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INSTITUTO PEDAGÓGICO DE MINAS GERAIS - FACEL

DENNIS ALONSO DE PAULA BRANDÃO

A História da África sob a égide da Educação e da Lei: Desafios e


Possibilidades.

BELO HORIZONTE - MG
2018
DENNIS ALONSO DE PAULA BRANDÃO

A História da África sob a égide da Educação e da Lei: Desafios e


Possibilidades.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Instituto IPEMIG/FACEL como requisito
para obtenção do título de especialista em
História e Cultura Afrobrasileira

Belo Horizonte - MG

2018
BRANDÃO, Dennis Alonso de Paula. A História da África sob a égide da Educação e da
Lei: Desafios e Possibilidades. Belo Horizonte: IPEMIG/FACEL, 2018. Especialização em
História e Cultura Afro-brasileira.

RESUMO

O Presente Artigo tem como objetivo fazer uma análise sobre a composição da imagem e
a representação social dos povos negros e seus descendentes na elaboração das leis destinados
ao ensino de história da África em todos os níveis da educação. O objetivo que desejamos
alcançar é o de demonstrar que, mesmo após os debates travados pela comunidade negra em
defesa da manutenção e também da difusão de sua história e cultura e a subsequente
aprovação de leis que tornam obrigatório o ensino de História da África e da cultura Afro-
brasileira nas escolas de ensino básico - mais precisamente a lei 10.639/2003 - a falta de
preparo por parte de grande parte dos professores das áreas de ciências humanas que
compõem o quadro do ensino regular, aliado à pouca pesquisa e conteúdo produzido sobre o
tema por professores e pela academia tem permitido que, mesmo com os avanços conseguidos
na legislação a respeito do tema sobre a importância da constituição de uma história da
educação antirracista, o negro africano e seus afrodescendentes, ou seja, a comunidade negra
ainda é concebida a partir de estereótipos herdados de uma construção que remete ao período
colonial, perpassando nossa história e presente aos dias atuais.

Palavras - chave: Livro Didático, Ensino de História, Cultura Afrobrasileira.


SUMÁRIO

1. Introdução.........................................................................................................................05
2. Desenvolvimento...............................................................................................................07
2.1. O Período Republicano e os “novos” olhares sobre a população negra..............07
2.2. A Luta do Movimento Negro pelo reconhecimento e estudo da sua
história....................................................................................................................................11
2.3. Uma breve análise sobre a África, o negro e a história na perspectiva do livro
didático...................................................................................................................................18
3. Conclusão..........................................................................................................................22
4. Bibliografia.......................................................................................................................24
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INTRODUÇÃO

A População negra tem importantes laços de contribuição nos principais momentos


históricos do Brasil. Isso pode ser percebido em vários momentos do processo de formação da
história e do território brasileiro em seus processos variados, sejam eles socioculturais,
econômicos, e até mesmo geográficos. Das grandes plantações e dos engenhos de Cana de
açúcar no litoral do Nordeste, da Extração do ouro nas Minas Gerais, dos cafezais no Sul do
Brasil, sem esquecer dos cultivos de arroz e algodão, da influência cultural marcante na
música, na dança, na língua, na religião. Algumas dessas atividades, desenvolvidas no período
colonial, têm como marca fundamental o dinamismo do negro durante o período do trabalho
escravo, realizado por negros cativos quando cruzavam o atlântico trazidos à força de suas
terras no continente africano. No que concerne à sua cultura, suas danças e músicas
originaram outros estilos e ritmos; suas tradições e religiosidades, sua gastronomia estão de
tal forma arraigados no estilo de vida do brasileiro que é impossível negar tal influência já
incorporadas em nossos padrões, que se destacam pelos aspectos multiculturais e pluriétnicos.
No entanto, o que se evidencia ao longo da história da população negra no Brasil é que
ainda vivemos reflexos de uma era escravocrata recente; verifica-se um silêncio oportuno por
parte do estado na criação e implantação de políticas em benefício da população negra. Essa
ausência de políticas públicas promotoras de igualdade por parte do estado faz com que a
maior parte da população negra viva em precárias condições, segregados de direitos
fundamentais como educação, saúde, saneamento básico e segurança, resultantes de um
gradual processo de exclusão da comunidade negra dos centros das atenções do poder
público-administrativo. Darcy Ribeiro, em sua obra “O Povo Brasileiro”, destaca que “a luta
mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, e ainda é, a conquista de
um lugar e de um papel legítimo na sociedade brasileira” (RIBEIRO, 2006, p. 202). No que
diz respeito à educação, o acesso à mesma em nosso país vem sendo marcado por processos
de exclusão e de atendimento diferenciado. O que temos por parte do estado são
silenciamentos diante da questão etnicorracial na educação brasileira, seja em suas políticas e
legislação ou na implementação prática do que consta nessas diretrizes. A educação iniciada
pela Companhia de Jesus no período colonial, iniciou-se sem considerar o contingente
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humano aqui presente: era necessário ser homem, branco e filho de donos de terras ou dos
colonizadores para ter acesso a essa educação escolarizada ofertada pelos jesuítas. O objetivo
desse ensino era garantir a instrução quanto à cultura geral básica. Além disso, aos filhos de
colonos também era reservada a catequese, assim como também aos nativos. À população
negra restava apenas o trabalho escravo, sem a possibilidade de frequentar a sala de aula. Essa
educação de caráter separatista e exclusivista predominou durante todo o Império e boa parte
da República, como pode ser observado através de uma análise das constituições nacionais, ou
mesmo com a criação de leis que proibiam de forma clara a presença do negro em sala de
aula. Exemplo dessa exclusão foi o advento da lei nº 14 de 22 de dezembro de 1837, que ao
tratar das escolas de instrução primária no Rio Grande do Sul, dizia o seguinte em seu artigo
3º: “São proibidos de frequentar as Escolas Públicas: £ 2º – os escravos, e pretos ainda que
sejam livres, ou libertos.”1 Em 1854, no Rio de Janeiro, município da corte e espelho da nação
que se construía, essa proibição atingia somente as pessoas escravizadas e os portadores “ de
moléstias contagiosas”, como afirma Alessandra Schueler:

