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Cultura e Literatura africana e indígena

A presença africana e indígena ao longo da história do Brasil e a relevância


atual que suas culturas possuem enriquecem a diversidade de nosso país e
oferecem outras possibilidades de ser e estar no mundo.
Esta obra visa proporcionar sólidos subsídios sobre as culturas e literaturas
africanas de língua portuguesa, assim como a cultura, história e literatura
indígenas, a fim de que esses conhecimentos ampliem a compreensão da
diversidade da cultura brasileira na qual nos inserimos.
Os cinco primeiros capítulos são dedicados aos estudos da história, da cultura
e da literatura dos chamados Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP), e os três capítulos restantes para os estudos sobre a história, a cultura

Claudia Amorim / Mariana Paladino


e os modos de vida contemporâneos dos povos indígenas no Brasil.

Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico


ISBN 978-85-387-6208-9

9 788538 762089 58293


Cultura e Literatura
Africana e Indígena

Claudia Amorim
Mariana Paladino

IESDE BRASIL S/A


2019
© 2009-2019 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito das autoras e do detentor
dos direitos autorais.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
A543c
Amorim, Claudia
2. ed.
Cultura e literatura africana e indígena / Claudia Amorim, Mariana
Paladino. - 2. ed. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2019.
128 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6208-9

1. Literatura comparada - africana e indígena. 2. Literatura afri-


cana - Estudo e ensino. 3. Literatura indígena - Estudo e ensino.
4. Cultura afro-brasileira - Estudo e ensino. 5. Cultura indígena
- Estudo e ensino. I. Paladino, Mariana. II. Título.
CDD: 809
19-55977
CDU: 82.091

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Claudia Amorim
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Mestre em Letras Vernáculas, especialista em Literatura Portuguesa e graduada em Letras
Português/Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Realizou Pós-Doutorado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Universidade de São
Paulo (USP).

Mariana Paladino
Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ). Mestre em Antropologia Social
pelo PPGAS/UFRJ. Graduada em Antropologia pela Universidad Nacional de La Plata, Argentina.
Realizou Pós-Doutorado em Educação, na Universidad Pedagógica Nacional (UPN), México.
Sumário

Apresentação 7

1 A África lusófona: um pouco de história 9


1.1 Breve panorama histórico da África lusófona 10
1.2 A colonização das ilhas do Atlântico e da costa africana 12
1.3 O Império Colonial Português nas ilhas e nas terras africanas 12
1.4 A independência dos cinco países africanos lusófonos 13
1.5 A República Portuguesa e o golpe militar de 1926 14
1.6 A criação dos movimentos pela independência das colônias na África
portuguesa 15

2 Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau 19


2.1 Cabo Verde: história, cultura e literatura  21
2.2 São Tomé e Príncipe: história, cultura e literatura  24
2.3 Guiné-Bissau: história, cultura e literatura  27

3 Cultura e literatura em Angola  31


3.1 Angola: a história da sua colonização 32
3.2 Angola: o início das atividades literárias 34
3.3 Angola: literatura e cultura a partir de 1950 35
3.4 Angola: literatura e cultura após a independência 37

4 Cultura e literatura em Moçambique 41


4.1 Moçambique: a história de sua colonização 42
4.2 Moçambique: cultura e literatura durante o século XX e antes da libertação 45
4.3 Moçambique: cultura e literatura após a libertação 47

5 África lusófona e Brasil: laços e letras 51


5.1 Os africanos no Brasil: um pouco de história 51
5.2 Identidades e diferenças entre as culturas do Brasil e dos países africanos
lusófonos 58
5.3 Estudos afro-brasileiros na contemporaneidade 61
6 História e historiografia indígena 67
6.1 O sistema colonial e missionário 68
6.2 O Diretório dos Índios e o retorno da ação missionária 72
6.3 O regime tutelar 75
6.4 As imagens sobre os índios nos séculos XVIII, XIX e XX 77
6.5 Visões indígenas do contato 79

7 Situação contemporânea dos povos indígenas 85


7.1 Quem são e quantos são os povos indígenas hoje no Brasil 85
7.2 Diversidade linguística e cultural 89
7.3 Formas de organização social e parentesco 90
7.4 Economias indígenas 91
7.5 Religiões indígenas 94

8 Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 101


8.1 Lutas do movimento indígena 101
8.2 Conquistas legais 104
8.3 O avanço no processo de escolarização dos povos indígenas 106
8.4 Escritores e literatura indígena 109
8.5 Artistas e cineastas indígenas 111

Gabarito 117

Referências 123
Apresentação

Sejam bem-vindos aos estudos de cultura e literatura africana e indígena. Esses e­ studos visam
proporcionar a vocês sólidos subsídios sobre as culturas e literaturas africanas de língua portuguesa,
assim como da cultura, história e literatura indígenas, a fim de que esses conhecimentos ampliem a
compreensão da diversidade da cultura brasileira na qual nos inserimos.

Esta obra, que ora atualizamos, foi produzida em um contexto nacional que despertava para
a importância de se introduzir na formação básica do aluno dos Ensinos Fundamental e Médio
os conhecimentos sobre as culturas africanas e culturas indígenas (conforme estabelecem as Leis
n. 10.639/2003 e n. 11.465/2008, respectivamente). Durante esses anos, entre a implementação da
obrigatoriedade desses conteúdos no ensino público e particular, houve avanços em relação a esses
conhecimentos, mas muitas instituições de ensino se depararam com as dificuldades de acesso a
um material pedagógico adequado, seja por dificuldades de acesso ou por desconhecimento de
obras que abordassem os conteúdos de maneira atualizada e consistente.

No contexto atual, em que se aprovou uma reforma do Ensino Médio que torna obrigatórias
apenas disciplinas como Matemática e Português, retirando-se do conteúdo obrigatório disciplinas
de História e Geografia, tornando-as optativas, os estudos sobre a cultura brasileira, na qual se
inserem os conhecimentos relativos às culturas africanas e indígenas, que compõem a formação
inicial do Brasil, podem se tornar ainda mais inacessíveis. Contudo, acreditamos que há um inte-
resse genuíno de pesquisadores acadêmicos e professores de instituições públicas e particulares,
assim como de instituições educacionais atentas à diversidade que caracteriza a nossa nação, no
aprofundamento dos conhecimentos sobre as culturas africanas e indígenas.

A atualização e reedição deste volume muito nos gratifica, portanto, nesse contexto, uma
vez que apostamos juntos na vontade de saber inerente a todos os seres pensantes e no respeito à
alteridade, que nos faz olhar para a sociedade brasileira como um todo formado pela pluralidade.

A tarefa de condensar em alguns capítulos a cultura e a literatura de cada um dos países


africanos de língua portuguesa e a cultura, a história e a literatura indígena no Brasil não foi fácil.
No primeiro caso, devido à necessidade de nos remetermos à história e à cultura secular dos países
africanos referidos. No segundo caso, pela diversidade de formas de vida, culturas e organização
social dos povos indígenas existentes hoje no país, o que torna complexa a composição de um
quadro geral. Contudo, seguimos confiantes por serem esses temas hoje muito mais acessíveis aos
estudantes e pesquisadores do que há oito anos, quando editamos esse volume.

Nessa atualização, não modificamos a intenção inicial da obra, ou seja, privilegiamos as


informações históricas para, em seguida, focalizarmos a cultura e a literatura africana e indígena,
uma vez que sem um conhecimento prévio da história dos povos da África de língua portuguesa,
dos povos indígenas e de como os portugueses, nos séculos XV e XVI, provocaram essa ligação
entre regiões tão distantes, por meio das navegações, qualquer estudo que estabeleça associações
8 Cultura e Literatura Africana e Indígena

entre essas culturas não será completo. No caso dos indígenas também se privilegiou a com-
preensão dos processos de mudança ocorridos a partir da formação do movimento indígena e da
Constituição de 1988, quando o Estado reconheceu sua condição de povos e o direito à posse dos
territórios tradicionalmente ocupados por eles. Decorrente desses processos situa-se a produção de
uma literatura indígena que procura expressar, por meio da escrita, uma diversidade de conheci-
mentos e relatos orais, de modo que possam ser mantidos na memória das jovens gerações e serem
conhecidos pela sociedade não indígena.

Para facilitar as informações, mantivemos a divisão do conteúdo deste livro em oito capítulos,
dedicando os cinco primeiros aos estudos da história, da cultura e da literatura dos chamados Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), e os três capítulos restantes para os estudos sobre
a história, a cultura e os modos de vida contemporâneos dos povos indígenas no Brasil.

Esperamos que vocês façam uma boa leitura e descubram, nesses estudos, a presença africana
e indígena ao longo da história do Brasil e a relevância atual que suas culturas têm, enriquecendo a
diversidade de nosso país e oferecendo outras possibilidades de ser e estar no mundo.
1
A África lusófona: um pouco de história

Claudia Amorim

O objetivo deste capítulo é apresentar um breve panorama da ocupação portuguesa, na


África, iniciada na segunda década do século XV (1415), com a conquista da cidade de Ceuta, no
Marrocos, e finalizada na segunda metade do século XX, com a independência dos cinco países
africanos colonizados pelos portugueses.
Durante esses cinco séculos de ocupação portuguesa na África, houve resistência por parte
dos povos das regiões, mas o poder do colonizador se implantou pela força. Em determinadas
regiões, houve uma tímida mistura entre colonizador e colonizado.
Antes da chegada do europeu à África, quase nada se sabia sobre o modo de vida ou sobre a
organização dos grupos étnicos que lá viviam. Entretanto, é inegável que a cultura secular e ágrafa
desses povos permaneceu e se difundiu por outros territórios ocupados pela nação lusa, como o
Brasil, por exemplo, que recebeu um grande número de escravos provenientes da África, especial-
mente do Congo, da Guiné e de Angola (grupo étnico banto) e da Nigéria, Daomé (atual República
do Benim) e Costa do Marfim (grupo étnico sudanês).
No Brasil colonial, a cultura portuguesa do colonizador, a cultura africana e a cultura indí-
gena foram os pilares da constituição do caráter brasileiro, ainda que o colonizador europeu,
branco, tenha subjugado o negro e o índio e suas culturas. Ambas eram não cristãs e, por isso,
naquela época, consideradas “inferiores”.
Contemporaneamente, os laços culturais que aproximam a cultura brasileira da África
­lusófona são inúmeros e passam, entre outras coisas, pela música, pelas crenças religiosas, pela
culinária e pela literatura que se expressa em português.
Assim, para falarmos da cultura e das literaturas africanas, e de seus inegáveis laços com o
Brasil, precisamos voltar no tempo e observar que, sem os empreendimentos marítimos dos por-
tugueses que os levaram a algumas regiões da África, e também ao nosso território, essa história
seria bem diferente.
Comecemos, então, por estudar a África lusófona, ou seja, a África dos cinco países que
falam hoje a língua portuguesa (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e
Moçambique), focalizando primeiramente a chegada do português a essas regiões. Esses cinco
países são membros dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), ainda que muitos
deles tenham outras línguas oficiais paralelamente ao português.
10 Cultura e Literatura Africana e Indígena

1.1 Breve panorama histórico da África lusófona


No ano de 1415, os portugueses tomaram dos mouros, em apenas um dia de combate, a
cidade de Ceuta, no Marrocos. Essa importante vitória da cristandade sobre os “infiéis”, já nos
primór­dios do Renascimento, guarda um significado simbólico também por ter sido exatamente
berberes: con-
junto de povos
de Ceuta que Tarik e o seu exército de 7 mil berberes partiram no ano de 711 para invadir a
do norte da
Península Ibérica, permanecendo ali durante sete séculos (ENDERS, 1997).
África falantes de
línguas berberes.
Para além do espírito cruzadístico dessa empreitada, a conquista de Ceuta foi o primeiro
passo do caminho que levou os navegadores portugueses da Península Ibérica ao Extremo Oriente
e ao Brasil no final do século XV e início do século XVI.
A cidade de Ceuta era o ponto de chegada das rotas comerciais oriundas do sul da Berbéria
(nome com que os europeus designaram, até o século XIX, a região que hoje compreende o Marrocos,
a Argélia, a Tunísia e a Líbia – o atual Magreb, com exceção do Egito) e das caravanas com o ouro
proveniente da Guiné. Essas riquezas encontradas em Ceuta fizeram com que os p ­ ortugueses adivi-
nhassem que havia outras maiores espalhadas em alguns pontos do continente africano. Na intenção
de dominar esse comércio, ao mesmo tempo em que buscava contato com um suposto soberano
cristão na África – Preste João das Índias1 –, a política de expansão portuguesa adotou a exploração
da África em detrimento da ocupação de territórios ao longo do Mediterrâneo.
Dessa forma, a expansão portuguesa teve início no norte da África, seguiu para o sul ao longo
da costa ocidental africana, alcançando as ilhas do Atlântico e depois avançou pela costa oriental
do continente africano ao longo do Oceano Índico, em direção ao Oriente e ao Extremo Oriente,
chegando ainda à região do Atlântico Sul com a colonização do Brasil (BIRMINGHAM, 2003).
O desejo de lutar contra os mouros e de alargar o império de Cristo entre os povos não cris-
tãos vai se misturando, pouco a pouco, a perspectivas economicamente mais enriquecedoras. A
exploração da costa africana, onde os navegantes encontraram pimenta-malagueta, canela e outras
especiarias, além do marfim e do ouro, se mostrava bastante lucrativa. Assim, novas expedições
se organizaram pelos mares já navegáveis da costa ocidental e oriental da África, marcando um
período da história conhecido como Descobrimentos Portugueses.
O mapa a seguir indica os territórios ocupados pelos portugueses e a rota das navegações
portuguesas a partir de 1415 até meados do século XVI.

1 Nos séculos XV e XVI, corria uma lenda na Europa de que havia um rei cristão no Oriente, cujo nome era Preste João
das Índias, e acreditava-se que seu reino, que não se sabia precisar exatamente onde ficava, mas que se pensava ser na
África, poderia ser aliado europeu para a exploração do caminho marítimo para as Índias. A Coroa Portuguesa, a partir
dos relatos de viajantes e peregrinos, tentou encontrar o reino de Preste João com o desejo de fazer possíveis alianças
(ENDERS, 1997).
Figura 1 – Territórios do império português
Peteri/Shutterstock

Territórios ocupados pelos portugueses e rota das navegações lusas nos séculos XV e XVI. Observe que o território português
na América é delimitado pelo Tratado de Tordesilhas2, assinado em 1494 entre Portugal e Espanha.
A África lusófona: um pouco de história

2 O Tratado de Tordesilhas, assinado pelas Coroas de Portugal e da Espanha, em 1494, para dividir as terras descobertas, ou a descobrir, por ambas as Coroas, delimitava uma
linha imaginária a 370 léguas a oeste das linhas de Cabo Verde. As terras a oeste desse meridiano pertenciam à Espanha e as terras a leste dessa linha seriam portuguesas.
11
12 Cultura e Literatura Africana e Indígena

1.2 A colonização das ilhas do Atlântico e da costa africana


Nos anos seguintes à tomada de Ceuta, os navegadores portugueses empreenderam seu
movimento para o sul, chegando em 1418 à ilha de Porto Santo, em 1419 à Ilha da Madeira, em
1427 aos Açores, em 1460 às ilhas de Cabo Verde e em 1470 às ilhas de São Tomé e Príncipe, todas
desabitadas. Nos primeiros arquipélagos – Porto Santo, Madeira e Açores –, o clima favorecia a
ocupação e o trabalho na terra, e ali se estabeleceram, então, as primeiras colônias de povoamento.
Nos demais – Cabo Verde e São Tomé e Príncipe –, os portugueses fundaram colônias de planta-
ção, não se preocupando com o povoamento da região (ENDERS, 1997).
Nas terras continentais, no ano de 1446, os portugueses alcançaram a Guiné-Bissau (a que colo-
nizaram com o nome de Guiné Portuguesa), em 1483 chegaram à região que hoje se conhece como
Angola e, após a viagem de Bartolomeu Dias, que venceu o Cabo das Tormentas (renomeado para
Cabo da Boa Esperança, devido ao sucesso da empreitada), Vasco da Gama pôde preparar sua armada
para uma viagem até a Índia. Em 1488, Gama partiu da Praia do Restelo, em Lisboa, onde está atual-
mente a Torre de Belém, avançando para o sul até alcançar o Oceano Índico. Antes que o propósito de
sua viagem se concluísse, as caravelas portuguesas aportaram em Moçambique no ano de 1489.
A cada lugar em que as caravelas portuguesas aportavam, um padrão de pedra com as armas
e o brasão português era fincado. O padrão simbolizava a posse oficial do território. Essa medida
da Coroa portuguesa visava a desencorajar intrusos e reforçar o senhorio sobre as terras ocupadas.

1.3 O Império Colonial Português nas ilhas e nas terras africanas


A extensão do Império Português no Oriente e no Extremo Oriente obrigou a Coroa por-
tuguesa à fragmentação das possessões portuguesas na África. O alto custo da manutenção em
algumas cidades do Marrocos fez com que a Coroa abandonasse essa região. Os gastos numerosos
com a defesa da costa da África, especialmente com os ataques de corsários e comerciantes de
outros países europeus, enfraqueceram a Coroa portuguesa. Porém, mesmo com esses revezes, nos
séculos seguintes, o Império Colonial Português se sustentou e as colônias portuguesas na África
continuaram a ser sistematicamente exploradas. Para garantir as terras na África, a Coroa portu-
guesa concedia as terras, por um período de tempo limitado (cerca de três gerações), aos colonos
que desejassem explorá-las. Ao fim desse período, a concessão deveria ser renovada. Os colonos
tinham como tarefa defender os interesses portugueses nas terras do além-mar e pagar por essa
concessão com o produto dos territórios que lhes eram confiados. No entanto, gradativamente, em
algumas regiões – especialmente nas ilhas de Cabo Verde –, o mundo dos senhores ia se mistu-
rando com o dos africanos, tornando mais complexas as relações de poder.
Nesse período, outro “negócio” começou a ganhar força – o tráfico negreiro. Por volta de
1648, os portugueses ocuparam os locais estratégicos no comércio de escravos, que se tornou indis-
pensável a todas as colônias da América. A economia de plantação – especialmente na América –
demandava uma maior exportação de escravos africanos, que se tornou sistemática. Entre os anos
de 1502 e 1860, 9,5 milhões de africanos foram deportados para o continente americano. No século
XVIII, com a descoberta do ouro em Minas Gerais e a necessidade de extraí-lo, muitos negros da
região de Angola foram enviados ao Brasil.
A África lusófona: um pouco de história 13

A Guiné Portuguesa foi inicialmente a principal fornecedora de mão de obra escrava para
o continente americano, sendo depois substituída por Angola, país que manteve essa posição até
o século XVIII. Nos fins desse mesmo século e durante o século XIX, a região do Golfo da Guiné3
ocupou a supremacia do tráfico negreiro, que havia sido de Angola no século anterior. A feitoria
de São Jorge da Mina4, em Gana, foi o principal porto de escoamento de escravos para a América
(ENDERS, 1997).
O início do século XIX trouxe mudanças significativas para a situação da África portuguesa.
Com a independência do Brasil, em 1822, Portugal se viu pressionado a enfrentar as demais potên-
cias europeias para assegurar seus “direitos” sobre os territórios africanos ocupados.
Pressionado pela política europeia, Portugal extingue o tráfico negreiro no Império em
1842 e em 1869 declara o fim da escravidão, embora esse tráfico continuasse a ser feito durante os
anos seguintes. Nas colônias, a política de exploração das riquezas tinha seguimento e, para tanto,
Portugal precisou instituir uma legislação trabalhista que obrigava o nativo ao trabalho forçado nas
plantações de algodão ou nas obras públicas.
Paralelamente às pressões externas, ao longo do século XIX, a vida nos territórios africa-
nos mudava lentamente. A essa altura, uma população mestiça e burguesa, ainda que em número
reduzido, vai se formando nas colônias do ultramar, reivindicando melhores condições para essas
terras. Aparecem os primeiros assimilados, nome pelo qual eram identificados os descendentes de
portugueses, geralmente mestiços, nascidos na África, que recebiam uma educação mais formal.
Nessa época, alguns poucos jornais circulavam pelas mais importantes cidades da África portu-
guesa, instaurando a necessidade de uma educação nas regiões mais importantes do ultramar.
As demais nações europeias, interessadas em repartir a África, pressionaram Portugal a abrir
mão de alguns de seus territórios. Na Conferência de Berlim, de 1885, Portugal perdeu o Congo
e teve que se contentar com o enclave de Cabinda, região próxima a Angola. No entanto, apesar
desse recuo, Portugal é, no fim do século XIX, senhor de dois milhões de quilômetros quadradros
no território africano.

1.4 A independência dos cinco países africanos lusófonos


A Guerra Colonial durou 13 anos – de 1961 a 1974 – e pôs fim à ocupação portuguesa
no território africano. Essa guerra ficou conhecida, ainda, entre os portugueses, como Guerra do
Ultramar ou Guerra da África. Entre os povos dos territórios ocupados, duas denominações foram
adotadas: Guerra de Libertação Nacional e Guerra pela Independência.
Ao longo desses cinco séculos de domínio português nas colônias da África, houve mui-
tas tentativas de resistência dos povos locais, mas a supremacia bélica dos portugueses, aliada às
­disputas políticas entre as diversas etnias das regiões ocupadas, favoreceram o domínio lusitano,
dando lugar ao Império Colonial Português que abrangia não só territórios na África, mas também
na América do Sul, com o Brasil, e, ainda, na Índia e na Ásia (MUNANGA, 1986).

3 Golfo da Guiné é uma reentrância próxima às Ilhas de São Tomé e Príncipe e compreende o litoral da Costa do
­Marfim, Gana, Togo, Benim, Nigéria, Camarões, Guiné Equatorial e a parte norte do Gabão.
4 A feitoria de São Jorge da Mina, em Gana, é a construção europeia mais antiga ao sul do deserto do Saara.
14 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Como afirma Kabengele Munanga (1986), quando os primeiros europeus desembarcaram


nas terras africanas, encontraram estados organizados politicamente. Entretanto, essa organização
não foi capaz de reverter a ocupação europeia, pois o desenvolvimento técnico dos estados africa-
nos, incluída a tecnologia de guerra, era inferior ao dos portugueses.

1.5 A República Portuguesa e o golpe militar de 1926


No início do século XX, a situação das colônias africanas lusófonas não se alterou muito
em relação ao século anterior. Segundo Enders (1997, p. 69), para “Portugal, como para as outras
potências europeias, a colonização supõe a conquista, o desenvolvimento de uma economia de
exportação e a submissão da mão de obra indígena para o trabalho e para o imposto”. Com isso, o
trabalho de exploração das terras africanas, sem nenhum investimento econômico, continuou e se
agravou com o início das duas grandes guerras mundiais.
A curta vida da República Portuguesa, que surgiu em 1910 e foi derrubada pelo golpe militar
de 1926, põe fim às pretensões dos republicanos, inaugurando um longo período ditatorial marcado
por perseguições de toda ordem, retrocesso político e econômico, com reflexos graves nas colônias
do ultramar. Em 1928, Antônio de Oliveira Salazar – um professor de Coimbra – foi convidado a
assumir a Pasta das Finanças do país e a partir dessa data inaugurou-se um período difícil da história
de Portugal. É o início da ditadura salazarista, nome pelo qual ficou conhecido o regime ditatorial
no país, que teve início em 1926 e só terminou em 1974, com a Revolução dos Cravos.
Como observa José Paulo Netto (1986, p. 18), durante a ditadura salazarista “um projeto
econômico-social se integra organicamente à repressão antipopular e antidemocrática. Trata-se,
explícita e nitidamente, do projeto fascista do grande capital, de que Salazar se fez um funcionário
coerente, lúcido e pertinaz”.
Entre 1929 e 1933, Salazar acumulou os Ministérios das Finanças e das Colônias e com mão
de ferro tomou medidas duras contra a enfraquecida oposição. Em 1932, instaurou o Ato Colonial,
que instituiu o trabalho forçado para os nativos das colônias, obrigando a população negra a servir
por um determinado período de sua vida ao Estado ou a um patrão europeu. Esse Ato Colonial
era, na verdade, uma reedição do trabalho forçado instituído no século XIX pela Coroa portuguesa
aos nativos dos territórios africanos ocupados. Além disso, a ditadura salazarista criou a polícia
política portuguesa – PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), mais tarde conhecida como
PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) –, que também teve sua área de atuação nas colô-
nias do ultramar, especialmente nos anos 1960, quando se inicia um movimento de grande revolta
nas colônias contra a política da Metrópole.
Além do trabalho forçado nas colônias africanas, instituído pelo Ato Colonial, o regime
português continuou a explorar vorazmente suas riquezas, especialmente algodão, cana-de-açúcar,
café, petróleo, entre outros produtos. Os lucros obtidos com essa exploração eram revertidos para a
Metrópole, ao passo que as colônias amargavam uma situação de penúria e ausência de perspectiva.
O descontentamento com essa política de exploração aumentou visivelmente na década
de 1950 e, durante essa mesma época, disseminaram-se na África as ideias do Movimento da
Negritude, criado em 1934, em Paris, por um grupo de poetas e intelectuais negros. O Movimento
A África lusófona: um pouco de história 15

da Negritude defendia uma revolução na linguagem e na literatura, a fim de reverter o sentido


pejorativo da palavra negro e dela extrair um sentido positivo. Em 1939, o poeta negro martinicano
Aimé Césaire o utilizou pela primeira vez em um trecho do “Cahier d’un retour au pays natal”
(Caderno de um regresso ao país natal), poema que se tornou a obra fundadora da Negritude.
Inspirados pela luta dos negros norte-americanos, que combatia a discriminação racial e a intole-
rância, os adeptos do Movimento da Negritude defendiam o respeito à diferença e a valorização das
características próprias da cultura negra.
Nesse ínterim, a situação de alguns dos territórios africanos colonizados por franceses ou
ingleses, por exemplo, ganhava outro estatuto. Alguns novos países independentes surgiam na
África, acelerando o processo de descolonização. Todas essas lutas eram estimuladas pela ação do
Movimento da Negritude, que defendia a valorização dos negros e da sua cultura, e pelas lutas dos
negros norte-americanos contra o racismo.
Desse modo, a grande insatisfação com a política salazarista para as colônias, a dissemina-
ção das ideias do Movimento da Negritude, a luta dos negros norte-americanos contra o racismo e
a independência de países africanos colonizados pela França e pela Inglaterra foram os propulsores
dos movimentos independentistas nas “províncias ultramarinas” portuguesas.

1.6 A criação dos movimentos pela independência das colônias


na África portuguesa
Na esteira desses acontecimentos, em meados da década de 1950, surgia, na Guiné
Portuguesa, o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), cujo líder
era Amílcar Cabral. Em Angola surgia o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola),
sob a liderança do poeta Agostinho Neto. Na década seguinte, em 1962, um ano após o início
da guerra pela independência em Angola, surgia em Moçambique a Frelimo (Frente Nacional de
Libertação de Moçambique), sob o comando de Eduardo Mondlane.
Todos esses movimentos africanos pela independência têm entre seus líderes escritores,
­poetas, jornalistas e outros intelectuais, muitos dos quais antigos estudantes da Casa do Estudante
do Império (CEI), em Lisboa (havia uma em Coimbra também). Essas casas funcionavam como
um ponto de reunião de jovens estudantes oriundos de vários territórios do ultramar, especial-
mente dos países africanos. Especificamente, a CEI de Lisboa acabou se tornando um local estraté-
gico e decisivo para a tomada de consciência e organização dos jovens estudantes africanos, em sua
maioria angolanos, que se aliaram aos estudantes e intelectuais portugueses contrários ao regime
fascista. Centro de articulação política e resistência, a CEI de Lisboa também funcionou como um
espaço para o surgimento de uma literatura de valorização das raízes africanas.
Como observa Manuel Ferreira (1977, p. 34):
A partir do início da década de 1960 a vida literária (e cultural, de certo modo)
de Angola só poderá ser apreendida na totalidade se estivermos atentos ao que
se desenrola na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Aliás também
em Coimbra onde tiveram lugar várias iniciativas, a partir da década de 1950.
A Casa dos Estudantes do Império transforma-se no centro aglutinador dos
16 Cultura e Literatura Africana e Indígena

estudantes e intelectuais africanos. Mas a predominância da sua composição é


angolana, como predominantemente angolana é a sua atividade editorial.

Na entrada dos anos 1960, a situação nas colônias portuguesas do ultramar se torna mais
difícil, forçando-as à luta armada pela conquista da independência. Nesse momento, à exceção de
São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, cuja contribuição para os movimentos de independência
consistiu em enviar guerrilheiros para engrossarem a luta armada das outras colônias, Angola,
Guiné Portuguesa e Moçambique iniciam sua guerra pela independência.
O movimento armado é deflagrado em Angola quando no norte do país um grupo de agri-
cultores protesta violentamente contra a política de plantação compulsiva de algodão, queimando
armazéns de algodão e escorraçando os compradores. O regime salazarista responde à revolta com
violência e como reação a isso, em fevereiro de 1961, em Luanda, capital de Angola, um grupo
organizado do MPLA toma de assalto a prisão da cidade para libertar os líderes do movimento.
catana: um tipo
de facão usado Munidos de catanas e algumas poucas armas automáticas, o movimento não logra bons resultados
para cortar mato.
e a repressão que a ele se segue é extremamente dura.
Em razão desses acontecimentos, alguns antigos colonos e brancos que haviam chegado
recentemente a Angola conseguem permissão do regime para invadir os bairros nos quais mora-
vam os negros (os musseques) e ali atacar qualquer um que considerassem suspeito. Desse episódio
resultaram muitas mortes, em sua maioria de jovens assimilados – que são justamente aqueles que
se aculturaram, deixando suas raízes negras para frequentar as escolas de brancos. Reagindo a essa
matança, os movimentos organizados em Angola respondem com a luta armada que se dissemi-
nará também por outras regiões da chamada África lusófona como a Guiné Portuguesa (1963) e
Moçambique (1964). É o início da Guerra Colonial.
A Guerra Colonial durou 13 anos em Angola (1961-1974), 11 anos na Guiné (1963-1974) e 10
anos em Moçambique (1964-1974). Durante essa época, cerca de 800 mil jovens portugueses foram
mobilizados para a guerra na África, onde permaneceriam em média 29 meses, ou seja, quase 10%
da população portuguesa e 90% da juventude masculina da época estiveram diretamente envolvidas
com os conflitos na África. Do lado africano, a mobilização do contingente masculino foi massiva.
Muitos se envolveram na guerra por motivações político-ideológicas, outros se aliaram às guerrilhas
aliciados pelas necessidades que se criaram em razão especialmente da falta de mantimentos. Essa
guerra também propiciou que, em Portugal, as forças contrárias ao regime Salazar/Caetano5 se unis-
sem aos oficiais – especialmente tenentes e capitães – do Movimento das Forças Armadas (MFA),
que iniciaram na madrugada do dia 25 de abril de 1974 uma revolução para derrubar o regime dita-
torial e pôr fim à guerra na África. Esse movimento ficou conhecido como Revolução dos Cravos.
A guerra na África marcou o início do fim do Império Colonial Português e foi um dos
fatores que propiciou a queda da ditadura salazarista. No entanto, um legado cultural, para além da
língua portuguesa – oficialmente adotada pelos países africanos já independentes, consolidou-se
nos cinco países-membros do Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) que tiveram

5 Marcello Caetano (1906-1980) substituiu, em 1968, Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970) que ocupava o cargo de
Presidente do Conselho de Ministros em Portugal. Caetano, embora menos rigoroso que Salazar, levou adiante a política
salazarista até o fim da ditadura em 25 de abril de 1974, quando o Movimento das Forças Armadas Portuguesas, apoiado
pelas forças progressistas da sociedade portuguesa, pôs fim à longa ditadura que vigorava desde 1926 em Portugal.
A África lusófona: um pouco de história 17

ocupação portuguesa6. Certos traços da cultura portuguesa e a adoção e o uso da língua portuguesa
nesses países, ainda que modificada e enriquecida pelas diversas línguas locais, são exemplos de
como a cultura portuguesa enraizou-se nos territórios africanos anteriormente ocupados.

Considerações finais
Neste breve resumo da história da ocupação portuguesa de territórios na África, é correto
afirmar, como aponta Eric Hobsbawm (1995), que Portugal, por sua posição geográfica estratégica,
foi o primeiro país europeu a ocupar a África na Idade Moderna, século XV, e o último a dela sair,
na década de 1970, do século passado.
Durante esses séculos de ocupação, exploração de riquezas e interferência radical no modo de
vida de vários grupos étnicos africanos, gerou-se uma história de violência e de guerras, mas é certo
também que esses acontecimentos históricos uniram indissoluvelmente as histórias dessa África que
fala português, com as histórias do Brasil e também com as histórias de Portugal. Nesses três continentes
distintos, há países entrelaçados historicamente e nesses países se fala e se sonha em português. Para
além disso, é preciso cada vez mais pensarmos também em nossas diferenças, nossas singularidades,
nossas características.

Ampliando seus conhecimentos


• TENREIRO, Francisco José. Epopeia (1942). In: TENREIRO, Francisco José. Obra ­poética.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991. p. 37-39.
Recomendamos a leitura da obra do santomense Francisco José Tenreiro (1921-1963), espe-
cialmente do poema “Epopeia”. O texto trata da saga africana, que se inicia com a chegada dos
europeus à África. É interessante notar que, ao contrário da epopeia camoniana, Os Lusíadas
(1572), de Luís Vaz de Camões, a façanha heroica aqui abordada não é a façanha lusa, mas
a façanha heroica dos negros que buscaram resistir à dominação branca, porém acabaram
sendo levados como escravos para outras terras. O poema mostra, ainda, a saga do negro nes-
sas terras, lutando para fazer existir a sua cultura e termina evocando-o à luta pela dignidade
com novas armas, novas azagaias. Leia a seguir duas das estrofes desse impactante poema: azagaia: uma
espécie de lança
curta usada

Epopeia pelos povos


africanos, es-
pecialmente na
Não mais a África África do Sul.

da vida livre
e dos gritos agudos de azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos
– veias entumecidas dum corpo em sangue!
Os brancos abriram clareiras

6 A Guiné Equatorial, país africano que tem o espanhol, o francês e recentemente adotou o português como ­línguas
oficiais, não foi ocupada por portugueses. A história da colonização da Guiné Equatorial é, portanto, diversa.
18 Cultura e Literatura Africana e Indígena

a tiros de carabina.
Nas clareiras fogos
arroxeando a noite tropical.
Fogos!
Milhões de fogos
num terreno em brasa!
[...]

• ENDERS, Armelle. História da África lusófona. Trad. de Mário Matos e Lemos. Lisboa:
Editorial Inquérito, 1997.
Recomendamos a leitura desta obra, da historiadora francesa Armelle Enders, da
Université Paris IV Sorbonne. Ela aborda a história da África de língua portuguesa, focali-
zando desde a chegada dos portugueses a Ceuta até o fim do Império Colonial Português
com a saída dos portugueses da África, após o fim da Guerra Colonial.

• MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.


Esta obra, do antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, nascido no Zaire, é bastante interessante para quem
quer iniciar seus estudos sobre cultura negra e negritude.

• CAPITÃES de abril. Direção: Maria de Medeiros. Elenco: Stefano Accorsi, Maria de Medeiros,
Joaquim de Almeida, Frédéric Pierrot. Lusomundo Audiovisuais S. A., 2000. (125 min.).
Este filme, dirigido pela portuguesa Maria de Medeiros, ilustra bem o momento em que,
ao som de “Grândola, Vila Morena”, é deflagrado em Portugal o movimento de revolta dos
capitães das forças armadas contra os rumos da política de Marcello Caetano na África.
O movimento, que depois ficou conhecido como Revolução dos Cravos, devolveu a liber-
dade política ao país, que viveu sob a ditadura desde 1926 até 25 de abril de 1974.

Atividades
1. Em 1415, a conquista da cidade de Ceuta, no Marrocos, foi estratégica para a empreitada
portuguesa pelos mares do Ocidente. Por que motivos partiram os portugueses para Ceuta?
E por que quando lá chegaram abandonaram a ideia da ocupação dos territórios ao longo
do Mar Mediterrâneo?

2. Como se desenvolveu durante os séculos seguintes a política de exploração das colônias na África?

3. Qual a importância dos encontros de jovens estudantes na Casa do Estudante do Império?

4. Quais foram os fatores que desencadearam a luta dos povos africanos das colônias contra o
regime fascista de Salazar?
2
Cultura e literatura nos arquipélagos
lusófonos e na Guiné-Bissau

Claudia Amorim

O objetivo deste capítulo é apresentar as características históricas, culturais e literárias de dois


arquipélagos, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, e da Guiné-Bissau, territórios africanos colonizados
por Portugal no século XV e que se tornaram independentes a partir de 1975. Após a independência,
essas três ex-colônias portuguesas adotaram oficialmente a língua portuguesa, mas quase todos os
cidadãos desses países falam, paralelamente ao português, um crioulo1 como língua materna.
Os arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, assim como a Guiné-Bissau (que
foi colonizada com o nome de Guiné Portuguesa), localizam-se na costa ocidental da África e
foram descobertos pelos portugueses no século XV. A partir dessa época, fizeram parte do chamado
Império Colonial Português até 1975, quando a Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugal, pôs
fim ao domínio imperial dos portugueses na África.
Essa revolução foi consequência, entre outras coisas, da Luta pela Independência ou Guerra
Colonial que desde 1961 mobilizou três das colônias africanas portuguesas – Angola, Guiné
Portuguesa e Moçambique – contra a ditadura de Antônio de Oliveira Salazar e Marcello Caetano2.
Os arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe não participaram diretamente dos confli-
tos armados, tentando por via diplomática sua independência. No entanto, muitos cabo-verdianos
e santomenses se deslocaram até os territórios em guerra no continente africano para reforçar a
luta dos povos locais pela independência.
A seguir, no mapa da África, podemos visualizar esses territórios e perceber como foram
estratégicos às naus portuguesas avançando pelo Oceano Atlântico em direção ao sul.

1 O crioulo é a língua materna das regiões colonizadas e é uma língua que evoluiu do pidgin, uma espécie de sistema
verbal com que dois povos não usuários de um idioma comum se comunicam. O pidgin nasce geralmente da necessi-
dade de uma comunicação comercial e, quando alcança a condição de língua materna de um grupo de indivíduos, ele
se torna um crioulo.
2 Como já foi mencionado, Antônio de Oliveira Salazar assumiu em Portugal a Pasta das Finanças e das Colônias em
1928, dois anos após o golpe militar que derrubou a República. Ele deixou o cargo de Presidente do Conselho de Minis-
tros somente em 1968, sendo substituído nessa função por Marcello Caetano, que ficou no posto até a Revolução dos
Cravos, ocorrida em 25 de abril de 1974.
20 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Figura 1 – Mapa político da África

Fonte : Adaptado de Temática Cartografia.

Nos séculos seguintes, a Coroa portuguesa explorou os territórios ocupados de modo


mais ou menos similar. Entretanto, cada um desses territórios apresentou também as suas
particularidades.
Para conhecermos melhor essas três ex-colônias portuguesas, passemos a focalizar cada
uma delas, começando, em primeiro lugar, a mostrar as características históricas, culturais e literá-
rias do arquipélago de Cabo Verde, em segundo lugar, as do arquipélago de São Tomé e Príncipe e,
finalmente, a história, cultura e literatura da Guiné-Bissau, antiga Guiné Portuguesa.
Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau 21

2.1 Cabo Verde: história, cultura e literatura


Para começarmos a conhecer Cabo Verde, a figura a seguir mostra o mapa das dez ilhas que
compõem esse arquipélago.
Figura 2 – Mapa de Cabo Verde

Fonte : Adaptado de Temática Cartografia.

