurança alimentar e outros direitos sociais voltadas aos
indígenas. Embora essas políticas reproduzam o mandato patriarcal da divisão social do
trabalho vigente, onde os cuidados com a família permanecem atribuídos prioritariamente
às mulheres sobrecarregando-as, as mulheres potenciam esse horizonte de participação
para fortalecer suas agendas coletivas.
As demandas das mulheres indígenas na Bolívia pelo acesso à justiça, tanto no
sistema estatal ordinário quanto dentro das JIOC, constitucionalizadas desde 2009,
desvendam as lutas pela consolidação de direitos em perspectiva intercultural. Dentre as
conquistas que a pesquisa revelou destacamos as articulações entre os movimentos de
mulheres indígenas a partir da defesa coletiva de seus direitos. Fundamentada pela
perspectiva de viver em harmonia e complementaridade, preceitos culturais chave nas
cosmovisões andinas, essas lutas não estão isentas de contradições. Investem na
promoção de espaços de capacitação e cura para quem sofreu violação de direitos, além
de reflexão comunitária de sensibilização sobre cada caso.
No tocante aos desafios, observam-se obstáculos estruturais que no entendimento
desses movimentos de mulheres indígenas requerem investigação, punição, reparação e
prevenção. Para esses movimentos, a implementação das leis, recentemente sancionadas
na Bolívia, calcadas em perspectivas interculturais, sensíveis às questões de gênero e a
busca por justiça e igualdade para as mulheres constitui um horizonte inicial de
possibilidades cuja prática e aprimoramento exige uma compressão ampla que reconheça
sua complexidade. Nesse contexto, em alguns casos, os grupos de mulheres indígenas no
país buscam trabalhar suas agendas apontando perspectivas interculturais, algumas vezes
voltando para conceitos considerados tradicionais de suas comunidades, mas que estão
constantemente transformação de significados.
A perspectiva de gênero adotada na pesquisa colocou-se como uma chave de análise
eficaz no caso das mulheres indígenas em situação de mobilidade entre Venezuela e
Brasil. Como visto, mais de 50% desse fluxo populacional em deslocamento é constituído
por menores de 18 anos com crescimento significativo da parcela de mulheres. Os
desafios enfrentados pelas mulheres indígenas do povo Warao, em situação de rua ou de
abrigamento governamental no Brasil, passam pela feminilização dos espaços de
confinamento/abrigamento, pelo controle de sua agência e de seus corpos. Colonialmente
e amparados por ideologias de superioridade moral, nessas espacialidades os agentes
governamentais definem estruturas e papéis sociais marcados pelas diferenças culturais e
sociais em contextos migratórios. Contudo chamamos a atenção para o papel das
mulheres não apenas no âmbito daquilo conhecido como cuidado maternal, mas em uma
perspectiva englobante da ação cotidiana para inventar e investir em novos modos de
viver, sem perder sua língua e seus vínculos e ocupando espaços urbanos pelo Brasil.
A partir da perspectiva comparativa entre as três pesquisas concluímos que os
repertórios dos movimentos de mulheres indígenas adotam o enfoque da
complementaridade almejando uma visão conjunta, entre homens e mulheres, em prol da
garantia de direitos. Para tanto, esses movimentos das mulheres Ticuna, Warao e de vários
povos indígenas na Bolívia apresentam como traço comum a interpelação às instituições
e formas de dominação e desafiam as justificativas culturais, burocráticas e jurídicas que
sustentam a hegemonia patriarcal.
Ao olharmos para as diferenças constatamos que as experiências das mulheres por
acesso à justiça ordinária e nas JIOC na Bolívia provocam tensionamentos tanto no
âmbito institucional estatal quanto ao interior de seus povos. As demandas por
participação em matéria de violência doméstica e sexual contra as mulheres desvendam
a patriarcalização nos sistemas de justiça. Os tensionamentos suscitados pelos
movimentos de mulheres Ticuna na fronteira colombo brasileira dizem respeito às
estruturas tradicionais que impedem ou atrapalham a participação ativa das mulheres na
cena política pública. As reivindicações pelo acesso ao direito à educação constrangem a
cena interétnica como um todo, indicando a necessidade urgente de mudanças em chave
de gênero nas políticas governamentais e do povo Ticuna.