Ainda em 1854, por meio do Regulamento da Instrução Primária e secundária no


Município da Corte (lei 1331 a, 17/02/1854), o público-alvo do ensino primário e
secundário foi delimitado. O acesso às escolas criadas pelo Ministério do Império
era franqueado à população livre e vacinada, não portadora de moléstias contagiosas.
Os escravos eram expressamente proibidos de matricularem-se nas escolas públicas.
Excluindo-se os cativos, a legislação da Instrução Pública estabelecia e ratificava a
distinção fundamental da sociedade imperial: a que marcava a subordinação dos
escravos e homens livres. (SCHUELER, 1999)

As lutas da população negra no Brasil ganharam nova dimensão no Brasil republicano.


Importantes organizações surgiram e se espalharam pelo país. Homens e mulheres negros,
intelectuais, políticos, artistas, trabalhadores se organizaram para lutar de diferentes formas de
discriminação social e por melhores condições de vida para a população negra, especialmente
pelo acesso à educação. Nesse quesito, torna-se necessário responder a pergunta: Qual tem
sido o papel do povo negro na luta por uma melhor representatividade de sua história, cultura
e tradição frente aos currículos escolares e à própria comunidade escolar? E qual tem sido o
papel da escola face a toda essa herança cultural negra? Como o negro tem sido apresentado
em todo o processo de aprendizado do estudante? Como o livro didático, produzido por

1Fonte: ¹ BARBOSA, Eni (Org.) O processo legislativo e a escravidão negra na província de São Pedro do Rio Gran de do Sul – Fontes. Porto
Alegre, Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; CORAG, 1987, pg. 49. In: PEREIRA, Amilcar Araujo: Movimento ne gro
contemporâneo, memória e educação: aspectos da luta anti-racista na segunda metade do século XX.
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professores/historiadores/pesquisadores e que chegam às mãos desses alunos vêm


apresentando as temáticas a respeito do negro, seja ele africano, afrodescendente, imigrante, e
seus desafios para superar o preconceito histórico existente, ainda mais se levarmos em conta
o caráter eurocêntrico do ensino no Brasil, que é evidente, bem como a inviabilização nos
currículos de várias matrizes étnicas formadoras de nossa sociedade. Nosso objetivo, dessa
forma, é tentar compreender a estrutura das políticas de educação das relações étnicorraciais
ao longo da história da educação brasileira, bem como perceber qual tem sido a real
representação do negro nos textos e ilustrações do livro didático fornecido às escolas e alunos
que a compõem.

O Período Republicano e os “novos” olhares sobre a população negra.

Após a abolição da escravatura ocorrida em 13 de maio de 1888, em pouco mais de


um ano o Brasil se vê diante de um movimento orquestrado pela elite dominante junto com o
exército que culmina com a proclamação da independência e o surgimento da República.
Entretanto, o que representava uma ruptura com um antigo modelo de gestão política - o
império monárquico - revelou-se incapaz de gestar transformações sociais profundas na vida
da população brasileira e no caso da comunidade negra, a nascente república viu-se incapaz
de promover ações em defesa da abrangência de oportunidades da população negra. Segundo
Fonseca Leite, “o silêncio da Lei Áurea, promulgada pela princesa Isabel, no que se refere à
inclusão dos ex-escravos nos espaços da sociedade, principalmente no mercado de trabalho,
aparece como um importante fator que dificultou a inclusão da população liberta. (LEITE,
2011, p. 2). Não havia dúvidas de que a população de cor foi mais uma vez marginalizada em
relação aos seus direitos fundamentais e mesmo após a vitoriosa campanha abolicionista não
houve reformas políticas que pudessem fazer a integração dos ex-escravos como membros
produtivos da sociedade. A teoria da inferioridade racial da população negra face à população
branca surge como um dos motivos determinantes para a manutenção da condição de
submissão da mão de obra negra. Mesmo os abolicionistas, conhecedores das teorias racistas
vindas da América do Norte e da Europa, carregavam consigo um certo drama: o de pertencer
a uma sociedade miscigenada e de maioria negra. A escravidão negra impunha limites
epistemológicos para o desenvolvimento pleno do país. A população negra estava fora da
preocupação dos governantes. Somente com o movimento abolicionista é que o negro é
integrado às preocupações nacionais, mesmo porque o sistema escravagista não permitia a
entrada do progresso, sendo um entrave ao avanço econômico, político e cultural do país. A
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preocupação pelo destino do escravo manteve-se em evidência enquanto este esteve ligado ao
trabalho na lavoura. Nela aparece nos vários projetos que visavam regular, pelas vias legais, a
transição do trabalho escravo para o trabalho livre, desde 1823 até a assinatura da Lei Áurea.
Com a Abolição pura e simples, a atenção dos senhores se volta especialmente para
seus próprios interesses. Conforme estabelece Rezende da Silva

Não houve a transformação da condição jurídica do trabalhador negro escravizado e


sim, em grande medida, sua substituição pelo trabalhador branco imigrante. A
abolição da forma como ocorreu não garantiu direitos efetivos aos negros, nem
tampouco promoveu uma transformação radical da sociedade brasileira. A estrutura
fundiária permaneceu intocada, a vida econômica continuou apoiada na grande
propriedade exportadora e a população escravizada, depois de libertada, foi
marginalizada e abandonada à sua própria sorte. (SILVA, 2011, p. 78)