O arquipélago de Cabo Verde, formado por um conjunto de dez ilhas – Ilha de Santo Antão,
Ilha de São Vicente, Ilha de Santa Luzia, Ilha de São Nicolau, Ilha do Sal, Ilha da Boa Vista, Ilha do
Maio, Ilha de São Tiago, Ilha do Fogo, Ilha Brava –, em uma extensão de 4.033 quilômetros qua-
drados, foi descoberto pelos portugueses por volta do ano de 14603. Na época, todas as suas ilhas
estavam desabitadas.
Dispersos pelas ilhas, a estimativa segundo o site português de demografia4 e a página oficial
do governo de Cabo Verde é de que o arquipélago continha, em 2018, aproximadamente 543.242
habitantes5.
Quando os europeus lá aportaram, perceberam que o clima da região favorecia a agricultura.
Por conta da exploração agrícola, iniciaram o processo de colonização das ilhas por meio do sistema
de capitanias hereditárias. Porém, se nos Açores e na Madeira a colonização foi feita por imigrantes

3 A data de 1460 é controversa, embora seja adotada por muitos historiadores portugueses, como António Sérgio. Para
outros estudiosos, como Armelle Enders (1997), os portugueses aportaram nas ilhas de Cabo Verde entre 1456 e 1462.
4 O site português com informações sobre Cabo Verde está disponível em: https://countrymeters.info/pt/Cape_Verde.
Acesso em: 14 mar. 2019.
5 O site oficial do governo de Cabo Verde está disponível em: http://www.governo.cv/index.php/dados-gerais. Acesso
em: 14 mar. 2019.
22 Cultura e Literatura Africana e Indígena

vindos de Portugal, nas ilhas de Cabo Verde o povoamento se realizou com os negros trazidos do
continente africano, especialmente da Guiné. Os africanos trazidos do continente destinavam-se
especialmente às plantações de algodão. Artesãos africanos também foram trazidos da África para
ensinar aos demais as técnicas de tecelagem. Logo, uma “indústria têxtil”, alimentada pela mão de
obra africana, tornou-se capaz de se perpetuar de modo autônomo (BIRMINGHAM, 2003).
A produção têxtil que teve lugar nas ilhas de Cabo Verde era de grande importância para
a Metrópole. Segundo Birmingham (2003), Portugal tinha quase tanta falta de têxteis como tinha
de trigo. Nas ilhas foram estabelecidas plantações de algodão para tecer e tingir. Porém, logo um
outro negócio concorria com a produção de algodão nas ilhas: a plantação de cana-de-açúcar, que
também teve lugar no arquipélago de São Tomé e Príncipe e depois se estendeu ao Brasil.
Paralelamente a essa produção, nos séculos seguintes, as ilhas de Cabo Verde ocuparam
posição estratégica nas rotas de caravelas de Portugal ao Brasil e ao restante da África. As ilhas
serviam de entreposto comercial e de aprovisionamento para as naus de passagem.
Com a entrada dos africanos nas ilhas de Cabo Verde, a mestiçagem tornou-se comum e
f­ ormou-se nas ilhas uma população de cabo-verdianos descendente de portugueses e africanos. Essa
miscigenação também resultou na criação de uma língua crioula que se enraizou em Cabo Verde.
Hoje, a língua oficial desse país é o português, no entanto, paralelamente, o crioulo cabo-ver-
diano é usualmente falado pela população e segue reconhecido como língua promovida à oficiali-
zação do Estado, segundo informa o site do governo de Cabo Verde.
Durante os séculos de exploração colonial, a situação nas ilhas não se modificou. No entanto,
nos fins do século XIX, já é possível assistir nas ilhas a uma tímida manifestação cultural. A publica-
ção do romance O escravo (1856), do português José Evaristo de Almeida, habitante durante muitos
anos do arquipélago, é vista por alguns como o marco inicial da literatura de ficção de Cabo Verde.
A instalação do prelo (imprensa) em Cabo Verde, no ano de 1842, e a criação de um liceu na
Ilha de São Nicolau em 1886, certamente contribuíram para um impulso nas letras do país, possi-
bilitando a formação de uma classe de letrados. No início do século XX, alguns escritores ganham
visibilidade com sua produção escrita. São eles: José Lopes, Eugénio Tavares e Pedro Cardoso. Esse
último lança ainda o jornal Manduco, primeiro veículo aberto à colaboração em crioulo.
Porém, é com a revista Claridade, lançada em 1936, que se pode falar de uma literatura
de feição cabo-verdiana. Com o lançamento dessa importante revista, inicia-se o primeiro movi-
mento cultural-literário nativista da África lusófona, protagonizado por um grupo de intelectuais
cabo-verdianos, em sua maioria composto de mestiços. Entre os nomes importantes desse movi-
mento destacam-se Baltasar Lopes da Silva, Jorge Barbosa, Manuel Lopes, entre outros.
O movimento da revista Claridade reivindicava o respeito aos valores cabo-verdianos, a
valorização da língua crioula e uma sociedade cabo-verdiana biológica e naturalmente híbrida
em sua formação. No campo literário, os poetas reivindicavam uma literatura nascida do próprio
húmus, com uma poesia telúrica e social de raiz e de renovação estética.
O nativismo do movimento que lançou a revista Claridade também se manifestou nos
modelos que os poetas vão seguir. Abandonando a referência literária e cultural do colonizador
Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau 23

português, os “claridosos” vão buscar na literatura brasileira com Manuel Bandeira, Jorge Amado,
José Lins do Rego, entre outros, as identidades possíveis, especialmente no que diz respeito à cul-
tura mestiça que Cabo Verde e Brasil apresentam e que é resultante de um percurso histórico
marcado pelo processo de colonização.
Manuel Lopes, um dos fundadores da revista Claridade, já afirmara que era necessário fincar
os pés na terra para escrever e pensar naquilo que os pés pisavam. Essa consciência para com a
terra não dispensará um cuidado com a renovação estética. A geração da Claridade tinha o propó-
sito de “fincar os pés na terra” para representar a imagem mais próxima da realidade antropológica,
social e cultural crioula. Essa imagem se configuraria por meio de uma ruptura literária com rela-
ção a tudo que anteriormente havia sido feito.
Alguns críticos consideram a existência de três fases na literatura cabo-verdiana. Observe o
Quadro 1 a seguir.
Quadro 1 – Fases da literatura cabo-verdiana

Fases Composição

Geração Pré-claridosa – Primeira geração Constituída pelos nativistas.

Geração Claridosa – Segunda geração Constituída em torno da revista Claridade.

Constituída pelos escritores e poetas que iniciaram sua produção em


Geração Pós-Claridosa – Terceira Geração
1960. Até a presente data continuam a produzir.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Gomes, 2008.

Em fins da década de 1950 até meados de 1960, a poesia cabo-verdiana intensificou a asso-
ciação entre a cabo-verdianidade e a negritude. Nesse tempo, as ideias do Movimento da Negritude,
criado na década de 1930 por Aimé Césaire (Martinica/Antilhas), Léopold Sédar Senghor (Senegal)
e Léon Damas (Guiana Francesa), que preconizava a valorização do negro e da negritude, já haviam
se disseminado também pela África de língua portuguesa.
Nos anos seguintes, a literatura cabo-verdiana sublinhou a sua insularidade, caracterizada
pelas imagens do mar e de um modo de ser próprio dos povos das ilhas. Além disso, enveredou,
no campo da ficção, por caminhos próprios, inspirada no realismo mágico. Na prosa ficcional, há
de se destacar a contribuição do claridoso Baltasar Lopes, com sua obra Chiquinho (1947), em cuja
Introdução o autor já manifesta o espaço que dará ao crioulo como língua de expressão literária.
Em 1947, Claridade reaparece no cenário cabo-verdiano em forma de livro, mas a sua perio-
dicidade será irregular. Nessa segunda fase da revista, a colaboração é diversificada. Além de poesia
e prosa ficcional (contos e noveletas), há artigos de etnografia, folclore, estudos sobre crioulo etc.
Entre os anos de 1958-1966, outro importante veículo literário e cultural é o Suplemento
cultural. A geração que se forma em torno dessa importante publicação busca erradicar de vez a
influência do colonialismo. Entre os principais colaboradores do Suplemento cultural destacam-se
Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Aguinaldo Fonseca, entre outros.
Para alguns estudiosos, como Pires Laranjeira (1995), os anos que vão de 1966 a 1982 são
marcados por um universalismo na produção literária, com o aparecimento do intimismo, do
24 Cultura e Literatura Africana e Indígena

abstracionismo e do cosmopolitismo. Segundo o autor, essa universalização da temática literária


cabo-verdiana é anterior ao universalismo que se manifestaria mais tarde nas literaturas de Angola
e Moçambique pós-independência.

2.2 São Tomé e Príncipe: história, cultura e literatura


Para melhor conhecer o arquipélago de São Tomé e Príncipe, vejamos o mapa de suas duas
ilhas principais e ilhotas que lhes são próximas.
Figura 3 – Mapa de São Tomé e Príncipe

Fonte : Adaptado de Temática Cartografia.

O arquipélago de São Tomé e Príncipe, localizado no Golfo da Guiné, é formado por duas
ilhas principais: Ilha de São Tomé e Ilha de Príncipe (ilhas vulcânicas) e por alguns ilhéus, alguns
dos quais desabitados. O arquipélago contava, em 2018, segundo a página oficial do governo de São
Tomé e Príncipe6 e o site português de informações demográficas7, com uma população de apro-
ximadamente 205.734 habitantes distribuídos em uma área de mais ou menos 1.001 quilômetros

6 A página oficial do governo de São Tomé e Príncipe está disponível em: http://www.stp. gov.st. Acesso em: 14 mar. 2019.
7 O site português para consultar informações sobre São Tomé e Príncipe está disponível em: https://countrymeters.
info/pt/Sao_Tome_and_Principe. Acesso em: 14 mar. 2019.
Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau 25

quadrados. Essas ilhas eram desabitadas quando os portugueses lá aportaram em fins de 1470 ou
início de 1471 (ENDERS, 1997).
A condição favorável do solo e a chuva abundante propiciaram a Introdução da plantação de
cana-de-açúcar no arquipélago. Para empreender essa plantação, em 1493 teve início o povoamento
do arquipélago com portugueses oriundos da Ilha da Madeira e degradados vindos da Metrópole.
Na “indústria” açucareira, a mão de obra foi trazida dos reinos vizinhos da Guiné, do Benin, do
Gabão e do Congo. Nesse arquipélago, a plantação da cana-de-açúcar prosperou e o negócio com
o açúcar foi estendido para outras colônias portuguesas, especialmente para o Nordeste do Brasil
(BIRMINGHAM, 2003).
Em razão da necessidade de mão de obra escrava, muitos negros do continente foram levados
às ilhas desse arquipélago. Segundo Enders (1997), por volta de 1560, São Tomé tinha cerca de 4.000
habitantes, sendo que a metade deles era composta de escravos. Em virtude da escassez de mulheres
brancas nas ilhas, africanas escravizadas foram levadas para São Tomé e Príncipe para gerarem filhos
dos portugueses que lá viviam, a fim de povoarem o território. Os filhos gerados dessa união rece-
beram carta de alforria e mais tarde se tornaram os forros (corruptela de alforros), um dos grupos
étnicos mais representativos na região.
No entanto, a produção de cana-de-açúcar no Brasil, mais produtiva que a do arquipélago
africano, e as constantes revoltas dos negros nas ilhas propiciaram um decréscimo na produção
açucareira. Essa decadência da economia das ilhas acabou por transformá-las em entrepostos do
“comércio” de escravos.
Somente no século XIX, com as pressões externas pela extinção do tráfico negreiro, Portugal
investiu em outro tipo de produção nas ilhas, incentivando nelas o cultivo do café e do cacau.
No início do século XX, a situação político-econômica do arquipélago de São Tomé e
Príncipe não diferiu muito da que se encontrava em Cabo Verde ou na Guiné Portuguesa. À exce-
ção de Cabo Verde, cuja Ilha de São Nicolau possui um liceu desde o ano de 1866, as demais
colônias não têm como propiciar aos jovens uma escolarização. No entanto, o discurso colonial
valorizava a política de assimilação, cobrando da população das colônias comportamentos euro-
peus e o uso da língua portuguesa em detrimento do crioulo. O índice de analfabetismo era grande
nas três regiões e a pobreza grassava nas colônias, pois a exploração das matérias-primas não as
beneficiava. (ENDERS, 1997).
O arquipélago de São Tomé e Príncipe não ficou imune aos movimentos de valorização da
cultura negra, especialmente em meados do século XX, quando os jovens da Casa dos Estudantes
do Império8 divulgaram as ideias do Movimento da Negritude.
Assim como nas outras colônias de Portugal, a difusão das ideias do Movimento da Negritude,
a insatisfação dos santomenses com as péssimas condições de vida no arquipélago e a repressão

8 A Casa do Estudante do Império (CEI) de Lisboa reunia, por volta dos anos 1950, um grupo de jovens estudantes
oriundos de todos os territórios colonizados pelos portugueses, em sua maioria da África. Nela, os estudantes se
organizaram politicamente contra a política portuguesa na África e também escreveram poemas e outros textos
literários que estabeleceram as bases de uma nova literatura que buscava explicitar a situação do negro nas colônias,
utilizando formas poéticas que valorizassem a africanidade também na língua.
26 Cultura e Literatura Africana e Indígena

política da ditadura salazarista, extensiva às colônias, desencadearam a formação do Movimento


pela Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) que, por vias diplomáticas, conseguiu negociar a
independência do arquipélago em fins de 1974.
Mesmo em terreno adverso, uma prática jornalística e uma literatura nativista começam a
ganhar força na primeira metade do século XX. No final do século XIX, alguns poemas dispersos
são registrados nas páginas de alguns dos periódicos santomenses criados, graças ao prelo. Entre os
nomes que contribuem para esses periódicos, destacam-se os poetas Francisco Stockler e Almada
Negreiros. Alguns desses periódicos são O africano, A voz d’África e O negro. Na literatura do início
do século XX, o mais importante nome é o de Francisco José Tenreiro.
Natural de São Tomé, o poeta Francisco José Tenreiro, filho de um administrador português
com uma africana, ganha visibilidade em Lisboa como professor universitário e organiza em 1953,
com Mário Pinto de Andrade, poeta e militante angolano, a primeira antologia de poesia africana.
O caderno da poesia negra de expressão portuguesa9, publicado na Metrópole e nas colônias, reuniu
uma série de poemas de escritores da África de língua portuguesa em que se observava a valoriza-
ção da terra africana e do negro.
Após a morte de Tenreiro, Alda do Espírito Santo, Maria Manuela Margarido e Tomaz
Medeiros, todos ex-estudantes da CEI de Lisboa, são alguns dos escritores que revitalizam a litera-
tura santomense.
A poesia de Alda do Espírito Santo tem um lugar especial entre as demais. Em sua poesia
se inscreve a afirmação identitária santomense, pois em sua obra é notável sua forte ligação com
a história de seu país, deixando um legado inegável aos poetas santomenses mais jovens. Entre
esses mais novos, destaca-se Conceição Lima, que também desenha em suas obras as questões
abordadas por Alda do Espírito Santo, mas vivendo uma outra época. A poesia de Conceição Lima
adquire um viés de crítica ao contexto em que a poesia emerge.

9 Note-se que o título da coletânea organizada por Tenreiro e Andrade remete à conhecida obra de Aimé Césaire,
Cahier d’un retour au pays natal (Caderno de um regresso ao país natal, em tradução livre), na qual Césaire usou pela
primeira vez o termo negritude.
Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau 27

2.3 Guiné-Bissau: história, cultura e literatura


Para localizarmos a Guiné-Bissau na África de língua portuguesa, vejamos o seu mapa a seguir.
Figura 4 – Mapa da Guiné-Bissau

Fonte : Adaptado de Temática Cartografia.

O território da Guiné-Bissau, no ocidente da África, com suas fronteiras atuais tem hoje,
aproximadamente, 36.125 quilômetros quadrados e em 2018, segundo o site português de indi-
cação demográfica10 e a página oficial do governo da Guiné-Bissau11, possuía cerca de 2.011.935
habitantes. Porém, antes da chegada dos portugueses, a Guiné-Bissau era parte de uma extensa
região conhecida como Terra da Guiné, pertencente ao Reino de Mali. Em 1446, os portugueses
aportaram na região e a nomearam Guiné Portuguesa. Embora o litoral da região tenha sido explo-
rado desde essa época, somente em 1630 estabeleceu-se no território a Capitania Geral da Guiné
Portuguesa, que visava à administração da região, embora a Guiné Portuguesa continuasse admi-
nistrativamente ligada às ilhas de Cabo Verde.
Em 1697, devido à ameaça de ocupação da região, especialmente por parte dos franceses
e ingleses, a Coroa portuguesa fundou nessa região uma vila, Bissau, que cresceu e se constituiu
em um importante posto fornecedor de escravos, especialmente para o continente americano nos
séculos seguintes (ENDERS, 1997).

10 A página para consulta está disponível em: https://countrymeters.info/pt/Guinea-Bissau. Acesso em: 14 mar. 2019.
11 A página oficial do governo da Guiné-Bissau está disponível em: http://www.parlamento.gw. Acesso em: 14 mar. 2019.
28 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Porém, no século XIX, com a abolição da escravatura, a Guiné Portuguesa, sem qualquer
recurso para sobrevivência material, passou por uma crise econômica e, para sair dela, investiu na
produção de novas culturas como a da borracha e a da mancarra (amendoim).
As condições extremamente pobres da região propiciaram também que as populações
locais se rebelassem contra o governo português, que reage enviando militares à Guiné para sufo-
car as revoltas populares. Para inibir os conflitos, o governo português incentivou a exploração
agrícola da região por parte de colonos portugueses ou de seus descendentes que iniciaram a
produção da mancarra.
Já no início do século XX, as forças coloniais reprimiram fortemente as rebeliões locais e
objetivavam eliminar os africanos mais combativos, impor o pagamento de impostos à adminis-
tração colonial e controlar os recursos econômicos no território.
Em meados do século XX, a Guiné Portuguesa amargou uma situação de extrema pobreza,
com um grande índice de analfabetos. Nessa mesma época, as ideias independentistas se difundi-
ram especialmente nos meios urbanos. A difusão dessas ideias e a independência de outros países
da África, colonizados por outras nações europeias, estimularam a fundação, em 1956, do Partido
Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), criado por Amílcar Cabral. Em suas
constantes viagens a Cabo Verde, Guiné e Portugal, onde se graduou em Agronomia, Amílcar
Cabral tomou contato com os poetas, escritores e estudantes dos outros países africanos coloni-
zados por Portugal. Desse contato, nascerá mais adiante um processo de luta dos países africanos
lusófonos pela independência.
Devido às condições socioculturais da Guiné-Bissau, a literatura guineense só floresceu
muito tardiamente em relação às literaturas das outras colônias portuguesas na África. O fato de
a Guiné ser basicamente uma colônia de exploração e também o fato de ter ficado, por um longo
período, administrativamente atrelada ao governo geral da colônia de Cabo Verde foram decisivos
para que não houvesse, mesmo na capital Bissau, as condições necessárias para uma produção
literária e artística.
A imprensa também chegou muito tarde à Guiné. Os jornais oficiais só apareceram na
região por volta de 1880, sendo que nas outras colônias africanas já havia uma circulação de
­jornais desde 1843.
Os primeiros textos produzidos em território guineense tiveram lugar na primeira metade
do século XX. Em 1930, é editado o primeiro jornal dirigido por um guineense. Trata-se de
O comércio da Guiné, editado por Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral.
Entre os escritores e poetas, Fausto Duarte se destacou como romancista e Maria Archer
como poetisa. João Augusto Silva, ganhador de um prêmio literário no período colonial,
e Fernanda Castro são, com Fausto Duarte e Maria Archer, os nomes mais importantes da litera-
tura guineense que, nesse período, não se afasta muito da referência portuguesa.
Vale destacar ainda a produção de Marcelino Marques de Barros, que em sua obra Cantos,
canções e parábolas reúne um grupo de contos e canções guineenses tradicionais e populares, valo-
rizando a cultura da região.
Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau 29

Depois de 1945, surge na Guiné uma literatura de combate que denunciava a dominação e
a miséria a que os negros estavam submetidos em suas terras e os incitava à libertação e à valori-
zação da cultura negra. Entre os escritores dessa época, destacam-se Vasco Cabral, António Baticã
Ferreira e Amílcar Cabral.
Após a independência da Guiné, a literatura guineense ganha novo vigor. Nessa época, surge
um grupo de jovens poetas, cujas obras manifestam um caráter social, focalizando a defesa da
liberdade, a questão da identidade nacional, entre outras coisas. Agnelo Regalla, António Soares
Lopes (Tony Tcheca), José Carlos Schwarz, Francisco Conduto de Pina e Félix Sigá são alguns dos
nomes mais significativos desse período.
Na década de 1990, novos autores se somam ao grupo atuante da Guiné-Bissau, já indepen-
dente, e uma escrita de cunho mais intimista se desenha nesse momento. Entre os autores desse
período, destacam-se Hélder Proença, Tony Tcheca, Carlos Vieira e Odete Semedo. A utilização da
língua crioula na literatura ganha força e valoriza a cultura mestiça do arquipélago.

Considerações finais
Ainda que atualmente haja menos visibilidade que as literaturas de Angola e de Moçambique,
as literaturas dos arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe e a literatura da Guiné-Bissau
surgiram antes da independência desses países, ocorrida apenas na segunda metade do século XX,
e apresentam as características próprias do processo de colonialismo (literaturas coloniais), a busca
por caminhos próprios (processo de descolonização cultural) e, finalmente, após a independência,
já demonstram possibilidade de expressão autônoma e desvinculada do processo colonial.
Essas nações – cada qual a seu modo – desde cedo trouxeram na expressão escrita um esboço
do seu nativismo, que seria construído coletiva e progressivamente pelos intelectuais desses países
ao longo do século XX. Atualmente, providas de autonomia e já consolidadas, essas literaturas com
seu repertório específico somam-se às demais literaturas africanas de língua portuguesa, revelan-
do-nos uma África lusófona plural e rica em sua diversidade.

Ampliando seus conhecimentos


• ANDRADE, Mário Pinto de; TENREIRO, Francisco José. Na noite grávida de punhais.
Lisboa: Livraria Sá de Costa, 1975. (Antologia temática da poesia africana, v. 1).
Recomendamos a leitura do poema “Ora dja tchiga”, de Kaoberdiano Dambará,
pseudônimo do poeta e advogado cabo-verdiano Felisberto Vieira Lopes. Foi escrito em
crioulo e conclama os negros a lutarem pela justiça na África. Ao lado do poema em
crioulo, recomendamos a versão em português encontrada na obra Na noite grávida de
punhais, antologia organizada pelo poeta e escritor angolano Mário Pinto de Andrade
e pelo santomense Francisco José Tenreiro. Além disso, essa antologia reúne a lírica
de alguns dos mais representativos poetas dos países africanos lusófonos e apresenta
uma pequena biografia sobre cada um deles. Pode-se encontrar o poema em crioulo
30 Cultura e Literatura Africana e Indígena

editado pelo Departamento da Informação e Propaganda do Comité Central do Partido


Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), disponível em: http://www.
iu.edu/~celtie/Lessons/Cape_Verdean/CapeVerdeLD101.pdf. Acesso em: 14 mar. 2019.

• LARANJEIRA, Pires et al. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Editora


Universidade Aberta, 1995.
Trata-se de uma obra primordial para o estudo das literaturas africanas dos países lusófonos,
pois o autor analisa as literaturas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e
Moçambique, desde a expressão de uma literatura nativista até a contemporaneidade. Na obra,
há ainda os estudos de duas especialistas em literaturas africanas lusófonas: Elsa Rodrigues dos
Santos e Inocência Mata.

Atividades
1. De que maneira podemos afirmar que o lançamento da revista Claridade, em 1936, em Cabo
Verde, inaugura uma nova fase na literatura africana de língua portuguesa e na literatura
cabo-verdiana?

2. Na primeira metade do século XX, a literatura santomense ganha visibilidade pela ação do
seu maior representante nesse período – Francisco José Tenreiro. Qual foi o importante
gesto de Tenreiro em prol da literatura em sua época?

3. Caracterize a produção literária guineense posterior à independência do país.


3
Cultura e literatura em Angola

Claudia Amorim

O objetivo deste capítulo é apresentar as características históricas, culturais e literárias de


Angola, país cujos limites foram estabelecidos após a chegada à região do navegador português
Diogo Cão, por volta de 1483. Com a vinda do colonizador branco, o território foi demarcado e
as diversas etnias que viviam na região estiveram sob o jugo português até a independência do
país, em 1975. Mesmo após a independência, o país adotou oficialmente a língua portuguesa1. No
entanto, em Angola, existem muitos dialetos e línguas locais, entre as quais se destacam o umbundo,
falado pelo grupo Ovimbundu (parte central do país); o quicongo, falado pelos Bacongo, ao norte;
e o chokwe-lunda e o kioko-lunda, ambos correntes no nordeste do país. Há ainda o quimbundo,
falado pelos Mbundos, Mbakas, Ndongos e Mbondos, grupos aparentados que habitam o litoral de
Luanda e arredores até o Rio Cuanza.
No século XX, a luta armada pela independência das colônias portuguesas na África começou
em 1961, em Angola, e depois se disseminou pela Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau) em 1963 e
chegou a Moçambique em 1964. Os arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que juntamente
com os três primeiros territórios aqui citados constituem a chamada África p­ ortuguesa, engrossaram
a luta armada iniciada no continente, enviando guerrilheiros para as regiões em conflito. Em Angola,
a guerra foi mais longa e durou exatamente 13 anos.
De todas as colônias portuguesas na África, Angola foi a que mais recebeu atenção de Portugal.
Essa atenção foi bastante perniciosa, pois do seu território muitas riquezas foram ­extraídas, os povos
locais foram submetidos à escravidão e à diáspora até o século XIX, quando Portugal, por pressões
externas, foi obrigado a extinguir o tráfico negreiro e a escravidão. Em contrapartida, a colônia por-
tuguesa mais extensa na África foi a que recebeu um número maior de colonos e sua capital, Luanda,
acabou por apresentar, no século XIX, um estatuto que as outras cidades das colônias portuguesas
não possuíam.
No século XX, após a conquista da independência, Angola convocou eleições gerais e, com a
vitória do candidato do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), enfrentou, por cerca
de duas décadas, uma guerra interna entre os diversos grupos que rivalizavam pelo comando do país.
Para melhor conhecer essa ex-colônia portuguesa, será necessário primeiramente visualizar
seu território na costa ocidental da África.

1 Kwame Appiah (1997, p. 20) observa que, mesmo “depois de uma brutal história colonial e de quase duas décadas de
contínua resistência armada, a descolonização da África portuguesa, em meados dos anos 1970, deixou atrás de si uma
elite que redigiu as leis e a literatura africanas em português”. Segundo o estudioso, esse fato se deu pela necessidade
de os escritores usarem a língua europeia em seus ofícios sob pena de, em isso não acontecendo, serem vistos como
particularistas. Além disso, o uso da língua portuguesa unia as diferentes etnias na difícil tarefa da construção nacional,
o que se configuraria quase impossível, caso os inúmeros grupos étnicos usassem, ao invés de uma língua comum, as
suas línguas de origem.
32 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Figura 1 – Mapa de Angola

Rainer Lesniewski/Shutterstock

A seguir, abordamos a história da colonização de Angola e alguns de seus aspectos


político-culturais.

3.1 Angola: a história da sua colonização


O território de Angola, no sudoeste da África, possui aproximadamente 1.246.700 quilô-
metros quadrados e contava, em 2004, segundo a página oficial do governo do país, com cerca de
14.767.655 habitantes2. Foi a mais extensa das colônias portuguesas na África e fazia parte de uma
antiga região conhecida no século XV como Reino do Congo, quando os portugueses lá chegaram.
O nome Angola é oriundo da palavra banto ngola, com a qual se designava o governante de uma
região que se localiza hoje a leste da capital Luanda.

2 A página oficial do governo de Angola está disponível em: www.info-angola.com. Acesso em: 14 mar. 2019.
Cultura e literatura em Angola 33

A história da colonização de Angola começa em 1483, quando Diogo Cão, um navegador a


serviço da Coroa portuguesa, chegou à foz do Rio Zaire (o segundo maior rio da África), situado no
Reino do Congo, e fixou no local um padrão de pedra com o brasão português. O Reino do Congo
era uma extensa região que compreendia os atuais territórios da República do Congo, Cabinda,
República Democrática do Congo, o centro-sul do Gabão e o noroeste de Angola.
No Reino do Congo havia um chefe local, denominado Mani Congo, que governava os
diversos grupos étnicos bantos da região, especialmente os Bacongo. Após o contato com os portu-
gueses, o monarca, Mani Congo, converteu-se ao catolicismo e a capital do reino, Mbanza Congo,
recebeu o nome de São Salvador do Congo.
O Reino do Congo era uma região com grandes mercados regionais, nos quais se comercia-
lizavam produtos como sal, metais, tecidos e derivados de animais por meio de escambo ou de uma
moeda local – uma concha (nzimbu), coletada na região de Luanda.
Com a chegada dos portugueses, o comércio regional se intensificou. A Coroa portuguesa
visava nesse comércio ao controle das minas e ao negócio com escravos que, aliás, foi um dos
mais rentáveis para Portugal. A colônia de Angola forneceu um grande número de escravos para a
América durante o século XVIII.
A região apresentou também inúmeras revoltas contra a invasão portuguesa, todas repri-
midas pelo poderio bélico europeu. A primeira rebelião de que se tem notícia ocorreu em 1491
e foi liderada por Panzo-a-Nginga, que se recusou a receber o batismo e não aceitou as novas
leis impostas pelos missionários e conquistadores portugueses. A mais conhecida resistência ao
­domínio português, porém, foi a da rainha Jinga, que no século XVII resistiu ao domínio europeu,
comandando os povos da região contra os invasores, com o auxílio também de holandeses.
Após a perda do Brasil no início do século XIX, Angola se tornou a colônia portuguesa
mais importante para o reino português do ponto de vista econômico. A atenção dispensada pela
Metrópole à maior colônia portuguesa na África resultou, apesar da intensa exploração das rique-
zas, em importantes mudanças sociais no território, verificáveis, sobretudo, na capital Luanda.
Nessa época, a sociedade angolana já apresentava uma elite local, constituída por funcionários
públicos, juristas, jornalistas e alguns pequenos comerciantes, quase todos mestiços.
A população europeia que no último quartel do século XIX habitou a cidade
era essencialmente constituída, diz-nos o historiador Júlio de Castro Lopo, por
africanistas de permanência incerta no território, aventureiros, colonos força-
damente amarrados por necessidades econômicas e contrariedades diversas à
vida colonial, missionários e clérigos, militares e degredados. Numericamente
inferior – um censo de 1889 dá-nos conta de 5 000 europeus para 23 000 afri-
canos –, [...], o português, dado o reduzido número de mulheres de sua raça
[...] aproximou-se intimamente do agregado africano, com o qual se cruzou e
constituiu família, determinando uma sociedade em que o mestiço, no declinar
do século, gozou duma certa relevância. (ERVEDOSA, 1979, p. 23-24)

Com a crescente expansão da indústria europeia durante o século XIX, Portugal, por pressões
externas, especialmente de países como a Inglaterra, se viu obrigado a extinguir o tráfico negreiro em
todas as colônias ultramarinas. Ainda sob pressão estrangeira, o país estabeleceu uma data-limite,
34 Cultura e Literatura Africana e Indígena

1878, para extinguir a escravatura. No entanto, mesmo com essas medidas, uma forma de escrava-
tura persistia nas colônias africanas de língua portuguesa sob a forma de trabalho forçado.
Durante o século XIX, as colônias de Angola e São Tomé e Príncipe sustentaram a economia
da Metrópole, fornecendo importantes produtos tropicais como o café e o cacau, que se transfor-
maram em dividendos para a Coroa portuguesa, uma vez que ela exportava esses produtos para
outros países europeus.

3.2 Angola: o início das atividades literárias


A importância de Angola para Portugal resultou necessariamente em algumas modificações
na vida da colônia, especialmente na capital Luanda. Assim, na segunda metade do século XIX,
Angola já possuía um pequeno grupo de africanos que frequentava as poucas escolas criadas na
região. Com essa medida, Portugal pretendia investir em uma “ação civilizadora”, tornando o afri-
cano um assimilado3.
A existência desse grupo de africanos escolarizados e descendentes, em geral, de portugue-
ses, possibilitou o incremento de atividades jornalísticas na capital de Angola. Na segunda metade
do século XIX, alguns jornais circulavam pela região, como O echo de Angola e o Jornal de Loanda,
fundado por Alfredo Troni, que já marca a transição de um jornalismo colonial para um jorna-
lismo que evidenciava as questões africanas.
No campo literário, destacam-se na poesia Maia Ferreira, que publica o primeiro livro de
poemas em solo angolano (Espontaneidades de minh’alma), e Joaquim Dias Cordeiro da Matta,
colaborador dos jornais da época, aponta a necessidade de se perceber a diferença cultural em
relação ao colonizador e valorizar a cultura africana. Assim, Cordeiro da Matta escreve seus poe-
mas incluindo palavras em quimbundo. Além disso, o escritor preparou uma ­gramática da língua
quimbundo e um dicionário quimbundo-português. Assis Júnior foi outro nome importante no
cenário intelectual angolano. Autor de estudos sobre o quimbundo e o português, o advogado,
escritor e jornalista Assis Júnior escreveu ainda O segredo da morta, obra ficcional publicada pri-
meiramente em periódicos angolanos e posteriormente pelo autor.
No que diz respeito à prosa, de modo similar ao que acontece com a poesia, no século XIX,
alguns escritores angolanos, sensíveis ao “sentimento nacional”, buscam uma escrita que procura
se descolar da ficção portuguesa. Um dos grandes romancistas desse período foi Alfredo Troni,
que procurou introduzir em suas obras palavras de origem angolana.
Essas primeiras manifestações jornalísticas e literárias em Angola, reivindicando as questões
da terra, foram significativas. Porém, no quadro geral, a colônia vivia uma precária situação de analfa-
betismo, por exemplo, que se prolongou até a primeira metade do século XX. Essa situação se repetia
drasticamente nas outras colônias que Portugal possuía na África. Como destaca Enders (1997, p. 89):
“Em 1950, a população africana da Guiné tem 99% de analfabetos, a de Angola 97%, a de Moçambique
98%. É verdade que, na mesma época, a taxa de analfabetismo na Metrópole eleva-se a 44%”.

3 Assimilado era o termo usado para designar primeiramente os descendentes das grandes famílias crioulas do sé-
culo XIX que estudavam em escolas católicas – responsáveis pela educação formal – e eram apadrinhados por brancos
da elite colonial.
Cultura e literatura em Angola 35

Malgrado as dificuldades, na primeira metade do século XX, Assis Júnior e Castro


Soromenho, este último moçambicano de nascimento e angolano de vivência, assinalaram o
arranque da ficção angolana. E com Castro Soromenho, observa-se uma profunda mudança no
romance angolano.
Sofrendo significativas mudanças durante a primeira metade do século XX, a sociedade
angolana, por volta dos anos 1950, apresentava uma geração de estudantes angolanos, geral-
mente mestiços, que deixava o país para formalizar seus estudos nas universidades portuguesas.
Nessa época, o contato dos estudantes angolanos com estudantes portugueses, brasileiros e de
outros países africanos de língua portuguesa foi decisivo para o despertar da consciência política
e cultural dos jovens angolanos.

3.3 Angola: literatura e cultura a partir de 1950


A partir de 1950, novos caminhos político-literários se desenham em Angola. Como afirma
Laura Cavalcante Padilha (2007, p. 17-18):
A segunda metade do século XX vê acirrar-se em Angola um movimento de
problematização e resistência cultural pelo qual se procura reafirmar a diferença
da angolanidade por tanto tempo marginalizada pelos aparatos ideológicos do
colonizador e, naquele momento histórico, pensada como um absoluto. Nesse
movimento mais amplo, cabe às produções literárias o papel fundamental de
difundir e sedimentar essa busca de alteridade na cena simbólica angolana.
Articula-se, então, uma fala literária que tenta superar a fragmentação do dila-
cerado corpo nacional, restabelecendo-se, assim, não uma unidade perdida,
já que esta nunca existiu, mas uma espécie de unificação em torno de ideais
comuns que movessem a engrenagem da história em outro sentido.

Animados também pelas ideias do Movimento da Negritude – que na década de 1960 se


engajava “na missão pela libertação das colônias africanas” (BERND, 1988, p. 30) – e pelos p
­ oemas
dos grandes nomes do Movimento, como Aimé Césaire (Martinica), Léopold Sédar Senghor
(Senegal) e Léon Damas (Guiana Francesa), alguns jovens angolanos se organizaram e criaram o
Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, e em 1951 foi publicada a revista Mensagem – a voz
dos naturais de Angola, que pretendia ser o veículo de uma mensagem literária e ideológica.
Nessa mesma época, publicava-se a Antologia dos novos poetas de Angola, coletânea poética
na qual colaboraram Viriato da Cruz, António Jacinto, Lília da Fonseca, entre outros. Essa antolo-
gia constituiu um “impulso do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, criado em 1948, que
tinha por lema: ‘Vamos descobrir Angola!’” (FERREIRA, 1977, p. 18).
Paralelamente às movimentações literárias de valorização de uma escrita angolana, ­inicia-se
no país um movimento político pela independência, inspirado na iniciativa dos intelectuais cabo-
-verdianos e guineenses que, com o poeta Amílcar Cabral, haviam fundado o Partido Africano
pela Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC). Nos moldes do PAIGC, é criado por
intelectuais e poetas angolanos o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que será
decisivo, mais tarde, para a deflagração da luta armada na colônia.
36 Cultura e Literatura Africana e Indígena

A criação desses partidos na África lusófona é inspirada, por sua vez, nas lutas pela indepen-
dência engendradas por países da África, colonizados outrora por outros países europeus, como
França e Inglaterra.
Desde a sua criação, o MPLA recebe pronta adesão do poeta Agostinho Neto, na época preso
em Lisboa, em razão de sua luta contra a ditadura salazarista. Preso de 1955 a 1957 pela Polícia
Internacional de Defesa do Estado (PIDE) em Portugal, onde estudava Medicina, Agostinho Neto
é escolhido, no ano em que sai da prisão, o Prisioneiro Político do Ano pela Anistia Internacional.
Sua liberdade, ainda no período ditatorial, é consequência, entre outras ações, da campanha inter-
nacional que se articulou, sob a liderança de Jean-Paul Sartre, para a anistia dos presos políticos.
Após a independência do país, em 11 de novembro de 1975, Agostinho Neto foi eleito o primeiro
presidente do país.
A década de 1960 foi para Angola um tempo de muitos problemas na área da criação lite-
rária e da cultura em geral. A repressão se torna mais forte. Além do fechamento da Casa do
Estudante do Império, o governo salazarista proíbe a circulação da revista angolana Mensagem e
são amordaçadas as Edições Imbondeiro4, que seriam responsáveis, entre outras publicações, pela
edição da Antologia poética angolana (1963). Além disso, escritores e intelectuais angolanos são
perseguidos, presos e exilados.
Enquanto a ditadura salazarista em Portugal cerceava a liberdade e perseguia os intelectuais
de esquerda no seu país, nas colônias a repressão contínua e a atuação da PIDE tornavam insusten-
tável a articulação política e literária dos intelectuais. No início dos anos 1960, a situação colonial
se agrava em todas as colônias, abrindo caminho para a luta armada, o que se efetiva no início de
1961 em Angola, quando colonos algodoeiros queimam plantações de algodão no norte do país em
protesto contra a política econômica portuguesa para as colônias.
Em represália a essa atitude, o governo de Salazar age rapidamente, enviando soldados para
Angola a fim de reprimir energicamente a revolta. Após a ação do governo português, membros do
MPLA invadem a prisão de Luanda para libertar prisioneiros políticos detidos pela PIDE. Estoura
a Guerra Colonial, que se estende depois às colônias da Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964).
A guerra pela independência durou 13 anos em Angola e, como nas outras colônias, resul-
tou em muitas mortes e mutilações tanto do lado português quanto do lado africano, sendo que as
perdas do lado africano foram significativamente maiores.
A guerra nas colônias, a crise financeira portuguesa e a ausência de apoio internacional ace-
leram a queda do regime fascista português que se dá no dia 25 de abril de 1974, com o levante dos
jovens oficiais (tenentes e capitães do Movimento das Forças Armadas).