REFERÊNCIAS

ARTEGA, Ana Cecilia Bohrt. Caminemos juntos: complementariedad chacha-warmi y


autonomías indígenas en Bolivia. In: SIEDER, Rachel (coord.). Exigiendo justicia y
seguridad – Mujeres indígenas legales en América Latina. Cidade do México: Centro de
Investigaciones y Estudios en Antropología Social, 2017.

ARROYO-GÚZMAN, Adriana; PAREDES, Julieta. El Tejido de la rebeldia: ¿Qué es el


feminismo comunitario? La Paz: Comunidad Mujeres Creando Comunidad, 2014.

CABNAL, Lorena. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento


epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In:
CABNAL, LORENA; ACSUR – LAS SEGOVIAS. Feminismos diversos: el feminismo
comunitario. Asociación para la cooperación con el Sur. Las Segovias: ACSUR, 2010. p.
11-25.

CARIOSO, Alba. Perspectivas feministas para ampliar horizontes del pensamiento crítico
latinoamericano. In: SAGOT, Montserrat. Feminismos, pensamiento crítico y propuestas
alternativas en América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2017. p.
17-42.

CUMES, Aura Estela. Mujeres indígenas, patriarcado y colonialismo: un desafío a la


segregación comprensiva de las formas de dominio. Hojas de Warmi, n. 17, 2012.

CURIEL, Ochy. Construyendo metodologías feministas desde el feminismo decolonial.


In: MENDIA, Irantzu et al. (ed.). Otras formas de (Re)conocer. Reflexiones,
Herramientas y Aplicaciones desde la Investigación Feminista. Donostia-San Sebastián:
SIMReF, Universidad del País Vasco, 2014. p. 45-60.

ESPINOSA, Yuderkys. Una crítica descolonial a la epistemología feminista crítica. El


Cotidiano, n. 184. 2014, p. 7-12.

FERRO, Larissa. O Acesso à Justiça para as mulheres indígenas no Estado Plurinacional


Boliviano. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade de Brasília,
Brasília, 2019. Linha de pesquisa: Estudos Comparados sobre as Américas.

GARGALLO, Francesca. Los feminismos de las mujeres indígenas: acciones autónomas


y desafío epistémico. In: ESPINOSA MIÑOSO, Yuderkys; GÓMEZ CORREAL, Diana;
OCHOA MUÑOZ, Karina (ed.). Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y
apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014.
p. 371-381.

GOMEZ, Mariana. Presentación del debate: mujeres indígenas y feminismos: encuentros,


tensiones y posicionamientos. Revista Corpus: Archivos virtuales de la alteridad
americana. v. 7, n. 1, 2017.

GÚZMAN, Adriana. Entrevista concedida à FERRO, Larissa C. de Sousa, em 26/04/2018


por meios eletrônicos, Brasília, 2018.

GÚZMAN, Adriana; PAREDES, Julieta. El tejido de la rebeldía. ¿Qué es el feminismo


comunitario? La Paz: Comunidad Mujeres Creando, 2014. 112 p.

LUCIANO, Gersem. Educação para Manejo e Domesticação do Mundo: entre a escola


ideal e a escola real. Os dilemas da educação escolar indígena no Alto Rio Negro. 2011.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2011.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v.


22, n. 3, p. 935-952, 2014.

MATAREZIO, Edson Tosta. Do corpo ao cosmos – condensações rituais dos Ticuna.


Periferia, v. 19, n. 1, p. 28-54, 2014.