A política de imigração foi de fundamental importância para efetivar no debate a


temática da questão racial, que até então era pouco discutida. Ocupando-se de ser mais uma
estratégia de embranquecimento da nação, a política de imigração serviu para ampliar os
preconceitos quanta à participação do negro nos espaços públicos, acentuar os mecanismos
discriminatórios e fortalecer os estímulos à imigração europeia. (JACCOUD apud LEITE,
2011, p. 5). A colonização europeia efetuou-se, segundo Rezende da Silva “acima de tudo no
plano psicológico” (2011, p 78); o retrato degradante imposto pelo branco conquistador
muitas vezes será aceito pelo próprio negro. E este acabou-se tornando o reflexo que nos
chega até os dias atuais na forma de preconceito e racismo. Mesmo após a abolição da
escravatura em 1888, o negro continua sendo visto e tratado de forma marginal, pois quando
deixa de ser a mão de obra gratuita dá-se preferência à mão de obra paga do imigrante
europeu numa tentativa de embranquecimento do país. Dessa forma, além da falta de um
amparo mínimo do Estado, os negros foram recusados pela sociedade como mão de obra
paga. Diante dessa marginalização, muitos migraram em busca de terras distantes nas quais
pudessem praticar a agricultura de subsistência ou passavam a ocupar as periferias distantes
dos centros urbanos. Sobre esses, Florestan Fernandes (2008, p. 64) nos diz que estavam
numa situação de caboclização e sobre outros que passaram a ser uma desvalorizada e inapta
mão de obra, a qual só era aproveitada nos trabalhos extenuantes e desabonadores.

Dentro de semelhante contexto econômico, psicossocial e sociocultural, as


humilhações, os ressentimentos e os ódios, acumulados pelo escravo e pelo liberto
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sob a escravidão e exacerbados de forma terrível pelas desilusões recentes, lavraram


destrutivamente o ânimo de negros e escravos. Tudo contribuía para aumentar sua
insegurança, natural numa fase de mudanças tão bruscas, e para agravar ansiedades e
frustrações que não podiam ser canalizadas “para fora” nem corrigidas
construtivamente, através de mecanismos psicossociais de interação com os “outros”
e de integração à ordem social emergente. As alternativas de escolha valorizadas
social e moralmente desde o passado remoto, conduziam as aspirações e as
identificações predominantes na direção da equiparação com os brancos das
camadas superiores. O êxito dos imigrantes fortaleceu ainda mais as expectativas daí
decorrentes. Todavia, as alternativas reais iam da caboclização no campo à
pauperização nas cidades, passando por “contratos de trabalho” que não traduziam
melhora sensível da situação da existência anterior, piorando-a muitas vezes.
(FERNANDES apud SILVA, 2011, p. 79).

Portanto, mesmo o negro liberto não era bem visto na sociedade brasileira. Os valores
nela incutidos continuarão a persegui-lo de forma a gerar preconceitos e injustiças sociais,
pois os negros muitas vezes sem emprego e sem acesso à propriedade da terra ocupam uma
posição inferior na sociedade.
O próprio negro que na maioria dos casos já não era africano, pois sofreu forte
processo de aculturação, também não era branco; entretanto acaba por ficar exposto a um
processo de embranquecimento que se dá, segundo Munanga 2(1988) pela assimilação dos
valores culturais do branco. Dessa forma muitos negros professarão a religião deste, se
vestirão e se alimentarão, e acima de tudo, falarão a língua dos brancos. Outra forma de
branqueamento são os casamentos ou relacionamentos entre negros e brancos. Por parte dos
negros há um desejo ainda que inconsciente, de se embranquecer e posteriormente
embranquecer seus filhos para que estes, eventualmente ocupem posição melhor na sociedade
e que sofram menos preconceitos. Não vivemos em uma democracia racial, embora seja
inegável a grande miscigenação ocorrida em nosso país, é inegável também que o preconceito
existe, ainda que camuflado. Se refletirmos bem, tergiversar que o colonizador pudesse aceitar
de bom grado a assimilação ou aceitação do negro no cerne da sociedade, fazendo parte ativa
da mesma e tomando decisões sobre o seu destino seria escamotear a relação colonial. Por
esse motivo, até os dias atuais nos deparamos com preconceitos e injustiças sociais e,
boquiabertos, reagirmos com certa perplexidade ao observarmos pessoas de cor que, assim
como o branco, consegue atingir certo padrão de vida ou se torna bem-sucedido em

2MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo em África. In: MOURA, Clóvis. Os quilombos na dinâmica social do
Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001. p. 21-31.
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determinada área onde majoritariamente a participação é de pessoas brancas; tal sentimento