4 A revista Mensagem, cuja aparição data de 1951, foi um importante órgão de cultura que deu visibilidade a vários
escritores angolanos como António Jacinto, Mário Pinto de Andrade, Humberto Sylvan, Viriato Cruz, entre outros, e es-
tabeleceu as bases literárias da angolanidade. As ecléticas Edições Imbondeiro, editadas e dirigidas por Garibaldino de
Andrade e Leonel Cosme, entre os anos 1960 e 1965, resultaram da iniciativa cultural de escritores e artistas africanos
que viviam em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império, e marcaram o aparecimento de um discurso nacional na
literatura de Angola.
Cultura e literatura em Angola 37

3.4 Angola: literatura e cultura após a independência


Com a queda da ditadura portuguesa, abriu-se o caminho para a independência dos países
africanos colonizados por Portugal, o que ocorre logo a seguir. Porém, em 1975, conquistada a
independência, Angola vive um curto período de paz para, logo em seguida, mergulhar em outra
guerra. Os conflitos no país passam a evidenciar a disputa pelo poder, travada pelas duas princi-
pais forças políticas que se formaram durante a luta pela independência: o Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita).
Logo após o processo de independência, a ala de Agostinho Neto do MPLA ganha as elei-
ções, mas acaba formando com a Unita um governo de coalizão que fracassa em seguida. Em 1976,
a Unita trava uma luta com o governo de Angola, cujos integrantes eram em sua maioria do MPLA,
e tem início a guerra civil, que durou até 2002, com a morte de Jonas Savimbi, líder da Unita. Nesse
ano, comandantes das Forças Armadas de Angola e guerrilheiros da Unita assinaram um acordo de
paz que prometia o fim da guerra e o respeito aos termos de um acordo anterior, firmado em 1994,
mas abandonado nos anos seguintes.
Após a independência de Angola, mesmo com as lutas internas no país, a literatura alcança
repercussão internacional e surgem muitas obras relacionadas à experiência da luta armada. Escritores
como Mendes de Carvalho, Manuel Pacavira, Manuel Rui, entre outros, trazem para a literatura tex-
tos produzidos, inclusive, na prisão em Tarrafal (Cabo Verde). Arthur Carlos Maurício Pestana dos
Santos, conhecido como Pepetela, foi membro do MPLA e tornou-se, após a vitória do seu partido,
vice-ministro da educação em Angola, consagra-se na literatura com uma obra que tematiza a guerra
pela independência, mas também se reporta à história e à cultura ancestral de Angola.
Entre os grandes romancistas e poetas angolanos representativos desse período, destacam-
-se: Agostinho Neto, Luandino Vieira, Orlando Távora (António Jacinto), Mário Pinto de Andrade,
Hélder Neto, Ernesto Lara Filho, Lília da Fonseca, António Cardoso, Costa Andrade, Arnaldo
Santos e Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (Pepetela).
O primeiro romance de Pepetela foi Muana Puó (1978), mas é com Mayombe (1980), escrito
nos anos da guerra pela independência, que o autor chamou atenção da crítica, exatamente no
mesmo ano em que ganhava o Prêmio Nacional Angolano de Literatura.
Além de Mayombe (1980) e Muana Puó (1978), escrito em 1969, Pepetela escreveu mais um
romance durante a Guerra Colonial. Trata-se de As aventuras de Ngunga, escrito e publicado em
1973. Esse texto, porém, tinha, a princípio, uma destinação não literária5.
Pepetela continuou publicando especialmente romances durante as décadas seguintes. Entre
as suas principais obras, destacam-se: Yaka (1984), Lueji, o nascimento de um império (1990), A
geração da utopia (1992), O desejo de Kianda (1995), Parábola do cágado velho (1996), A gloriosa
família (1997), Jaime Bunda, o agente secreto (2001), Jaime Bunda e a morte do americano (2003),
Predadores (2005), O planalto e a estepe (2009), Crônicas com fundo de guerra (2011), O tímido e

5 As aventuras de Ngunga, escrito por Pepetela em 1973, em plena guerra pela independência, foi feito inicialmente
para ser uma cartilha de formação do guerrilheiro, sendo editado pelos órgãos de cultura do MPLA. No entanto, ao
finalizar o livro, Pepetela percebeu que o texto final havia ultrapassado o didatismo a que se propunha.
38 Cultura e Literatura Africana e Indígena

as mulheres (2013), Se o passado não tivesse asas (2016). Em 1997, foi agraciado com o Prêmio
Camões, pelo conjunto de sua obra.
O fato é que escritores e poetas angolanos, vivendo o processo de descolonização, produzi-
ram e ainda produzem escritas que retomam as tradições culturais angolanas, as estórias africanas
predominantemente ágrafas, valorizando o processo de “griotização”6 na produção narrativa. É por
meio da literatura oral africana que ocorre a transmissão de conhecimentos de uma geração para
outra e essa transmissão oral de estórias (oratura7) foi, durante muitos anos, considerada de menor
valor. A valorização dessa literatura oral tem lugar ainda nas décadas de 1950/1960, antes da inde-
pendência, quando poetas angolanos tematizaram em suas obras, entre outras coisas, as memórias
ancestrais veiculadas pela literatura oral, pelos griots.
Outro importante escritor angolano é Luandino Vieira, cuja produção literária se torna
conhecida a partir de 1957, com a revista Cultura. Nascido em Portugal, José Mateus Vieira da
Graça foi levado ainda criança para Angola com os pais colonos. Morando nos bairros populares
de Luanda, o jovem José Mateus identificou-se tanto com o lugar que, ao iniciar-se na literatura,
adotou o nome Luandino Vieira a fim de homenagear a cidade em que viveu. O escritor, que ficou
11 anos na prisão em razão de suas atitudes anticolonialistas, escreveu ainda no cárcere o livro de
contos Luuanda (1964), em que adota uma linguagem africanizada para refletir o bilinguismo da
capital de Angola, onde a população fala o português e o quimbundo.
Conquistada a independência, a liberdade de expressão e os novos rumos do país encorajavam
os escritores angolanos a buscar novas formas expressivas para um conteúdo menos panfletário. A
produção literária amadurecia e cultivavam-se novas formas de expressão.
Além de Pepetela, que talvez seja o escritor angolano de maior visibilidade fora de Angola, e
Luandino Vieira, cuja obra também ultrapassou as fronteiras da nação angolana, há outros nomes
igualmente importantes na literatura angolana contemporânea, como Paula Tavares, Manuel Rui,
Ruy Duarte de Carvalho, Boaventura Cardoso, João Maimona, Adriano Botelho de Vasconcelos,
Agostinho Mendes de Carvalho (Uanhenga Xitu – nome quimbundo do autor), José Luís Mendonça,
João Melo, José Eduardo Agualusa, Ondjaki, entre outros.
As décadas de 1980 e 1990 foram bastante produtivas para a ficção angolana, que envere-
dou pelo caminho da reformulação da história a partir da ficção. Como produção literária nessa
linha de revisão da história, temos, por exemplo, José Eduardo Agualusa com A conjura (1989),
Henrique Abranches com Misericórdia para o Reino do Kongo (1996) e Pepetela com A gloriosa
família, o tempo dos flamengos (1997).

6 O griot era o contador tradicional de histórias africanas na África. Além da literatura oral (oratura), o griot detinha as
funções de poeta, cantor e músico e, muitas vezes, exercia nos grupos sociais funções mágicas.
7 Nessas culturas de predomínio oral, oratura compreende o emprego de provérbios, adivinhas, lendas e estórias
transmitidas por meio de métodos mnemônicos que se utilizam de repetições ritmadas, a fim de perpetuar a memória
coletiva por meio dos tempos e de gerações.
Cultura e literatura em Angola 39

Considerações finais
A literatura pós-colonial vem se renovando em termos de conteúdo, enveredando por cami-
nhos imaginativos e reinventando novas formas de escrita pela via do experimentalismo. Os novos
escritores utilizam a língua portuguesa, mas continuam igualmente a expressar-se literariamente
nas diversas línguas locais, especialmente quando enfatizam a oratura em suas obras.

Ampliando seus conhecimentos


• PEPETELA. Parábola do cágado velho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
O fragmento a seguir, intitulado “Invocação”, é o preâmbulo do romance Parábola do
cágado velho, publicado em 1996 pelo escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos
Santos, mais conhecido pela alcunha de Pepetela, que quer dizer pestana, em umbundo,
uma das muitas línguas faladas em Angola. Trata-se de um texto que é naturalmente uma
das lendas populares da gênese do mundo e dos homens.

Invocação
Suku-Nzambi criou aquele mundo. Aquele e outros, todos os mundos.
Suku-Nzambi, cansado, se pôs a dormir. E os homens saíram da Grande Mãe Serpente, a
que engole a própria cauda.
Feti, o primeiro, no Centro foi gerado pela serpente de água e da água saiu. Nambalisita,
no Sul, do ovo saiu, partindo a própria casca. Namutu e Samutu, os dois gêmeos de sexo
diferente, pais dos homens do país lunda, da serpente mãe directamente saíram.
A obra de Suku-Nzambi estava completa. Mas nunca se interessou por ela. E a obra de
Suku-Nzambi parecia esquecida de viver.
Até hoje os homens, parados, atônitos, estão à espera de Suku-Nzambi. Aprenderão um
dia a viver? Ou aquilo que vão fazendo, gerar filhos e mais filhos, produzir comida para
os outros, se matarem por desígnios insondáveis, sempre à espera da palavra salvadora de
Suku-Nzambi, aquilo mesmo é a vida?

• PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficção


angolana do século XX. Rio de Janeiro: EdUFF; Pallas Editora, 2007.
A obra da pesquisadora Laura Cavalcante Padilha é parte de sua tese de doutorado, defen-
dida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no ano de 1988. Passados trinta anos, o
estudo de Laura Padilha revela-se ainda atual pelo amplo levantamento que faz da cul-
tura e literatura angolana. Embora o foco de sua análise crítica esteja no século XX, a
autora analisa o processo de formação literária da então colônia portuguesa no século
XIX, época em que começam a circular os jornais e aparecem as primeiras manifestações
de uma literatura produzida em Angola.
40 Cultura e Literatura Africana e Indígena

• PEPETELA. As aventuras de Ngunga. São Paulo: Ática, 1980.


A obra de Pepetela é uma ficção que fala dos encontros e desencontros do jovem Ngunga
que, ao ficar órfão em meio à guerra de Angola contra Portugal, circula pelo seu país que
luta pela independência, aderindo depois à luta armada. Ngunga representa o jovem em
processo de formação que, mesmo entusiasmado com a luta, não perde o poder de crítica
diante do comportamento antirrevolucionário de alguns líderes.

• UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS. Disponível em: http://www.ueangola.com/.


Acesso em: 14 mar. 2019.
O site oficial da União dos Escritores Angolanos (UEA) oferece informações sobre a pro-
dução literária do país e da produção cultural como um todo, entrevistas com escritores
angolanos, além de diversos ensaios de pesquisadores e estudiosos brasileiros e estrangei-
ros sobre a produção literária angolana.

Atividades
1. Segundo Kwame Appiah, por quais motivos os angolanos, após a independência do país, ado-
taram oficialmente a língua portuguesa se a região comporta inúmeras l­ínguas e dialetos?

2. A importância que Angola assumiu para Portugal durante o século XIX foi prejudicial pelo
aspecto econômico, porém foi benéfica em relação a algumas mudanças que se operaram no
país, especialmente na capital Luanda. Explique o porquê disso.

3. De que maneira surge o MPLA em Angola e qual a importância dos intelectuais nesse processo?
4
Cultura e literatura em Moçambique

Claudia Amorim

O propósito deste capítulo é apresentar as características históricas, culturais e literárias


de Moçambique, país em cujo território os portugueses aportaram em 1498 e que conquistou a
independência somente em 1975. Após o processo de independência, Moçambique adotou oficial-
mente a língua portuguesa, embora atualmente ela seja falada por apenas 50,4% da população do
país, sendo a língua materna de apenas 10,7% dos falantes, segundo observa o estudioso Feliciano
Chimbutane, da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) (CHIMBUTANE, 2011).
A história de Moçambique encontra-se registrada em documentos desde o século X, quando
um viajante árabe relatou haver no território uma importante atividade comercial entre algumas
nações da região do Golfo Pérsico e os negros das terras de Sofala. As terras de Sofala incluíam
grande parte da costa norte e centro do atual Moçambique.
No final do século XV, com o avanço das naus portuguesas pela costa oriental da África, a
região foi objeto de atenção da Coroa de Portugal, em razão especialmente do comércio do ouro
já existente no território. Os portugueses edificaram na região duas fortalezas: uma em 1505,
em Sofala, e a segunda, em 1507, na Ilha de Moçambique. Quando os portugueses aportaram
em Moçambique, os árabes já estavam há muito no território e haviam fundado entrepostos
comerciais na região. Além de Sofala, referida desde o século X, havia os entrepostos Quelimane,
Angoche e a da Ilha de Moçambique (ENDERS, 1997).
Durante os cinco séculos que permaneceram no local, os portugueses encontraram muita
resistência por parte dos povos da região, essa ocupação não foi de modo algum pacífica. No
entanto, o comércio do ouro e do marfim e, mais tarde, o comércio de escravos faziam valer para
a Coroa portuguesa a empreitada.
No século XX, porém, Moçambique travou contra Portugal, seguindo o exemplo de Angola
e da Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), uma luta pela independência. Após a conquista da
independência, Moçambique mergulhou em uma guerra interna que durou cerca de 16 anos e
arrasou o já combalido país, destruindo sua precária infraestrutura, sem contar o número de
­mortos resultante de uma disputa pelo poder impetrada pelas frentes que lutaram pela indepen-
dência da nação.
Em 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz entre o Governo da Frente de Libertação
de Moçambique (Frelimo) e a Resistência Nacional de Moçambique (Renamo) – os dois principais
movimentos políticos do país –, a guerra chegou ao fim, mas o saldo desse conflito bélico foi extre-
mamente nocivo para a jovem nação.
Para melhor conhecermos Moçambique, uma das cinco ex-colônias portuguesas na África,
será necessário primeiramente visualizar seu território.
42 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Figura 1– Moçambique

André Koehne/Wikimedia Commons

4.1 Moçambique: a história de sua colonização


O território de Moçambique, na costa oriental da África, possui uma área de 799.380 quilô-
metros quadrados e uma população de aproximadamente 28,8 milhões de habitantes1, distribuída
entre as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Nampula (norte do país), Tete, Zambézia, Manica,
Sofala (centro) e Inhambane, Gaza, Maputo (sul do país).

1 Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE) de Moçambique, referentes ao censo de 2017. Disponível em:
https://www.dw.com/pt-002/população-moçambicana-a-crescer-segundo-ine/a-41985363. Acesso em: 14 mar. 2019.
Cultura e literatura em Moçambique 43

Após a independência, em 1975, o país adotou oficialmente o português como idioma, embora
existam muitas línguas nacionais como o cicopi, cinyanja, cinyungwe, cisenga, cishona, ciyao,
echuwabo, ekoti, elomwe, gitonga, maconde (ou shimakonde), kimwani, macua (ou e­ makhuwa),
memane, suaíli (ou kiswahili), suazi (ou swazi), xichanga, xironga, xitswa e zulu. A realidade cul-
tural de Moçambique é um exemplo de variedade etno-linguística. Salinas Portugal (1999) fala da
existência de nove grupos bantos na região que representam 99% da população moçambicana e que,
sem dúvida, têm alguma das línguas desse grupo como língua materna (primeira língua).
Antes da chegada dos portugueses à região de Moçambique, havia um importante reino no
local que administrava a extração de ouro e cobre das minas da região, o Reino do Monomotapa.
Esse reino ocupava a região do Zimbábue, estendendo-se até a costa de Sofala e Moçambique. Na
Ilha de Moçambique2 havia um xeque árabe, cujo nome era Mussa Ben Mbiki ou Mussa A’lBik, que
deu origem ao nome da Ilha (Moçambique) em que aportaram os portugueses e, depois, à região
na costa oriental da África colonizada pelos lusos.
O Reino do Monomotapa é considerado por arqueólogos e historiadores um dos mais inte-
ressantes exemplos da cultura africana e tornou-se conhecido para os europeus por meio das viagens
portuguesas pela costa oriental da África.
No início do século XVI, a Coroa portuguesa viu a importância da ocupação do litoral de
Moçambique como ponto estratégico de apoio para as viagens à Índia. Com o estabelecimento
do comércio com a Índia, a Ilha de Moçambique tornou-se um dos lugares de ancoragem para as
naus que se perdiam ou ficavam danificadas pela longa viagem impetrada pelos navegantes. Muitas
vezes, as naus aportavam para aguardar a monção (tempo favorável) para seguir viagem. Em razão
dessas necessidades, a Coroa portuguesa construiu uma fortaleza e um hospital (ENDERS, 1997).
A Ilha de Moçambique foi a primeira cidade importante da região, antes da instituição de
Lourenço Marques como capital durante o período colonial. Para ela confluíram diferentes povos,
anteriormente à dominação portuguesa. É possível verificar, não só na arquitetura, nas manifestações
artísticas locais, a influência dos vários povos que habitaram a ilha, como também na constituição
física de seus habitantes. Pela ilha passaram e estabeleceram-se árabes, persas, indianos e chineses,
além dos portugueses. Ainda hoje se encontram a mesquita e o minarete árabes, um templo islâmico,
além de igrejas católicas e templos hindus. Segundo os biógrafos de Luís de Camões, o poeta por-
tuguês também teria vivido por 2 anos na ilha, depois de ter deixado Goa (Índia) em seu regresso a
Portugal. Dizem os biógrafos e historiadores que, durante sua estada na ilha, Camões trabalhou em
sua epopeia, Os lusíadas (1572), refazendo alguns versos.
Após a construção da fortaleza da Ilha de Moçambique em 1507 e da de Sofala, ocorrida dois
anos antes, os portugueses iniciaram movimentos de reconhecimento do interior da região, onde
estabeleceram duas feitorias: Sena (1530) e Quelimane (1544). O escopo de adentrar o território já
não era simplesmente o controle do escoamento do ouro, mas o de dominar o acesso às zonas que
o produziam (ENDERS, 1997).

2 A Ilha de Moçambique é uma cidade insular que se liga ao continente atualmente por uma ponte de cerca de 3
quilômetros de comprimento. A ilha situa-se junto à Província de Nampula, localizada no norte do país, e foi a primeira
capital de Moçambique. Em 1996, a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) a elegeu
Patrimônio Mundial da Humanidade, pela rica história e pelo seu interessante patrimônio arquitetônico.
44 Cultura e Literatura Africana e Indígena

A essa fase de incursão para o interior com fins comerciais, que será conhecida mais tarde
como fase de ouro, seguiram-se duas fases de grande exploração mercantil: a fase do marfim e
a fase dos escravos. O marfim e os escravos saíam da região por meio das feitorias3 e prazos4 da
Coroa. Os prazos eram uma espécie de feudo com atividade comercial dirigidos por senhores
locais. Embora fossem autônomos em relação às autoridades portuguesas, os senhores dos prazos
reinavam sobre terras supostamente portuguesas e deviam à Coroa o pagamento de um foro.
As feitorias e os prazos constituíram a forma inicial da colonização portuguesa em Moçambique.
No entanto, na primeira metade do século XIX, Moçambique não é mais do que um conjunto
de feitorias isoladas e a autoridade portuguesa se restringe às aldeias onde havia alguns poucos fun-
cionários portugueses ou mestiços mal remunerados, militares e representantes da administração
das alfândegas que buscavam exercer o controle do comércio na colônia, que já apresentava um
déficit orçamentário significativo.
A exploração comercial continuava, mas o “comércio” negreiro já sofria restrições. Porém,
mesmo com a abolição oficial da escravatura em 1836, muitos negros da região continuaram a
ser levados para outras regiões. Na Ilha de Moçambique, onde desde o século XVII havia mui-
negreiro: nome
com que se
tos negreiros estabelecidos, esse negócio já não era mais tão lucrativo, especialmente após a
designava o independência do Brasil. Durante o período áureo do tráfico negreiro, os negros do Zambeze
traficante de
escravos. e de Moçambique foram levados especialmente para as ilhas Mascarenhas e Madagáscar, para a
região do Golfo Pérsico, para o Brasil e para Cuba. Os negros capturados em Moçambique eram
principalmente da etnia banto e os que vieram para o Brasil desembarcaram, em sua maioria, em
Pernambuco, Minas Gerais e no Rio de Janeiro (ENDERS, 1997).
A exploração do território transcorreu continuamente, porém, foi somente em 1885,
quando as principais potências europeias, na Conferência de Berlim, decidiram partilhar a África,
que os portugueses, desistindo de seu intento de tomar posse do território intermediário entre
Moçambique e Angola a fim de estabelecer uma comunicação por terra entre as duas colônias5,
resolveram ocupar militarmente o território moçambicano e instituir na região uma administra-
ção colonial que defendesse suas fronteiras ante a ameaça das intenções de ocupação dos outros
países europeus.
Em razão da incapacidade de ocupar completamente o território, Portugal arrendou sua
soberania sobre vastas extensões territoriais, cedendo-as a grandes companhias. A Companhia de
Moçambique e a Companhia de Niassa, as duas maiores em Moçambique, dedicaram-se a uma eco-
nomia baseada em plantações no norte do país e no tráfico de mão de obra para países vizinhos. As
províncias de Inhambane, Gaza e Maputo (parte sul de Moçambique) ficaram sob a administração

3 Segundo o Dicionário Houaiss (2004), feitoria é: agência de companhia comercial nos portos das colônias, em que
se armazenavam e se negociavam mercadorias, servindo também como fortificação primitiva, provida de uns tantos
soldados e armamentos, para a defesa da colônia contra a intromissão de aventureiros.
4 Segundo Enders (1997), diferentemente das feitorias, chefiadas por portugueses, alguns dos prazos em ­Moçambique
tornaram-se mais africanos que portugueses. Os senhores dos prazos eram em sua maioria mestiços que oscilavam en-
tre a fidelidade à Coroa e a dissidência. Alguns dos prazos, abastecidos de armas, eram o braço armado da Coroa, outros
acabaram se transformando em principados guerreiros e ameaçavam o domínio português na região.
5 Foram as explorações territoriais de Serpa Pinto que deram à Coroa portuguesa a ideia de se tentar, com a união das
colônias de Angola e Moçambique, estabelecer na região um império único transafricano, mas a intenção portuguesa foi
obstruída pela Coroa britânica.
Cultura e literatura em Moçambique 45

direta de Portugal e a economia da região se pautou na exportação de mão de obra para as minas
da África do Sul e na instituição do transporte ferro-portuário pelo porto de Lourenço Marques
(atual Maputo).
Mesmo com todas essas dificuldades há, no século XIX, em Moçambique, uma imprensa inci-
piente e ligada às questões coloniais. Em 1857, circula o periódico Boletim oficial do governo geral
da província de Moçambique, convertido praticamente um século depois (1951) no Boletim oficial
da colônia de Moçambique. Outras publicações circulam durante o século XIX, como O ­progresso
(1877-1881), O gato (1880), O vigilante (1882), Clamor africano (1892).

4.2 Moçambique: cultura e literatura durante o século XX e antes


da libertação
As publicações de maior relevância só ocorreram em Moçambique no século XX. Em 1909,
os irmãos José e João Albasini fundam O africano e em 1918 fundam ainda O brado africano. Esse
último, na década de 1950, adquire grande importância cultural por reunir em seus suplementos
literários as contribuições de Virgílio Lemos, Fonseca Amaral, Rui Noronha, Noêmia de Sousa,
entre outros.
Assim, algumas mudanças do ponto de vista da cultura e da estrutura social se fazem sentir
apenas no início do século XX, quando Moçambique deixa de ser somente uma colônia de explora-
ção para constituir também, pelo menos no centro e no sul, uma colônia de povoamento. A colônia
e especialmente a sua capital, Lourenço Marques6, ou a Pérola do Índico, como ficou conhecida
entre os portugueses a partir dessa época, modificava-se sensivelmente. O norte do país, zona mais
rural, ia se diferenciando cada vez mais do sul (zona mais urbanizada).
Desse modo, é somente no século XX, diferentemente do que acontecera em Angola7, que se
pode falar de uma literatura com características moçambicanas, de uma moçambicanidade. Como
sublinha Francisco Salinas Portugal (1999), segundo todos os críticos, João Albasini com a obra
O livro da dor (1925), será o precursor de uma moçambicanidade literária na poesia. Da mesma
maneira que, na prosa, Godido e outros contos, de João Dias, antecipa uma literatura própria de
Moçambique. Rui de Noronha é outro poeta da primeira metade do século XX que apresentou,
segundo Ferreira (1977), certa sensibilidade aos valores africanos, ao sofrimento e à injustiça
sofrida pelos negros em sua labuta cotidiana.
Após a Segunda Guerra Mundial, sem dúvida já se pode falar de um período de formação
da literatura moçambicana. Para Pires Laranjeira (1995), a poetisa Noêmia de Sousa é um impor-
tante nome desse período de formação. Com o seu Sangue negro, “caderno policopiado que circulou,
numa espécie de viagem iniciática e clandestina de Moçambique a Portugal, passando por Angola”
(PORTUGAL, 1999, p. 92), Noêmia de Sousa fala da mulher negra para além da denúncia, fugindo dos

6 Após a independência do país, a capital da época da colonização portuguesa, Lourenço Marques, recebeu o nome
de Maputo.
7 Em Angola já existe no fim do século XIX uma tímida produção literária que busca a valorização dos traços da cul-
tura local.
46 Cultura e Literatura Africana e Indígena

estereótipos da cultura/literatura colonial x cultura/literatura local, além de usar estilemas oralizantes,


tão importantes na tradição cultural dos países africanos.
Além de temas que tratavam da condição do negro e da negritude, a literatura produzida em
Moçambique incorporava os aspectos da tradição cultural africana, como a oratura8, que resgata
a dimensão “griótica”9 do texto africano. Segundo Francisco Salinas Portugal (1999, p. 35), “nas
literaturas africanas (não só as de língua portuguesa) encontramos um uso extraordinário dos
recursos da oralidade como técnica singularizante destas literaturas”.
Outros escritores importantes dessa época são: Fonseca Amaral, Orlando Mendes, Virgílio
de Lemos, Rui Guerra, Alberto Lacerda, Reinaldo Ferreira, Domingos de Azevedo, Augusto dos
Santos Abranches, Cordeiro de Brito, Rui Knopfli e José Craveirinha, este último, sem dúvida, o
poeta nacional por excelência.
A década de 1950 foi decisiva para todas as colônias portuguesas na África. Foi um período
em que a condição dos povos africanos alcançou dimensão mundial. Muitas colônias iniciaram
seu processo de independência, conquistando-a seguidamente, em especial as colônias francesas e
inglesas. As lutas dos negros norte-americanos contra o racismo nos Estados Unidos da América
ganharam o mundo e escritores negros, especialmente poetas, divulgam em suas obras a cultura
negra. Além disso, há uma ampla difusão das ideias do Movimento da Negritude, criado em fins
da década de 1930 por Aimé Césaire, Leopold Senghor e Léon Damas. Na esteira dessa efervescên-
cia política e cultural da década de 1950, as movimentações pela independência ganham força na
chamada África negra.
Somando-se a isso, a situação nas colônias se agrava diante da política ditatorial de Salazar. A
exemplo do que acontecera em Angola, Salazar institui o trabalho forçado em Moçambique, com a
Introdução das colheitas mercantis como o algodão e o arroz, obrigando todos os homens acima de
15 anos a trabalhar nas plantações públicas ou de propriedade dos grandes colonialistas durante a
metade do ano. Em 1960, em Moçambique, mais de 800 mil pessoas eram submetidas ao regime de
trabalho forçado nas obras públicas e nas plantações de algodão. As manifestações contra o regime
salazarista cresceram nas colônias, mas foram duramente reprimidas. Abria-se o espaço para a
criação de movimentos nacionalistas, impulsionados pelo apoio dos países vizinhos.
Em meados de 1950, organizou-se o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné
e de Cabo Verde), liderado por Amílcar Cabral, em Cabo Verde, e o MPLA (Movimento Popular
pela Libertação de Angola), com o apoio do poeta angolano Agostinho Neto, preso pelo regime
salazarista na Ilha de Tarrafal (Açores). Muitos dos membros desses movimentos são poetas e
intelectuais africanos que participaram ativamente do processo de luta armada que teve início em
1961 em Angola e se disseminou também pelas colônias da Guiné Portuguesa e por Moçambique.

8 Nessas culturas de predomínio oral, oratura compreende o emprego de provérbios, adivinhas, lendas e histórias
transmitidas por meio de métodos mnemônicos que se utilizam de repetições ritmadas, a fim de perpetuar a memória
coletiva através dos tempos e de gerações.
9 Griótica é um neologismo oriundo da palavra griot. O griot era o contador tradicional de histórias na África. Além da
literatura oral (oratura), o griot detinha as funções de poeta, cantor e músico e, muitas vezes, exercia nos grupos sociais
funções mágicas.
Cultura e literatura em Moçambique 47

Em 1962, quando a Guerra Colonial já havia iniciado em Angola, foi criada em Moçambique
a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), dirigida por Eduardo Chivambo Mondlane.
Dois anos mais tarde, Moçambique aderiu à luta armada contra Portugal e essa guerra se estendeu
até 1974, quando em Portugal a Revolução dos Cravos derrubou o regime de Antônio de Oliveira
Salazar/Marcello Caetano que havia dirigido com mão de ferro não só o país, mas todas as “pro-
víncias do ultramar”.
Eduardo Mondlane acabou sendo assassinado em 1969, e Samora Machel, que o sucedeu na
presidência da Frelimo, proclamou a independência de Moçambique a 25 de junho de 1975, após
dez anos de guerra.
Do início da guerra de libertação até a independência, a literatura moçambicana ampliava
sua existência. Apareceram os prosistas, que foram uma espécie de divisor de águas na literatura
do país. Os poetas e escritores da geração anterior continuaram a produzir, mas a ficção ganhou
força com autores como Luís Bernardo Honwana, Orlando Mendes e, em 1971, são publicados
os cadernos Caliban (1971-1972) que só tiveram três números e foram dirigidos por Garabato
Dias (pseudônimo de Antônio Quadros) e Rui Knopfli. Nesses números colaboraram diferentes
autores moçambicanos e portugueses como Eugénio Lisboa, Jorge de Sena, Jorge Viegas, Glória
de Sant’Ana, Craveirinha, Orlando Mendes, Rui Nogar, Herberto Hélder, Fernando Assis Pacheco.
Nesses cadernos já se encontram uma vocação cosmopolita e uma complexidade na abordagem
das relações sociais em Moçambique.

4.3 Moçambique: cultura e literatura após a libertação


Com a independência, podemos falar de uma consolidação da literatura moçambicana, uma
vez que os escritores e poetas moçambicanos tematizaram outros temas além da questão do negro e
da negritude. Nesse período, destacam-se o poeta Rui Nogar, Ungulani Ba Ka Khosa, Hélder Muteia,
Pedro Chissano, Juvenal Bucuane e Mia Couto. Este último estreia na literatura em 1986, com o
livro de contos Vozes anoitecidas. Mia Couto é hoje um dos autores mais conhecidos da literatura
moçambicana, especialmente pela inovação da língua portuguesa que promove em sua prosa medu-
larmente lírica, tendo inclusive sido publicado em diversos países e ampliado, assim, as fronteiras
da língua portuguesa. Outros nomes no cenário da literatura moçambicana atual são Luís Carlos
Patraquim, Nelson Saúte, Eduardo White, Armando Artur, Filimone Meigos e Paulina Chiziane.
No início dos anos 1980, porém, Moçambique independente viveu um conflito armado entre
as forças da Renamo e da Frelimo. Esse conflito deixou muitos saldos negativos no país já combalido
pela guerra pela independência travada contra Portugal, além de uma grande quantidade de óbitos
durante os 16 anos de luta civil. Em 1992, a Frelimo e a Renamo assinaram um acordo geral de paz
que pôs fim à guerra civil. Em 1994, houve eleições multipartidárias ganhas pela Frelimo, que se tor-
nou um dos partidos mais importantes de Moçambique na atualidade.
Os reflexos da guerra pela liberdade e da guerra civil, que se instaurou no país logo após a
independência, ainda se fazem sentir na sociedade moçambicana. Além disso, a estrutura econô-
mica colonial deixou um legado negativo na organização do novo país. Há assimetria entre o norte
(zona mais rural e menos desenvolvida) e o sul (que conheceu um relativo desenvolvimento).
48 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Além disso, o endividamento externo do país, as calamidades naturais e as conjunturas


regional e internacional desfavoráveis obrigaram o governo de Moçambique a adotar mudanças
radicais em sua política. Felizmente, o país tem crescido relativamente nos últimos anos e há inves-
timentos tanto internos quanto externos na agroindústria, na agricultura, no turismo, na pesca e
na mineração.
Apesar desse potencial econômico que o país vem demonstrando aos poucos, há em
Moçambique muitas pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza e o país foi considerado um dos
dez mais pobres do mundo. Continuam a existir os bairros de cimento e de caniço, como na época
colonial. O combate à pobreza vem sendo a prioridade dos últimos governos, mas as iniciativas
governamentais ainda não operaram mudanças profundas nesse campo.

Considerações finais
A cultura e a literatura moçambicanas estão intrinsecamente ligadas. A ideia da moçambi-
canidade, pensada no contexto do século XX, articula a diversidade cultural de Moçambique, lugar
de reunião de diferentes etnias, religiões, povos e culturas, com a ancestralidade autóctone e com
a herança portuguesa. A literatura redimensiona essa rica diversidade, inserida na contemporanei-
dade, e dá visibilidade a esse interessante país, amálgama de tantas influências.

Ampliando seus conhecimentos


• COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
Recomendamos a leitura do conto intitulado “O embondeiro10 que sonhava pássaros”, que
integra, juntamente com outros contos, o livro Cada homem é uma raça, de Mia Couto.
A obra foi publicada em 1988 e o autor nos mostra nesse conto o conflito entre a cultura
dos colonos portugueses e a cultura dos moçambicanos. A história ocorre antes da Guerra
Colonial e, consequentemente, da independência de Moçambique. No conto observa-se o
quanto a intolerância e o desrespeito à cultura local conduziram os colonos portugueses
a uma situação tensa com os povos locais, que desembocaria mais tarde em um conflito
bélico entre portugueses e moçambicanos que durou cerca de 10 anos.

Com relação à estética literária, observa-se no conto a maneira como o autor recria a lín-
gua portuguesa por meio da expressão oral, valorizando nessa recriação a poesia presente
na oralidade que, segundo o próprio autor, se encontra também na obra do brasileiro João
Guimarães Rosa e na do angolano José Luandino Vieira, autores que influenciaram sua
maneira de escrever. Além disso, esse livro de contos, publicado em 1988 no Brasil pela
Editora Nova Fronteira e é um exemplo significativo da temática e do estilo desse autor
que já se consagrou como um dos nomes mais importantes da literatura moçambicana e,
consequentemente, da literatura contemporânea em língua portuguesa.

10 Embondeiro é o nome utilizado em Moçambique e em Portugal para designar o baobá, uma árvore considerada
sagrada para a cultura de Moçambique.
Cultura e literatura em Moçambique 49

• JORGE, Lídia. A costa dos murmúrios. Rio de Janeiro: Record, 2004.


Este romance narra a história de Evita Lopo, noiva de um oficial português que o acom-
panha quando ele vai a serviço até Moçambique, casando-se com ele na cidade da Beira.
Enquanto espera pelo retorno do marido, que está em missão militar no interior do país,
Evita – que permanece todo o tempo na cidade onde os conflitos bélicos são menos visí-
veis – vai tomando consciência das atrocidades que se cometem em nome da necessidade
de se defender as “províncias ultramarinas”, fazendo com que a personagem comece a
questionar as atitudes do marido e dos demais oficiais portugueses em Moçambique.

• SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. A magia das letras africanas: ensaios escolhidos
sobre as literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE
Graph Editora; Barroso Produções Editoriais, 2003.
O livro da pesquisadora e professora doutora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Carmen Lúcia Tindó R. Secco, traz uma série de ensaios interessantes sobre as lite-
raturas moçambicana e angolana, além de uma sólida e abrangente bibliografia sobre o tema.

Atividades
1. O processo de formação da literatura nos países africanos lusófonos foi diferente em cada
região, apresentando cada uma das literaturas a sua especificidade. Em que época podemos
dizer que a literatura moçambicana demonstrou a busca pela moçambicanidade?

2. Para Pires Laranjeira, Noêmia de Sousa é um importante nome do período de formação da


literatura moçambicana. Por quê?

3. Quando se pode falar, de fato, de uma consolidação da literatura moçambicana?


5
África lusófona e Brasil: laços e letras

Claudia Amorim

O objetivo deste capítulo é apresentar as diferentes culturas da África lusófona e do


Brasil, destacando o que a cultura de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e
Moçambique – cinco dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop)1 – tem em comum
com a cultura brasileira, para além da língua de expressão.
A identidade entre essas diferentes culturas e povos começa com a história da colonização
de seus territórios pelos portugueses que, desde o início do século XV, tornaram-se os pioneiros na
exploração do continente africano, no qual se acreditava haver muitas riquezas, especialmente ouro
e especiarias. Para operar essa exploração do continente, e a conversão dos “infiéis” ao cristianismo,
a Coroa portuguesa, apoiada pela Igreja católica local e pela de Roma, deu início a uma das maiores
aventuras do homem em sua história, que foi o domínio dos mares e a consequente descoberta de
terras cuja existência apenas se supunha ou era totalmente ignorada.