MIGNOLO, Walter. Después de América Latina: la herida colonial y la transformación


epistémica geopolítico-corporal. In: MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la
herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial, 2007. p. 117-168.

MOREIRA, Elaine; PALOMINO, Cristabell; SILVA, Cristhian. Fronteiras


internacionais e migração indígena na América do Sul: Estudos de caso e questões
compartilhadas: Apresentação. Périplo: Revista de Estudos Sobre Migrações, v. 2, n. 2,
p. 2-5, 2019.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Os descaminhos das identidades. Revista Brasileira de


Ciências Sociais, v. 15, n. 42, p. 7-21, 2000.

PANCHO, Avelina. Participación de las mujeres Nasa en los procesos de autonomía


territorial y educación propia en el Cauca, Colombia. In: DONATO et al. (ed.). Mujeres
indígenas, territorialidad y biodiversidad en el contexto latinoamericano. Bogotá:
Universidad Nacional de Colombia: Fundación Natura de Colombia: Unión Mundial para
la Naturaleza: UNODC: Oficina de las Naciones Unidas contra la Droga y el Delito, 2007.
p. 53-64.

RUANO, Elizabeth. Repertório de protesto indígena: análise histórica a partir das


mobilizações dos povos de Cauca (Colômbia). Estudos Ibero-Americanos, v. 45, p. 91-
105, 2019.

RUANO, Elizabeth; SOUZA, Liliana. Mulheres Ticuna: gênero e política na Amazônia.


Amazônica-Revista de Antropologia, v. 8, n. 1, p. 90-117, 2017.

SEGATO, Rita Laura. El sexo y la norma: frente estatal, patriarcado, desposesión,


colonidad. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 2. 2014. p. 594-616.

SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um


vocabulário estratégico descolonial. e-cadernos CES, n. 18. 2012, p. 106-131.

SOUZA, Liliana; RUANO, Elizabeth; SILVA, Cristhian. Repensando a “liderança” no


Alto Solimões: Metamorfoses da etnopolítica Ticuna na Amazônia brasileira e
colombiana. In: IGREJA, Rebecca; NOVION, Jacques. Política em movimento: a
construção da política na América Latina e Caribe. Curitiba: Editora CRV, 2016. p. 195-
210.

VALDEZ, María. Aportes mapuce para pensar el género. Revista Corpus: Archivos
virtuales de la alteridad americana. v. 7, n. 1. 2017. 2017. 1-9.

ZAPATA SILVA, Claudia. Intelectuales indígenas en Ecuador, Bolivia y Chile:


diferencia, colonialismo y anticolonialismo. Quito: AbyaYala, 2013.

Outras fontes

BOLIVIA. Constituição. Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia. Sucre,


Chuquisaca. 7 fev. 2009. 107 p.
BOLIVIA. Lei nº 243, de 28 de maio de 2012. Ley contra el acoso y violencia política
hacia las mujeres. 2012. Disponível em:
https://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/ELECTRONIC/90299/104007/F226460565/BOL9
0299.pdf. Acesso em: 2 dez. 2018a.
BOLIVIA. Lei nº 348, de 9 de março de 2013. Ley integral para garantizar a las mujeres
una vida libre de violencia. 2013. Disponível em:
https://www.migraciongob.bo/upload/l348.pdf. Acesso em: 2 dez. 2018b.
CASA DE LA MUJER. Escuchar otra cultura, ver desde otra mirada. Disponível em:
http://www.casadelamujer.org.bo/index.php/talleres-y-acciones/item/57-el-
voluntariado-como-intercambio. Acesso em: 5 jan. 2019.
CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Relatório Mulheres Indígenas e Seus
Direitos Humanos nas Américas. OAS Official Records, 2017.
MPF-PGR. Parecer Técnico nº 10/2017 – SP/MANAUS/SEAP. Brasília: PGR, 2017. 52
p.

Você também pode gostar