não é nada menos do que uma construção histórica, fruto de preconceitos e injustiças sociais,
cujas origens remontam ao nosso passado escravista que ainda marca as consciências e o
modo de ser do brasileiro. Essa herança cultural e psicológica nos convida a refletir sobre a
negritude enquanto movimento de autoafirmação e valorização da herança africana na
constituição da população brasileira, não numa tentativa de homogeneização da população
sobre um falso suposto de uma democracia racial, mas sim de admitir que as heterogeneidades
são importantes e necessárias e por isso devem ser respeitadas.
O moderno movimento negro tem suas origens, de acordo com Guimarães3 (1999) em
movimentos dos anos 1930 e reinventados nos anos 1970. Por volta dos anos 30, do século
XX surge a Frente Negra Brasileira (FNB), que identificava o negro pelo elemento cor e não
pelo elemento cultural, procurava afirmar o negro como brasileiro e renegar as tradições afro-
brasileiras. Ainda nesta época, surge o Teatro Experimental do Negro (TEN) que mantém
intenso diálogo com as culturas afro-brasileiras. E finalmente, em 1978 surge o Movimento
Negro Unificado (MNU), que criticará duramente o mito da democracia racial.
O MNU é considerado por muitos o marco principal de evolução da luta do
movimento negro organizado. Considerado como um balizador da luta antirracista, o MNU
foi por muitos autores e pesquisadores comparado com outras organizações do movimento
negro, principalmente com o TEN (Teatro Experimental Negro), pois além do seu caráter
popular, inexistente no TEN, condena veementemente o discurso nacional hegemônico, ao
passo que o TEN defendia a plena integração simbólica do negro na identidade nacional
híbrida.
Em decorrência dos avanços gerados pela criação do MNU (Movimento Negro
Unificado), e levando-se em conta a trajetória de luta e conquistas obtidas pelos componentes
dessa organização, pode-se considerar que o Movimento Negro Organizado passava no início
da década de oitenta por uma grande evolução estrutural. Transformando esse período em um
momento de consolidações e conquistas para o movimento. Importa destacar aqui, para o
desenvolvimento do artigo, que o MNU foi responsável por trazer a tona, entre as várias
demandas da população negra, a problemática da educação, propondo as autoridades uma
revisão das bases e diretrizes dos currículos educacionais do país. Destaca-se nesse aspecto o
ano de 1988, período de muitas transformações para o movimento negro. Tendo como pano de
fundo as mudanças proporcionadas pela promulgação da nova Carta Magna, 1988 foi o ano

3GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999. 240 p.
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em que se comemorava o Centenário da Abolição; é neste acontecimento que concentra os


esforços negros.

A Luta do Movimento Negro pelo reconhecimento e estudo da sua história.

Promulgada em 1988, a constituição brasileira nasceu no momento em que, segundo


Nunes, “agonizava um modelo de Estado após a emergência de novos atores coletivos.”
(NUNES, p. 2). Muitos desses atores coletivos, membros da sociedade civil, travaram debates
e disputas teóricas e políticas durante a constituinte. Desse embate surge o documento que
ficou conhecido como Constituição Cidadã - a Carta Magna. Ela é considerada, por estudiosos
e especialistas, como o primeiro documento oficial, que busca reconhecer, da parte do Estado,
a formação histórica da sociedade brasileira a partir da pluralidade cultural de grupos étnicos
que aqui se encontraram. A Constituição de 1988 reconheceu a dignidade universal do ser
humano, enunciou a garantia da proteção da liberdade e da igualdade dos cidadãos, sem
distinção de sexo, raça, religião e ao mesmo tempo levou em consideração a diversidade
étnica e o pluralismo cultural ao reconhecer, por exemplo, os direitos das comunidades
quilombolas e indígenas, embora não tenha enunciado explicitamente quais seriam as
especificidades desses grupos, conforme indica d’Adesky (2005).4
A constituição brasileira de 1988 traz em seus dispositivos aspectos referentes a todas
as etapas históricas que Bobbio (2004) apontou como constitutivas da construção, no que se
refere aos direitos humanos, de um Estado democrático de direito: a positivação, que é a
atribuição do valor à pessoa; a generalização, que consiste na universalização dos direitos
humanos, baseada na ideia de igualdade e que, consequentemente, refuta a discriminação; a
internacionalização, que indica a importância do apoio da comunidade internacional à defesa
dos direitos humanos e por fim, a especificação, que deixa de enunciar seres genéricos como
portadores de direitos e passa a cuidar dos direitos de grupos socialmente constituídos, que
historicamente foram tratados desigualmente - as crianças, as mulheres, as minorias étnicas,
as pessoas com deficiência (NUNES,2014, P. 2-3).
A Constituição traz aspectos que remetem a todas as etapas históricas da elaboração
dos direitos humanos, mas apresenta uma tendência à especificação desses direitos. Inicia seu
conteúdo com artigos que transparecem a igualdade dos cidadãos - universalização dos

4D’ Adesky, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e antirracismos no Brasil. 1ª Ed. 1ª Reimp. Rio de Janeiro: Pallas,
2005. in: NUNES: Érica melanie Ribeiro: Políticas Públicas e marcos legais para educação antirracista no Brasil: da Constituição de 1988 à
Lei 10.639/03.
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direitos, como o artigo 3º que, em seu inciso IV indica como objetivo da República federativa
do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”. Devido às grandes expectativas por parte de
determinados grupos, em particular os minoritários, que tinham na confecção da Constituição
o marco simbólico da passagem de uma ordem antiga (ditadura civil-militar) para uma nova
ordem política (de viés democrático) que não somente lhes representaria, mas lhes permitiria
a inclusão no jogo das decisões políticas e de luta por direitos, havendo críticas contundentes
à mesma por parte desses grupos. A primeira delas evidencia que o processo teria sido muito
demorado, uma vez que a Constituição foi promulgada quase um ano após sua previsão. Outra
crítica diz respeito à extensão do texto constitucional, tanto em relação ao tamanho quanto em
abrangência (NUNES, 2014, p. 3). Uma das explicações para tal demora da promulgação foi a
atuação de diversos grupos com interesses distintos, cada qual pressionando os constituintes
para o atendimento de suas demandas. Outro fator a ser destacado foi a forma descentralizada
que se organizou a Assembleia Nacional Constituinte no início dos seus trabalhos. Apesar de
toda a extensão e abrangência do texto constitucional, as demandas do movimento negro
foram apenas parcialmente atendidas com a Constituição, sobretudo no que diz respeito às
reivindicações na esfera educacional.
O movimento negro, a partir de 1985, organizou encontros municipais e estaduais com
o objetivo de refletir a participação do negro no processo constituinte. Entre estes, destaca-se
o Primeiro Encontro Estadual “O negro e a constituinte”, realizado em julho de 1985 na
Assembleia Legislativa de Minas Gerais (RODRIGUES, p. 5). Essas reflexões prolongaram-
se por todo o ano de 1986, culminando com a realização em Brasília da Convenção Nacional
do negro pela Constituinte, com membros de mais de 60 entidades do Movimento Negro,
representando 16 estados da federação. Nessa convenção produziu-se um documento,
destinado aos constituintes, resultado dos encontros regionais ocorridos nessas unidades da
federação, com uma série de reivindicações. Dentre elas estavam: a criminalização do racismo
e a obrigatoriedade da inclusão nos currículos escolares de I, II e III graus, do ensino de
História da África e da História do negro no Brasil. Destas, apenas a primeira demanda foi
plenamente atendida na Constituição de 1988.5Torna-se imprescindível destacar que, no que
se refere à educação, uma das principais demandas do movimento negro no âmbito da
Subcomissão de negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias6 era a de que a