5.1 Os africanos no Brasil: um pouco de história


A história do negro no Brasil remete, antes de tudo, à história da diáspora dos povos africanos
que, antes da chegada dos europeus à África, habitavam esse continente. Além dos portugueses – os
primeiros europeus a ocuparem o continente africano –, outros povos da Europa ali chegaram, como
ingleses, franceses e alemães. Com a chegada do europeu à África, começa a diáspora negra com
o tráfico de pessoas capturadas ou “adquiridas” como escravos por meio das guerras locais. Essas
pessoas, retiradas à força de seu continente, viriam a formar a mão de obra do trabalho agrícola do
continente americano.
A diáspora negra para o território brasileiro se liga ao momento em que os portugueses,
em 1415, tomaram dos mouros a cidade de Ceuta, no norte da África, e perceberam que estavam
diante de uma localidade na qual desembocavam ricas mercadorias oriundas de outras regiões do
continente africano. A tomada de Ceuta foi um ponto estratégico para que os portugueses apon-
tassem as naus em direção ao Atlântico Sul para ladear o continente africano seguindo sempre em
direção ao extremo sul do continente, cuja ultrapassagem abriria caminho para a Índia, onde se
encontravam as especiarias que os europeus tanto cobiçavam.

1 A Guiné Equatorial é um país africano que adotou, em 2010, o português como língua oficial, após ter adotado o
espanhol e o francês. Contudo, a Guiné Equatorial não foi um país historicamente associado à colonização portuguesa,
embora as fronteiras contemporâneas sejam diferentes da demarcação que começa a ser feita após a chegada dos
europeus à África.
52 Cultura e Literatura Africana e Indígena

É certo que no início do século XV esses objetivos ainda não estavam completamente delineados
para a Coroa portuguesa ou para os nobres e comerciantes interessados no empreendimento atlântico.
No entanto, a conquista de Ceuta e depois a de Tânger, no Marrocos, foram os atos fundadores do
avanço para o mar que modificaria definitivamente a história da humanidade. Podemos dizer que, com
as viagens marítimas do século XV e XVI, iniciou-se verdadeiramente o conhecimento e o domínio das
terras e dos mares do nosso planeta. Iniciou-se a globalização.
Porém, a história da África, antes da chegada do europeu, ainda se nos mostra obscura
e pouco conhecida pelo fato de os povos africanos serem, a essa época, diversos e quase todos
­ágrafos. Os primeiros relatos sobre o continente foram feitos por árabes e posteriormente por euro-
peus. Durante muitos séculos foram os europeus a escreverem a história da África, quase sempre
ignorando as fontes orais das sociedades ágrafas, uma vez que a história até bem recentemente se
pautava apenas por documentos escritos.
Atualmente, a história da África, escrita especialmente por intelectuais africanos como Joseph
Ki-Zerbo (Burquina-Faso), Amadou Hampaté-Bá (Mali), Pathé Diagne (Senegal), Théophille
Obenga (Congo), Akin Mabogunje (Nigéria) e por intelectuais africanistas como Kwame Anthony
Appiah (anglo-ganês), adquire novas dimensões e leva em consideração inclusive as fontes orais dos
povos africanos, o que faz surgir uma nova história sobre esse rico continente.
As fontes mais canônicas sobre a história do continente africano apontam que no século XV a
África contava com diferentes grupos étnicos mais ou menos isolados que ocupavam relativamente
uma pequena parte do imenso território continental. Os povos que ali viviam tinham uma organização
social e econômica similar, baseada em graus de parentesco. Havia sociedades patriarcais e algumas
matriarcais. Os laços parentais que uniam os membros de um grupo proporcionavam a valorização da
memória do grupo, sua ancestralidade e, consequentemente, a reverência aos mais velhos do grupo.
Porém, nem todas as sociedades africanas gozavam da mesma estrutura. Havia na África
grandes reinos, como o Reino de Mali e o do Congo, e uma série de aldeias e vilas menores nas
quais seus habitantes, unidos por laços de parentesco, partilhavam naturalmente das mesmas cren-
ças. Diferentemente desses, que habitavam um território comum, havia ainda grupos nômades que
transitavam pelo continente em busca de oportunidades de negócios ou obrigados pelas circuns-
tâncias climáticas, por exemplo.
A expansão de alguns desses reinos, a migração de alguns povos e a tentativa de controle de
certas regiões próximas a rios ou postos comerciais geravam conflitos entre os diferentes povos e
ainda a dominação de um povo sobre outro.
Aproveitando-se de uma escravidão doméstica2 que existia na África antes da chegada do
europeu, uma vez que após alguns conflitos os povos vencidos eram feitos prisioneiros e escravos
domésticos, os portugueses viram nesse sistema a possibilidade de operar um diferente “negócio”:
o comércio de escravos.

2 Conforme sustenta Silva (2002), a escravidão doméstica na África consistia em se aprisionar os vencidos nas
guerras étnicas para aproveitar sua mão de obra no trabalho agrícola. A terra era abundante, mas muitas vezes faltava
mão de obra e nesse tipo de cativeiro aproveitavam-se também mulheres e crianças. A fertilidade das mulheres garantia
a ampliação do grupo e elas se tornavam concubinas de seus senhores e geravam filhos que iam gradativamente
perdendo a condição servil e sendo incorporados à linhagem do senhor.
África lusófona e Brasil: laços e letras 53

Porém, antes dos europeus, os árabes, que haviam se estabelecido em algumas regiões da
África por volta do século VIII, já haviam adotado o sistema escravista utilizando o escravo como
moeda de troca. Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 15)
desde que os árabes ocuparam o Egito e o norte da África, entre o fim do século
VII e metade do século VIII, a escravidão doméstica, de pequena escala, passou
a conviver com o comércio mais intenso de escravos. A escravidão africana
foi transformada significativamente com a ofensiva dos muçulmanos. Os ára-
bes organizaram e desenvolveram o tráfico de escravos como empreendimento
comercial de grande escala na África. Não se tratava mais de alguns poucos nati-
vos, mas de centena deles a serem trocados e vendidos, tanto dentro da própria
África quanto no mundo árabe e, posteriormente, no tráfico transatlântico para
as Américas, inclusive para o Brasil.

Com a chegada dos primeiros europeus ao continente africano, operou-se a forma de escra-
vismo estabelecida pelos árabes. Quanto mais os portugueses avançavam pela costa ocidental da
África, e o ouro cobiçado não era encontrado, mais essa falta era compensada com os produtos
comerciáveis da África, especialmente o marfim e a pimenta.
Logo, os portugueses construíram em 1445 uma feitoria na Ilha de Arguim3, que serviria
de entreposto comercial para o comércio das especiarias com os africanos e, posteriormente, ao
comércio de escravos. À medida que o comércio escravista começava a ser lucrativo para os por-
tugueses, o infortúnio crescia para o continente africano. A presença dos portugueses no litoral da
costa da Guiné reforçou o poder dos chefes africanos dispostos a guerrear contra povos inimigos
com o objetivo de fazê-los cativos e adquirir lucros com isso4. A guerra entre os povos na África
produzia o cativo e o comércio com os portugueses distribuía o escravo.
Para criar uma certa estrutura para o comércio de escravos e desencorajar a abordagem
de outros europeus, os portugueses construíram fortalezas ao longo dos territórios ocupados no
­litoral da África. Uma das mais importantes fortalezas foi o castelo de São Jorge da Mina, cons-
truído em 1482, onde atualmente é a República do Gana, de onde partiram para a América, entre
1500 e 1535, cerca de 10 a 12 mil escravos.
O tráfico de escravos para as Américas modificou completamente o mapa da África. Os
­reinos que forneciam prisioneiros escravos para os portugueses conheceram o apogeu nos séculos
XVII e XVIII. Muitos desses reinos, como o Reino Iorubá5, que se dedicava à agricultura e tecela-
gem como os famosos panos da costa6, acabaram praticamente abandonando essas atividades para
enfatizar o tráfico negreiro. Como havia várias cidades iorubanas na região do golfo de Benim

3 A Feitoria de Arguim, na Ilha de Arguim, serviu de modelo para a construção de outros entrepostos comerciais como
a Feitoria de São Jorge da Mina, na cidade de Elmina (República do Gana).
4 Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006), há uma estimativa de que 75% das pessoas vendidas nas Américas
como escravos foram vítimas de guerras entre os diversos povos africanos.
5 Alguns povos vizinhos que habitavam o sudoeste da Nigéria e o sudeste da República do Benim, por falarem
variações do mesmo idioma e compartilharem as mesmas crenças sobre a origem, foram identificados pelos
missionários europeus como pertencentes ao Reino Iorubá.
6 O pano da costa era uma indumentária usada no Brasil por mulheres africanas ou descendentes, especialmente na
Bahia e no Rio de Janeiro. O nome provavelmente se deve ao fato de esse tipo de pano ser encontrado na região da Costa
do Marfim, de onde foram trazidos muitos escravos para o Brasil, ou ainda ao fato de esse pano retangular ser usado
jogado por sobre os ombros e as costas. Ainda hoje é utilizado na composição da roupa das baianas.
54 Cultura e Literatura Africana e Indígena

envolvidas nesse negócio, a região ficou conhecida como a Costa dos Escravos. Os iorubás da região
faziam prisioneiros de guerra de escravos e os trocavam por mercadorias, como o fumo de rolo,
produzido na Bahia. A procura pelo fumo de rolo, muito apreciado na região, fez dos brasi­leiros os
principais compradores de escravos.
O tráfico de escravos foi uma atividade permanente entre os séculos XVI e XIX. Durante esse
período, estima-se que mais de 11 milhões de homens, mulheres e crianças foram transportados
da África para as Américas em grandes navios negreiros (também conhecidos como tumbeiros)7.
Desse total, aproximadamente 4 milhões desembarcaram em portos brasileiros e eles pertenciam,
principalmente, a dois grandes grupos étnicos: os sudaneses (oriundos da Nigéria, Daomé8 e Costa
do Marfim) e os bantos (oriundos do Congo, Angola e Moçambique). Os bantos foram destinados
especialmente a Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro9, enquanto que os sudaneses foram
levados, em sua maioria, para a Bahia10. Também da região da Guiné – cuja vila de Bissau se tornaria
um importante entreposto de escravos – foram trazidos muitos negros para o território brasileiro.
O violento deslocamento do nativo da África para outras terras constituiu a maior ­diáspora
da história da humanidade. Esse triste episódio uniu para sempre a história do Brasil, território
da América onde os portugueses também haviam chegado, à história da África. A extensa colônia
portuguesa na América, devido à exploração agrícola, necessitava de mão de obra permanente.
A escravidão de indígenas não prosseguia como se esperava. Muitos índios cativos e escravizados
acabavam morrendo dizimados por doenças trazidas pelo colonizador, além disso, muitos índios,
resistindo à escravidão, fugiam para áreas de difícil acesso aos portugueses, o que tornava a sua
captura um investimento muito alto. Assim, a migração transatlântica forçada tornou-se a princi-
pal garantia de trabalho escravo nas terras brasileiras. No entanto, também os africanos que sobre-
viviam à travessia dos mares, já em terra brasileira, devido aos maus-tratos e às péssimas condições
de vida, morriam cedo ou fugiam para os quilombos11.
Os quilombos foram locais de resistência dos escravos refugiados e abrigavam uma
­comunidade com leis e costumes próprios. O mais famoso desses quilombos foi o dos Palmares,
assim chamado por se situar em um local com muitas palmeiras. O Quilombo dos Palmares,
cuja extensa localização abrangia parte do atual Estado de Alagoas e parte do atual Estado de
Pernambuco, chegou a abrigar, por volta de 1670, cerca de 50 mil refugiados.

7 Conforme observam Albuquerque e Fraga Filho (2006), essa cifra não inclui aqueles que não resistiam à travessia
atlântica feita em péssimas condições nos navios negreiros e acabavam morrendo no caminho. Assim se explica o por-
quê de os navios negreiros serem também conhecidos pelo nome de tumbeiros, uma vez que o número de mortos nas
travessias era bastante grande.
8 Daomé situava-se, na época, onde agora é a República do Benim.
9 No Rio de Janeiro, os escravos que chegavam nos navios negreiros desembarcavam na região portuária denomi-
nada Valongo e eram levados para os postos comerciais que se situavam no alto do Morro da Conceição, localizado na
Praça Mauá.
10 A Coroa portuguesa procurou sempre que possível misturar escravos de diferentes regiões e etnias para dificultar-lhes
a concentração e a comunicação, uma vez que os grupos étnicos falavam línguas diferentes. Contudo, nem sempre foi
possível, pois os traficantes de escravos por vezes tinham de transportar para uma mesma região os escravos capturados.
11 Quilombo, palavra que se origina do quimbundo kilomboe que significa, em primeiro lugar, acampamento, arraial e,
em segundo, feira, mercado, era o nome que se dava ao local que servia de refúgio ao escravo que fugia do senhor. Entre
os séculos XVII e XVIII, centenas de quilombos surgiram no Brasil e os negros que ali se refugiavam recebiam o nome de
quilombolas.
África lusófona e Brasil: laços e letras 55

Em Palmares, os refugiados sobreviviam da cultura do milho, da mandioca, do feijão e das


bananeiras. A terra era fértil e cada uma das três entradas da longa extensão do Quilombo dos
Palmares era vigiada por cerca de 200 guerreiros. No Quilombo também eram guardadas armas e
munições para garantir a luta pela liberdade. Ganga-Zumba era o rei dos quilombolas e, após sua
morte, Zumbi, seu sobrinho e sucessor, foi consagrado rei dos Palmares.
O comércio negreiro sempre alimentava as mortes ou as fugas de africanos trazendo outros
escravos que lhes substituíam no trabalho. Especialmente durante o século XVIII e início do XIX,
a região de Angola foi a principal exportadora de escravos para o Rio de Janeiro, Minas Gerais, São
Paulo e Rio Grande do Sul. Na segunda década do século XIX, com a investida inglesa contra o
tráfico negreiro, os comerciantes de escravos foram buscar cativos na costa oriental da África (sul
da Tanzânia, norte de Moçambique, Malauí e nordeste da Zâmbia)12. Os escravos oriundos desses
territórios eram denominados “moçambiques”.
Durante um bom tempo, a escravidão indígena e a escravidão do africano alimentaram a
economia da colônia portuguesa na América. Logo, a escravidão africana ultrapassa em cifras a
escravidão indígena.
Mas antes de investir maciçamente no tráfico africano, os colonos portugueses recorreram à
exploração do trabalho dos povos indígenas que habitavam a costa brasileira. A escravidão foi um
tipo de trabalho forçado também imposto às populações nativas. O índio escravizado era chamado de
“negro da terra”, distinguindo-o assim do “negro da guiné”, como era identificado o escravo africano
nos séculos XVI e XVII. Com o aumento da demanda por trabalho no corte do ­pau-brasil e depois
nos engenhos, os colonizadores passaram a organizar expedições com o objetivo de c­ apturar índios
que habitavam em locais distantes da costa. Por meio das chamadas “guerras justas”, comunidades
indígenas que resistiram à conversão do catolicismo foram submetidas à escravidão. Por volta da
segunda metade do século XVI, a oferta de escravos indígenas começou a declinar e os africanos
começaram a chegar em maior quantidade para substituí-los (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO,
2006, p. 40). À medida que a escravização do negro ultrapassou a do índio, o tráfico negreiro deixou
de ser apenas um entre os negócios do ultramar pelos portugueses para se tornar a atividade mais
rentável do Atlântico Sul, já que esse negócio gerava impostos para a Coroa portuguesa e dízimos
para a Igreja católica.

12 Confira essas localidades no mapa do continente africano.


56 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Figura 1 – Navio negreiro, de Johann Moritz Rugendas (1830)

Fonte : RUGENDAS, Johann Moritz. Navio negreiro. 1830. 1 original de arte, óleo sobre tela, 35,50 cm x 51,30 cm. Museu Itaú Cultural,
São Paulo.

Os traficantes de escravos que forneciam mão de obra para a região Nordeste do Brasil foram
buscar, entre meados do século XVIII até o fim do tráfico em 1850, nativos escravizados na região
do golfo de Benim (sudoeste da atual Nigéria). Dessa região vieram os jejes, bornus, tapas, nagôs,
entre outros, e aqui foram designados minas.
Com a proibição do tráfico, em 1850, por pressão da Inglaterra, que desejava expandir para
outros países sua tecnologia industrial, o tráfico de escravos começou a declinar, mas não desa-
pareceu por completo. Até antes dessa data, esse negócio no Brasil havia feito alguns negociantes
muito ricos que, inclusive, participavam dos governos das cidades e das províncias.
O tráfico de escravos também se justificava perante a Igreja, que via nessa atividade uma
possibilidade de evangelizar os “infiéis” africanos. Para a Igreja católica, a salvação das almas dos
africanos pagãos se faria no Brasil católico. Assim, o discurso religioso justificava essa atividade
como uma cruzada contra a “barbárie” africana.
Durante o século XIX, importantes acontecimentos no Brasil e em Portugal propiciaram
mudanças profundas no sistema escravista até a sua extinção, no fim do mesmo século. No contexto
brasileiro, antes que esses acontecimentos viessem à tona, a população escrava era, em algumas loca-
lidades, maior que a população livre. Segundo observam Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 66):
No início do século XIX, o Brasil tinha uma população de 3.818.000 pessoas,
das quais 1.930.000 eram escravas [...]. Até meados daquele século, quando foi
abolido o tráfico, a maior parte dos escravos era nascida na África. Para se ter
uma ideia, os africanos representavam 63% da população de Salvador. No Rio
de Janeiro, os nascidos na África constituíam cerca de 70%.

Com a independência do Brasil, em 1822, o grande desafio da elite econômica da época era
promover o desenvolvimento, mas garantindo a manutenção da escravidão, sem a qual não haveria
produção agrícola. Nessa época, o perfil da sociedade brasileira era claramente escravista e racista,
uma vez que, mesmo os negros que conseguiam alforria ou eram libertos, ou ainda os mestiços,
eram considerados inferiores aos brancos nascidos em Portugal ou no Brasil.
África lusófona e Brasil: laços e letras 57

No entanto, a condição do negro escravo começa a ganhar amplitude. Por pressão da


Inglaterra, o Brasil também se vê obrigado a atenuar as leis da escravidão. Em 1823, em um pro-
nunciamento à Assembleia Nacional Constituinte, José Bonifácio de Andrada e Silva declara que
a escravidão é um “cancro mortal que ameaçava os fundamentos da nação”. Em 1850, proibiu-se
o tráfico negreiro e os últimos desembarques de escravos ocorreram por volta de 1856. Em 1871,
promulgou-se a Lei do Ventre Livre, que concedia a liberdade a todos os filhos de escravos nascidos
a partir daquela data. Em 1877, com a Lei dos Sexagenários, ficavam libertos os escravos com mais
de 60 anos. Finalmente, em 1888, assinou-se a Lei Áurea, que libertava todos os escravos do Brasil.
Concomitante à pressão externa e ao interesse dos abolicionistas (homens letrados, inte-
lectuais, escritores, políticos etc.) em abolir a escravidão, os escravos desde muito lutavam, como
podiam, pela liberdade. Obviamente, algumas dessas lutas tiveram grande alcance e exerceram
pressão também sobre os acontecimentos que desembocaram na Lei Áurea. Entre os mais conheci-
dos movimentos de escravos em prol da liberdade dos cativos está a Revolta dos Malês, ocorrida na
Bahia em 1835, a Revolta da Cabanagem, no Norte do Brasil, entre 1835 e 1840, as reivindicações
dos negros farroupilhas no Rio Grande do Sul que, entre 1835 e 1845, lutaram ao lado de Bento
Gonçalves e conquistaram sua liberdade na República do Piratini, entre outras.
A resistência dos africanos e afrodescendentes ao escravismo também se expandia com
a multiplicação de quilombos, onde os quilombolas – habitantes dos quilombos – entre outras
­coisas, resgatavam as tradições ancestrais de suas etnias.
Também a literatura do jovem país independente expressou as condições da escravidão.
Bernardo Guimarães, um ficcionista brasileiro do Romantismo, publicou em 1875, o romance A
escrava Isaura. Nesse famoso romance, a mestiça Isaura, filha de pai branco e mãe negra, ainda
que quase branca, é uma escrava criada na casa-grande com educação e cuidados. Assediada pelo
filho do Comendador, não consegue a liberdade desejada em razão da morte dos antigos donos comendador:
nome dado ao
da fazenda. O pai quer comprar-lhe a alforria, mas o filho do Comendador, herdeiro dos bens, indivíduo que
recebe uma
não permite. Isaura foge com o pai e em Recife conhece um jovem rico que por ela se apaixona. comenda, uma
A condição de escrava, porém, vem à tona e Leôncio, seu dono, vai resgatá-la em Recife. Álvaro, condecoração
honorífica.
apaixonado, tenta comprar a liberdade de Isaura e só o consegue quando, investigando a situação
de Leôncio, descobre que ele está falido. Comprando seus bens, resgata Isaura de um casamento
forçado com um camponês por ordem de Leôncio. Em desespero, Leôncio se mata.
Por meio desse enredo romântico, descortina-se a situação do escravo, ainda que Isaura,
como heroína do romance oitocentista, fugisse completamente ao padrão da escrava da casa-
-grande do Brasil Colônia.
Outros escritores do século XIX também foram importantes para a divulgação e questiona-
mento da condição do escravo. Entre esses, destacam-se o poeta baiano Castro Alves, o romancista
carioca Lima Barreto, o poeta catarinense João da Cruz e Sousa, considerado o maior poeta simbo-
lista brasileiro. Embora tenham produzido suas obras no fim do século XIX, quando a escravidão já
estava extinta por lei, esses escritores ainda demonstraram o quanto havia por fazer para se atenuar
a condição do homem escravo ou do negro livre, mas socialmente discriminado em razão de sua
cor e de sua pobreza.
58 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Outro nome de grande importância na literatura brasileira do século XIX foi Joaquim Maria
Machado de Assis, um dos maiores romancistas em língua portuguesa. Nascido no Rio de Janeiro,
filho de um mulato e de uma açoriana e neto de escravos alforriados, Machado de Assis foi um escri-
tor atento à condição do homem no cotidiano dos meios urbanos do fim do século XIX. Usando
da ironia, o escritor tecia uma crítica fina e lúcida à hipocrisia da sociedade brasileira finissecular.
Apesar de suas péssimas condições de vida antes da abolição da escravidão (os escravos viviam
em senzalas, recebiam castigos corporais no pelourinho, eram acorrentados, passavam fome etc.) ou
mesmo depois dela, uma vez alforriados, os negros não tinham onde ficar, nem do que viver, o que
gerou um grande número de indigentes nas zonas mais afastadas da cidade ou os morros nos quais
construíram míseros casebres. O fato é que os africanos e seus descendentes foram também constru-
tores da cultura brasileira, conforme atestam Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 43):
Foi na condição de escravos que africanos e seus descendentes chegaram aos
locais mais remotos da colônia. Mas apesar da escravidão, os africanos foram
atores culturais importantes e influenciaram profundamente as formas de viver
e de sentir das populações com que passaram a interagir no Novo Mundo. Os
europeus os trouxeram para trabalhar e servir nas grandes plantações e nas
cidades, mas eles e seus descendentes fizeram muito mais do que plantar, explo-
rar as minas e produzir riquezas materiais. Os africanos para aqui trazidos como
escravos tiveram um papel civilizador, foram um elemento ativo, criador, visto
que transmitiram à sociedade em formação elementos valiosos da sua cultura.
Muitas das práticas da criação de gado eram de origem africana. A mineração
do ferro no Brasil foi aprendida dos africanos. Com eles a língua portuguesa
não apenas incorporou novas palavras, como ganhou maior espontaneidade e
leveza. Enfim, podemos afirmar que o tráfico fora feito para escravizar africa-
nos, mas terminou também africanizando o Brasil.

A história dos africanos no Brasil ainda está sendo escrita. Há muitas lacunas, ausências de
documentos e de dados mais precisos sobre essa enorme diáspora negra para as terras brasileiras.
E, certamente, ainda há de se resgatar a história pela ótica do africano, por meio de narrativas orais,
escassos documentos, relatos descendentes, entre outros. Este resgate não é tarefa fácil, visto que
a escravidão, pela sua violência, durante muito tempo tornou invisíveis e ignoradas as histórias
subjetivas e coletivas dos vários grupos étnicos oriundos da África.

5.2 Identidades e diferenças entre as culturas do


Brasil e dos países africanos lusófonos
O Brasil africanizado naturalmente guarda uma grande identidade com os países africanos
que foram colonizados por Portugal. Os africanos que durante três séculos e meio foram trazi-
dos como escravos para o Brasil, embora de regiões distintas da África, acabaram fortalecendo
sua cultura como forma de resistência. Segundo Silva (2003, p. 158), a “importação continuada
de escravos fazia com que a África reinjetasse permanentemente a sua gente e, com ela, os seus
valores no Brasil”.
Se isso se observava com maior evidência nos meios urbanos, também se fazia notar no
Brasil rural. Nas grandes cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís, encontramos
África lusófona e Brasil: laços e letras 59

escravos agrupados em esquinas à espera de quem contratasse os seus serviços. E os agrupamentos


se faziam por alguns serem aparentados, pela proximidade linguística ou porque tinham chegado
no mesmo navio. Assim, encontramos os grupos nagôs, jejes, cabindas, angolas e moçambiques,
identidades criadas pelos africanos no Brasil.
Como observa Silva (2003, p. 158), nesses “pontos de encontros, e nos pátios que prolonga-
vam as cozinhas, e nas senzalas, e nos esconderijos das matas, os escravos tentavam refazer como
podiam os liames sociais violentamente partidos”. Assim, preservar as tradições e a cultura era uma
condição de sobrevivência e, graças a isso, a cultura africana se propagou pelo Brasil na música, na
culinária, na religião ritualística, na língua, no vestuário etc.
Em alguns casos, o africano justapôs ou superpôs as suas manifestações culturais às que
provinham da Europa. Mas podemos dizer que, em alguns casos, ele também se apropriou sem
quase nada alterar das formas europeias. No entanto, de modo geral, houve uma miscigenação dos
costumes e valores dos africanos, com os dos europeus e dos ameríndios na organização da vida
cotidiana de homens e mulheres descendentes dos primeiros africanos.
De acordo com Silva (2003, p. 163):
Dessas justaposições, recriações, somas e misturas, há evidências por todo lado.
Nas urbes brasileiras, a cidade africana se incrusta na europeia. Na música
popular, embaralham-se instrumentos africanos e europeus. Alguém lembraria
igualmente a confluência de ritos religiosos do candomblé com os da Igreja
católica – por exemplo, na festa do Senhor do Bonfim, a lavagem da igreja, na
qual se repete uma cerimônia, com mulheres a levar à cabeça jarras de água com
flores, para a purificação de um sítio ritual, que se processa no sul da República
do Benim.

Um dos mais marcantes traços da cultura africana no Brasil diz respeito às práticas religiosas
trazidas pelos africanos. Até o século XVIII, a palavra calundu, originária da palavra kilundu em
umbundo (uma das línguas de Angola), significava divindade e era bastante usada pelos africa-
nos e seus descendentes. A primeira referência escrita à palavra candomblé (também originária de
Angola) é do início do século XIX e o termo designa oração.
As manifestações religiosas do Sudeste do Brasil – mais precisamente do Rio de Janeiro e de
São Paulo – originam-se da região do centro-sul da África, onde se situa atualmente o território de
Angola. No Nordeste do Brasil, os povos diversos originários do reino de Daomé (atual República
do Benim), conhecidos como jejes na Bahia e minas no Maranhão, cultuavam deuses diversos que
eles chamavam voduns. Já os povos do reino Iorubá, na Bahia – os nagôs – cultuavam os orixás.
Nos terreiros de candomblé nagô, os deuses de partes distintas da África eram igualmente
cultuados. Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 104), entre os vários deuses cultuados,
temos “Oxossi, do reino de Ketu, Xangô de Oió, Oxum de Oxogbô e assim por diante. Por isso que
se diz que a religiosidade africana foi reinventada no Brasil”.
Mas não foram só os ritos próprios da África que vieram com os escravos. Africanos islamiza-
dos, devido à presença árabe no continente, também chegaram ao Brasil em grandes navios negrei-
ros. Os muçulmanos eram reduzidos no Rio de Janeiro, mas em Salvador e no Recôncavo Baiano
eram numerosos. De acordo com Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 106), por serem “adeptos de
60 Cultura e Literatura Africana e Indígena

uma religião militante, os muçulmanos organizaram na Bahia algumas rebeliões escravas, sendo a
de 1835 a mais conhecida. Por isso, ao longo do século XIX, foi o grupo religioso mais perseguido
pelas forças policiais”.
Mesmo adotando a religião cristã, contudo, os africanos e afrodescendentes eram constante-
mente associados a não cristãos, pela força de suas crenças e sua cosmovisão de mundo:
Iniciado no catolicismo na África ou no Brasil, o escravo africano ou crioulo
dotou a religião dos portugueses de ingredientes de tradições religiosas
­africanas, especialmente música e dança. Era um catolicismo cheio de festas,
de muita comida e bebida, de intimidades com santos, tal qual a relação dos
africanos com seus orixás, voduns e outras divindades. As promessas de santos,
pagas com missas, tinham função semelhante às oferendas que acompanhavam
pedidos feitos aos deuses e outras entidades espirituais africanas. Para home-
nagear santos de sua devoção, os negros organizavam grandes festas nas suas
irmandades. Daí porque muitos escravos africanos se aproximaram do cato-
licismo sem que fossem forçados pelos senhores. (ALBUQUERQUE; FRAGA
FILHO, 2006, p. 106)

Nas irmandades, os africanos tinham oportunidade de conviver com outros africanos,


preser­vando sua cultura. Nesses lugares, o sagrado e o profano se mesclavam, de modo que nessas
festas traços da cultura africana se juntavam ao catolicismo.
Outra forte contribuição da cultura africana no Brasil liga-se às festas carnavalescas. Com a
colonização portuguesa, o carnaval que havia no Brasil era o entrudo (um desfile de foliões). Porém,
com a presença da cultura africana, essas festas se modificaram paulatinamente com a incorporação,
por exemplo, de tambores, chocalhos e ganzás, instrumentos muito usados por negros em suas festas.
No Rio de Janeiro, o carnaval ganharia outra dimensão com a criação das escolas de samba no
início do século XX. Com músicos e sambistas, quase sempre negros e oriundos das localidades mais
pobres da cidade, o samba ganhava as ruas e logo seria alçado ao patamar de grande festa popular da
cultura brasileira. As primeiras organizações de sambistas surgiram no Estácio, nos morros do centro
da cidade e na Mangueira. As escolas de samba eram inicialmente agremiações de caráter assistencial
e festivo. No entanto, elas foram aos poucos conquistando espaço na cultura nacional e na indústria
de entretenimento. Paulatinamente, começaram também a modificar sua estrutura: os ranchos car-
navalescos – como eram chamados os desfiles dos passistas – ganharam uma nova roupagem com a
cadência rítmica do samba e das coreografias e com a incorporação de enredos com temas nacionais.
O samba13, expressão musical própria da cultura brasileira, também exibe suas raízes africa-
nas pela apresentação de uma batida sincopada de origem claramente africana. Na Bahia, o samba
de roda existente desde o século XIX mostra a influência africana com a inclusão de palmas e can-
tos que marcam o ritmo de quem dança no interior da roda. No Rio de Janeiro, o samba surgia na
casa das tias baianas da Praça Onze e nos morros cariocas e falava do cotidiano difícil das pessoas
mais pobres em meio à vida urbana. O samba com seus diferentes acentos regionais (samba baiano,

13 Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2004), a palavra samba é de origem quimbunda (uma das
línguas de Angola) e originalmente significa umbigada – uma espécie de dança ritmada em que os dançarinos batem-se
com as barrigas.
África lusófona e Brasil: laços e letras 61

carioca, paulista etc.) acabou se tornando a expressão musical de maior relevo da cultura do Brasil,
sempre acompanhado de uma expressão corporal rítmica.
Também em outras manifestações populares festivas e religiosas encontra-se a presença afri-
cana. Em Pernambuco, por exemplo, surgiu o maracatu, dança de batuque africana com influências
também indígenas e portuguesas. Conhecida como nação maracatu, essa manifestação cultural
relaciona-se claramente à coroação do rei do Congo, uma cerimônia já existente no século XVIII
em Minas, Pernambuco, Bahia e outros estados do Brasil, e naturalmente trazida pelos escravos
oriundos dessa região da África.
Outra contribuição da cultura africana para a formação da cultura no Brasil foi a incorpo-
ração da capoeira como elemento da cultura brasileira. Inicialmente, a capoeira era praticada na
metade do século XIX pelos escravos libertos que usavam essa luta, em que entra em cena a agili-
dade corporal, para se defender dos adversários. Além disso, os capoeiristas usavam muitas vezes
uma navalha manejada com destreza em meio aos golpes com o corpo. Aos olhos da polícia e das
classes dominantes, os capoeiristas eram gente vadia e perigosa que deveria ser vigiada de perto.
Na década de 1930, a capoeira praticada em Salvador, em rodas orientadas pelo mestre
Bimba, deu um novo estatuto para essa luta que deixava paulatinamente de ser vista como uma
luta de desordeiros para se impor como uma prática artística e desportiva.
A palavra capoeira significa mata rasteira e faz referência às áreas do interior do Brasil onde
há esse tipo de mata. A palavra se liga naturalmente aos locais vizinhos às grandes propriedades
rurais de base escravocrata, na qual os escravos exercitavam essa luta.
A música, os cultos afro-brasileiros, o carnaval e a capoeira são alguns dos exemplos em
que podemos perceber a contribuição da cultura africana trazida pelos escravos para a formação
de uma cultura nacional brasileira. Assim, é inegável que incontáveis laços (históricos, culturais,
religiosos etc.) unem o Brasil à África e, especialmente, à África de língua oficial portuguesa, de
onde foram trazidos muitos escravos para o Brasil. Certamente, ainda há muito que se falar sobre
essas culturas tão próximas, porém, não seria possível abordar aqui todos os traços que nos unem
enquanto brasileiros aos nossos irmãos africanos.

5.3 Estudos afro-brasileiros na contemporaneidade


A história da África e dos africanos é ainda hoje pouco presente nos currículos universi-
tários e secundários. Além disso, os primeiros estudos sobre a África subsaariana enfocavam a
história dos povos e suas respectivas culturas a partir da chegada do europeu ao continente; essa
prática perdurou por longo tempo.
Somente no início dos anos 1960, na Universidade de Cambridge, foi publicada a revista The
journal of African history cujos artigos mostravam que a África podia ser investigada com técnicas
e procedimentos semelhantes aos aplicados aos povos da Antiguidade mediterrânica e da Idade
Média europeia. Essa obra, juntamente com a de Basil Davidson, Old Africa rediscovered (1959),
proporcionaram novos rumos aos estudos sobre a África ao enfatizarem que nesse continente,
“muito antes da chegada dos europeus, não haviam faltado nem evolução nem mudanças sociais,
nem invenções nem movimento” (SILVA, 2003, p. 230).
62 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Porém, antes dessas importantes publicações, mais precisamente em 1954, J. C. de


­Graft-Johnson, um intelectual nascido na Costa do Ouro – primeiro país a se tornar indepen-
dente com o nome de República do Gana – escreveu African glory: the story of vanished negro
civilizations, obra na qual a história da África subsaariana também é investigada antes da che-
gada dos europeus.
Entre os intelectuais brasileiros, observa-se que já no século XIX alguns intérpretes do Brasil
como Raimundo Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Arthur Ramos, passando por alguns do século
XX como Gilberto Freyre e Florestan Fernandes. buscaram entender e divulgar ideias sobre a
África brasileira e os povos oriundos do continente africano.
Contemporaneamente, algumas obras atribuem a devida importância à história dos ­africanos e
de seu continente, buscando um viés mais próximo do olhar africano, assim como objetivam mostrar
as ligações entre o Brasil e a África. Falamos das obras de autores como João José Reis, Alberto da Costa
e Silva, Kwame A. Appiah, Luiz Felipe de Alencastro, Pierre Verger, Jaime Rodrigues e Milton Santos.
Além desses estudiosos, várias entidades, organizações não governamentais e centros de
cultura foram criados nos últimos anos objetivando resgatar a cultura negra, a história da África e
dos africanos no Brasil e sua importante contribuição na formação da cultura brasileira. São exem-
plos a Fundação Palmares, o Instituto Casa da Cultura Afro-Brasileira, agremiações festivas como
o Olodum etc.
No Brasil, muitos estudiosos – cujas pesquisas nas mais diversas áreas têm contribuído
com relevância para os estudos afro-brasileiros – não poderiam deixar de ser aqui mencionados.
Atualmente, contamos com uma ampla referência de pesquisadores nas mais diversas áreas, como
Djamila Ribeiro (filósofa), Ricardo Alexino Ferreira (doutor em Ciências da Comunicação pela
USP), Sílvio Luiz de Almeida (jurista e filósofo, presidente do Instituto Luiz Gama), além de escri-
tores como Conceição Evaristo.

Considerações finais
Em nosso país, os estudos sobre as contribuições africanas na formação da cultura nacional
ainda carecem de mais aprofundamento e de novos pesquisadores. Felizmente, essa lacuna da his-
tória vem sendo dignamente preenchida por alguns dos estudiosos que se debruçam sobre esses
estudos e buscam revisitar a história dos africanos e afrodescendentes no Brasil sob prismas mais
humanos e realistas. No Brasil, como nos países africanos de língua portuguesa, há um caminho a
ser trilhado por pesquisadores, estudiosos e estudantes, que no futuro, com certeza, enriquecerá a
nossa história e estreitará mais ainda os laços da cultura brasileira com as diversas culturas africa-
nas, mormente as dos países falantes do português.

Ampliando seus conhecimentos


• ALVES, Castro. O navio negreiro. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/
download/texto/bv000068.pdf. Acesso em: 14 mar. 2019.
África lusófona e Brasil: laços e letras 63

O poema “Navio negreiro” do poeta baiano Castro Alves, representante do Romantismo


brasileiro, foi escrito quando o poeta tinha apenas 22 anos de idade, em 1869, quando já
não havia mais o tráfico negreiro no Brasil. No entanto, a condição do negro escravizado,
arrancado da sua terra natal sensibilizou o poeta. As imagens fortes de seu poema nos
dão conta do horror e da crueldade a que os africanos acorrentados eram submetidos nas
viagens que duravam cerca de três meses. Alguns desses navios podiam suportar um car-
regamento de cerca de 500 escravos, muitos dos quais morriam antes de chegar em terra
firme especialmente em razão da fome e da sede, das doenças que se disseminavam nos
porões com péssimas condições de higiene e maus-tratos.

Navio negreiro
[...]
IV
Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
64 Cultura e Literatura Africana e Indígena

No entanto o capitão manda a manobra,


E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
[...]

• ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no


Brasil. Salvador: Editora Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília, DF: Fundação
Cultural Palmares, 2006.
Esta obra, editada pela Fundação Cultural Palmares, traz uma ampla pesquisa sobre a his-
tória do negro no Brasil desde a chegada dos primeiros africanos escravizados, passando
pelas lutas e resistências negras até as organizações que hoje resgatam a africanidade na
cultura brasileira. O livro traz imagens e fotos que ilustram o texto bastante didático e
cuidadoso de seus autores.

• FRANTZ, Fanon. Os condenados da terra. Prefácio de Jean-Paul Sartre. Trad. de José


Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
Esta obra, já clássica nos estudos sobre a luta anticolonial e sobre os negros, de autoria
do martinicano Fanon Frantz, resultou de seu testemunho como médico ­psiquiatra do
exército francês na Argélia. Publicada em 1961, a obra valoriza as lutas revolucionárias
por uma sociedade melhor.