5Rio de Janeiro: NUNES: Érica melanie Ribeiro: Políticas Públicas e marcos legais para educação antirracista no Brasil: da Con stituição de
1988 à Lei 10.639/03. (Pag. 3).
6Os trabalhos organizaram-se inicialmente em Subcomissões, que eram responsáveis pela preparação de anteprojetos básicos, esses eram

emendados e votado no âmbito das próprias subcomissões, em uma primeira etapa; na segunda etapa eram consolidados e novamente
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Constituição, em seu texto, afirmasse o compromisso contra toda forma de discriminação,


com a valorização e respeito à diversidade e com a obrigatoriedade do ensino de história das
populações negras do Brasil, como uma das soluções para o resgate e concomitantemente a
promoção de uma identidade étnico-racial e a construção de uma sociedade plurirracial e
pluricultural. Nesse sentido Nunes destaca que

Da denúncia da escola como instituição reprodutora do racismo à concretização de


propostas de reconhecimento da produção cultural negra, o movimento negro
ressaltou que repensar a educação passa, necessariamente, por repensar o papel que
a raça ocupa na construção da sociedade brasileira e que a educação só pode criar
pontos de identificação para a criança negra com o reconhecimento do legado
africano para a construção do Brasil. Nunes destaca ainda que essas propostas foram
inicialmente aceitas na Assembleia Nacional Constituinte e inseridas no anteprojeto
elaborado e aprovado por essa subcomissão, todavia “ao ser submetido à Comissão
Temática da Ordem Social e à Comissão de Sistematização a garantia, no texto
constitucional, de que a história e a cultura do povo negro e do índio seriam tratadas
nos três níveis da educação brasileira foi retirada (NUNES, 2014, p. 5).

O quadro abaixo, proposto por Nunes, sintetiza as gradativas mudanças que foram
sendo impressas à proposta inicial:

Anteprojeto de subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias

Art. 4º A Educação dará ênfase à igualdade dos sexos, à luta contra o racismo e todas as formas de
discriminação, afirmando as características multiculturais e pluriétnicas do povo brasileiro.
Art. 5º O Ensino de “História das Populações Negras do Brasil” será obrigatório em todos os
níveis da educação brasileira, na forma que a lei dispuser.

Anteprojeto da Comissão Temática da Ordem Social

Art. 85 O Poder público reformulará, em todos os níveis, o ensino de história do Brasil, com o
objetivo de contemplar com igualdade a contribuição das diferentes etnias para a formação
multicultural e pluriétnica do povo brasileiro.

Comissão de Sistematização – Constituição Federal de 1988

votados em Comissões Temáticas e finalmente reunidos em um texto completo na Comissão de Sistematização. Só então o texto seria
apreciado, emendado, e se fosse o caso, votaod pelo Plenário da Assembleia Nacional Constituinte. In: RODRIGUES, Tatiane Cosentino:
Movimento negro, raça e política Educacional; GT: Afro-Brasileiros e Educação, nº 21. pag. 5.
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Art. 242 O Ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas
étnicas para a formação do povo brasileiro.

FONTE: RODRIGUES, Tatiane Cosentino: Movimento negro, raça e política Educacional; GT: Afro-Brasileiros
e Educação, nº 21. pag. 6.

A Justificativa apresentada para a retirada dessa proposta do texto constitucional foi a


de que, por se tratar de uma questão muito particular, deveria ser abordada em legislação
complementar específica. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB
9394/1996), que começa a ser debatida após a Constituição de 1988, passando por oito anos
de tramitação no Congresso, revoga os textos legais até então em vigor, tornando-se o
documento básico e fundamental da política educacional. No que diz respeito à temática
racial, entretanto, os diferentes projetos de lei e versão final da lei aprovada em 1996, apenas
reproduziram os princípios da Constituição Federal de 19887.
No processo de elaboração da nova Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional,
podem-se identificar duas etapas que correspondem à tramitação dos projetos nas duas casas
legislativas do Congresso Nacional. A primeira diz respeito à tramitação do projeto na Câmara
dos Deputados que se inicia já em 1988 e vai até 1993 com a sua aprovação na casa. A
segunda refere-se ao processo de tramitação no Senado Federal, no período de 1994 -1996,
que de Casa revisora do projeto, acaba aprovando um substitutivo. Todavia, no que diz
respeito à temática racial, os projetos de lei elaborados nessas duas etapas não se distinguem
quanto ao tratamento da questão racial, que permanece a mesma.
Durante o processo de elaboração da LDB a representação do movimento negro esteve
restrita à participação da Senadora Benedita da Silva que apresentou e defendeu propostas, em
nome do movimento negro, de reformulação do ensino de história do Brasil e a
obrigatoriedade em todos os níveis educacionais da ‘História das populações negras do
Brasil’. As duas propostas foram negadas com a justificativa de que uma base nacional
comum para a educação tornaria desnecessária a existência de uma garantia e espaço
exclusivos para a temática.
Em relação ao currículo, a LDB 9.394/96 caracterizou-se, a despeito de todas as
alterações sofridas durante o percurso de sua aprovação, pela flexibilização de conteúdos. Até
então, os currículos dos Ensinos Fundamental e Médio eram padronizados em todo o território
nacional, sem que se considerasse a diversidade de culturas que compõe a sociedade
7Art. 242 £ 1º O Ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnia para a formação do povo
brasileiro. In: RODRIGUES, Tatiane Cosentino: Movimento negro, raça e política Educacional; GT: Afro-Brasileiros e Educação, nº 21. pag.
7.
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brasileira. A nova LDB estabeleceu, em seu artigo 26º, que os currículos da educação básica
devem ter uma base nacional comum a ser complementada por uma parte diversificada,
conforme as características regionais da sociedade, da cultura, da economia e dos estudantes.
Dessa forma, ela permite a flexibilização dos currículos oferecendo autonomia às regiões e
permitindo que o conteúdo seja reestruturado de acordo com as demandas educativas
regionais. A base nacional comum, segundo a LDB, deveria ser composta pelo estudo de
Língua Portuguesa, Matemática, mundo físico e natural, realidade social e política, em
especial do Brasil, Educação Artística, Educação Física, e a partir da 5ª série uma Língua
Estrangeira Moderna. Estabeleceu também, a partir do artigo 26º, ínciso 4º, que

O Ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes


culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes
indígena, africana e europeia. (Art. 26º £ 4º)

Dessa forma, tal como a constituição federal determinava, a LDB aponta que o ensino
de História do Brasil deveria levar em consideração as contribuições pluriétnicas na formação
do Brasil e nomeia aquelas a que se deve dar destaque.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996) não contemplou as
reivindicações educacionais do Movimento Negro, como a inclusão da obrigatoriedade nos
currículos escolares de todos os níveis do ensino de História da África e da História do Negro
no Brasil; porém trouxe, observando sob outra perspectiva, o primeiro movimento no sentido
de afirmação, por parte da legislação educacional, de uma diversidade étnica e cultural
brasileira, ao afirmar que o ensino de História do Brasil deve primar por apresentar as
diversas contribuições étnicas e culturais do país. A obrigatoriedade do ensino de História da
África não estava posta na nova LDB, devido ao caráter flexível que o documento possuía,
particularmente na composição do currículo; entretanto as reivindicações de entidades
indígenas, de entidades negras e de intelectuais comprometidos com a diversidade e mesmo
de referências da historiografia crítica ao eurocentrismo não foram atendidas em sua proposta
essencial. Comprovando os pressupostos apresentados, Ubiratan Aguiar8, quando questionado
sobre a ausência da temática racial e da participação do movimento negro no processo de
elaboração e discussão da LDB, ressaltou:

8Coordenador da comissão suprapartidária que elaborou a proposta de texto para a educação, na Comissão de Sistematização da
Constituinte, depois foi presidente da Comissão de Educação e Cultura. Coordenador da discussão da LDB na Câmara dos Deputados.
16

Sob o ponto específico que você está ressaltando, o enfoque não é o da cor, o
enfoque é o da necessidade, você pode ser branco, negro, mameluco, índio
riquíssimo e isso não quer dizer que deva assegurar a ele uma cota para ingressar na
universidade, a cota deve ser a da competência, do conhecimento que seja dada pela
qualidade do ensino, seja público ou particular. A vertente é de um Brasil de
injustiça social, que poucos têm muito e muitos não têm nada. Por isso se há um
modelo de educação nacional, ele deveria ser retangular, quem ingressa deveria ter a
oportunidade de sair, e aí estão incluídas as minorias e a grande maioria dos que não
têm. (…). Nós nascemos de um caldeamento de raças, quem é que não tem um
sangue um pouco de português, de africano, de indígena, nós somos o produto do
caldeamento dessas raças, uns tão mais presentes na pigmentação da pele. Sobre o
movimento negro, olhe, eu sei que houve algumas manifestações, mas não
propriamente na área educacional, considerando essa questão lembro-me do
problema da educação indígena, esse eu lembro que houve uma presença muito forte
(entrevista com Aguiar, 2004).

Segundo Nunes, na fala de Aguiar “há alguns elementos que deixam latente qual a
concepção que orientou a formulação da lei de Diretrizes e Bases e a que se deve a recusa ou
reapropriação das propostas do movimento negro” (NUNES, 2014, p. 9)

Primeiro, o entendimento de que o processo de miscigenação teria dissolvido o


elemento negro, apagando a ideia de raça inclusive na consolidação das
desigualdades sociais, atribuída à pobreza; segundo, raça aparece como categoria
subsumida à classe; terceiro, a ideia de mérito, de que o indivíduo é o único
responsável por seu fracasso ou sucesso e por último o tratamento dispensado ao
movimento negro, de cunho eminentemente cultural (NUNES, 2014, p. 9).

Embora a LDB/1996 não tenha contemplado as reivindicações educacionais do


movimento negro, que já haviam sido diluídas durante o processo de elaboração da
constituição federal de 1988 na Assembleia Nacional Constituinte, em 2003, teremos a
promulgação da lei nº. 10.639/03, resultante do projeto de lei nº 259 de 1999, apresentado por
Esther Grossi e Benhur Ferreira. A lei 10.639/03, em vigor desde janeiro de 2003, alterou um
dispositivo da LDB e tornou obrigatório o ensino de História e cultura Afro-brasileira nas
escolas de ensino fundamental e médio de todo o país. Essa alteração foi regulamentada com
a aprovação do parecer nº. 03/2004 do Conselho Nacional de Educação, que estabeleceu
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações étnicorraciais e para o Ensino
17

de História e Cultura afro-brasileira e Africana, e da Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004.