• FROBENIUS, Leo; FOX, Douglas C. A gênese africana: contos, mitos e lendas da África.
Prefácio de Alberto da Costa e Silva. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Landy, 2005.
A obra traz um estudo introdutório muito importante de Alberto da Costa e Silva e aborda
alguns dos mitos e lendas da África negra que chegaram até nós.

• FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Disponível em: http://www.palmares.gov.br.


Acesso em: 14 mar. 2019.
África lusófona e Brasil: laços e letras 65

A Fundação Cultural Palmares, fundada em 1992, é uma entidade pública vinculada


ao Ministério da Cultura e tem como objetivo resgatar a história dos negros no Brasil.
O site contém ações governamentais em prol desse resgate, vários artigos sobre o negro,
a negritude, a consciência negra, entre outros dados históricos e culturais, além de um
dicionário de expressões afro-brasileiras.

• QUILOMBO. Direção: Cacá Diegues. Elenco: Antônio Pompeo, Zezé Motta, Vera Fischer,
Maurício do Valle, Grande Otelo, Daniel Filho, Jofre Soares. Embrafilme, 1984. 1 filme
(119 min.).
O filme de Cacá Diegues narra a história do Quilombo dos Palmares, uma república de
escravos fugidos no século XVII, mostrando o cotidiano dos quilombolas refugiados e
sua luta por manter sua república livre até sua destruição final.

• ENTRE Vistas: Sílvio Luiz de Almeida. 2018. 1 vídeo. 62 min. Publicado pelo canal Rede
TV. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HMz1KDOYzFY. Acesso em: 14
mar. 2019.
Nesta entrevista, o jurista e filósofo Silvio Luiz de Almeida trata de questões sobre raça e
cor, no Brasil e no contexto da atualidade, e da construção social e violenta que se fez de
conceitos de “superioridade racial”.

Atividades
1. Quando os portugueses aportaram na África, havia dois tipos de escravidão no continente:
uma existente entre os povos nativos e outra introduzida pelos árabes. Explique a diferença
entre cada uma dessas práticas.

2. Em que consistiam os quilombos? Qual a sua importância para a preservação dos valores
africanos?

3. Por que podemos dizer que os cultos religiosos africanos foram reinventados no Brasil? De
que maneira podemos falar de um sincretismo entre as religiões no Brasil?
6
História e historiografia indígena

Mariana Paladino

Este capítulo tem como objetivo fornecer informações básicas e instrumentos de análise
para a compreensão da presença indígena1 ao longo da história do Brasil.
A reconstrução dessa presença não é fácil, já que as sociedades que habitaram o território
que veio a se tornar o Brasil eram fundamentalmente orais e não deixaram fontes escritas. Têm
sido os relatos dos colonizadores e dos missionários dos séculos XVI, XVII e XVIII, dos viajantes
e naturalistas do século XIX e dos etnólogos dos séculos XX e XXI que nos proporcionam fontes
para a compreensão da história indígena. Contudo, esses escritos – principalmente dos primeiros
séculos da colonização – devem ser lidos com cuidado e considerando os contextos em que foram
produzidos e as imagens vigentes neles sobre os índios. Assim, por exemplo, algumas crônicas
ofere­cem imagens fantasiosas dos povos indígenas, ora representando-os como inocentes e puros,
ora como bárbaros e antropófagos. As evidências arqueológicas são um bom complemento para
contrastar aquelas fontes. Outra abordagem riquíssima é a da própria perspectiva dos povos indí-
genas contemporâneos que nos apresentam, por meio de sua memória, transmitida pela tradição
oral – permeada de mitos e diversas formas de narrativas –, sua interpretação da história.
Assim, nos centraremos na história indígena pós-contato, iniciada com a chegada dos portugue-
ses no ano 1500. Cabe aclarar que se trata de um panorama geral, que deveria ser complementado por
histórias locais que deem conta da complexidade e diversidade dos acontecimentos e das especificidades
históricas e culturais dos povos em contato.
Vamos começar estudando como foram considerados e tratados os indígenas no sistema
colonial e missionário, depois vamos analisar o período do Diretório dos Índios e o retorno da ação
missionária (1755-1910). Para terminar, vamos estudar o regime tutelar estabelecido com a criação
da República e conhecer as representações e imagens sobre os índios vigentes nos séculos XVIII até
XX, que explicam em grande parte as políticas e legislações existentes.
Vale ressaltar que essa classificação por períodos é a forma como costuma ser reconhecida
pela historiografia. Se considerássemos a perspectiva dos povos em questão, deveríamos compreen-
der outras temporalidades. Assim, no final, vamos discutir brevemente de que modo os povos indí-
genas percebem e explicam o contato com os “brancos”, chamando a atenção para o fato de que
– contra a ideia de que se trataria de sociedades estáticas – eles foram e são sujeitos ativos da história.

1 Usaremos indistintamente os termos índios ou indígenas, seguindo a literatura e o modo como as políticas e legis-
lações têm se referido a eles. Entretanto, no próximo capítulo explicaremos as diferenças entre esses termos.
68 Cultura e Literatura Africana e Indígena

6.1 O sistema colonial e missionário


A presença humana nas terras baixas da América do Sul remonta a 12 mil anos. As evidên-
cias arqueológicas mais recentes dão conta de que não apenas existiram neste território formas de
organização social simples, mas também se desenvolveram sociedades belicosas, expansionistas e
com uma organização social complexa (FAUSTO, 2000).
O etnólogo Curt Nimuendaju (1981) estimou, em seu Mapa etno-histórico, a existência de
cerca de 1.400 povos indígenas no território que correspondia ao Brasil do descobrimento. As
cifras dessa população, no entanto, não são seguras. Existem estimativas parciais, que ainda não
compõem um quadro global. As cifras variam entre 1 a 8,5 milhões de habitantes segundo dife-
rentes estudos. Por exemplo, Rosenblat (1954 apud CUNHA, 1992, p. 14) estimou 1 milhão de
habitantes para o Brasil como um todo e Denevan (1976 apud CUNHA, 1992, p. 14) avaliou em
6,8 milhões a população aborígine da Amazônia, Brasil Central e Costa Nordeste. Apesar das dife-
renças, essas quantidades mostram o equívoco da ideia, consolidada no século XIX, de ser esse um
território pouco habitado.

6.1.1 “Descobrimento”, “encontro” ou “conquista”?


Esses três termos mostram formas diferenciadas de entender o processo de contato entre
população autóctone da América e população europeia. O “descobrimento” supõe a ideia de que
os europeus desembarcaram em uma terra virgem, deserta e despovoada e que inauguraram com a
sua chegada a história do Brasil. O “encontro” supõe uma relação idílica de paz e intercâmbio equi-
librado. Já a “conquista” chama a atenção para o fato da relação colonial, de dominação e violência.
Figura 1 – Descobrimento do Brasil, de Candido Portinari, 1956

Fonte : PORTINARI, Candido. Descobrimento do Brasil. 1956. Painel, óleo sobre tela, 199 cm x 169 cm, Rio de Janeiro.
História e historiografia indígena 69

Existem diferenças entre os autores na forma de avaliar a magnitude de redução da popula-


ção, ou seja, declínio populacional dos nativos americanos. Alguns, como Rosenblat, avaliam que,
de 1492 a 1650, a América perdeu um quarto de sua população; outros, como Dobyns, acham que
a diminuição foi da ordem de 95% a 96% (apud CUNHA, 1992).
O primeiro contato das populações indígenas com portugueses remonta ao ano 1500,
quando Pedro Álvares Cabral encontrou na costa da Bahia o povo que era chamado Tupiniquim,
pertencente à grande família Tupi e que ocupava uma faixa considerável do litoral. Segundo
Cunha (1992), durante o primeiro meio século de contato, os índios foram, sobretudo, parceiros
comerciais dos europeus. Estabelecia-se a troca de mercadorias ou permuta de objetos dos euro-
peus por trabalho indígena (principalmente para a extração do pau-brasil). Quando a colônia
se instalou, as relações alteraram-se, tensionadas pelos interesses em jogo que, do lado europeu,
envolviam colonos, governo e missionários. A partir de então, os europeus precisaram de mão de
obra e tropa de exércitos para as empresas coloniais (CUNHA, 1992). A troca ficou dispendiosa
para os colonizadores portugueses e iniciou-se o uso forçado do trabalho indígena.
A taxa de mortalidade da população durante os dois primeiros séculos da colonização foi
brutal. As guerras, as expedições para captura de escravos, as epidemias e a fome dizimaram os
povos indígenas (CUNHA, 1992; FAUSTO, 2000)2.

6.1.2 Os aldeamentos e a escravização indígena


Os aldeamentos3 foram fundamentais para o projeto colonial, pois garantiram a conversão
religiosa dos índios, a ocupação e a defesa do território, além de uma constante reserva de mão de
obra para o desenvolvimento econômico da colônia.
Os comportamentos dos povos indígenas foram diversos entre si e até internamente ao pró-
prio grupo: alguns povos – segundo dão conta documentos e crônicas da época – se aldearam paci-
ficamente. Outros, sem abandonarem seus territórios ou se aldearem, uniram-se aos portugueses
ou a seus inimigos europeus em suas guerras, firmaram tratados de paz e tornaram-se nações
aliadas. O incentivo à obtenção e manutenção de alianças se revelou nos vários títulos honoríficos
e recompensas dados a esses índios aliados4.
Outros ainda resistiram a todo e qualquer tipo de relação com os colonizadores, alguns
deles foram massacrados e escravizados (PERRONE-MOISÉS, 1992). Em alguns casos, os índios
recorreram a todo seu aparato bélico para repelir os invasores: flotilhas com centenas de canoas

2 A política de concentração da população em aldeias praticada por missionários e pelos órgãos oficiais favoreceu
epidemias como varíola, sarampo, coqueluche, catapora, difteria, gripe e peste bubônica. Fausto (2000) destaca que em
1562 uma epidemia consumiu em três meses cerca de 30 mil índios na Baía de Todos os Santos. Em 1564, veio a “fome
geral”, pois nada se plantara nos anos anteriores (FAUSTO, 2000, p. 70-71).
3 Os aldeamentos são os povoados que os missionários criaram para congregar grupos que antes viviam dispersos.
Foram o centro da ação catequética, inicialmente dos jesuítas e depois das outras ordens religiosas. Neles eram reduzi-
dos os índios que haviam sobrevivido às guerras ou às epidemias. A conversão à religião cristã significou, nessa época, a
imposição forçada de outra cultura e de uma outra visão de mundo. Os jesuítas valiam-se de aspectos da cultura nativa,
especialmente da língua, para se fazerem compreender e se aproximarem dos indígenas.
4 Certos grupos indígenas aliaram-se estrategicamente aos europeus para se contrapor a outros grupos indígenas
com os quais mantinham relações de inimizade. Por exemplo, no século XVI, franceses e portugueses em guerra alia-
ram-se, respectivamente, aos Tupinambás e aos Tupiniquins, que já eram inimigos antes da chegada dos europeus.
70 Cultura e Literatura Africana e Indígena

equipadas; guerreiros portando escudos de couro de peixe-boi e propulsores de dardos; setas enve-
nenadas lançadas das barrancas do rio (FAUSTO, 2000).
É importante destacar o caráter estratégico que adquiriu o contato com as populações autóc-
tones para a ocupação portuguesa poder avançar e se expandir territorialmente pela América do
Sul. Nos primeiros séculos de colonização, várias coroas disputavam a ocupação de algumas partes
do atual Brasil. Só a partir do Tratado de Madrid, em 1750, a Espanha reconheceu a ocupação ter-
ritorial alcançada por Portugal.
Figura 2 – Soldados-índios civilizados aprisionam índios selvagens na província de Curitiba, de Jean-
Baptiste Debret, 1835

Fonte : DEBRET, Jean-Baptiste. Soldados-índios civilizados aprisionam índios selvagens na província de Curitiba.1835. Litografia em papel:
21 cm x 32,5 cm, Biblioteca Nacional, São Paulo.

A distinção “índios aliados” e “índios inimigos” redundou em uma política e tratamento dife-
renciados por parte da Coroa portuguesa. Aos primeiros lhes foi garantida a liberdade ao longo de toda
a colonização. Deles dependeram o sustento (produziam gêneros de primeira necessidade e trabalha-
vam nas plantações dos colonizadores) e a defesa da colônia (constituindo o grosso dos contingentes
de tropas de guerra contra inimigos, tanto indígenas quanto europeus). A política para esses “índios de
pazes”, “índios das aldeias” ou “índios amigos” sustentou-se nos descimentos, ou seja, nos deslocamen-
tos de povos inteiros que foram trazidos do interior para junto das povoações portuguesas.
A legislação colonial estabelecia que os descimentos deviam resultar da persuasão exercida
por tropas lideradas ou acompanhadas por um missionário, sem qualquer tipo de violência. A
“persuasão” consistia em convencer os “índios amigos” de que, nas aldeias, receberiam bons tra-
tos e trabalho assalariado. Essa política, que estabelecia a ilegalidade do descimento baseado na
coação, continuou sendo afirmada até o século XVIII. A recomendação de tratamento bondoso e
pacífico para os índios aldeados baseou-se em razões de ordem religiosa: a conversão só podia ser
conseguida com brandura e se os cristãos dessem aos índios o bom exemplo. Contudo, há vários
indícios de que os índios das aldeias acabaram ficando em situação pior do que os escravos: sobre-
carregados, explorados, mandados de um lado para outro sem que sua vontade, exigida pelas leis,
fosse considerada (PERRONE-MOISÉS, 1992).
História e historiografia indígena 71

Os jesuítas foram responsáveis não apenas pelo “governo espiritual” dos povos indígenas
(catequese), mas também pelo “governo temporal” (a administração das aldeias e do trabalho indí-
gena)5. De modo geral, nas aldeias viveram apenas os índios e os missionários. Só mais tarde,
durante a política pombalina6, que vamos analisar mais adiante, incentivou-se a presença de não
indígenas nos aldeamentos, com o objetivo de procurar a assimilação dos índios.
Por outro lado, a escravidão foi o destino dos “índios inimigos” ou “índios bravos”. Existiu
uma legislação que falava das “justas razões de direito” para a escravização dos indígenas. Essas
razões eram a “guerra justa” e o “resgate”. As causas legítimas para estabelecer uma guerra contra
os índios eram as ações empreendidas por eles que impedissem o comércio e a expansão do pro-
jeto territorial colonial, e a quebra dos pactos celebrados. Outros dois motivos que aparecem nas
discussões dos jesuítas sobre a guerra justa são a salvação das almas e a antropofagia (PERRONE-
MOISÉS, 1992, p. 123-124).
A escravização que resultava da captura dos índios inimigos após o término da guerra justa
era vista como lícita (Leis de 20 de março de 1570 e de 11 de novembro de 1595). Também podiam
ser escravizados os índios resgatados dessas guerras. Ou seja, os indígenas aprisionados em g­ uerras
intertribais (que supostamente seriam sacrificados em rituais antropofágicos), quando libertados
pelos portugueses, também podiam ser submetidos a trabalho forçado.
É importante destacar que embora muitas das guerras contra os índios estivessem moti-
vadas por interesses econômicos e para as quais eram encontradas justificativas a posteriori, elas
­suscitaram discussões e controvérsias entre missionários, reis e autoridades militares. Discutia-se
acaloradamente sobre os fundamentos teológicos e jurídicos da justiça dessa prática contra os indí-
genas e a questão preocupava bastante a Coroa, permanecendo um ponto controverso (CUNHA,
1986). A Lei real de 30 de julho de 1609 declarou a liberdade de todos os índios do Brasil, para coi-
bir as escravizações ilícitas. No entanto, a Lei de 10 de setembro de 1611 restaurou a escravidão dos
índios capturados em guerra justa, mas determinou que esta deveria ser julgada pelo rei. Assim,
houve ao longo de todo o período colonial avanços e retrocessos na legislação que prescrevia o
cativeiro indígena. Sua extinção formal – sem ser cumprida na prática – foi decretada pela Lei de
6 de junho de 1755.
De meados do século XVII a meados do século XVIII, os jesuítas construíram um enorme
território missionário. Pela sua ligação direta com Roma e pela independência financeira que adqui-
riram, lograram ter uma política independente, mas entraram em choque com o governo civil e
com os colonos. A causa dos conflitos era principalmente pelo controle do trabalho indígena nos
aldeamentos. Os missionários reuniram povos com culturas e línguas diversas, promovendo sua
catequização, o que envolveu o estabelecimento de novas formas de trabalho, organização social e

5 A Lei de 1611 manteve a jurisdição espiritual de jesuítas, mas estabeleceu a criação de um capitão de aldeia para
que se encarregasse da administração. Porém, a Lei de 9 de abril de 1655 para o estado do Maranhão e também a Lei de
12 de setembro de 1663 proibiram a nomeação de capitães nas aldeias, reestabelecendo a administração em mãos dos
missionários e dos chefes indígenas.
6 O Marquês de Pombal comandou durante 27 anos a política e a economia portuguesa. Ele reorganizou o Estado,
protegeu os grandes empresários, criando as companhias monopolistas de comércio. Combateu tanto os nobres quanto
o clero. Em conformidade com uma política de consolidação do domínio português no Brasil, Pombal aplicou o Tratado de
Madrid, que ampliava as fronteiras, tanto no norte quanto no sul, entrando em confronto direto com as missões jesuíticas.
72 Cultura e Literatura Africana e Indígena

familiar, padrões de moradia, práticas de sociabilidade e rituais. Impôs-se o uso da língua geral ou
nheengatu como língua franca7 e veículo de homogeneização e se criou um sistema de “autoridades
nativas”, como mediadores entre os índios e os missionários.
Como vimos, a legislação e a política da Coroa portuguesa em relação aos povos ­indígenas do
Brasil colonial diferenciaram os índios aldeados e aliados dos índios bárbaros e inimigos (PERRONE-
MOISÉS, 1992). A questão da liberdade dos índios ocupou um lugar central em um debate que envol-
veu as principais forças políticas da colônia: os jesuítas e os colonizadores (­chamados na época de
moradores). Foram de tal dimensão as dúvidas relativas à escravidão indígena que Varnhagen (1981,
p. 336) atribui o início do incremento da importação de escravos africanos à dificuldade que encon-
travam os moradores em legitimar a posse dos índios. Como P ­ errone-Moisés (1992, p. 116) destaca,

os jesuítas defendiam princípios religiosos e morais e mantinham os índios


aldeados e sob controle, garantindo a paz na colônia. Os colonos garantiam
o rendimento econômico da colônia, absolutamente vital para Portugal [...]
Dividida e pressionada de ambos os lados, a Coroa teria produzido uma legisla-
ção indigenista contraditória, oscilante e hipócrita.

Assim, como já mencionado, durante todo o período colonial se desenvolveu uma política que
classificou os povos indígenas em dois grupos polarizados, os aliados e os inimigos, aos quais se desti-
nou uma legislação e tratamento diferentes. O emprego da força e a prática da escravidão se basearam
nessa classificação que, afinal de contas, se sustentou nos interesses da administração portuguesa, dos
poderes locais e dos moradores (colonos). Vimos também que a legislação colonial, inspirada em pers-
pectivas mais humanitárias, foi descumprida por administradores e particulares.

6.2 O Diretório dos Índios e o retorno da ação missionária


Em 1755, o Marques de Pombal inicia a reformulação da política colonial portuguesa, pro-
movendo a retirada das missões jesuíticas e subordinando as demais ordens religiosas ao poder
secular8. A partir desse processo, as sedes das missões foram transformadas em povoados ou vilas,
os índios considerados “emancipados” dos religiosos e subordinados apenas a autoridades laicas.
Com uma diretiva assimilacionista9, a política do Marques de Pombal estimulou os casamentos
interétnicos10, o estabelecimento de colonos entre os índios – quebrando o isolamento que os

7 Língua franca é uma expressão latina para língua de contato, ou seja, uma língua que resulta da comunicação
entre grupos ou membros de grupos linguisticamente distintos. Os jesuítas impuseram o uso do nheengatu como
língua franca por meio do vocabulário e pronúncia tupinambás, que foram enquadrados em uma gramática modelada
na portuguesa. Em seu auge, chegou a ser a língua dominante no território brasileiro, falada não apenas por índios e
jesuítas, mas também por colonos portugueses e seus descendentes. Entretanto, entrou em declínio a partir do século
XVIII, com o aumento da imigração portuguesa e a proibição de utilizá-la imposta pelo Marques de Pombal.
8 O poder secular se refere ao poder de governo independente de religiões, crenças ou cultos. Utiliza-se como sinô-
nimo de poder temporal, que remete à ideia de duração finita, limitada, em contraposição ao poder eterno ou infinito da
Igreja. Na Idade Média, os bispos detinham poder religioso e também secular, enquanto reis, príncipes e nobres detinham
apenas o poder secular. O surgimento da Idade Moderna se associa à separação desses dois poderes.
9 O assimilacionismo é uma ideologia e uma política voltada a absorver os grupos ou minorias de modo a impor
uma hegemonia político-cultural, fazendo com que percam suas características distintivas. Para um Estado – como
o brasileiro – que começava a ser construído, o assimilacionismo foi percebido como condição para criar valores e
sentimentos nacionais, solidez política, paz social e desenvolvimento econômico.
10 O conceito remete ao contato entre etnias diferentes. Os casamentos interétnicos podem se referir à união entre
pessoas de povos indígenas diferentes ou entre um índio e um branco.
História e historiografia indígena 73

jesuítas tinham estabelecido nas missões – e também impôs o uso da língua portuguesa. Com isso,
a Coroa pretendeu promover a emergência de um povo brasileiro “livre”, substrato de um Estado
consistente: índios e brancos formariam este povo enquanto os negros continuariam escravos.
O Marquês de Pombal concedeu aos índios uma autonomia total durante apenas 2 anos
– de 7 de junho de 1755 a 3 de maio de 1757. Em 1757, Mendonça Furtado, irmão de Pombal,
criou o Diretório dos Índios, argumentando que os principais (chefes nativos) teriam sido mal
instruídos pelos padres, mostrando-se inaptos para o governo de suas povoações. Em consequên-
cia, ­justificou sua substituição por diretores “enquanto os índios não tiverem capacidade para se
governarem” (CUNHA, 1992, p. 147).
Nesse período, começou a vigorar uma retórica mais secular de civilização que se agregou à
de catequização. Civilizar era, naquela época, submeter às leis e obrigar ao trabalho. Mas os índios
rejeitavam as formas de trabalho impostas pelos colonos e fugiam com frequência das aldeias, refu-
giando-se nas matas. Portanto, para impedir essas fugas, o governo favoreceu o estabelecimento de
colonos, sobretudo de milicianos e fazendeiros concedendo sesmarias11 nos ­territórios indígenas.
O aldeamento de índios obedeceu a várias conveniências: retirá-los de regiões disputadas
para a agricultura e para a criação de gado; deslocá-los para onde se precisava de mão de obra,
não apenas para os interesses regionais ou nacionais, mas também aos interesses locais de mora-
dores. Para obrigar os índios ao trabalho, as análises da época afirmavam que se deviam ampliar
suas necessidades e restringir simultaneamente suas possibilidades de satisfazê-las, diminuir seu
território e confiná-los de tal maneira que não pudessem mais subsistir com suas atividades tradi-
cionais. Foi promovida a dependência dos indígenas de mercadorias, como instrumentos de ferro,
roupas e outros artigos, para estimulá-los ao trabalho e ao comércio. Assim, durante esse período,
o trabalho indígena continuou sendo disputado, como vinha acontecendo nos séculos anteriores,
pelos particulares e pelo Estado.
Em 1798, a partir das irregularidades e dos abusos dos diretores, revogou-se o Diretório
dos Índios pela Carta Régia de 25 de julho e com isso os índios aldeados foram emancipados. Ao
mesmo tempo, aos índios que seguiam sendo independentes, não aldeados, foi imposta a tutela por
parte de particulares que conseguissem contratá-los para servi-los, com obrigação de educá-los.
Ao juiz de órfãos coube a tarefa, a partir de 1789, de zelar para que os contratos fossem h
­ onrados,
os índios pagos, batizados e educados.
A partir de 1808, D. João VI desencadeou uma guerra ofensiva contra os Botocudos12 (de
1808 a 1824), e contra os Kaingang para liberar para a colonização o vale do Rio Doce, em Minas
Gerais, e os campos de Guarapuava, no Paraná. A declaração de guerra justa legalizou, uma vez
mais, a escravização dos índios. Como afirma Cunha (1992, p. 146):

11 Sesmaria foi um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção. Esse
sistema surgiu em Portugal durante o século XIV, com a Lei das Sesmarias de 1375. A partir de 1530, com a conquista
do território em América do Sul, Portugal decidiu utilizar o sistema sesmarial com algumas adaptações. Consistiu na
doação de terras a pessoas de confiança da realeza portuguesa, com a obrigação de torná-las produtivas.
12 Esse nome foi utilizado no século XIX para denominar os povos que usavam ornamento chamado de botoque, o que
caracterizava diversos povos no Brasil. Essa nomeação não era assumida por eles e sim atribuída por grupos adversá-
rios e pelos europeus.
74 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Numa retórica característica do início do século XIX, vem expressa em termos


pedagógicos: a escravidão temporária dos índios, dobrando-os à agricultura e
aos ofícios mecânicos, deveria fazer-lhes perder sua “atrocidade” e, sujeitando-
-os ao trabalho como os sujeitava às leis, elevá-los a uma condição propriamente
social, isto é, humana.

Com a independência do Brasil, em 1822, debateu-se a necessidade de uma política


­indigenista. No período que antecedeu a primeira Constituição brasileira, apresentaram-se cinco
projetos de deputados, sendo aprovado o de José Bonifácio: “Apontamentos para a civilização dos
índios bravos do Império do Brasil”, em 18 de junho de 1823. No entanto, não foi incorporado ao
projeto constitucional. A Assembleia Constituinte se limitou a declarar de competência das pro-
víncias a promoção de missões e catequese dos índios. Dissolvida a Constituinte por D. Pedro I,
nossa primeira Constituição nem sequer menciona a existência dos índios (CUNHA, 1992, p. 138).
A partir de então, estabeleceu-se um vazio legal para a questão indígena até 1845, quando
se decreta o “Regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios” (Decreto n.
426, de 24 de julho de 1845), e se impõe novamente o aldeamento e o governo das missões, mas
entendida como uma transição para a assimilação completa dos índios.
Desde meados do século XIX, a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão
de mão de obra para se tornar uma questão de terras (CUNHA, 1992, p. 16). O Império tratou de
alargar os espaços transitáveis e apropriáveis. Apesar de reconhecer o direito legítimo dos índios
à posse das terras, utilizou toda sorte de subterfúgios para ocupá-las. Dizia-se, por exemplo, que
os índios eram errantes, que não se apegavam ao território, que não tinham a noção de proprie-
dade. A Lei de Terras de 1850 estabeleceu uma política agressiva em relação às terras das aldeias.
Extinguiram-se aldeias sob o pretexto de que os índios se achavam “confundidos com a massa da
população” e reverteram-se suas terras ao Império e depois às províncias, que as repassaram aos
municípios, que por sua vez as venderam a particulares. Assim, fechou-se um processo de expro-
priação e redução da terra indígena iniciada no século XVI.
A mão de obra indígena tornou-se para o governo e os poderes locais uma alternativa transi-
tória diante da possibilidade de contar com outras populações trabalhadoras, como a dos escravos
africanos ou a dos colonos mestiços. Foi o caso do que aconteceu, por exemplo, com a extração
da borracha na Amazônia ocidental, que passou a ser explorada por trabalhadores ­nordestinos
(CUNHA, 1992). Contudo, os índios continuaram sendo utilizados para alguns trabalhos, nos
quais eram considerados aptos, como nos trabalhos marítimos. Ainda foram arregimentados pelo
exército para participar de combates intertribais e em guerras, como a do Paraguai.
Os missionários foram reintroduzidos no Brasil na década de 1840, mas ficaram estritamente
a serviço do Estado, com a função de se desenvolverem como assistentes religiosos e educacionais
dos administradores. Porém, pela carência de diretores de índios minimamente preparados, foi
frequente a situação de missionários exercerem cumulativamente os cargos de diretores de índios13.

13 Em 1843 o Império promoveu a chegada de capuchinhos italianos, que iriam preencher boa parte dos postos de
direção das aldeias. Eles foram distribuídos segundo os projetos do governo, sem contar com a autonomia que tiveram
os missionários jesuítas no século XVII.
História e historiografia indígena 75

6.3 O regime tutelar


No início do século XX, houve um movimento de opinião, sobretudo levado a cabo no Rio
de Janeiro e em São Paulo, a respeito do futuro dos índios e da colonização do país. Os positivistas
ortodoxos participaram ativamente do debate. Cândido Rondon, um militar imbuído do ideário
positivista, que tinha sido designado como chefe da comissão que construiu a linha telegráfica de
Cuiabá a Rondônia, propôs que fosse criada uma agência indigenista que teria por finalidades14:
• estabelecer a convivência pacífica com os índios;
• agir para garantir sua sobrevivência física;
• fazer com que adotassem gradualmente hábitos “civilizados”;
• fixá-los à terra;
• contribuir para o povoamento do interior do Brasil;
• poder acessar ou produzir bens econômicos nas terras dos índios;
• usar a força de trabalho indígena para aumentar a produtividade agrícola;
• fortalecer o sentimento indígena de pertencer a uma nação (SOUZA LIMA, 1987 apud
PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
Em 20 de julho de 1910, criou-se – a partir do Decreto n. 8.072 – a primeira agência leiga
do Estado brasileiro responsável pelas políticas indigenistas: o Serviço de Proteção aos Índios e
Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que funcionou, no início, dentro do Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio. Esse serviço ficou com a responsabilidade de prestar assis-
tência tanto aos índios nômades quanto aos aldeados, passando os indígenas, então, a serem tute-
lados pelo Estado. O projeto desse órgão procurou afastar a Igreja católica da catequese indígena
e sustentou-se na finalidade de transformar o índio em um trabalhador nacional (PACHECO DE
OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
Rondon foi convidado a dirigir o SPILTN devido à competência que tinha demonstrado no
trato com povos indígenas nos trabalhos das Comissões de Linhas Telegráficas e de suas ideias posi-
tivistas convergentes com os projetos de colonização e povoamentos do Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio. Dirigiu o órgão indigenista até 193015.
Com o objetivo de integrar populações e territórios indígenas, o SPILTN (a partir de 1918, pas-
sou a se chamar apenas SPI) adotou uma organização administrativa diferenciada conforme o grau
de contato que considerava que os índios tinham com a sociedade nacional. Eles eram classificados
como: isolados, em contato intermitente, em contato permanente e integrados. Assim, por exemplo,
se estabeleceram “postos indígenas de atração” para os povos que não tinham quase contato com a

14 Na época, a República, que estava em processo de constituição, deparou-se com uma série de dificuldades quanto à
inclusão de populações que se viam autossuficientes e que provocavam, assim, uma descontinuidade política, econômica
e, principalmente, simbólica em relação à ideia de nação. As alterações na relação Igreja-Estado e o predomínio do positi-
vismo como ideologia que era forte na época, sobretudo nos militares, influenciou em que a questão indígena se afastara
da ideia de catequese e se laicizara a administração dessa população. As ideias positivistas exaltavam o papel da ciência
e do progresso como forma racional de governo. Para os positivistas ortodoxos, devia-se começar pelos povos indígenas
(suposta matéria-prima da pátria) um trabalho “pedagógico” de (re)formação do Brasil (SOUZA LIMA, 1995).
15 Para se aprofundar na história da relação entre o Estado Nacional e os povos indígenas no período republicano e na
atuação do Serviço de Proteção aos Índios, ver Souza Lima (1995 e 2010).
76 Cultura e Literatura Africana e Indígena

população não indígena ou que mantinham com ela relações de conflito. Haviam também “postos de
criação”, onde se introduziam atividades educacionais voltadas para incentivar a produção econômica
dos índios que já tinham certo contato com a sociedade não indígena. Planejava-se, de acordo com
o grau de sedentarismo que manifestasse cada grupo indígena, a demarcação de terras maiores ou
menores para o desenvolvimento da produção agrícola16. O objetivo era tornar os índios pequenos
produtores agrícolas, o que na época se chamava de trabalhadores nacionais. A educação foi vista
como uma ferramenta fundamental de mudança de hábitos e, por isso, foram criadas escolas dentro
dos postos. Nelas se ensinava português e se praticavam rituais cívicos. Também se privilegiou o
ensino prático por meio de oficinas para o aprendizado de ofícios manuais.
A tutela que exerceu o SPI se caracterizou pela sua ambiguidade: propunha-se respeitar as
terras e a cultura indígena, mas ao mesmo tempo agia transferindo índios e liberando territórios
indígenas para colonização e impunha uma pedagogia que alterava o sistema produtivo ­indígena.
Assim, as ações que essa agência exerceu devem ser entendidas na sua complexidade, nem
­apenas como uma ação humanitária, nem como simples dominação (PACHECO DE OLIVEIRA;
FREIRE, 2006).
O SPI foi extinto em 1967 por acusações de genocídio de índios, corrupção e ineficácia
administrativa. Isso coincidiu com a reformulação do aparato estatal após o golpe de 196417. O SPI
foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a partir da Lei n. 5.371, de 5 de dezembro
de 1967. Criada para continuar com o exercício da tutela do Estado sobre os índios, a Funai teve
seus princípios baseados no mesmo paradoxo do SPI: o “respeito à pessoa do índio e às institui-
ções e comunidades tribais” e a promoção de “educação de base apropriada do índio visando sua
progressiva integração na sociedade nacional” (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 131).
Em 1973, foi sancionada a Lei n. 6.001, o Estatuto do Índio, que passou a regular a situação
jurídica dos índios e das comunidades indígenas, tanto no que diz respeito às terras, quanto à
educação, à cultura e à saúde. O art. 65 (das Disposições Gerais) estabelecia o prazo de cinco anos
para a demarcação de todas as terras indígenas, prazo não cumprido até hoje. O Estatuto manteve
a ideologia civilizatória, integracionista e protecionista do SPI.
Na década de 1970, no contexto de uma política desenvolvimentista, criaram-se investimen-
tos em infraestrutura e prospecção mineral na Amazônia, e os índios foram vistos uma vez mais
como empecilhos ao progresso. Forçou-se o contato dos índios isolados para liberar suas terras para
diversas empresas, como estradas e barragens, e continuaram as realocações dos índios segundo
os interesses em jogo. As fronteiras se militarizaram e os índios passaram a ser considerados riscos
à segurança nacional, por ocuparem territórios próximos a essas regiões e por ­considerá-los alvos
suscetíveis de invasão ou influência por parte de nações vizinhas.

16 Uma ação importante do SPI foi a criação do Parque Indígena do Xingu (1961), que se pensou como um espaço
para que vários povos indígenas não sofressem pressão das frentes de expansão econômica. Contudo, nem todas as
pacificações e a atração de povos indígenas para os postos desse Parque se levaram a cabo com garantia de terras
adequadas, o que causou em alguns casos intensa depopulação provocada por fome e doenças.
17 Em 1967, o Relatório Figueiredo, encomendado pelo Ministério do Interior, de mais de sete mil páginas (redescober-
to em novembro de 2012), desvela situações de tortura, maus-tratos, uso forçado do trabalho indígena, Introdução de-
liberada de doenças e apropriação indevida das riquezas dos territórios indígenas por parte de funcionários de diversos
níveis do SPI.
História e historiografia indígena 77

Nesse período, em oposição à política governamental, criaram-se diversas organizações não


governamentais de apoio aos índios e, no início da década de 1980, pela primeira vez, se orga-
niza um movimento indígena de âmbito nacional: a União das Nações Indígenas. O Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), com uma proposta de evangelização libertadora, teve um papel fundamental nisso.
A mobilização das organizações de apoio aos índios e o próprio movimento de rei-
vindicação que eles gestaram redundou na conquista de um reconhecimento dos direitos
indígenas na Constituição de 1988, que abandona por fim a perspectiva assimilacionista das
Constituições anteriores.
A Constituição garante o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições indígenas e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Isso
significa que eles têm direito a manter sua identidade, cultura e formas próprias de vida e bem-
-estar. O art. 231 detalha o que são essas terras, a que se destinam e como será o usufruto de suas
riquezas. Também rompe com a herança tutelar originada no Código Civil de 1916, mudando o
status dos índios e permitindo que individualmente ou por meio de suas organizações ingressem
em juízo para defender direitos e interesses.
Segundo destacam Pacheco de Oliveira e Freire (2006), a proximidade da ­reunião interna-
cional sobre meio ambiente, a Eco-92, que foi realizada no Rio de Janeiro, impulsionou a política
de identificação e demarcação de terras no início dos anos 1990. Como consequência da reunião,
iniciou-se o financiamento internacional de programas para a proteção da floresta tropical e para a
demarcação das terras indígenas que foram realizadas a partir dos anos 1990.
Com o reconhecimento do direito territorial, o direito à saúde e à educação bilíngue, intercul-
tural e diferenciada, garantidos pela Constituição de 1988, abre-se um novo panorama para os povos
indígenas do Brasil. Contudo, são muitos os desafios e empecilhos para a efetivação desses direitos,
sobretudo devido aos interesses econômicos das grandes empresas e do agronegócio envolvendo os
territórios indígenas.

6.4 As imagens sobre os índios nos séculos XVIII, XIX e XX


Nos séculos XVIII e XIX, predominaram tanto imagens dos índios – difundidas pelo Estado
colonial como gente sem religião, sem justiça e sem estado – quanto imagens veiculadas pelos pen-
sadores iluministas – como Rousseau – como bons selvagens (CUNHA, 1992).
No século XIX, com a influência do Romantismo como movimento artístico, político e filo-
sófico que se caracterizou como uma visão de mundo contrária ao racionalismo, exaltou-se o índio
como símbolo cultural do Brasil. Construiu-se o estereótipo do bom selvagem, que já circulara
entre filósofos e pensadores iluministas no século anterior. A expressão literária que consagrou a
imagem do índio como emblema de liberdade e independência e como símbolo de nacionalidade
se chamou, no Brasil, indianismo. A obra mais significativa em prosa foi a do romancista José de
Alencar, com os romances O guarani, Iracema e Ubirajara, enquanto Antônio Gonçalves Dias se
destacou na poesia. A produção literária do Romantismo atingiu o auge entre as décadas de 1840 e
78 Cultura e Literatura Africana e Indígena

1870 e exaltou a bravura e a resistência indígena, mas deixou de lado a violência dos colonizadores
(SILVA, 2013). Vários autores entendem a idealização das imagens indígenas dessa literatura em
relação à necessidade de construção de uma identidade nacional por parte das elites que procla-
maram a independência.
Aspectos positivos e negativos dos povos indígenas estiveram em confronto ao longo do
século XIX, coexistindo visões tutelares e românticas com visões assimilacionistas e racistas que
argumentavam sobre a degeneração dos indígenas e a necessidade de mestiçagem (PACHECO DE
OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
Figura 3 – O último tamoio, de Rodolfo Amoedo, 1883

Fonte : AMOEDO, Rodolfo. O último tamoio. 1883. Óleo sobre tela. 180,3 cm x 261,3 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

No último terço do século XIX, em pleno auge do evolucionismo, prosperou a ideia de que
certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução e, portanto, seriam como testemunhas
vivas do passado das sociedades ocidentais. Os índios foram colocados nessa condição18.
O fato de que fossem sociedades orais e que permanecessem aparentemente mantendo uma
forma de vida primitiva fez com que os estudiosos, principalmente os etnólogos das primeiras
décadas do século XX, afirmassem que se tratava de povos “sem história”. Pressupunham a ideia de
que estudar o presente dessas sociedades era equivalente a estudar seu passado, já que não haveria
diferenças ou mudanças significativas na sua forma de vida e tradições.
Com base nessa perspectiva, quando existiam transformações nos modos de vida indígenas,
eram interpretadas como sinal de aculturação, ou seja, perda cultural. Assim, imagens que foram
construídas nos primeiros séculos da colonização perduram até hoje em estereótipos ou ideias
de senso comum, tais como: “o índio ficou parado no tempo”, “índio é quem anda nu e mora na
floresta”, o “índio é primitivo e preguiçoso”, o “índio está desaparecendo ou perdendo sua cultura”.

18 No campo da literatura, a partir da década de 1870, ocorreu uma virada antirromântica, que exaltou a mestiçagem
e a figura do mestiço. A mestiçagem foi defendida também pelo Modernismo (no início do século XX), tornando-se uma
referência no livro Macunaíma, de Mário de Andrade (SILVA, 2013).
História e historiografia indígena 79

Essas representações negam a possibilidade de considerar os indígenas como sujeitos históricos e,


infelizmente, não apenas circulam entre certo tipo de população, mas também permeiam os estu-
dos acadêmicos. Como Monteiro (2001, p. 4) nos chama a atenção, “pelo menos até a década de
1980 a história dos índios no Brasil resumia-se basicamente à crônica de sua extinção”.
Nos últimos anos está sendo desenvolvida uma linha de pesquisas de antropologia histórica
que privilegia a abordagem dos indígenas como agentes ativos e sujeitos políticos, capazes de serem
protagonistas do seu próprio destino.

6.5 Visões indígenas do contato


Se a história e os estudos antropológicos costumam diferenciar e colocar colonizadores de
um lado e nativos do outro, para os povos indígenas existem diversas interpretações dessa alteri-
dade e das formas de se relacionar com os brancos. Como chama a atenção Cunha (1992, p. 18),
a percepção de uma política e de uma consciência histórica em que os índios são sujeitos e não
apenas vítimas só é nova eventualmente para nós, para os índios ela parece ser costumeira. “É
­significativo que dois eventos fundamentais – a gênese do homem branco e a iniciativa do contato
– sejam frequentemente apreendidos nas sociedades indígenas como o produto de sua própria
ação ou vontade” (CUNHA,1992, p. 18).
A gênese do homem branco nas mitologias introduz além da alteridade, o tema da desi-
gualdade no poder e na tecnologia. O homem branco surge nos mitos de alguns povos indígenas
no mesmo ato de criação dos índios, mas depois seguem caminhos distintos. Frequentemente
também, a desigualdade tecnológica, o monopólio de ferramentas de ferro e armas de fogo por
parte dos brancos é explicada nos mitos como uma escolha que foi dada aos índios. Eles pode-
riam ter escolhido ou se apropriado desses recursos, mas fizeram uma escolha por outros objetos,
próprios de sua atual cultura. Por exemplo, os Krahô e os Canela, povos falantes de língua Jê,
família timbira, habitantes de Tocantins e Maranhão, contam em seus mitos que quando lhes foi
dada a opção pelo seu herói cultural, criador de todas as coisas, entre pegar a espingarda e o prato
(os quais tinha colocado um bem perto do outro) e o arco e a cuia (que estavam mais afastados)
preferiram estes últimos.
Vemos nesse mito e em outros que as sociedades indígenas constroem uma história do
mundo em que seus atos e escolhas tiveram importantes efeitos nas suas formas de vida atual. Os
movimentos messiânicos em alguns povos indígenas podem ser entendidos como uma forma de
reatualizar os mitos e reverter escolhas ou fatos anteriormente vivenciados por eles19.
Nesse sentido, é importante ressaltar a existência de estudos históricos realizados pelos
­próprios indígenas como pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação de variados
cursos, que vêm construindo uma narrativa original, utilizando como fontes primárias relatos orais
de membros de suas comunidades, preenchendo assim a lacuna existente sobre os acontecimentos
desses últimos séculos sob a perspectiva indígena.

19 Ver a coletânea organizada por Albert e Ramos (2002), para um aprofundamento sobre as formas como alguns
povos indígenas vivenciam a história e entendem os processos de contato interétnico atravessados.
80 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Considerações finais
Vimos nesse capítulo algumas informações e instrumentos de análise para a compreensão
da presença indígena ao longo da história do Brasil, presença que foi invisibilizada, esquecida e
desvalorizada. Como foi comentado, os narradores dessa história foram colonizadores, militares,
missionários, viajantes, antropólogos, entre outros. Souza Lima (2016, p. 29) chama a atenção para
o fato de que muitas das representações vigentes ainda hoje sobre os indígenas se alimentam de um
arquivo colonial, ou seja, um “artefato cultural destinado a conservar, guardar, classificar, ordenar,
preservar, retirando do movimento da história para estruturar uma narrativa que atende muito
mais a quem controla o arquivo” do que aos sujeitos reais por esse arquivo representados.
Nos livros de História escolares, ainda é comum ver a presença indígena se circunscrever ao
período colonial, desaparecer por séculos e depois voltar a ser mencionada ao abordar os movi-
mentos sociais que alavancaram o reestabelecimento da democracia na década de 1980. Contudo,
novas perspectivas historiográficas e antropológicas mostram uma participação relevante dos povos
indígenas ao longo da história do país e o fato de liderarem importantes movimentos de resistência
a projetos coloniais, missionários e das elites locais e regionais. Não foi possível abordar aqui esses
movimentos de resistência por questões de espaço, mas esperamos surja um interesse de pesquisa
entre os leitores deste livro.
Assim, importa ressaltar a necessidade de romper com as imagens estereotipadas, etno-
cêntricas e de matriz colonialista que perduram no nosso imaginário sobre os povos indígenas.
Nesse sentido, a Lei n. 11.645, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura
indígena, se tornou uma medida importante para sensibilizar sobre a necessidade de estudar e
entender a participação passada, presente e futura dos povos indígenas e valorizar sua riqueza e
diversidade sociocultural.

Ampliando seus conhecimentos


• LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil (1576). São Paulo: Martins, 1961.
O fragmento a seguir, escrito por Jean de Léry, viajante francês, trata de modo sensível
a perspectiva dos Tupinambás a respeito dos franceses e portugueses. O relato do autor
evidencia o espanto e o estranhamento desses indígenas no tocante às ambições mercanti-
listas e de acumulação de riquezas dos europeus. Além disso, mostra como os Tupinambás
se orientavam por outros valores e relações com a natureza.

[...]

Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros


se darem ao trabalho de ir buscar o seu arabutan. Uma vez um velho pergun-
tou-me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portuguêses)
buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa
terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a
queimávamos, como êle o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal
qual o faziam êles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
História e historiografia indígena 81

Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? – Sim, res-


pondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos,
facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só
dêles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados.
– Ah! Retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de
bem compreender o que eu lhe dissera: Mas êsse homem tão rico de que me
falas não morre? – Sim, disse eu, morre como os outros.
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto
até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica
o que deixam? – Para seus filhos se os têm, respondi; na falta dêstes para os
irmãos ou parentes mais próximos. – Na verdade, continuou o velho, que, como
vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes lou-
cos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando
aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou
para aquêles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para
alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos
certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá,
por isso descansamos sem maiores cuidados.
Êste discurso, aqui resumido, mostra como êsses pobres selvagens americanos,
que reputamos bárbaros, desprezam àqueles que com perigo de vida atravessam
os mares em busca de pau-brasil e de riquezas. Por mais obtusos que sejam, atri-
buem esses selvagens maior importância à natureza e à fertilidade da terra do
que nós ao poder e à providência divina; insurgem-se contra êsses piratas que se
dizem cristãos e abundam na Europa tanto quanto escasseiam entre os nativos.
[...]

• CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
Uma importante compilação de artigos produzidos por antropólogos e historiadores foca-
liza diversos períodos da história indígena, desde a situação dos povos indígenas antes da
chegada dos portugueses, as políticas e legislações do período colonial e do Império até
chegar à política tutelar da República. Os artigos que compõem o livro têm uma rica
documentação de fontes e imagens e são produto de longas trajetórias de pesquisa dos
autores nessas temáticas.

• OLIVEIRA, João Pacheco de; FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presença indígena
na formação do Brasil. Brasília, DF: MEC; Museu Nacional, 2006. Disponível em: https://
unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000154566. Acesso em: 17 mar. 2019.
Esta obra, escrita por dois antropólogos especialistas em história indígena e políticas indi-
genistas, e publicado pelo MEC em parceria com o Laboratório de Pesquisas em Etnicidade,
Cultura e Desenvolvimento do Museu Nacional, tem a intenção de promover o conheci-
mento da sociodiversidade dos povos indígenas e valorizar sua presença ao longo da his-
tória do Brasil. Com uma linguagem acessível e usando um vasto material iconográfico e
textual, é apresentada aos leitores novas chaves de análise que permitem desfazer o conjunto
de lugares-comuns que continuam a ser inculcado pelo sistema educativo.
82 Cultura e Literatura Africana e Indígena

• HANS Staden. Direção: Luiz Alberto Pereira. Rio de Janeiro: Riofilme, 1999. 1 filme (92 min.).
O filme conta a história de Hans Staden, o marinheiro e soldado alemão que no iní-
cio do século XVI foi capturado por uma tribo Tupinambá e revelou que a união entre
Tupinambá e franceses fazia parte de uma estratégia político-militar e comercial. Para
não ser morto e devorado, Staden precisa inventar estratégias e mentiras. Depois de nove
meses entre os Tupinambás, ele consegue ser libertado e voltar para a Europa, onde escre-
veu suas memórias.

• XINGU. Direção: Cao Hamburger. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2012. 1 filme (102 min.).
O filme trata da trajetória dos irmãos Villas-Bôas a partir do momento em que se alistam
para a Expedição Roncador-Xingu, parte da Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas, em
1943. Ao recontar a saga dos irmãos, Xingu apresenta a luta pela criação do parque e pela
salvação de alguns povos indígenas, traçando um diálogo com problemas crônicos do
processo de formação brasileiro.

• OS ÍNDIOS na história do Brasil. Disponível em: https://plutao.ifch.unicamp. br/ihb/


index.htm. Acesso em: 17 mar. 2019.
Trata-se de uma página que foi mantida pelo professor John Monteiro durante anos
como uma fonte de referências para pesquisadores interessados em história indígena.
Disponibiliza pesquisas e estudos, teses, artigos e livros sobre história indígena. O site
foi atualizado pela última vez em julho de 2012, mas as informações ali presentes con-
tinuam interessantes.

• OS BRASIS e suas memórias. Disponível em: https://osbrasisesuasmemorias.com.br/.


Acesso em: 17 mar. 2019.
Trata-se de um projeto levado a cabo por pesquisadores do Museu Nacional (MN) da UFRJ
que registra biografias de indígenas do país. Coordenado pelo professor João Pacheco de
Oliveira, o trabalho conta com a participação de pesquisadores indígenas e não indígenas.
O site entrou no ar em 2018 com 70 biografias de homens e mulheres de diversas etnias.

Atividades
1. Quais fontes disponíveis existem para o estudo da história indígena? Que características
elas têm e qual é a importância de considerar as narrativas históricas produzidas pelos
próprios indígenas?

2. Como se constituíram os aldeamentos? Que importância estratégica eles tiveram para


os colonos?
História e historiografia indígena 83

3. Qual era a política para os “índios aliados” e qual era a política para os “índios inimigos”
durante a colônia?

4. Quais foram os objetivos e os princípios que orientaram a primeira agência indigenista laica
estatal: o Serviço de Proteção aos Índios? E quais as contradições e os paradoxos na atuação
dessa agência?
7
Situação contemporânea dos povos indígenas

Mariana Paladino

Neste capítulo, vamos abordar a situação contemporânea dos povos indígenas no Brasil.
O objetivo é apresentar a heterogeneidade das formas e condições de vida desses povos, a riqueza de
suas práticas culturais e de suas vinculações com o território e o meio ambiente, compreendendo o
valor que elas têm e sua contribuição à diversidade sociocultural de nosso país.
É importante destacar que vamos desenvolver um panorama geral das condições atuais de
vida dos povos indígenas brasileiros. Mas deve-se ter claro que cada grupo ou etnia apresenta dife-
renças significativas em relação a outros grupos indígenas. O índio genérico que os livros didáticos
de antigamente apresentavam não existe. Portanto, compor um quadro geral se apresenta como um
desafio diante da diversidade de culturas, línguas, formas de organização social, sistemas econômi-
cos, cosmologias e rituais que os grupos indígenas expressam.
Também cabe chamar a atenção para o fato de que os povos indígenas contemporâneos
são muito diferentes daqueles que os portugueses conheceram na sua chegada. Não apenas no
tamanho populacional (os estudos históricos e demográficos estimam que a população autóctone
era de entre 1 a 8 milhões de pessoas em 1500), mas nas formas de organização social e visões
de mundo houve importantes mudanças, muitas delas decorrentes da violência física e simbólica
impostas pelos colonizadores. Os povos indígenas, como qualquer grupo humano, são sociedades
dinâmicas, que se transformam, intercambiam e incorporam objetos e práticas de outras socieda-
des. Porém, mantêm e atualizam importantes vínculos ancestrais com suas tradições e território.

7.1 Quem são e quantos são os povos indígenas hoje no Brasil


A denominação indígena significa, segundo os dicionários de língua portuguesa, nativo,
pessoa natural do lugar ou do país em que habita. Segundo a definição das Nações Unidas, de 1986,
(apud LUCIANO, 2006, p. 27)

as comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com


uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização
que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de
outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a
transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica,
com base de sua existência continuada como povos, em conformidade com seus
próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos.

Em relação ao termo índio, como sabemos, trata-se de uma denominação equivocada,


­decorrente da ideia de os colonizadores terem chegado à Índia e generaliza e mascara uma grande
diversidade cultural e social. Apesar de o emprego dos termos índio e indígena ter adquirido, ao longo
da história do Brasil, um sentido pejorativo, associado a um modo de vida primitivo, o movimento
86 Cultura e Literatura Africana e Indígena

indígena, surgido a partir da década de 1970, decidiu que era importante manter, aceitar e promover
aquela denominação genérica como uma forma de fortalecer a identidade conjunta e valorizar o fato
de ser originário destas terras, assim como de se unir para lutar por direitos comuns.
No entanto, cada povo ou grupo indígena tem sua própria denominação. Em geral há duas
denominações: a autodenominação, ou seja, como o grupo se chama ou refere a si mesmo, que
geralmente remete à ideia de ser “gente” ou humano, e um nome que lhe foi dado por outros povos,
vizinhos, com base em certas características físicas ou imagens que tinham deles. Por exemplo,
os Tikuna, povo que habita a região do Alto Solimões, se autodenominam Magüta, mas povos do
tronco Tupi que conviviam com eles os chamaram de Tikuna (cujo significado é nariz preto) e
assim foi registrado e divulgado por missionários, nos séculos XVII e XVIII. Os Xavante se auto-
denominam A´uwe (“gente”). O nome xavante lhes foi atribuído por não índios e até hoje assim
se identificam quando lidam com eles. O povo Guarani, que habita uma ampla região do Brasil,
Argentina, Paraguai e Bolívia se autodenomina Avá, que significa, em guarani, pessoa. Como vemos
nos exemplos acima, certos povos são mais conhecidos com a denominação dada por outros (não
indígenas e/ou outros povos) do que com o nome próprio.
Os povos indígenas contemporâneos – ao contrário da imagem de senso comum que os
representa como pequenas e frágeis microssociedades que vivem isoladas no interior da Floresta
Amazônica, sofrendo um processo de aculturação – estão vivendo um processo de fortalecimento
cultural e adquirindo um crescente protagonismo no campo político, educativo e artístico. A partir
da década de 1970, com o apoio de organizações da sociedade civil e de algumas entidades religio-
sas católicas e protestantes, organizaram-se e mobilizaram-se em prol de ­demandas fundamentais
para garantir sua sobrevivência. O Estado reconheceu várias dessas demandas na Constituição de
1988 e, hoje, muitos grupos indígenas têm seus territórios ­demarcados1, ­escolas de ensino bilíngue
e intercultural, postos de saúde com profissionais indígenas e levam a cabo projetos de desenvolvi-
mento sustentável e de proteção do território.
Nas aldeias, os indígenas convivem crescentemente com tecnologia da informação e da
comunicação (rádio, telefone, televisão, internet), mas simultaneamente opera-se uma valorização
e resgate de rituais, de registro e conservação da memória oral e dos conhecimentos que ela veicula
(contos, mitos, conhecimentos medicinais, conhecimentos artísticos, entre outros).
O crescimento populacional indígena tem sido significativo nas duas últimas décadas, supe-
rando o do restante da população brasileira. Ele deve ser entendido principalmente por dois fatores.
Por um lado, como decorrência do crescimento demográfico: aumento da natalidade, diminuição
da mortalidade e de taxas de doença. Por outro, como resultado dos processos de fortalecimento
e reconhecimento da identidade étnica, o que significa que muitos grupos começaram a se visibi-
lizar e se identificar como tais (LUCIANO, 2006). É importante entender que, em muitas regiões

1 Os artigos 17 e 25 da Lei n. 6.001 e o artigo 231 da Constituição estabelecem o reconhecimento do direito dos
indígenas às terras por eles habitadas e faculta ao órgão indigenista (Funai) o poder e a agilidade necessários para
regularizar a situação das terras indígenas, o que supõe estabelecer a “real extensão da posse indígena, assegurando
a proteção dos limites demarcados e impedindo a ocupação por terceiros”. Ver o site do Instituto Socioambiental para
mais explicações sobre o processo de demarcação de terras indígenas. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/
pt/Demarca%C3%A7%C3%B5es. Acesso em: 17 mar. 2019.
Situação contemporânea dos povos indígenas 87

do país, os índios se viram obrigados – para sobreviver e para evitar a exploração e a carga de
preconceitos vinculados à sua condição – a ocultar e negar sua identidade, deixando de utilizar
sua língua e de praticar seus costumes. Alguns grupos passaram a se mimetizar com a população
camponesa ou cabocla e foram considerados assimilados ou aculturados. No contexto atual de
reconhecimento dos direitos indígenas, muitos conseguiram reassumir sua identidade. Esse fenô-
meno se denomina etnogênese ou reetnização e vem ocorrendo nos últimos anos principalmente
na Região Nordeste do país.
O antropólogo Darcy Ribeiro, com base em relatórios da antiga agência indigenista – o
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) –, calculou em 1957 a existência de 143 etnias, com uma popu-
lação estimada entre 68.100 e 99.700 indivíduos. Hoje, estimam-se, segundo dados da Fundação
Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 896.917 indígenas,
representando 305 diferentes etnias e compondo 0,4% da população brasileira.
As 305 etnias estão distribuídas ao longo de todos os estados e regiões do país, inclusive
no Distrito Federal, sendo que na Região Norte concentra-se o maior contingente populacional
indígena, aproximadamente 37,4% do total, e na Região Sudeste está o menor contingente popu-
lacional indígena.
Cabe esclarecer que esses dados podem variar segundo o órgão responsável pela contagem,
pois são utilizados métodos diferentes. A Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)
levantam dados dos habitantes localizados em aldeias de terras indígenas reconhecidas oficial-
mente. O IBGE levanta dados naquelas regiões, mas também nas cidades e em terras indígenas
ainda não reconhecidas e utiliza o método de autoindentificação2. O Sistema de Informação de
Atenção à Saúde Indígena (Siasi) é uma importante fonte de informação sobre a população que
vive em terras indígenas e é atendida pelo sistema.
A dificuldade de chegar a uma contagem exata da população indígena deve-se também ao
fato de ela estar espalhada em uma grande extensão do território, às vezes de difícil acesso, e ainda
ao fato de existirem “grupos isolados” sobre os quais se tem pouca informação, assim como índios
urbanos, sobre os quais também existem escassos dados. Estima-se que existam atualmente 69
referências de povos ou grupos ainda não contatados3.
Por outro lado, devido a processos complexos de territorialização que as populações indíge-
nas atravessaram, de deslocamento forçado ou expulsão de seus territórios e de busca de melhores
condições de vida, alguns segmentos terminaram se instalando em meio urbano ou no meio rural,
próximo aos espaços de trabalho. Há alguns povos que têm migrado para as grandes metrópoles
(como Manaus e São Paulo) e outros para cidades de menores. O IBGE estima que a parcela da

2 O Censo Demográfico 2010 contabilizou a população indígena com base nas pessoas que se declararam indígenas
no quesito cor ou raça e para os residentes em terras indígenas introduziu uma pergunta específica: “você se considera
indígena?” Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/pt/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/os-indigenas-no-
-censo-demografico-2010. Acesso em: 17 mar. 2019.
3 O fato de serem denominados isolados não deve nos levar a pensar que nunca tiveram contato com a sociedade
não indígena ou com outros grupos indígenas. Alguns estudiosos consideram que provavelmente já tiveram algum con-
tato no passado, mas, fugindo da violência ou de pressões decorrentes dessa relação, se refugiaram em lugares mais
distantes e inóspitos. As gerações seguintes foram as que não tiveram contato (LUCIANO, 2006).
88 Cultura e Literatura Africana e Indígena

população indígena que residia em área urbana passou de 23,9% em 1991 para 52,2% em 2000 e
diminuiu para 36,2% em 2010 (IBGE, 2010). Ou seja, nem todos os povos continuam ligados ao seu
território ancestral, embora ele esteja geralmente presente em narrativas, lembranças e na continui-
dade de relações que estabelecem com grupos de parentesco que ainda moram naqueles territórios.
Resumindo, vamos considerar aqui como a fonte mais completa até o momento atual – pelo
fato de ter contemplado as diferentes territorialidades indígenas – os dados do IBGE (2010), que
dão conta de 896 mil pessoas que se declararam ou consideraram indígenas, das quais 572 mil
(63,8%) viviam na área rural e 517 mil (57,5%) moravam em terras indígenas oficialmente reconhe-
cidas e 324.834 habitavam as zonas urbanas brasileiras (36,2%). As regiões Norte (37,4%) e Nordeste
(25,5%) são as que apresentaram maior número de indígenas, seguidas das regiões Centro-Oeste
(16%), Sudeste (12%) e Sul (9,2%).
Atualmente, as terras que até hoje o Estado reconheceu como de posse indígena representam
aproximadamente 12,6% do território brasileiro. A Constituição de 1988 garante o direito origi-
nário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas por eles. Importa ressaltar que isso
não ­significa que tenham a propriedade dessas terras, que são bens e patrimônio da União, mas
lhes são garantidos a posse e o usufruto delas.
Segundo dados do Instituto Socioambiental (2019), existem no Brasil 721 terras indígenas
com algum grau de reconhecimento oficial, totalizando uma extensão de 117.426, 348 hectares.
A Amazônia Legal4 é a região brasileira que concentra a maior parte das terras indígenas: 424 terras
indígenas, representando 98,25% da extensão de todas as TIs do país.
Apesar do avanço que houve na garantia por parte do Estado de terras aos povos indígenas,
existem várias áreas a serem demarcadas e muitos grupos estão sem terra, ou com terra insuficiente
para garantir a sua sobrevivência, de acordo com seus valores e tradições. No cenário atual, existem
projetos de lei que buscam limitar os direitos constitucionais e também vários empreendimentos
sendo realizados, principalmente de mineração e hidroelétricas, sem a devida consulta aos povos
afetados, como previsto pela Convenção 169 da OIT assinada pelo Brasil. É igualmente grave a
situação de muitas terras que sofrem invasão por parte de regionais não indígenas – madeireiros,
garimpeiros, caçadores, pescadores – sendo os recursos naturais violentados.
É importante considerar que as regiões da Floresta Amazônica mais preservadas estão nas
terras indígenas. Portanto, elas ajudam a garantir a biodiversidade existente no Brasil, manter as
nascentes das águas limpas, mitigar as mudanças climáticas, entre outros. Trata-se de uma contri-
buição para toda a humanidade.

4 A Amazônia Legal é uma área que engloba nove estados e 342 municípios brasileiros pertencentes à Bacia Amazô-
nica e, consequentemente, possuem em seu território trechos da Floresta Amazônica. Com base em análises estruturais
e conjunturais, o governo brasileiro, reunindo regiões de idênticos problemas econômicos, políticos e sociais e com o
intuito de planejar o desenvolvimento social e econômico da região amazônica, instituiu o conceito de Amazônia Legal.
A atual área de abrangência da Amazônia Legal corresponde à totalidade dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato
Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do estado do Maranhão, perfazendo uma superfície de aproxima-
damente 5.217.423 km², correspondente a aproximadamente 61% do território brasileiro. Mais de 30% da biodiversidade
do planeta está na Amazônia. Mais informações em: ECO. O que é a Amazônia Legal, Rio de Janeiro, nov. 2014. Disponível
em: http://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/28783-o-que-e-a-amazonia-legal/. Acesso em: 17 mar. 2019.
Situação contemporânea dos povos indígenas 89

No Quadro 1, a seguir, temos dados sistematizados sobre a situação jurídica das terras indí-
genas (TIs) no Brasil, seguindo as várias etapas do processo de reconhecimento oficial dessas.
Quadro 1 – Situação das Terras Indígenas no Brasil (fevereiro de 2019)

Situação Número de TIs Extensão (hectares)

Em identificação / com restrição de uso a não índios* 118 1.084.049

Identificada 43 (5.96%) 2.179.316

Declarada 74 (10.26%) 7.305.639

Reservada/homologada 486 106.857.344

Total geral 721 117.426.348 (100%)

* A extensão neste grupo refere-se às TIs em revisão ou àquelas com restrição de uso.
Fonte : Instituto Socioambiental, 2019.

Sobre a situação jurídica das terras indígenas, sugerimos consultar o mapa disponível no
site da Fundação Nacional do Índio (Funai)5. As cores nesse mapa expressam as etapas de reco-
nhecimento dos territórios, sendo que a finalização do processo de reconhecimento e demarcação
acontece no caso das terras que se encontram homologadas e registradas.
Cabe destacar que as terras indígenas de maior extensão estão localizadas nas regiões Norte
e Centro-Oeste do país. Os povos das regiões Nordeste, Sudeste e Sul habitam em terras indígenas
pequenas, que não garantem sua sobrevivência de acordo com os padrões de vida, economia e
cosmologia tradicionais.

7.2 Diversidade linguística e cultural


Existe uma enorme diversidade cultural entre os povos indígenas do Brasil, expressa, entre
outras formas, nas artes, na música, na tecnologia, na medicina, nos conhecimentos, nas tradições
orais e nos rituais6. Essa diversidade é produto das formas particulares como cada povo foi se rela-
cionando com o território com o meio ambiente e com os demais grupos, conforme suas crenças
e visões de mundo. Também são significativos os processos de contato com agentes e agências do
Estado e da sociedade nacional, que influenciaram nas formas como hoje os indígenas assumem e
mostram suas diferenças culturais.
As línguas expressam também essa rica diversidade, porque elas representam modos dis-
tintos de classificar e compreender o mundo e de expressar conhecimentos muito valiosos. São

5 Disponível em: http://mapas2.funai.gov.br/portal_mapas/pdf/terra_indigena.pdf. Acesso em: 29 mar. 2019


6 A diversidade cultural é reconhecida pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura) como patrimônio comum da humanidade. No caso particular da diversidade cultural indígena, ela é considerada
patrimônio da humanidade pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil ratificou e
reconheceu como lei em 2003. Importa mencionar ainda que a Unesco declarou o ano 2019 como Ano Internacional das
Línguas Indígenas. Disponível em: https://en.iyil2019.org/. Acesso em: 8 mar. 2019.
90 Cultura e Literatura Africana e Indígena

transmitidas de geração em geração por meio da tradição oral. Apesar de muitas terem sido extin-
tas, ao longo dos anos da colonização, ainda se falam em torno de 180 línguas nativas7.
Algumas delas são faladas por mais de 20 mil pessoas (é o caso das línguas guarani, tikuna,
terena, macuxi e kaingang). Outras são consideradas em risco de extinção pelo número reduzido
de falantes. Certos povos já perderam suas línguas e falam as de outros povos ou falam o português
como língua materna. Alguns deles estão levando a cabo um processo de resgate de suas l­ ínguas, com
o apoio de organizações não governamentais e de especialistas vinculados à academia. São realiza-
das, para isso, pesquisas e estudos com os falantes mais idosos ou se recorre a estudos linguísticos e
antropológicos do passado.
Outras línguas indígenas permanecem vitais e ativas e são amplamente utilizadas não apenas
no âmbito doméstico, mas crescentemente no espaço escolar, público e até nas cidades. Em alguns
municípios, como em São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, têm sido reconhecidas,
junto com o português como oficiais (as línguas baniwa, nheengatu e tukano).
Os linguistas classificam as línguas indígenas em troncos, famílias, línguas e dialetos: há dois
grandes troncos (Tupi e Macro-Jê) e 19 famílias linguísticas que não apresentam graus de semelhança
suficientes para poderem ser agrupadas nesses troncos. Há, também, mais de dez “línguas isoladas”,
chamadas assim por não se revelarem parecidas com nenhuma outra língua conhecida (INSTITUTO
SOCIOAMBIENTAL, 2018). Sugere-se consultar o site8 do Instituto Socioambiental para conhecer
qual a classificação vigente e reconhecida pelos linguistas brasileiros nos dias de hoje.

7.3 Formas de organização social e parentesco


Cada povo tem uma forma própria de organizar suas relações sociais, políticas e de paren-
tesco. As relações de parentesco são a base da estrutura social dos povos indígenas. Em geral,
constituem-se com base na família extensa, que é uma unidade social articulada em torno de um
patriarca ou de uma matriarca por meio de relações de parentesco consanguíneas e de afinidade
política ou econômica com outros grupos aliados. Uma família indígena extensa geralmente reúne
a família do patriarca, as famílias dos filhos, genros, noras, cunhados e outras famílias afins, que se
filiam à grande família por interesses específicos (LUCIANO, 2006).
Também são significativas as relações de aliança econômica e política que cada povo ou
grupo familiar estabelece com outros. As alianças se estabelecem por meio de interesses comuns
que, em geral, vinculam-se ao compartilhamento de espaços territoriais, à troca comercial e ao
casamento. Os grupos de parentesco e de aliados costumam se reunir tanto para a produção de
certos bens e empreendimentos quanto para a distribuição desses bens para rituais e festas.

7 “O Censo do IBGE de 2010 revelou [...] que um total de 37,4% dos indígenas de 5 anos ou mais falavam no domicílio
uma língua indígena. Observou-se também um percentual de 17,5% que não falava o português. O percentual de indí-
genas que falava a língua indígena no domicílio aumenta para 57,3% quando consideramos somente aqueles que vivem
dentro das terras indígenas; da mesma forma aumenta para 28,8% o percentual daqueles que não falavam o português.
Essa característica confirma a importância do território no tocante às possibilidades de permanência das características
socioculturais dos povos indígenas. Informações colhidas no site do IBGE. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/
estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/lingua-falada. Acesso em: 17 mar. 2019.
8 Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal. Acesso em: 17 mar. 2019.
Situação contemporânea dos povos indígenas 91

Alguns povos indígenas vivem em grandes malocas comunitárias, em casas separadas e dis-
persas ao longo dos rios e das florestas. Outros têm se organizado em grandes aldeias, com casas
contíguas e nas que vêm se operando um processo de urbanização. Também há os que vivem na
cidade, mas isso não significa que tenham perdido vínculos com as suas comunidades de origem.
Existem papéis de liderança que são chamados tradicionais porque seguem as condições e
regras herdadas dos seus pais ou ancestrais e aceitas pelo grupo. Sua função é aconselhar, organizar
e articular os membros de sua aldeia ou grupo e também representá-los diante de outros povos.
Em alguns casos, essa figura de liderança política coincide com a figura de liderança religiosa (ser
cacique e xamã ao mesmo tempo). Em outros casos, trata-se de funções separadas. Também há as
novas lideranças, que são novos papéis surgidos por meio do contato com o Estado, principalmente
com o órgão indigenista: capitães, professores indígenas, agentes indígenas de saúde, dirigentes de
organizações indígenas, entre outros. Eles funcionam como intermediários e interlocutores com a
sociedade não indígena e adquiriram seus cargos por formas e critérios de escolha diferentes dos
das lideranças tradicionais, como o de ter educação escolar e falar bem o português. As lideranças
tradicionais e as “novas lideranças” coexistem no espaço das aldeias e tentam coordenar suas ações
e representações de maneira conjunta (LUCIANO, 2006).
Em geral, os caciques – diferentemente do uso do poder nas chamadas sociedades ocidentais
– carecem de um poder autoritário e de uma estrutura repressiva. O chefe indígena adquire seu
poder por prestígio, capacidade de aconselhamento e posse de determinadas virtudes valorizadas
pelo grupo. Mas seu poder vai se circunscrever a determinadas esferas ou circunstâncias. Não tem
poder soberano sobre o grupo e as decisões que ele tome deverão ser resultado de um consenso
coletivo. É comum hoje as deliberações serem realizadas em assembleias comunitárias.
De acordo com a posição que se tenha no grupo (em relação à idade, gênero, geração), serão
outorgadas as tarefas, as funções e as responsabilidades aos indivíduos.
Existem papéis especializados como os pajés ou xamãs, responsáveis pela segurança espiri-
tual e pela cura dos membros de seu grupo. Certos povos indígenas tinham papéis ­especializados
de guerreiros, de caçadores e pescadores, de contadores de histórias e cantores, entre outros. Alguns
deles continuam a existir e outros têm se ressignificado.

7.4 Economias indígenas


Os índios que residem dentro das terras indígenas vivem dos recursos oferecidos pela
­natureza, da pesca, da caça, da agricultura e da coleta de frutos silvestres. Nelas encontra-se uma
diversidade de ecossistemas – matas de várzea, matas de igapó, savanas de terra firme, florestas
de terra firme, serrado, Mata Atlântica etc. Cada um desses ecossistemas enseja aos índios uma
forma particular de manejo, de modo a otimizar a obtenção dos recursos que são necessários ao
seu bem-estar.
O território é a base da vida dos povos indígenas, não apenas por ser o meio onde se encon-
tram os recursos naturais que lhes garantirão sua subsistência econômica, mas também por ele
estar vinculado a seres, espíritos, valores e conhecimentos de fundamental relevância para sua
reprodução cultural. O território representa o vínculo com a ancestralidade, com os antepassados,
92 Cultura e Literatura Africana e Indígena

com os mitos de origem e tem uma significação que transcende o sentido capitalista de entender e
de se apropriar desse espaço.
Os povos indígenas brasileiros classificam e entendem a relação entre os humanos e os seres vivos
e não vivos de uma forma diferenciada dos não indígenas. Apesar de existir diferenças muito significati-
vas na visão de mundo entre as etnias, existe uma perspectiva comum de considerar que todos os seres
vivos e não vivos, reais ou imateriais possuem suas dimensões espirituais. Nos mitos, fala-se que exis-
tem espíritos protetores ou guardiões. Assim, por exemplo, quando um animal é caçado sem respeito a
regras ou tabus vinculados à sua captura, o espírito protetor desse animal reagirá vingando tal violação,
provocando doença ou morte da pessoa que o caçou. Em geral, a origem das doenças se explica como
resultado de relações de desequilíbrio com a natureza (LUCIANO, 2006, p. 190).
Figura 2 – Cestaria guarani

Filipe Frazao/Shutterstock

As condições territoriais serão determinantes para as economias e formas de vida praticadas.


Assim, por exemplo, os que vivem em terras mais extensas e abundantes em recursos naturais têm a
possibilidade de continuar praticando valores importantes para a organização social de muitos povos
indígenas, como a reciprocidade e a generosidade na distribuição de alimentos, principalmente em
ocasiões de celebração. Já os que vivem em terras reduzidas e com escassos recursos naturais estão
expostos a conflitos maiores e a não poder praticar rituais ou festas que requerem abundância de
alimentos. Contudo, isso não significa necessariamente que abandonem essas práticas. Há muita
diversidade nas respostas e estratégias que os povos vêm construindo para lidar com a problemática
de escassos recursos e terras.
A economia dos índios urbanos é diferente da dos índios aldeados. Não dependem das
condições do território para sobreviver e sim do mercado de trabalho e da assistência social.
Contudo, em muitos casos não existe uma fronteira rígida entre essas formas de economia e, cres-
centemente, os que vivem em terras indígenas dependem do mercado e comerciam os produtos
de sua roça por objetos manufaturados, além de alguns terem trabalho assalariado e, ao contrário,
Situação contemporânea dos povos indígenas 93

alguns indígenas que vivem na cidade conservam roças na aldeia e se deslocam para cuidar delas
nos períodos necessários do ano.
Figura 3 – Indígena Tikuna carregando bananas para comercializar na cidade de Tabatinga, Amazonas.

Nowaczyk/Shutterstock

Nas universidades, cada vez mais se criam grupos, núcleos e laboratórios de pesquisa inte-
grados por especialistas de diversas áreas que estudam as práticas socioeconômicas dos povos
indígenas para aprender novos conhecimentos e técnicas de sustentabilidade e manejo ambiental,
defendendo a perspectiva de que diante do dito desenvolvimento, que exaure os recursos naturais,
os povos indígenas têm muito a ensinar sobre um bem viver, em harmonia com a natureza. Assim,
contra a ideia de senso comum de que conhecer as culturas indígenas é importante para conhecer
as raízes ou o passado do povo brasileiro, as pesquisas atuais mostram que elas têm muito a contri-
buir para a construção de respostas para o futuro9.