O parecer CNE/CP nº. 1 detalhou os direitos e as obrigações dos entes federados frente a
implementação da Lei 10.639/03. A referida lei altera o parágrafo 4º, artigo 26, da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e torna obrigatório o ensino de História e
Cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio de todo o país. Tal artigo,
após a aprovação da lei nº 10.639, passou a ser acrescido dos seguintes:

Artigo 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio e particulares,


torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
£ 1º. O Conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo
da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
£ Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras.
Artigo 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 29 de novembro como Dia Nacional
da Consciência Negra.

Essa alteração na LDB/1996 foi regulamentada com a aprovação da resolução nº1 de


17 de junho de 2004 e do parecer nº 03/2004, que estabelece Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e africana.
Com a aprovação da lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares, o Estado abandonou
definitivamente o discurso que defendia a existência de uma cultura brasileira mestiça e
assume a proposta de desenvolver políticas educacionais de reparação e de ação afirmativa em
relação às populações negras. A lei 10.639/03 atendeu às antigas reivindicações do
movimento social negro em relação à educação, apresentando-se como a culminância desse
processo. Heringer9 (2004) afirma que essas medidas foram amplamente saudadas pelos
ativistas do movimento negro, pois tratava-se de um projeto de lei que tramitava há algum
tempo na Câmara dos Deputados e de uma reivindicação antiga desse movimento, por isso
contou com o apoio de várias de suas organizações. Embora essa alteração na LDB/1996 e a
aprovação do Parecer que a regulamenta indiquem a possibilidade de romper com a
predominância do paradigma eurocêntrico na educação, na medida em que pode implicar uma

9HERINGER, R. Promoção da igualdade racial no Brasil. Teoria e Pesquisa, nº. 42 e 43, p. 285-302, 2004. In: RODRIGUES, Tatiane
Cosentino: Movimento negro, raça e política Educacional; GT: Afro-Brasileiros e Educação, nº 21. pag.
18

ampla modificação curricular inclusive nos cursos de formação de professores e de todos os


profissionais da educação, o seu processo de implementação precisa ser acompanhado quanto
aos riscos de descaracterização de uma implementação que não atenda aos interesses da
população negra.

Uma breve análise sobre a África, o negro e sua história na perspectiva do Livro
Didático

Para Fernandes (2005), os livros didáticos estão permeados de uma “concepção


positivista” da historiografia brasileira, conferindo uma orientação teórico-metodológica
através de um conteúdo programático primado por uma visão monocultural e eurocêntrica do
passado brasileiro, podendo isso se configurar como um exemplo claro de falta de
conhecimento associado ao reconhecimento errôneo, colocando nas próprias escolas a
incumbência de difundir conceitos capazes de serem caracterizados como falta do respeito
devido. No que tange à promoção da história e da cultura negra e afrodescendente, isso fica
evidente ao percebermos o lugar do negro e de outras minorias na confecção do conteúdo dos
livros didáticos ao longo da história da educação brasileira e como
eles influenciam na construção do imaginário social a respeito da população negra e suas
tradições. A esse respeito, temos a fala do professor Anderson Ribeiro Oliva, ao destacar que

Convivendo com os bancos escolares desde 1982, ora como aluno, ora como
professor, é interessante perceber que a maneira como nos apresentam a
configuração social, étnica e cultural dos brasileiros enfatiza a ideia de que somos
frutos de um grande tronco europeu branco que recebeu alguns empréstimos
indígenas e africanos. Partindo desse princípio, seria preciso conceder ao estudo da
História europeia uma maior atenção e apenas dar breves e fragmentadas notícias da
História indígena e da África. Com relação a esta última, ela aparece muitas vezes
apenas como um apêndice passivo da história comercial europeia. Nem o Egito
parece ser africano. Temos certeza de que os reis europeus ou os feudos medievais
são muito mais brasileiros do que os reinos iorubás ou do Ndongo e as práticas
comerciais agrícolas ou de metalurgia de suas etnias, que, aliás, nunca nos foram
apresentadas na escola (OLIVA, 2004, 28)10

10OLIVA, Anderson Ribeiro. A África, o imaginário ocidental e os livros didáticos – Reflexões de uma pesquisa acerca do ensino de
História da África. In: ROCHA, Maria José & PANTOJA, Selma (ORG) - Rompendo silêncios: História da África nos currículos de
educação Básica.
19

Existe clara tendência entre os livros didáticos em dedicar um número


significativamente menor de páginas ao abordar a temática do negro e seus aspectos
correspondentes, o que inclui sua própria história e tradições, cultura, ascendência e
descendência. Fazendo uma comparação rápida entre temas abordados nos livros, constata-se
que, enquanto os capítulos que tratam de temas como Europa Medieval, Absolutismo
Monárquico, Renascimento Cultural e Construção do Pensamento Moderno Ocidental
consomem entre 15 e 20 páginas e vasta bibliografia, a História da África quase sempre é
abordada em um único capítulo que varia de 10 a 15 páginas e com uma literatura de apoio
restrita. Por falta de reconhecimento ou de interesse, percebe-se um grande desequilíbrio ao
tratar as civilizações e história do Ocidente e da África. Em estudo realizado nas escolas
públicas de Pelotas-RS, Raquel Garcia Vigorito entrevistou diretoras de duas escolas que
declararam suas dificuldades, à época, em implementar a lei 10.639/03, devido a falta de
recursos, tanto de material quanto a problemas com pessoal qualificado11. Outros estudos
relatam o mesmo problema:

Faltam materiais didáticos e professores preparados para o ensino de história e


cultura afro-brasileira nas escolas de todo o País. O Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares da Educação das Relações Étnico-racial
representa um avanço no reconhecimento da cultura africana como uma das
principais matrizes cultura brasileira. No entanto, algumas dificuldades para que a
lei seja implementada de fato nas escolas. A principal delas é a questão da formação
dos professores já que o tema é pouco abortado mesmo nas faculdades de história.
Imagine quantos professores se formaram sem nunca ter estudado o tema (SILVA,
2008)12