9 “Os conhecimentos e as práticas dos povos indígenas têm sido reconhecidos em foros internacionais”. “A arqueo-
logia brasileira tem posto em evidência que o enriquecimento da cobertura e dos solos da floresta – as fertilíssimas
“terras pretas” – é fruto das práticas de populações indígenas desde a era pré-colombiana até hoje. Sabe-se agora que
na Amazônia foram domesticadas dezenas de plantas, entre as quais a batata-doce, a mandioca, o cará, a abóbora, o
amendoim e o cacau. [...] Os povos indígenas e as comunidades tradicionais são também provedores da diversidade
das plantas agrícolas, a chamada agrobiodiversidade, fundamental para a segurança alimentar [...] no Alto Rio Negro
cultivam-se mais de 100 variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas;
nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimenta”. Disponível em: https://
umaincertaantropologia.org/tag/funai/. Acesso em: 17 mar. 2019.
94 Cultura e Literatura Africana e Indígena

7.5 Religiões indígenas


Os modos de vida indígenas seguem princípios e orientações cosmológicas e ancestrais
­fortemente marcados pelos mitos10. Há princípios culturais cruciais para a existência étnica que não
podem ser rompidos, uma vez que possibilitam equilíbrio e bem-estar. Romper com esses princípios
e valores poderá significar a desestruturação da ordem social indígena (LUCIANO, 2006).
Como Lopes da Silva (1995) chama a atenção, os mitos se articulam à vida social, aos rituais, à
história, à filosofia própria do grupo e expressam modos peculiares de conceber a pessoa humana, o
tempo, o espaço e o cosmos. Na vida cotidiana, as concepções cosmológicas orientam, dão sentido,
permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões. Elas se expressam pela linguagem sim-
bólica dos rituais – música, ornamentos corporais, entre outros –, permitem o contato com outras
dimensões cósmicas, com momentos outros do mundo e do processo da vida e da morte.
Os mitos são parte da tradição de um povo, no entanto a tradição é continuamente recriada
e as experiências passadas são tornadas referências vivas para o presente e para o futuro. Os mitos
mantêm com a história uma relação de intercâmbio (SAHLINS, 1989).
Para Sztutman (2008), os mitos contam como as coisas chegaram a ser o que são. Contam
como as divindades, os homens, os animais e as plantas se diferenciaram. Os rituais, por sua vez,
fazem o caminho inverso dos mitos. Eles contam e recriam o mito, promovendo uma espécie de
retorno a um tempo de indiferenciação geral em que divindades, homens, animais e plantas se
comunicavam entre si.
Sabe-se hoje (e isto é tema atual de inúmeras pesquisas) que as culturas humanas desenvol-
vem variadas lógicas históricas, maneiras de pensar, relacionar-se e viver os processos históricos.
Também existem diversas interpretações da alteridade e das formas de se relacionar com os brancos
e de entender o processo de contato com eles. Assim, alguns povos indígenas têm aderido a religiões
cristãs de base ocidental, sobretudo católicas e evangélicas. Os motivos são complexos e merecem
pesquisas aprofundadas. Alguns casos mostram a influência de certos agentes que os contataram
com fins de catequese, sendo valorizados por suas características e/ou atuação. Também está em
jogo o fato de a “conversão” ter possibilitado o acesso a bens materiais e simbólicos valorizados.
A presença de missões tem suscitado muita controvérsia e oposição, tendo em conta os
processos de mudança e perda cultural que algumas tentam promover. Outros estudiosos rela-
tivizam o poder que têm as religiões de origem ocidental na transformação dos modos de vida
dos povos indígenas e assinalam que, ao contrário, opera-se uma acomodação ou apropriação de
ideias, símbolos e valores que elas veiculam segundo as lógicas indígenas11. Também é importante
considerar a existência de um segmento de indígenas que se identifica como cristão e que defende

10 Os especialistas definem os mitos como narrativas orais que contêm verdades consideradas fundamentais para um
povo e que formam um conjunto de histórias dedicado a contar peripécias de heróis que viveram no início dos tempos
(no tempo mítico ou das origens). O que se enfatiza, dessa perspectiva, é o caráter de narrativas dos mitos. O mito pode
também ser definido como um nível específico de linguagem, uma maneira especial de pensar e de expressar categorias,
conceitos, imagens. Ambas as definições sugerem uma relação particular entre o mito (ou os mitos), o modo de viver e
pensar e a história daqueles povos responsáveis por sua existência (LOPES DA SILVA, 1995).
11 Sobre esse assunto, recomenda-se a leitura de: ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita (org.). Pacificando o branco:
cosmologias do contato no norte amazônico. São Paulo: Ed. Unesp, 2002; e MONTERO, Paula (org.). Deus na aldeia:
missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. p. 583.
Situação contemporânea dos povos indígenas 95

a possibilidade de ter simultaneamente essa identidade e valorizar sua cultura. De fato, algumas
lideranças importantes do movimento indígena contemporâneo receberam durante sua infância
e juventude uma educação missionária, mas se apropriaram criticamente de algumas ferramentas
úteis que essa formação lhes proporcionou, como o domínio do português e da escrita, utilizando-
-as mais tarde em prol de suas demandas e processos de luta.

Considerações finais
Apesar do pequeno número da população brasileira identificada como indígena, resul-
tado dos processos de colonização, extermínio e violência ao longo da Colônia, do Império e da
República, a diversidade cultural e linguística é única na América e no mundo. São 305 etnias que
falam em torno de 180 línguas, as quais são portadoras de conhecimentos e práticas tradicionais e
expressam compreensões do mundo ricas e complexas.
Os últimos censos vêm mostrando o aumento da população indígena no país decorrente do
crescimento demográfico: aumento da natalidade, diminuição da mortalidade e de taxas de doença
e dos processos de etnogênese. Os censos mostram também a complexidade da territorialidade
indígena. Embora 63,8% vivam em área rural e 57,5% em terras indígenas oficialmente reconheci-
das (segundo os casos, estão em área rural ou urbana), é significativa a presença de indígenas em
cidades de pequeno, médio e grande porte: 36,2%.
Foram apresentadas algumas fontes de estudo para aprofundar o conhecimento sobre as
culturas indígenas. Contra a ideia do índio genérico, é preciso pesquisar cada etnia ou povo na sua
especificidade, sendo que existem diferenças muito significativas até no interior da própria etnia.
Como foi visto, o território representa condição de vida e bem-estar para os povos indígenas
não apenas por ser o meio onde se encontram os recursos naturais que lhes garantirão sua subsis-
tência econômica, mas também por ele estar vinculado aos ancestrais e a seres, espíritos, valores e
conhecimentos de fundamental relevância para sua reprodução cultural. Assim, para compreender
os significados do território para os povos indígenas devemos começar no mínimo rompendo com
a lógica capitalista de entender a terra como um bem a ser explorado e exaurido.
É importante destacar que os territórios indígenas, principalmente os localizados na Floresta
Amazônica, estão entre os mais preservados do Brasil e são fonte de oxigênio, provedores de diver-
sidade agrícola e biológica, fundamental para a segurança alimentar e para mitigar as mudanças
climáticas e o aquecimento global.

Ampliando seus conhecimentos


• LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: MEC; Museu Nacional, 2006. (Coleção Educação
para todos. Série vias dos saberes, n. 1).

O texto a seguir é de uma importante liderança e intelectual do movimento indígena. Um


dos primeiros indígenas antropólogos do país, Gersem dos Santos Luciano é professor
96 Cultura e Literatura Africana e Indígena

da Universidade Federal de Amazonas e já ocupou cargos importantes na gestão da edu-


cação escolar indígena no Ministério da Educação. O trecho transcrito a seguir faz parte
da obra O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de
hoje (2006), escrita com a finalidade de subsidiar o tratamento da temática indígena na
educação básica. Luciano, pertencente à etnia Baniwa, é o primeiro indígena doutor em
Antropologia Social no Brasil e ator importantíssimo do movimento indígena. A obra é
uma leitura imprescindível para conhecer a situação contemporânea dos povos indígenas
de nosso país e proporciona tanto informações valiosas para compreender as formas e
condições de vida atual desses povos (sob o olhar de um intelectual indígena) quanto
provoca uma reflexão sobre as problemáticas por eles enfrentadas e suas formas de orga-
nização e luta pela conquista de seus direitos.

Terra, território e meio ambiente indígena


(LUCIANO, 2006, p. 101-103)

[...]
Território é condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de um bem
material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvolvem todas as formas
de vida. Território, portanto, é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos,
tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva. A terra é tam-
bém um fator fundamental de resistência dos povos indígenas. É o tema que unifica, articula e
mobiliza todos, as aldeias, os povos e as organizações indígenas, em torno de uma bandeira de
luta comum que é a defesa de seus territórios. É interessante perceber como na luta pelo direito
à terra, as lideranças locais e tradicionais, mesmo sendo muitas vezes analfabetas, adquirem
prestígio tanto no nível interno da comunidade, quanto na relação com a sociedade nacional e
internacional. Foi a luta pela terra que possibilitou o surgimento do movimento pan-indígena
no Brasil na década de 1970, unindo e articulando povos distintos, muitos dos quais eram
inimigos nas antigas guerras intertribais. O território indígena é sempre a referência à ances-
tralidade e a toda a formação cósmica do universo e da humanidade.
É nele que se encontram presentes e atuantes os heróis indígenas, vivos ou mortos.
Deste modo, podemos definir terra como o espaço geográfico que compõe o território, onde
este é entendido como um espaço do cosmos, mais abrangente e completo. Para os povos
indígenas, o território compreende a própria natureza dos seres naturais e sobrenaturais, onde
o rio não é simplesmente o rio, mas inclui todos os seres, espíritos e deuses que nele habitam.
No território, uma montanha não é somente uma montanha, ela tem significado e importância
cosmológica sagrada.
Terra e território para os índios não significam apenas o espaço físico e geográfico, mas sim
toda a simbologia cosmológica que carrega como espaço primordial do mundo humano e do
mundo dos deuses que povoam a natureza. Quando os índios se propõem a reflorestar uma
área degradada, além de recuperarem espécies florestais, eles estão trazendo de volta os espíri-
tos e os deuses que foram afugentados pela destruição.
Situação contemporânea dos povos indígenas 97

E esses espíritos e deuses são fundamentais para o equilíbrio da vida na terra, evitando doen-
ças e outras desgraças, como reação da própria natureza ameaçada ou destruída.
Os povos indígenas estabelecem um vínculo estreito e profundo com a terra, de forma que
o problema inerente a ela não se resolve apenas com o aproveitamento do solo agrário, mas
também no sentido de territorialidade.
Para eles, o território é o habitat onde viveram e vivem os antepassados. O território está ligado
às suas manifestações culturais e às tradições, às relações familiares e sociais. Por conta disso,
muitos povos indígenas brasileiros, como os Yanomami, os Baniwa, os Ticuna e os Guarani,
mesmo suportando a separação limítrofe dos territórios nacionais distintos, vivem a coesão
étnica histórica e compartilham a mesma língua, os mesmos costumes, as mesmas tradições e
um projeto sociocultural e político comum, sem a negação da consciência nacional subjacente
ao Estado nacional.
Com a integração profunda e harmônica com a natureza, os índios sentem-se parte da natu-
reza e não são nela estranhos. Por isso, em seus mitos, seres humanos e outros seres vivos
convivem e se relacionam. Intuíram o que a ciência empírica descobriu: que todos formamos
uma cadeia única e sagrada de vida, por isso, a atitude de respeito em relação à natureza.
Tudo é vivo e tudo vem carregado de valor, de espírito e de mensagens sobre os segredos da
vida que os homens precisam decifrar para viver. Quando dançam e realizam seus rituais,
estão fazendo uma experiência de encontro com a natureza, com o mundo dos anciãos e dos
sábios que estão vivos no outro lado da vida. Para os índios, o invisível faz parte do visível,
assim como os não humanos fazem parte dos humanos. O mundo dos mortos, dos espíritos
e dos deuses não está em outra dimensão cósmica, está na própria natureza que constitui o
território indígena.
É muito comum os sábios indígenas, ao serem perguntados por jovens sobre os espíritos, os
deuses e outros seres sobrenaturais que existiam segundo os mitos, responderem que foram
destruídos junto com a natureza. Em outras palavras, os deuses indígenas não existem sem a
natureza real e concreta. Assim, os índios nunca buscam controlar e dominar a natureza, mas
tão somente compreendê-la, para que se sirvam dela com respeito para tirar o seu sustento e
a cura para as doenças consideradas como o resultado da transgressão das leis da natureza e
da vida. Para as comunidades indígenas, a natureza não é um recurso manipulável, mas um
habitat, uma casa, um lugar em que se está e onde se vive. Para os índios, o território é um
lugar sagrado, no sentido de que ele é o próprio gerador da vida.
A territorialidade, segundo os povos indígenas, não deve ser entendida no mesmo sentido
com que um Estado soberano impera e controla o seu território, já que a eles não interessa a
ideia de Estado próprio.
Ou como dizem os antropólogos, porque são sociedades sem Estado ou até mesmo contra o
Estado, no sentido de que internamente não admitem a forma de poder absoluta e centralizada
nas mãos de uma estrutura política que não seja a própria coletividade étnica como um todo,
em que ninguém tem a procuração para representá-la. Os chefes indígenas são chefes com
muitas responsabilidades e tarefas, mas sem nenhum poder de decisão ou de mando. O poder
de decisão e de mando cabe somente ao conjunto das pessoas que compõem o grupo.
A territorialidade indígena não tem nada a ver com soberania política, jurídica e militar sobre
um espaço territorial, como existe em um Estado soberano. Tem a ver com um espaço socio-
natural necessário para se viver individual e coletivamente.
[...]
98 Cultura e Literatura Africana e Indígena

• COLLET, Celia; PALADINO, Mariana; RUSSO, Kelly. Quebrando preconceitos: subsídios


para o ensino das culturas e histórias dos povos indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013.
O livro é dirigido a professores da educação básica, trazendo dados, informações, dicas de
estudo e materiais didáticos com a finalidade de contribuir para a implementação da Lei
n. 11.645, de 2008, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena
no sistema de ensino público e privado do país.

• ISA – Instituto Socioambiental. Disponível em: http://www.socioambiental.org. Acesso


em: 17 mar. 2019.
O Instituto Socioambiental é uma das organizações não governamentais de apoio aos povos
indígenas mais antigas e reconhecidas pela relevância de sua trajetória e atuação. O site,
além de conter boletins informativos atualizados sobre a situação dos povos indígenas e
os principais acontecimentos e notícias relativos a eles, apresenta uma seção que se chama
“Povos Indígenas no Brasil”, na qual se podem obter informações de cada grupo indígena,
com dados de sua localização, história, organização social, cosmologia, rituais, além de
apresentar fontes de informação para o aprofundamento da pesquisa sobre esses grupos.

• MUSEU do índio. Disponível em: http://www.museudoindio.gov.br/. Acesso em: 17


mar. 2019.
Criado por Darcy Ribeiro em 1953, o museu hoje é considerado “órgão científico-cultural
da Funai”. O site traz informações sobre o acervo da Biblioteca Marechal Rondon, que é
muito rico em documentos textuais e visuais produzidos pelo Serviço de Proteção aos
Índios (SPI). Também divulga eventos e notícias e oferece uma seção de pesquisa escolar
com subsídios interessantes.

• PROGRAMA Brasileiro de Documentação de Línguas Indígenas. Disponível em: http://


prodoclin.museudoindio.gov.br/. Acesso em: 17 mar. 2019.
O Programa Brasileiro de Documentação de Línguas Indígenas é um projeto de documen-
tação de 13 línguas, escolhidas por critérios como o grau de ameaça. As equipes são for-
madas por linguistas e pesquisadores indígenas. O site traz informações sobre o ­trabalho
desenvolvido e disponibiliza alguns produtos, como músicas, gramáticas e dicionários.

• CORUMBIARA. Direção: Vincent Carelli. 2009. 1 filme (117 min.).


Em 1985, o indigenista Marcelo Santos denuncia um massacre de índios na Gleba
Corumbiara, em Rondônia, e Vincent Carelli filma o que resta das evidências. O caso é
tomado como fantasia e esquecido. Marcelo e sua equipe levam anos para encontrar os
sobreviventes, considerados índios isolados. Duas décadas depois, o documentário revela
essa busca e a versão dos indígenas.
Situação contemporânea dos povos indígenas 99

• JURUNA, o espírito da floresta. Direção: Armando Lacerda. 2008. 1 filme (86 min.).
O filme pretende resgatar a história do cacique xavante e ex-deputado Mário Juruna,
personagem excepcional na história política do Brasil. Juruna foi o primeiro indígena
eleito deputado federal e ficou famoso por gravar promessas de ministros, propondo-se
a cobrá-las posteriormente. O filme mostra também a resistência e a sobrevivência das
comunidades indígenas diante do avanço da “civilização”, bem como propicia uma refle-
xão sobre a conjuntura política e social brasileira da segunda metade do século XX.

Atividades
1. Quais fontes de informação existem para uma abordagem demográfica dos povos indígenas
no Brasil? Quais são as estimativas mais significativas apresentadas para compor um quadro
da presença indígena no país? Procure desenvolver sua resposta em pelo menos 20 linhas.

2. Com base no texto principal e no texto complementar, responda: o que o território repre-
senta para os povos indígenas? De que forma garante sua sobrevivência econômica e cultural?
Procure desenvolver sua resposta em pelo menos 15 linhas.

3. Explique a importância das línguas e dos mitos indígenas.


8
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena

Mariana Paladino

Neste capítulo, vamos estudar os direitos indígenas e conhecer os avanços, as conquistas e as


ações que os povos indígenas têm levado a cabo nas últimas décadas para garantir seu bem-estar
coletivo e o fortalecimento de sua identidade cultural. Entre essas ações, vamos focar a produção
de escritores, pesquisadores e artistas indígenas.
O objetivo é nos aproximarmos dos conhecimentos e dos saberes dos povos indígenas
contemporâneos, reconhecendo o lugar e o valor que eles têm na sociedade brasileira. Contudo,
vamos tratar apenas de uma pequena vertente desses conhecimentos e saberes, diante da grande
diversidade existente. Não serão incluídos conhecimentos indígenas relativos ao meio ambiente e
à medicina, estratégicos frente aos desequilíbrios causados pelo avanço sem limites da agricultura
extensiva, do gado e dos grandes empreendimentos.
Outro objetivo é promover uma reflexão sobre as lutas que os indígenas têm empreendido
para poder acessar e exercer uma cidadania diferenciada. Veremos que eles são detentores de direitos
de cidadania garantidos a todos os brasileiros e, ao mesmo tempo, por formarem parte de “povos”,
o Estado reconhece direitos específicos e coletivos, decorrentes de suas formas diferenciadas de
organização social.

8.1 Lutas do movimento indígena


Em meados da década de 1960, o órgão responsável pelas políticas indigenistas, o Serviço
de Proteção aos Índios (SPI), enfrentou denúncias de irregularidades administrativas, corrupção,
gestão fraudulenta do patrimônio indígena e ações de exploração e violência para com alguns povos
indígenas. Com isso, o governo federal extinguiu esse órgão e criou uma nova agência indigenista,
a Fundação Nacional do Índio (Funai), com o poder de exercer o papel de tutor dos indígenas e
lhes prestar assistência. Entre outras funções, a Funai devia garantir a posse permanente das terras
habitadas pelos povos indígenas e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes.
Ainda na tentativa de conter a onda de críticas que recaíam sobre o anterior órgão tutor,
o governo federal comprometeu-se a elaborar uma nova legislação indigenista (ARAÚJO et al.,
2006). Essa legislação se concretizou em 1973, quando entrou em vigor o Estatuto do Índio (Lei
n. 6.001). A perspectiva assimilacionista que o Estado tinha naquela época em relação aos povos
indígenas ficava clara logo no artigo 1º dessa Lei: “integrar os índios à sociedade brasileira, assi-
milando-os de forma harmoniosa e progressiva”. Porém, enquanto não estivessem integrados “à
comunhão nacional”, ficavam sujeitos ao regime tutelar. Ou seja, o Estatuto determinou que os
indígenas deviam se integrar à cultura brasileira para requerer emancipação e que a agência indi-
genista ficaria a cargo da tutela até lá.
102 Cultura e Literatura Africana e Indígena

A concepção sobre o lugar dos indígenas na sociedade nacional mudou profundamente a


partir da Constituição de 1988, a qual propiciou um debate sobre a necessidade de reformulação
do Estatuto do Índio de 19731. Desde 1990, tramitam no Congresso Nacional vários projetos de
lei propondo a revisão e a regulamentação de diversos aspectos da Constituição relacionados aos
direitos indígenas.
O art. 19 do Estatuto do Índio determinou que as terras indígenas, por iniciativa e sob orien-
tação da Funai, deviam ser demarcadas, de acordo com o procedimento estabelecido em decreto
do Poder Executivo.
No mesmo período em que os povos indígenas conseguiam algumas garantias legais, o
governo brasileiro realizou diversas ações para “desenvolver” a região amazônica, o que os pre-
judicou muito. Essas ações formaram parte do Plano de Integração Nacional (PIN), que se mate-
rializou na abertura de estradas (Transamazônica e Cuiabá-Santarém), projetos de investigação
mineral, construção de hidrelétricas e concessão de fortes subsídios econômicos aos que quises-
sem explorar as riquezas ali existentes. As ações provocaram um processo de ocupação maciça,
desordenada e predatória que envolveu os povos indígenas e suas terras, causando em alguns
casos sua remoção obrigada, doenças e numerosas mortes. Um dos casos emblemáticos foi o do
povo Panará, que em 1975 foi levado à revelia para o Parque Indígena do Xingu em decorrência
da abertura da Rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163). A construção da estrada e a remoção do
território tradicional ­ocasionaram a morte de mais da metade daquele povo. Somente nos anos
1990, os Panará conseguiram retomar uma parte do seu território tradicional, após longa batalha
administrativa e judicial (ARAÚJO et al., 2006).
Assim, apesar dos dispositivos legais que o próprio governo criou, na prática ocorreu um pro-
cesso sistemático de negação dos direitos territoriais indígenas e apenas foram demarcadas t­erras
diminutas, permitindo-se a exploração das áreas remanescentes por empresas. Foi, por exemplo, o que
aconteceu com as terras do povo Waimiri-Atroari, no Amazonas. No início dos anos 1980, a minera-
dora Paranapanema adentrou nas terras desse povo e contaminou os rios (ARAÚJO et al., 2006).
Durante o período da ditadura, o governo manteve a Funai sob seu estrito controle, inclusive
designando militares para presidi-la. Contudo, o controle foi de difícil execução, visto que, apesar do
momento político que o país vivia, a Funai começava a contar com um quadro de servidores compro-
metidos com a defesa dos povos indígenas (principalmente antropólogos e indigenistas) que levaram
a cabo importantes ações, como a de promover projetos de desenvolvimento sustentável nas terras
indígenas e criando uma interlocução menos tutelar, que abria espaço para o protagonismo indígena.
O governo então estabeleceu mecanismos para controlar as decisões da Funai referentes às terras e os
quadros mais comprometidos do órgão foram demitidos.
Nesse contexto político – em que o governo implementava ações que colocavam em risco
a vida e a cultura dos povos indígenas – surgem numerosas organizações não governamentais
engajadas na proteção dos direitos indígenas. Também se envolveram nessa causa várias associa-
ções científicas, juristas e religiosas. Todos eles foram fundamentais para promover e acompanhar

1 Em 1994 foi aprovada uma proposta para substituir o Estatuto de 1973 (Lei n. 6.001), por parte de uma comissão
especial da Câmara dos Deputados, mas sua tramitação encontra-se paralisada.
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 103

a organização de diversos povos indígenas, que construíram uma coalizão nacional, coordenada
pela então União das Nações Indígenas (UNI). Essa organização foi fundada em 1979, como resul-
tado das Assembleias de Lideranças Indígenas que ocorreram ao longo da década de 1970, com
apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A UNI lançou a campanha “Povos Indígenas
na Constituinte”, que mobilizou índios de todo o país e desempenhou um papel fundamental para
a reversão de um quadro anti-indígena no Congresso Constituinte e para a concretização dos
avanços aprovados no texto constitucional. Para isso, fez alianças com organizações não governa-
mentais, parlamentares de vários partidos políticos, associações profissionais como a Associação
Brasileira de Antropologia (ABA) e a Coordenação Nacional dos Geólogos (Conage) (RICARDO,
1995). A intensa mobilização durante o processo de elaboração da Constituição fortaleceu o movi-
mento indígena e estimulou a criação de novas organizações voltadas à defesa de seus direitos2. As
principais lutas empreendidas pelas organizações indígenas naquele período estiveram dirigidas a
reivindicar direitos territoriais e acesso a uma assistência escolar e à saúde, que fossem ­pertinentes
e respeitosas em relação às suas identidades e aos seus costumes.
Segundo Luciano (2006, p. 67), existem no Brasil mais de 700 organizações indígenas.
Algumas são de caráter étnico de base local (por aldeia ou comunidade), ou representam um grupo
de aldeias ou comunidades. Também há organizações regionais que representam várias etnias, como
a Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)3, criada em 1989, e que
reúne organizações dos nove estados da Amazônia Brasileira (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão,
Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Ainda existem organizações que reúnem cate-
gorias profissionais (professores, agentes indígenas de saúde, estudantes, escritores, artesãos, entre
outros) e de gênero (como a Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro). Em 2005 foi
criada a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), como instância de aglutinação e referên-
cia nacional do movimento indígena no Brasil, que nasceu com o propósito de fortalecer a união
dos povos indígenas, a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país e
unificar as lutas dos povos indígenas e a mobilização por direitos4.
Figura 1 – Raoni Metuktire, do povo Kayapó, grande liderança do movimento indígena brasileiro.
Gero Rodrigues/Shutterstock

2 Para um relato detalhado do processo de organização indígena daquele período, ver Araújo et al. (2006) e
­Munduruku (2012).
3 Ver o site da organização. Disponível em: http://www.coiab.com.br. Acesso em: 17 mar. 2019.
4 Ver o site da organização. Disponível em: http://apib.info/. Acesso em: 17 mar. 2019.
104 Cultura e Literatura Africana e Indígena

8.2 Conquistas legais


A intensa mobilização indígena e das organizações de apoio da sociedade civil, durante o
processo constituinte, foi responsável pela conquista de direitos importantes expressos no Capítulo
VIII da Constituição de 1988, intitulado “Dos Índios”. Ela trouxe uma série de inovações no
­tratamento da questão indígena, incorporando novos parâmetros para a relação do Estado e da
sociedade brasileira com os povos indígenas, assegurando o direito deles à diferença e aos direitos
coletivos. Inovou também ao reconhecer a capacidade processual dos indígenas, de suas comuni-
dades e organizações para a defesa dos seus próprios direitos e interesses.
O art. 231 da Constituição Federal explicitou, pela primeira vez, que “são reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respei-
tar todos os seus bens”.
Como observam Araújo et al. (2006, p. 45):
A Constituição de 1988 estabeleceu uma nova forma de pensar a relação com
os povos indígenas em nosso território, reconhecendo serem eles coletividades
culturalmente distintas, os habitantes originais desta terra chamada Brasil, por
isso mesmo, detentores de direitos especiais. Ao afirmar o direito dos índios
à diferença, calcado na existência de diferenças culturais, o diploma consti-
tucional quebrou o paradigma da integração e da assimilação que até então
dominava o nosso ordenamento jurídico, determinando-lhe um novo rumo
que garanta aos povos indígenas permanecerem como tal, se assim o desejarem,
devendo o Estado assegurar-lhes as condições para que isso ocorra. A verdade
é que, ao reconhecer aos povos indígenas direitos coletivos e permanentes, a
Constituição abriu um novo horizonte para o país como um todo, criando as
bases para o estabelecimento de direito de uma sociedade pluriétnica e multi-
cultural, em que povos continuem a existir como povos que são, independente
do grau de contato ou de interação que exerçam com os demais setores da socie-
dade que os envolve.

Entre os direitos reconhecidos aos indígenas pela Constituição Federal (BRASIL, 1988),
encontramos:
• direito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições;
• direitos originários e imprescritíveis sobre as terras que tradicionalmente ocupam, consi-
deradas inalienáveis e indisponíveis;
• obrigação da União de demarcar as terras indígenas, proteger e fazer respeitar todos os
bens nelas existentes;
• direito à posse permanente sobre essas terras;
• proibição de remoção dos povos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou
epidemia que ponha em risco sua população ou no interesse da soberania do país, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido o direito de retorno tão logo cesse o risco;
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 105

• usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes5;
• uso de suas línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem (art. 210); e pro-
teção e valorização das manifestações culturais indígenas (art. 215), que passam a integrar
o patrimônio cultural brasileiro;
• direito dos índios, suas comunidades e organizações de entrar em juízo, sem mediação
da agência indigenista ou outras, em defesa de seus interesses, com o acompanhamento e
intervenção do Ministério Público.
A Constituição Federal procurou garantir especialmente o direito territorial indígena, defi-
nindo, no art. 231, parágrafo 1º, que:
São terras tradicionalmente6 ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as impres-
cindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e
as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições (BRASIL, 1988).

Contudo, as terras continuam sendo “bens da União” (art. 20, XI). Ou seja, os povos indíge-
nas não são proprietários das terras que ocupam no sentido de que não podem dispor delas para
venda ou arrendamento.
Portanto, a ideia, divulgada pela mídia e por segmentos vinculados a interesses fundiários, de
que “há muita terra para pouco índio”, apresentando-os como privilegiados em relação aos demais
setores da sociedade brasileira, é infundada e mal-intencionada. Como mostram os pesquisadores
especializados nessa questão (PACHECO DE OLIVEIRA, 1995; VERDUM, 2017), existem muitos
preconceitos e juízos errados em relação a essa afirmação, pois a maioria dos povos – com a exce-
ção de alguns poucos que vivem na Amazônia – estão em áreas pequenas que não lhes conferem as
condições para uma existência digna. Portanto, o que está em jogo são interesses por parte da elite
econômica de ocupar as terras já demarcadas e impedir ou limitar a demarcação de novas terras.
Vale ressaltar que há vários advogados indígenas atuantes na área do direito. Eles vêm tra-
balhando com temas que vão desde a proteção dos direitos territoriais até a questão do acesso
aos recursos genéticos em terras indígenas e os conhecimentos tradicionais a eles associados.
Destaque-se ainda a atuação de organizações e de alguns advogados indígenas em fóruns e em
organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos
Estados Americanos (OEA) (ARAÚJO et al., 2006).
Nas áreas de saúde e da educação escolar, foram asseguradas a partir de 1988 políticas dife-
renciadas de atendimento aos povos indígenas.
No caso da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394,
de 20 de dezembro de 1996), em seus arts. 78 e 79, estabelece que compete ao Estado oferecer

5 Ficou também explícito que, no caso de aproveitamento de recursos hídricos e de exploração mineral em terras
indígenas, é necessária a prévia audiência das comunidades indígenas afetadas e a autorização do Congresso Nacional
(art. 231, § 3º).
6 Com o uso do termo tradicionalmente, a Constituição se refere não ao fato temporal, ou seja, a que o povo indígena
possa comprovar uma ocupação antiga de um determinado território, mas ao modo tradicional de os índios utilizarem e
se relacionarem com as terras (ARAÚJO et al., 2006, p. 48).
106 Cultura e Literatura Africana e Indígena

aos indígenas uma educação escolar bilíngue, ou seja, simultaneamente em português e nas
línguas indígenas, e intercultural. São objetivos da educação:
a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identida-
des étnicas e a valorização de suas línguas e ciências” e “garantir aos índios,
suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e
científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias”.
(BRASIL, 1996)

Para efetivá-los, o texto legal afirma, ainda, que cabe à União a responsabilidade no tocante
ao apoio técnico e financeiro necessário à sua implementação.
Por sua vez, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Resolução n. 3, de 10 de novembro
de 1999, definiu que compete à União fixar as diretrizes da política de educação indígena, cabendo
aos estados a tarefa de ofertá-la. Também as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar
Indígena, de 1993, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), de 1998, e
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas, de 2015, são docu-
mentos de referência aos planos operacionais dos estados e municípios em relação ao currículo e à
gestão da educação escolar indígena, bem como à formação de professores indígenas7.
No caso da saúde indígena, merece destaque a aprovação da Lei n. 9.836, de 23 de setem-
bro de 1999, conhecida como Lei Arouca, que criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena
como componente do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse subsistema estruturou-se com base
em Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), desenhados para levarem em consideração
a realidade local e a especificidade das condições de saúde dos povos indígenas. Os DSEIs são
atualmente de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que foi criada
em 2010, atendendo à reivindicação do movimento indígena por uma secretaria específica, encar-
regada da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.
Apesar dessas conquistas, existem vazios legais importantes, como a aprovação de um novo
Estatuto do Índio e a regulamentação de vários dispositivos da Constituição relativos aos povos indí-
genas. É o caso, por exemplo, das leis sobre mineração em terras indígenas e sobre o aproveitamento
dos recursos hídricos nelas existentes. Outro tema fundamental, pendente de regulamentação, diz
respeito à definição do chamado “relevante interesse público da União”, que excepcionaria, por meio
de lei complementar, a proteção integral das terras indígenas (ARAÚJO et al., 2006, p. 61). É impor-
tante considerar também os projetos de lei que estão sendo tramitados pelo Poder Legislativo e que
colocam em risco os direitos indígenas.

8.3 O avanço no processo de escolarização dos povos indígenas


A educação escolar destinada aos povos indígenas – antes do processo de organização do
movimento indígena e dos avanços legislativos da Constituição de 1988 – era dirigida principalmente

7 A criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), em 2004 (alterada para Se-
cretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – Secadi em 2011), foi de fundamental im-
portância para instalar a diversidade sociocultural como um princípio da política pública educacional. Essa secretaria
promoveu e coordenou diversos programas e ações voltados ao combate às desigualdades educativas e à promoção do
reconhecimento da diversidade, entre elas, o Programa Brasil Alfabetizado, programas de educação em direitos huma-
nos e educação ambiental, Programa Mais Educação, políticas de ação afirmativa na educação superior, entre outros.
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 107

pelo órgão indigenista e por missões religiosas. Embora essas agências tivessem ideologias, intenções
e práticas diferentes, coincidiam no objetivo de assimilar o índio, tentando lhe impor novas religiões,
crenças e costumes. Por isso, no contexto da mobilização da sociedade civil, na década de 1970, que
denunciou a política desenvolvimentista do governo militar da época, também as críticas voltaram-se
para questionar o tipo de educação escolar que os indígenas vinham recebendo.
Naquela época, a Funai tinha assinado um convênio com uma instituição norte-americana – o
Summer Institute of Linguistics – para que ela fosse responsável pela educação bilíngue dos índios.
Essa era uma instituição que estudava línguas indígenas com a finalidade de traduzir a Bíblia nessas
línguas, baseada na ideia de que seria um meio mais fácil de conversão ao cristianismo. O ensino
escolar que essa agência promovia era bilíngue, mas não com o objetivo de valorizar as línguas indí-
genas, e sim por considerar que a alfabetização na língua materna seria o método mais eficaz de
aprendizagem. Uma vez conseguida a alfabetização, a meta final era que dominassem e utilizassem
como única língua o português. Este tipo de educação foi rejeitada por diversos setores que apoiavam
a causa indígena.
Contudo, muitos povos indígenas perceberam, naquele período, que a educação também
podia ser relevante por proporcionar conhecimentos que lhes permitissem um melhor domínio da
comunicação e da relação com a sociedade envolvente. Surge então uma demanda por maior acesso
à escolarização, mas junto com uma reivindicação para que perca o caráter integracionista do pas-
sado. Começam-se a gestar experiências educativas pertinentes à realidade indígena – o currículo,
o material didático, a rotina e a disciplina escolar, as metodologias de ensino diferenciadas, até os
calendários foram pensados para respeitar as atividades tradicionais dos indígenas. Ganhou força o
discurso de que uma escola com esse perfil teria um sentido “libertador”, que poderia contribuir para
a construção da autonomia dos povos indígenas.
Essa mudança nos sentidos dados à educação escolar, somada ao novo papel que ela ocupa
em prol das lutas e reivindicações dos povos indígenas, se reflete no texto do jornalista guarani
Osias Sampaio (2017, p. 136-137):
Assim como o nosso ancestral coletava na mata o alimento e a matéria-prima
de que necessitava, o indígena universitário deve hoje “coletar” conhecimen-
tos e prosseguir na cultura por outros meios. Se no passado o índio ia buscar
a caça e tinha de atingir o alvo, porque na tekoá, a aldeia, crianças e velhos
esperavam para saciar a fome, hoje temos de buscar não a caça, mas o conhe-
cimento, temos de ser bons, atingir o alvo. Muitas vezes o nosso gwyrapá, arco
e flecha, é outro; não é de madeira, cordão e penas, é, simbolicamente, por
exemplo, o computador, as tecnologias, o livro, as ferramentas necessárias ao
trabalho. No computador, por exemplo, se pode buscar uma lei, uma informa-
ção, um projeto e meios de renda. Temos de levar a resposta que a realidade
da aldeia pede e espera de nós.

Diversas entidades civis junto com os povos indígenas de distintas regiões levaram a cabo
experiências de educação diferenciadas e independentes das escolas da Funai. Houve um grande
esforço por elaborar material didático produzido em línguas indígenas e tendo como autores os
próprios indígenas. Também várias ONGs e acadêmicos se voltaram a implementar cursos de
108 Cultura e Literatura Africana e Indígena

magistério específicos para que os indígenas se tornassem professores e assumissem a condução


das escolas localizadas nas aldeias.
A ocupação do cargo de professor foi percebida como uma grande conquista, tanto pela pos-
sibilidade de assumir o ensino escolar e elaborar outras modalidades e estilos de exercer tal função,
quanto por ser uma fonte de recursos e de acesso a novos espaços.
A partir de 1988, criou-se uma organização que reuniu os professores indígenas dos estados
do Amazonas, Roraima e Acre que realizaram diversas reuniões anuais para analisar e discutir de
que modo se poderia construir uma educação escolar pertinente às realidades dos povos e tro-
car experiências e conhecimentos8. Discutiam-se formas alternativas de currículos, de regimentos
escolares, de materiais didáticos, e também procuraram encontrar soluções para os obstáculos que
se apresentavam neste processo9.
O Estado, após a Constituição de 1988, reconheceu essas experiências pioneiras e levou em
consideração várias de suas propostas para a elaboração das leis educativas hoje vigentes, que legi-
timaram a concepção de que a educação escolar indígena devia ser: bilíngue, específica, diferen-
ciada e intercultural10.
Atualmente, a educação escolar indígena é consensualmente considerada como um direito
de cidadania essencial, que garante informação, conhecimentos e instrumentos de comunicação
importantes para uma participação plena na sociedade nacional. Participação esta que não deve se
confundir com integração nem com perda dos seus costumes tradicionais.
O Estado foi ampliando a oferta escolar nas terras indígenas e muitas delas hoje têm ensino
fundamental completo e ensino médio, embora ainda seja grande a demanda por maior quanti-
dade de estabelecimentos e assistência escolar nas aldeias.
Outro avanço importante a ser destacado no campo da educação escolar indígena é o acesso
crescente de indígenas ao ensino superior. Algumas universidades desde 2002 implementam ações
afirmativas para o ingresso deles, seja estabelecendo uma percentagem de vagas reservadas para
eles, seja pela criação de vagas suplementares, como é o caso da Universidade de Brasília (UnB).
Algumas universidades também passaram a oferecer cursos específicos para a forma-
ção de professores indígenas no nível superior, que se chamam Licenciaturas Interculturais ou
Licenciaturas Indígenas. Seriam equivalentes a cursos de Pedagogia, mas de modalidade especí-
fica e diferenciada atendendo à LDB e às diretrizes existentes.
Com a Lei n.12.711, de 29 de agosto de 2012, conhecida como Lei de Cotas, e com a Portaria
n. 13, de 11 de maio de 2016, que estabelece cotas para indígenas (também para negros e pes-
soas com deficiência) em diversos programas de pós-graduação, aumentou consideravelmente a
quantidade de estudantes indígenas nesses níveis educativos. Contudo, ainda existe uma grande

8 Ver Ferreira (1994) e Silva (2007) para um histórico do movimento e organização de professores indígenas no Brasil,
especialmente da região amazônica.
9 Atualmente esta organização que reúne professores dos estados do Amazonas, Acre e Roraima chama-se Conselho
dos Professores Indígenas da Amazônia (Copiam).
10 Como já foi comentado, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, arts. 78 e 79, e o Plano Nacional de Edu-
cação (2001-2011) garantem aos povos indígenas a oferta de programas de educação escolar bilíngue e intercultural.
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 109

defasagem, se comparamos com as percentagens da população não indígena que tem acesso ao
nível superior.
Observa-se uma brecha entre o garantido pelas leis e a execução das políticas em nível local
e regional. Isso se deve, entre outros fatores, às mudanças e à descontinuidade existentes nas polí-
ticas e nos programas de governo; às dificuldades de ordem financeira e burocrática; à falta de
coordenação entre os órgãos públicos encarregados das políticas indigenistas e à incompreensão
e preconceito em relação aos indígenas; e, por fim, à realidade indígena por parte dos gestores e
funcionários dos órgãos públicos de nível estadual e municipal, encarregados de aplicar as leis e
políticas federais.
Figura 2 – Escola do povo Pataxó, da aldeia Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.

Joa Souza/Shutterstock
8.4 Escritores e literatura indígena
Os inícios da produção escrita por parte de autores indígenas se situam em grande parte no
contexto dos cursos de magistério indígena de modalidade bilíngue e intercultural que começaram
a ser implementados nas décadas de 1980 e 1990 – no início, promovidos por organizações não
governamentais e mais tarde assumidos pelo Estado. A possibilidade de elaborar material escrito
nesses contextos, desde as perspectivas indígenas, seus conhecimentos e suas memórias históri-
cas representou um importante avanço e fortalecimento político para os indígenas. Pela primeira
vez, eles puderam escrever suas próprias histórias e falar de si mesmos para os outros – tarefa que
anteriormente era executada, na maioria das vezes, pelos indigenistas e estudiosos das sociedades
indígenas. Assim, cada vez mais, estão tomando a voz para se representarem na discussão sobre seu
passado, presente e futuro.
Uma vertente da literatura indígena é a escrita de mitos e histórias indígenas, que até poucos
anos atrás vinham sendo transmitidas somente por meio da oralidade. Essa escrita recebe apoios
e questionamentos entre os especialistas em povos indígenas, principalmente preocupando os
­linguistas. Os que apoiam destacam tanto a relevância de essas narrativas serem escritas com o
objetivo de preservá-las – considerando o fato de serem as pessoas idosas as detentoras desses
110 Cultura e Literatura Africana e Indígena

conhecimentos – quanto as possibilidades de serem valorizadas e conhecidas por parte de um


público indígena e não indígena.
Para outros, a passagem de narrativas orais para a escrita simplifica a riqueza do discurso
oral. As histórias indígenas reservam um manancial de imagens, de sons e de matizes e variam
significativamente segundo o narrador e o público com o qual interage, aspectos que se alteram ao
passá-las à linguagem escrita.
Existe também a posição dos que entendem que é possível incorporar novas formas de siste-
matizar os conhecimentos indígenas pela escrita e pelo audiovisual, bem como manter e promover,
ao mesmo tempo, a tradição oral. Nesse sentido, a gravação e a filmagem de relatos orais em CDs
e DVDs é um importante recurso, pois por meio dessas ferramentas não se perdem as sutilezas da
linguagem, podendo circular amplamente pelas aldeias e ser aproveitados por toda a população –
inclusive crianças e adultos não alfabetizados.
Outra vertente é a escrita de livros didáticos por parte de professores indígenas, com a finali-
dade de utilizá-los com seus alunos, contribuindo para um ensino diferenciado e pertinente às esco-
las das aldeias. Muitos desses livros são frutos de pesquisas desenvolvidas durante a formação em
magistério e licenciaturas interculturais daqueles professores. Algumas vezes acontece a gravação e a
transcrição de depoimentos das pessoas mais idosas. Para a elaboração dos textos, esses depoimentos
são condensados e fundidos a relatos de diferentes procedências e transformados em relatos escritos
pelos professores indígenas (SCARAMUZZI, 2007).
Também existe uma crescente produção de livros de autores indígenas que não têm apenas
o objetivo de serem utilizados nas escolas das aldeias, mas também de circular por um público
mais amplo, infantil, juvenil e adulto da sociedade não indígena. Para Graúna (2013), a literatura
indígena contemporânea foge dos gêneros rígidos e das limitações dos conceitos de conto, crônica
e romance de ficção, principais formas da literatura ocidentalizada, imbricando arte e política.
Alguns escritores se reuniram em uma organização que teve como metas divulgar a literatura
indígena, promover a qualificação de indígenas para o exercício profissional da produção literária
e discutir temas relevantes sobre literatura indígena e direitos autorais. Tratou-se do Núcleo de
Escritores e Artistas Indígenas (Nearin)11, criado por ocasião do I Encontro Nacional de Escritores
Indígenas, ocorrido no ano de 2003, no Rio de Janeiro. Hoje existem outras associações, bem como
editoras que se abriram para receber e publicar livros de autoria indígena.
Segundo Danner, Dorrico e Danner (2018, p. 275):
os povos indígenas se apropriaram e estilizaram a gramática formal, as técnicas
literárias e as ferramentas digitais como forma de autoexpressão e de autoafirma-
ção étnico-identitárias e, a partir disso, como meio de vinculação pública, polí-
tica e cultural, em termos de ativismo, de militância e de engajamento. Por meio

11 Ver o blog do Nearin para um melhor conhecimento dos projetos e das ações realizados por essa organização.
Disponível em: http://escritoresindigenas.blogspot.com. Acesso em 17 mar. 2019. Ver também o blog do Instituto
Uka, que foi concebido por um grupo de profissionais indígenas e não indígenas e divulga os Encontros dos Escrito-
res Indígenas e os lançamentos de suas publicações. Disponível em: http://institutouka.blogspot.com. Acesso em:
17 mar. 2019. Por fim, vale a pena conhecer, os blogs de Daniel Munduruku. Disponível em: http://danielmunduruku.
blogspot.com. Acesso em: 17 mar. 2019.; e de Eliane Potiguara. Disponível em: http://elianepotiguara.blogspot.com.
Acesso em: 17 mar. 2019.
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 111

da escrita e a partir do uso de diferentes mídias e tecnologias de comunicação e


de representação, passaram a divulgar não apenas suas tradições socioculturais,
suas histórias e suas bases antropológico-ontológicas, mas também a nos relatar
sobre sua situação de exclusão, de marginalização e de violência, passaram a nos
contar sobre sua história e a partir de sua própria perspectiva.

Por fim, cabe destacar que existe uma produção indígena acadêmica, compreendida por mono-
grafias, dissertações, teses e artigos, referente às áreas de formação em que estão transitando inte-
lectuais indígenas. Predominam textos nas áreas das Ciências Sociais, da Pedagogia e da Linguística,
materiais riquíssimos tanto pela relevância das pesquisas e metodologias propostas quanto por serem
fruto de reflexões que os autores indígenas elaboram por meio de trajetórias e experiências de vida
complexas e densas. Essas produções contribuem para romper com a hegemonia do pensamento
ocidental no âmbito acadêmico, trazendo uma pluralidade de saberes e visões de mundo.

8.5 Artistas e cineastas indígenas


Reconhece-se, atualmente, que os povos indígenas não são simplesmente produtores
de artesanato que utilizam variadas matérias-primas à disposição no meio ambiente para ela-
boração de artefatos. Eles são conhecedores de técnicas sofisticadas, de manejo e tratamento
de uma grande diversidade de matérias-primas, e os objetos que elaboram estão carregados
de significados e vinculados a concepções religiosas, estéticas, filosóficas e terapêuticas, que
permeiam toda a vida social indígena.
Assim, os povos indígenas, à diferença dos ocidentais, não separam uma esfera que poderia
ser qualificada de cultura material, de finalidade prática ou aplicada, de uma artística.
Como chama a atenção Lopes da Silva (1995, p. 373):
a arte, nas sociedades indígenas, está comprometida com outros fins sociais
que aqueles a ela atribuídos na sociedade ocidental. É, até certo ponto, uma arte
anônima, no sentido de que o sujeito criador são as coletividades, ainda que seja
sempre o indivíduo concreto quem dá a marca, o selo, o gesto particular. Nesse
sentido, caberia apontar os rituais como sendo, provavelmente, a forma mais
condensada da arte indígena e da arte popular, por serem a síntese suprema de
todas as manifestações de cultura corporal, de artes plásticas, de teatro, de poe-
sia, de literatura, música e dança.

A maioria dos povos indígenas não tem uma palavra na sua língua para designar o que a
sociedade ocidental chama de arte, porque para eles não se trata de uma especialidade separada do
resto da vida. Porém, como parte do processo de afirmação identitária e reconhecimento do valor
da sua cultura, muitos grupos – e sobretudo as organizações que os representam – começaram a
reivindicar que sua cultura material fosse considerada ou tratada como arte. Assim se criaram, ao
longo dos últimos anos, associações de produtores de artesanato e artistas indígenas, que procuram
divulgar sua cultura e também comercializar seus produtos de uma forma mais justa, valorizando
quem os produz, para que possam receber preços adequados ao custo e ao valor da habilidade do
seu trabalho.
112 Cultura e Literatura Africana e Indígena

Entre as artes indígenas, destaca-se a elaboração de cerâmica, da cestaria e do trançado, os


instrumentos musicais, a arte plumária12, máscaras e pintura corporal e a arte gráfica13.
Figura 3 – Jovem do povo tupi-guarani pintando seu rosto.

Filipe Frazao/Shutterstock
Entre os povos indígenas discute-se crescentemente como preservar e proteger a biodiversi-
dade e os conhecimentos tradicionais. Nesse sentido, existe uma preocupação com o roubo e com
a apropriação ilegítima desses saberes e práticas, o que acontece sobretudo no caso da indústria
­farmacêutica. Tanto algumas organizações não governamentais, como o Instituto Indígena Brasileiro
para a Propriedade Intelectual, quanto governamentais, como o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, buscam proteger o patrimônio cultural indígena, discutir a temática da proprie-
dade intelectual e defender os conhecimentos tradicionais.
É importante mencionar também a incursão de indígenas em expressões artísticas não
­tradicionais, como a produção de CDs e DVDs, com gravação de músicas tradicionais14, usos de
ritmos15 não indígenas, produção de filmes e vídeos, bem como o uso de variadas mídias sociais
e digitais. Blogs, Facebook, Instagram, YouTube são algumas das mídias sociais em que é possível

12 Como chamam a atenção Sonia Dorta e Lúcia van Velthem (1982 apud LOPES DA SILVA, 1995, p. 395): “os adornos
plumários não servem apenas para enfeitar o corpo, e os elementos plumários aplicados a outras superfícies, como
armas, instrumentos musicais, máscaras, não podem ser vistos como atributo meramente decorativo. Eles podem ser
considerados verdadeiros códigos, que transmitem, numa linguagem não verbal, mensagens sobre sexo, idade, filiação
clânica, posição social, importância cerimonial, cargo político e grau de prestígio de seus portadores. Além de enfeites,
portanto, são símbolos e, por isso, usados nos ritos e cerimônias, campo simbólico por excelência das culturas humanas”.
13 A pintura corporal e a arte gráfica do povo Wajãpi, localizado no estado de Amapá, a “Arte Kusiwa” foi reconhecida
como Patrimônio Imaterial pelo Iphan, em 2002. Essa arte está vinculada à organização social, com uso adequado da terra
indígena e o conhecimento tradicional. Os indígenas usam composições de padrões Kusiwa nas costas, na face e nos
braços. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/PatImDos_PinturaCorpora lArteGraficaWajapi_m.
pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.
14 Sugere-se consultar o site da Funai para ouvir músicas tradicionais de vários povos indígenas do Brasil. Disponível
em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/sons-indigenas. Acesso em: 17 mar. 2019.
15 Cada vez mais existem bandas de jovens indígenas que misturam ritmos e musicalidades indígenas e não indí-
genas, sobretudo se expressando por meio do hip hop, do rock e do reggae. É frequente nessas bandas o uso das lín-
guas indígenas, bem como de temáticas que aludem às suas raízes e ancestralidade e também às suas problemáticas
contemporâneas. Sugere-se ouvir a rádio Yandé para conhecer músicos indígenas com diferentes propostas e estilos.
Disponível em: http://radioyande.com. Acesso em: 17 mar. 2019.
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 113

acompanhar artistas indígenas. Mas também crescentemente encontramos produções em ­mostras


e galerias de arte, entre elas, a Bienal de Arte de São Paulo.
Podemos considerar como exemplo o CD produzido pelo povo Ashaninka, do tronco lin-
guístico Arawak que habita a Amazônia peruana e brasileira. Eles gravaram músicas que vêm sendo
transmitidas de geração para geração, não apenas para diversão, mas para passar conhecimentos
importantes que garantem a sobrevivência do povo. Também tiveram como objetivo divulgar sua
música para a sociedade não indígena, para mostrar quem são os Ashaninka e como é sua cultura.
Outro exemplo é o grupo de hip hop Brô Mc’s, formado por jovens do povo Kaiowá, das
aldeias Jaguapirú e Bororó, localizadas em Dourados, Mato Grosso do Sul. O grupo construiu uma
junção inusitada do rap com a cultura indígena, do português com o guarani. Seu primeiro disco
tem oito músicas e as letras abordam a luta pela terra, a questão da identidade indígena, problemas
como o consumo de drogas e álcool, o suicídio entre os jovens das aldeias, entre outros.
No tocante à produção de cinema, é cada vez mais constante a realização de filmes e vídeos de
autoria indígena. As primeiras experiências de filmagem feitas segundo seus interesses e ­perspectivas
da realidade decorrem do apoio de algumas organizações não governamentais e universidades que
realizam oficinas de formação para uso de câmeras, produção e edição de filmes. Entre outros, está
o projeto Vídeo nas Aldeias, criado em 1987, dentro das atividades da ONG Centro de Trabalho
Indigenista16, que apoiou a realização de mais de 70 filmes dirigidos por cineastas indígenas, alguns
premiados nacional e internacionalmente.
Portanto, é muito variada e rica a produção artística dos povos indígenas. Traz-nos um olhar
diferenciado e nos aproxima a um universo simbólico original, do qual há muito a aprender.

Considerações finais
Neste capítulo, foi apresentada de modo breve a trajetória do movimento indígena no Brasil
e suas principais lutas, demandas e conquistas. Entre elas, é de fundamental importância lembrar
os direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988, que rompeu com a perspectiva integra-
cionista que orientou as políticas destinadas aos povos indígenas ao longo da história do Brasil.
O art. 231 garante o direito dos povos a manter suas formas de organização social, costumes, lín-
guas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. O art. 210
garante uma educação escolar que respeite o uso das línguas maternas e dos processos próprios de
aprendizagem das comunidades indígenas, o que significa atender às formas próprias de ensinar e
­aprender dos povos indígenas.
Foi visto também um panorama da situação da educação escolar indígena e como, apesar
de ter sido uma ferramenta de conquista, catequese e aculturação, hoje se tornou um instrumento

16 Este projeto surgiu como um experimento realizado por Vincent Carelli entre os índios Nambiquara. O ato de fil-
má-los e levá-los a assistir depois ao material filmado gerou uma mobilização coletiva. Diante do potencial que o ins-
trumento apresentava, essa experiência foi levada a outros grupos, proporcionando uma série de filmes sobre como
cada povo incorporava o vídeo de uma maneira particular. Em 2000, o Vídeo nas Aldeias se constituiu como uma ONG
independente. Disponível em: www.videonasaldeias.org.br/2009. Acesso em: 17 mar. 2019.
114 Cultura e Literatura Africana e Indígena

tanto para aprender e sistematizar conhecimentos e práticas das culturas indígenas, quanto para
aprender conhecimentos e práticas dos não indígenas, necessários para uma participação crítica e
mais igualitária na sociedade nacional. As leis atuais estabelecem que essa educação deve ser espe-
cífica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária.
Tratamos também algumas ações e projetos que os povos indígenas vêm levando a cabo
para o fortalecimento de sua identidade cultural, proteção de seus conhecimentos tradicionais e
possibilidades de construção de um “bem viver” coletivo. Entre elas, a produção artística, a escrita
e a produção de filmes são áreas de expressão e projeção relevantes.
As artes indígenas que envolvem uma diversidade de saberes, técnicas, práticas e matérias-
-primas vêm sendo reconhecidas como patrimônio imaterial por parte do Instituo do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e outros órgãos.
Por fim, cabe salientar a importância da literatura e da escrita, que crescentemente vêm sendo
utilizadas pelos povos indígenas, para uso interno e para se comunicar com outros povos e com
os não indígenas. Inicialmente surge uma escrita indígena no contexto de cursos de formação de
professores indígenas com a finalidade de elaborar materiais e livros didáticos a serem utilizados nas
escolas das aldeias, visando a uma formação escolar mais adequada à realidade de crianças e jovens
indígenas. Mais tarde, surgem autores que escrevem contos, romances e poemas para um público
tanto indígena quanto não indígena. As novas formas de expressão e comunicação representam
um importante avanço e fortalecimento etnopolítico para os indígenas. Eles podem expressar suas
próprias histórias e falar de si mesmos para os outros por meio de sua própria perspectiva. É possível
perceber como arte, cultura e política não se separam.
Importa destacar também a produção acadêmica de autoria indígena em diversas áreas e
níveis de formação, que está sendo de extrema relevância para romper com a hegemonia do pensa-
mento ocidental na universidade, trazendo uma pluralidade de saberes e visões de mundo.

Ampliando seus conhecimentos


• POTIGUARA, Eliane. Literatura indígena e nativa vem das entranhas da Terra. Revista Cátedra
Digital, Rio de Janeiro, n. 5, 2018. Disponível em: http://revista.catedra.puc-rio.br/index.php/
literatura-indigena-e-nativa-vem-das-entranhas-da-terra/. Acesso em: 19 mar. 2019.
Recomendamos a leitura dos poemas escritos pela poeta, escritora, professora e ativista
indígena, Eliane Potiguara. Ela é uma das iniciadoras da produção literária das mulhe-
res indígenas. O pássaro encantado (2014), A cura da terra (2015), O coco que guardava
a noite (2012) e Metade cara, metade máscara (1. ed. 2004; 2. ed. 2018) são algumas
de suas obras. Nesse link, você terá acesso a uma reflexão da autora sobre a literatura
indígena e ao poema “Identidade indígena”. Escrito em 1975, esse é considerado um dos
primeiros poemas de uma mulher indígena em língua portuguesa.
Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena 115

• ARAÚJO, Ana Valéria et al. Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito à diferença.
Brasília, DF: MEC; Museu Nacional, 2006. (Coleção Educação para todos, Série Via dos
Saberes, n. 3).
O volume reúne pela primeira vez as contribuições de profissionais indígenas da área do
direito, aportando as visões próprias daqueles que foram treinados para operar o ordena-
mento político brasileiro, mas que são portadores também da singular experiência de vida
por serem integrantes de povos indígenas autóctones das américas e partícipes relevantes
na luta em prol dos direitos desses povos.

• KRENAK, Ailton; TUKANO, Álvaro; MUNDURUKU, Daniel et al. Tembetá: pensadores


indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2019.
A coleção busca dar a conhecer a trajetória de pensadores indígenas do Brasil que têm
contribuído para a cultura, a educação, os direitos humanos e a ecologia nos últimos 40
anos, entre eles, Davi Kopenawa, Ailton Krenak e Alvaro Tukano17.

• VÍDEO NAS ALDEIAS. Disponível em: http://www.videonasaldeias.org.br/2009. Acesso


em: 17 mar. 2019.
A ONG Vídeo nas Aldeias, criada em 1987, é um projeto precursor na área de produção
audiovisual indígena no Brasil. O site, além de introduzir informação sobre o projeto e as
diversas ações que realiza, dispõe do catálogo de filmes produzidos pelos cineastas indíge-
nas (há uma coleção de mais de 70 filmes), apresenta informações sobre a trajetória deles
e disponibiliza alguns vídeos on-line.

• YANDÊ, rádio de todos. Disponível em: http://radioyande.com/. Acesso em: 17 mar. 2019.
Conduzida por comunicadores, artistas e intelectuais indígenas é a primeira rádio indí-
gena na web no Brasil. Transmite músicas de artistas indígenas e têm programas infor-
mativos e educativos que trazem para o público um pouco da realidade indígena do país.

• PISA ligeiro. Direção: Bruno Pacheco de Oliveira. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2014.
(42 min.).
Resultado de um trabalho de quatro anos desenvolvido por uma equipe do Laboratório de
Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento do Museu Nacional, em associação
com organizações indígenas, o vídeo corresponde a um esforço de reflexão e autoavalia-
ção desses líderes sobre os últimos 15 anos de lutas e mobilizações.

17 Para mais informações, é possível acessar ao site da revista, disponível em: https://revistasdecultura.com/product/
tembeta/. Acesso em: 17 mar. 2019.
116 Cultura e Literatura Africana e Indígena

• KARAI ha’egui Kunhã Karai ‘ete: os verdadeiros líderes espirituais. Direção: Alberto
Alvares. Documentário, 2014. (70 min.).
Dirigido por um cineasta guarani, o filme acompanha o cotidiano de uma grande lide-
rança espiritual e sua esposa numa aldeia em Santa Catarina. Com extrema sensibilidade,
mostra a sabedoria desses anciões e a importância de suas memórias e conhecimentos
para as novas gerações guarani.

Atividades
1. A Constituição de 1988 representa um marco na forma de o Estado pensar a relação com
os povos indígenas, ao reconhecer pela primeira vez que são coletividades culturalmente
distintas e, por isso, detentores de direitos especiais. Explique os direitos que a Constituição
Federal garante aos povos indígenas.

2. Que objetivos teve historicamente a educação destinada aos povos indígenas e que mudan-
ças houve a partir do movimento de organização que eles empreenderam nas décadas de
1970 e 1980?

3. Qual a importância da escrita e da autoria indígena nos dias de hoje?


Gabarito

1. A África lusófona: um pouco de história


1. A conquista de Ceuta tem um motivo religioso e econômico. Para os portugueses, tomar
Ceuta era fazer uma cruzada contra os povos infiéis e consolidar o império do cristianismo
em terras não cristãs. Do ponto de vista ideológico, portanto, ficava explicada a empreitada
com o apoio da Igreja católica. No entanto, a Coroa portuguesa não desconhecia que havia
indícios de riquezas no continente africano. Ao tomarem Ceuta, os portugueses se dão conta
de que ali desembocavam várias riquezas vindas de outras regiões da África e percebem que
seria mais lucrativo avançar para o sul do continente em busca de tesouros desconhecidos
do que ocupar os já conhecidos territórios ao longo do Mar Mediterrâneo. Desde o início,
portanto, os interesses econômicos da Coroa portuguesa estavam delineados.

2. Toda a riqueza encontrada em território africano era levada para a Metrópole. Com a neces-
sidade de se colonizar a América, descobre-se outro “negócio” rentável na África: o tráfico
negreiro. Esse tipo de comércio terá seu vigor durante os séculos seguintes até meados
do século XIX, quando Portugal começou a sofrer as imposições de países europeus mais
poderosos que exigiam mudanças na política portuguesa na África. O tráfico negreiro foi o
responsável pela maior diáspora de povos ocorrida na Idade Moderna. A maioria esmaga-
dora dos embarcados forçadamente nos navios negreiros foi trazida para as américas, mas
muitos morriam no caminho, em função das precárias condições em que eram trazidos.

3. Durante o século XX, a Casa do Estudante do Império – especialmente a de Lisboa – abrigava


um grupo de estudantes africanos, geralmente de origem mestiça e burguesa, que começa a
tomar contato com intelectuais e escritores não só portugueses contrários ao regime de Salazar,
mas também de outras regiões da África portuguesa. Nessas casas, longe de suas terras, os jovens
reinventavam poética e literariamente a nação de que eram originários e lá ganhavam força as
ideias de liberdade e independência.

4. Os fatores que desencadearam a luta dos povos africanos das colônias contra o regime de
Salazar foram o descontentamento com o Ato Colonial instituído nas colônias, a disseminação
das ideias do Movimento da Negritude, o conhecimento das lutas dos negros ­norte-americanos
contra o racismo e a independência dos países africanos colonizados por ingleses e franceses.
118 Cultura e Literatura Africana e Indígena

2. Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na


Guiné-Bissau
1. A revista Claridade inaugura uma nova fase na literatura africana de língua portuguesa por
apresentar pela primeira vez uma voz de valorização da caboverdianidade como a língua
crioula, por exemplo, em detrimento da referência cultural europeia.

2. Francisco José Tenreiro já era um santomense conhecido em Portugal quando lançou, com o
angolano Mário Pinto de Andrade, o Caderno da poesia negra de expressão portuguesa, uma
clara referência à obra do Movimento da Negritude. Nesse Caderno, reuniram-se escritores
africanos de países diversos, tratando-se de importante coletânea da poesia africana.

3. Na Guiné, a independência do país constituiu um divisor de águas para a valorização da lite-


ratura. A ex-colônia portuguesa, em razão de sua pobreza, foi a que menos se desenvolveu
cultural e literariamente. Após a independência, a literatura colonial ganhou novo vigor com
a revelação de novos talentos.

3. Cultura e literatura em Angola


1. Para o estudioso, a adoção da língua portuguesa – a língua do colonizador – foi necessária,
uma vez que se todas as etnias utilizassem suas línguas e dialetos locais a construção da nova
nação seria prejudicada pela dificuldade de comunicação entre os grupos étnicos que habi-
tam o território angolano.

2. Com a perda do Brasil, Portugal resolveu explorar a sua maior colônia na África. Com isso,
muitas riquezas foram extraídas da região e, enquanto vigorou o tráfico negreiro e a escra-
vidão, muitos negros foram arrancados de sua região. No entanto, a necessidade de explorar
a colônia fez com que muitos colonos portugueses se fixassem na região. Assim, paulatina-
mente, uma população mestiça – constituída em sua maioria de pequenos comerciantes,
juristas, advogados etc. – foi se formando em Angola, mais precisamente em Luanda e com
isso se criava na capital uma demanda por educação que favorecerá as novas gerações.

3. O MPLA surgiu em 1956 em Angola, na esteira da criação do PAIGC, e foi criado por uma
articulação de intelectuais – especialmente poetas e estudantes que reivindicavam a indepen-
dência de Angola. Por sua vez, os movimentos independentistas na África lusófona foram
influenciados pelas lutas pela independência de países africanos colonizados por outros países
europeus como a Inglaterra e a França.

4. Cultura e literatura em Moçambique


1. A literatura em Moçambique só apresenta traços de moçambicanidade no século XX quando
os periódicos O africano e O brado africano começam a apresentar um suplemento literário
em que poetas como, por exemplo, Virgílio Lemos e Noêmia de Sousa publicam poesias
que falam do homem africano e do moçambicano em particular, da condição do negro e da
Gabarito 119

negritude. No século XIX, não havia expressão dessa poesia nos periódicos que circulavam
em Moçambique.

2. Segundo Pires Laranjeira, Noêmia de Sousa é um importante nome deste período, pois fala
da condição da mulher negra, fugindo dos estereótipos da literatura colonial x literatura
local, além de usar expressões próprias da oralidade, característica tão importante na tradi-
ção cultural dos países africanos.

3. Podemos falar da consolidação da literatura moçambicana após a independência do país.


Nesse período, a literatura em Moçambique adquire maturidade com a tematização de ques-
tões além da condição do negro e da negritude.

5. África lusófona e Brasil: laços e letras


1. Quando os portugueses chegaram ao continente africano, encontraram um tipo de escra-
vidão doméstica comum entre as diversas etnias africanas. Ela consistia basicamente em
se tomar os prisioneiros de guerra como escravos que passavam a trabalhar na lavoura dos
povos vencedores, que, por conta da escassez de mão de obra, necessitavam de reforço.
As mulheres escravas eram incorporadas ao domínio dos povos vencedores e acabavam
gerando filhos de seus senhores. As novas gerações iam paulatinamente conquistando a
liberdade e já gozavam de certos direitos na comunidade em que suas mães haviam sido
escravizadas. O outro tipo de escravismo desenvolvido pela presença dos árabes no território
já apresentava características mercantis. Os escravos eram comercializados entre os povos
árabes e valiam como moeda de troca. Com esse tipo de escravismo, muitos africanos aca-
bavam sendo levados de seus territórios para outras terras e desse modo ficavam a­ lienados
de sua cultura.

2. Na penosa travessia pelo Atlântico, muitos africanos morriam em razão das péssimas condi-
ções em que eram transportados nos navios negreiros. Ao chegarem ao Brasil, muitos não se
adaptavam ao trabalho escravo e fugiam para o interior. Assim, eram criados os quilombos
no interior do Brasil que funcionavam como espaços de liberdade para o africano refugiado
ou afrodescendentes. Entre os séculos XVII e XVIII, centenas de quilombos existiram no
Brasil e o mais famoso deles foi o Quilombo dos Palmares, no qual Zumbi foi consagrado
rei. Nesses lugares, a cultura africana era valorizada e cultuada.

3. Podemos dizer que os cultos africanos foram reinventados no Brasil, uma vez que cada grupo
étnico que aqui chegava, estrategicamente disposto pelo colonizador em regiões distintas do
Brasil, trazia uma cultura própria de seu grupo étnico, em que havia crenças e divindades
próprias. Porém, a aproximação desses diferentes grupos, com suas crenças diversas, fez sur-
gir um sincretismo das diferentes religiões africanas, já que umas cultuavam orixás e outras
voduns, por exemplo. Esse sincretismo também se fundiu ao catolicismo e, em determinadas
regiões do Brasil, ao islamismo, e esse amálgama de crenças gerou os cultos afro-brasileiros.
120 Cultura e Literatura Africana e Indígena

6. História e historiografia indígena


1. As fontes disponíveis para o estudo da história indígena são as crônicas de colonizadores
e missionários dos séculos XVI, XVII e XVIII, relatos de viajantes e naturalistas do século
XIX, estudos arqueológicos e antropológicos realizados nos séculos XX e XXI e as próprias
narrativas das sociedades indígenas contemporâneas. Essas fontes são diversas e devem ser
analisadas conforme os contextos em que foram produzidas, assim como as ideologias e
ideias sobre os índios que as sustentaram. A importância de considerar as narrativas históri-
cas dos povos indígenas contemporâneos é que nos traz à luz suas visões e compreensão do
passado, assim como sua rica memória transmitida de forma oral. Portanto, possibilita-nos
entendê-los como sujeitos ativos de sua história, rompendo com a perspectiva historiográ-
fica que negava, apagava ou diminuía sua relevante participação na formação do Brasil.

2. Os aldeamentos se constituíram por meio descimentos, ou seja, do deslocamento – p


­ romovido
por tropas de soldados, com a presença de missionários – de povos inteiros, dos territórios
que tradicionalmente ocupavam para morarem junto ou próximo das vilas fundadas pelos
colonos. Esse novo padrão de moradia e de organização social tornou-se fundamental para
sustentar o sistema colonial, já que os indígenas que moravam nos aldeamentos produziam
tanto os alimentos consumidos pelos colonos, como lhes serviam de mão de obra para dife-
rentes afazeres. Também foram utilizados para lutar nas guerras que os portugueses estabe-
leciam contra colonizadores de países estrangeiros ou contra os próprios índios de outros
povos, que resistiam ao aldeamento.

3. A política que a Coroa estabeleceu diferenciou índios aldeados e aliados de índios inimigos ou
bravos, dando um trato diferenciado a cada um deles. Aos primeiros foi garantida a liberdade ao
longo de toda a colonização e o direito de serem pagos pelo seu trabalho. Contudo, isso não signi-
fica que não tenham sofrido exploração, sendo sobrecarregados de trabalho e deslocados de um
lado a outro segundo interesses de governantes e particulares. Aos segundos se declarou “guerra
justa” e a escravização posterior foi vista como lícita e até legitimada por meio de várias leis.

4. Os objetivos e os princípios que orientaram a primeira agência indigenista estatal – o Serviço


de Proteção aos Índios – foram o estabelecimento de uma convivência pacífica entre índios e
brancos, a garantia da sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, a promoção gradual
e com métodos bondosos e dissuasórios de sua “civilização” e formação como “trabalhadores
nacionais”. Esses objetivos eram ambíguos e contraditórios, já que se promoveu uma política
protecionista, mas ao mesmo tempo integracionista, que considerou a condição indígena como
transitória, condenada à extinção. Diferentemente das políticas durante a colônia e o Império,
o órgão indigenista defendeu a aplicação de métodos brandos, de atração, de mudança de
hábitos por meio do exemplo e o ensino de ofícios e novas formas de trabalho, assim como o
inculcamento de valores e símbolos de nacionalidade. Na prática, houve muitos abusos reali-
zados por funcionários de diversos níveis do SPI. Denúncias gravíssimas estão registradas no
Relatório Figueiredo. O órgão foi extinto em 1967.
Gabarito 121

7. Situação contemporânea dos povos indígenas


1. As fontes disponíveis para conhecer a situação demográfica dos povos indígenas brasileiros
são os dados que a Funai, a Sesai e o IBGE nos proporcionam. As diferenças na quantidade
de população indígena que essas agências registram devem-se a abordagens metodológicas
distintas na coleta de dados. Enquanto a Funai e a Sesai levantam dados de habitantes loca-
lizados em aldeias de terras indígenas reconhecidas oficialmente, o IBGE também inclui os
indígenas que residem nas cidades ou em terras indígenas ainda não reconhecidas e que se
autoidentificam como tais. Segundo o Censo do IBGE de 2010, 896 mil pessoas se declara-
ram ou consideraram indígenas. Esse censo proporciona dados da população indígena que
vive na área rural, os que vivem na área urbana e também a localização em regiões, entre
outros dados significativos. Assim, é possível compor um quadro das territorialidades indí-
genas contemporâneas. Destaca-se o fato de a maioria da população indígena viver em área
rural, ao contrário dos não indígenas, e ter diminuído a presença indígena na cidade em
comparação ao Censo de 2000. Pesquisas mais aprofundadas e qualitativas são necessárias
para compreender as mudanças demográficas.

2. O território representa para os povos indígenas não apenas o meio onde obter recursos
naturais para seu consumo, mas também o espaço habitado por seres, espíritos e ancestrais
com os quais possuem fortes vínculos e aos quais se associam valores e conhecimentos de
fundamental relevância para a reprodução do grupo. O território proporciona as condições
para o desenvolvimento das economias indígenas, que variarão conforme a extensão de ter-
ras, a abundância de recursos naturais e os tipos de ecossistemas que nele se desenvolvam.
Também garantirá a reprodução cultural ao permitir a continuidade de práticas valorizadas
pelos povos indígenas, como a reciprocidade e a generosidade na distribuição de alimentos
e a prática de rituais e festas em que o consumo de certos alimentos e bebidas é fundamen-
tal. Ainda importa destacar que os territórios indígenas são os mais preservados no Brasil,
­portanto contribuem para a biodiversidade e para equilibrar as mudanças climáticas.

3. As línguas e os mitos indígenas são de fundamental importância, pois representam a maneira


de pensar e de expressar categorias, conceitos, imagens, valores, afetos e conhecimentos
estreitamente vinculados aos seus modos de vida. Os mitos se articulam à vida social, aos
rituais, à história, à filosofia própria do grupo, e expressam modos peculiares de conceber a
pessoa humana, o tempo, o espaço, o cosmos. Contrastando com a ideia de senso comum
de serem os mitos narrativas falsas, para os povos indígenas contêm verdades consideradas
fundamentais que orientam o modo de viver e pensar no seu dia a dia. A diversidade de
línguas indígenas no Brasil é uma das maiores do mundo e o Iphan reconheceu essa diversi-
dade linguística como Patrimônio Cultural.

8. Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena


1. A Constituição Federal, no capítulo VIII, intitulado “Os Índios”, garante o direito dos indíge-
nas de serem reconhecidos como povos. Portanto, estabelece que são detentores de direitos
122 Cultura e Literatura Africana e Indígena

individuais como qualquer cidadão brasileiro, mas também de direitos específicos e coleti-
vos pela sua condição de povos. O art. 231 explicita, pela primeira vez, que “[...] são reconhe-
cidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Os indígenas passam a ter direitos imprescrití-
veis sobre as terras que tradicionalmente ocupam, consideradas inalienáveis e indisponíveis
e também direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos. Torna-se
obrigação da União demarcar as terras indígenas, proteger e fazer respeitar todos os bens
nelas existentes. A Constituição garante o direito ao uso das línguas maternas e o direito dos
indígenas a receber uma educação pertinente à sua cultura que valorize os processos pró-
prios de aprendizagem, ou seja, as formas de socialização e educação tradicionais de cada
povo. Garante-se também a proteção e valorização das manifestações culturais indígenas,
que passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro. Por fim, dispõe que os indígenas têm
direito a políticas de atendimento diferenciado na área da saúde e da educação.

2. A educação destinada aos povos indígenas teve historicamente um objetivo assimilacionista,


procurando torná-los cristãos e “civilizados” e propondo que deixassem de ser índios para se
integrar à nação. Contudo, para alguns povos indígenas os conhecimentos e os costumes que
a escola promovia eram valorizados por proporcionar ferramentas para lidar melhor com a
situação de contato com os não indígenas. No processo de mobilização que empreenderam
a partir das décadas de 1970 e 1980 em prol de melhorar suas condições de vida e conquistar
direitos, a luta pela terra se deu conjuntamente com a reivindicação por uma educação escolar
pertinente e de acordo com a sua cultura. Com o apoio de organizações da sociedade civil,
foram construindo experiências educativas inovadoras, que reformularam os currículos esco-
lares, a disciplina e rotina escolar, os calendários e os materiais didáticos utilizados até então.
Destaca-se também o fato de os indígenas começarem a se capacitar para desempenhar a fun-
ção de professor, assumindo a condução das escolas. O Estado foi ampliando a oferta escolar
nas terras indígenas e muitas delas, hoje, têm ensino fundamental e ensino médio completo.

3. A escrita tem se tornado uma importante ferramenta para os povos indígenas, tanto para
uso interno quanto como forma de comunicação com outros povos e com os não indígenas.
Inicialmente surge uma escrita indígena no contexto de cursos de formação de professores
indígenas com a finalidade de elaborar materiais e livros didáticos a serem utilizados nas
escolas das aldeias, visando a uma formação escolar mais adequada à realidade de crianças e
jovens indígenas. Mais tarde, surgem autores que escrevem contos, romances, poemas para
um público tanto indígena quanto não indígena. Por fim, existe uma escrita acadêmica de
autoria indígena em diversas áreas e níveis de formação, que está sendo de extrema relevân-
cia para romper com a hegemonia do pensamento ocidental, trazendo uma pluralidade de
saberes e visões de mundo.
Referências

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São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.

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de Estudos Afro-Orientais; Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2006.

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nares – a contribuição de John Monteiro. História social, Campinas, v. 2, n. 25, 2013. Disponível em: https://
www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/1834/1344. Acesso em: 28 mar. 2019.

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A presença africana e indígena ao longo da história do Brasil e a relevância
atual que suas culturas possuem enriquecem a diversidade de nosso país e
oferecem outras possibilidades de ser e estar no mundo.
Esta obra visa proporcionar sólidos subsídios sobre as culturas e literaturas
africanas de língua portuguesa, assim como a cultura, história e literatura
indígenas, a fim de que esses conhecimentos ampliem a compreensão da
diversidade da cultura brasileira na qual nos inserimos.
Os cinco primeiros capítulos são dedicados aos estudos da história, da cultura
e da literatura dos chamados Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP), e os três capítulos restantes para os estudos sobre a história, a cultura

Claudia Amorim / Mariana Paladino


e os modos de vida contemporâneos dos povos indígenas no Brasil.

Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico


ISBN 978-85-387-6208-9

9 788538 762089 58293

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