Ou seja, o próprio ensino de História da África impõe-se como um desafio para os


professores da educação básica. Embora a lei 10.639/03 tenha sido aprovada há 18 anos –
estabelecendo a obrigatoriedade da inclusão no currículo oficial das redes de ensino, a
temática História e Cultura Afro-brasileira a ser ministrada no âmbito de toda a grade escolar,
em especial nas áreas de Artes, Literatura e História - acabou por gerar algumas inquietações
e dúvidas, tanto nos próprios meios escolares quanto acadêmicos, devido ao fato de muitos
professores já formados ou em processo de formação, salvo algumas exceções, nunca terem
tido contato com disciplinas relacionadas à História da África; some-se a isso o fato de que

11VIGORITO, Raquel Garcia. A lei nº. 10.639/03 nas escolas públicas na cidade de pelotas/RS –
www.ufpel.edu.br/cic/2008/cd/pages/pdf/CH/CH 01428. pdf 2008
12SILVA, Geovan João Alves da. Fórum para implementação da lei 10.639/03.
20

grande parte do material didático de História utilizado na rede básica de ensino não reservar
espaço adequado para a temática e, quando o faz, parte do pressuposto de que a história do
negro, principalmente o africano, só adquire forma a partir de seu sequestro e escravização
nas Américas, deixando-o a mercê do colonizador europeu, junto aos nativos americanos, ou
seja, a referência que surge a África, enquanto continente ocorre somente a partir do tráfico.
Acrescente-se ao que foi dito aqui a pouca literatura produzida e o pouco espaço
reservado no mercado editorial brasileiro, além das pouquíssimas especializações sobre o
tema. É como se o continente não tivesse uma história anterior à escravidão atlântica. Nesse
caso, a África é apresentada aos alunos separada em duas ou três faixas étnico-geográficas-
linguísticas de onde sairiam os escravos. A diversidade e complexidade dos povos africanos
ficam nubladas ao realizarmos este imperfeito fatiamento da África; os alunos, ao terem
contato com esta leitura reducionista, passam a reproduzi-la, transformando milhares de
grupos étnicos em outros dois - bantos e sudaneses. São poucos os autores que procuram
estabelecer uma outra divisão na qual, usando uma fusão de grupos linguísticos com espaços
físicos, optam por denominar as regiões do tráfico em África de Guiné, Costa da Mina e
Angola, de onde viriam os congos e angolas.
De forma parecida, quase não existem menções aos africanos ou às formas de
escravização usadas na África. Para muitos autores, somente os comerciantes portugueses,
espanhóis, ingleses e brasileiros fizeram parte das redes de lucro oriundas de tal atividade. A
participação dos africanos no comércio de homens é quase ignorada; quando procuram citar
os grupos e sociedades africanas estudadas, os autores utilizam uma difundida ideia entre
alguns historiadores que se serviram de padrões ou referências europeus para explicar o que
encontravam na África. Neste sentido, há uma busca pelos grandes impérios, as grandes
construções e as esplendorosas obras de arte, conforme o modelo eurocêntrico.
Há ainda, os capítulos que tratam da expansão marítima, onde o continente africano é
retratado como um obstáculo a ser superado para atingir o lucrativo mercado de especiarias do
Oriente, ora como uma fonte de riquezas naturais – ouro, marfim – ou oferta de mão de obra –
os escravos.
Outro problema comum é enfatizar apenas algumas regiões da África Ocidental ou
Central-Ocidental, ignorando outras regiões africanas. Nas descrições, os autores muitas
vezes, se prendem a imprecisões e simplificações. Ao invés de abordar, por exemplo, a
relevância da metalurgia, do domínio da grande agricultura e o circuito comercial que
envolvia as atividades econômicas. Os autores se limitam a ressaltar as dificuldades impostas
pelo meio geográfico e as grandes fomes e epidemias. Não que este quadro não existisse, mas
21

é preciso relevar também a outra face da capacidade dos africanos em dominar e utilizar o
meio.
No que se refere às religiões africanas, em nenhum momento os livros atentam para
uma abordagem explicativa da relação entre as diferentes percepções e definições daquilo que
os ocidentais chamam de Religião para as elaborações africanas sobre a questão. A literatura
existente sobre o pensamento tradicional religioso africano oferece um rico subsídio para este
debate, fundamental para relativizar o universo africano e demonstrar como suas estruturas de
explicação das relações sociais e de vida são diferentes das ocidentais.
22

CONCLUSÃO

O Estado brasileiro formou-se permeado pelos ideais eurocêntricos, apesar de termos


fortemente a presença das matrizes indígenas e africanas em nosso território, contribuindo
com nossa formação histórica e cultural. Nossa composição enquanto sociedade se deu a
partir dos interesses do europeu, especificamente do português que, chegando a essas terras,
forçaram os indígenas a abrirem mão de suas terras, cultura, costumes, língua e religião. Os
que resistiram foram dizimados e hoje, praticamente desapareceram ou estão ameaçados de
desaparecer face ao projeto de colonização lusitana que, assim como há 500 anos, invade suas
terras e não respeita sua historicidade.
Os negros chegaram ao Brasil na condição de escravos e ao final do processo
escravocrata sequer foram indenizados por ocasião da Abolição; antes, ficaram à margem da
sociedade sem terra, sem meios de produção e subsistência, e sem o acesso à educação
formal, ou quando muito, com uma educação marcada pela precariedade, comparada à
educação da elite branca. Parafraseando Santos13 (2012) vemos que “desde sua formação, o
Estado serviu a uma minoria e não foi capaz de evitar as desigualdades sociais”. O papel do
estado é promover o bem comum, mas há muitas controvérsias com relação a esta afirmação.
O Estado brasileiro foi idealizado para beneficiar uma minoria que abocanhou o poder,
enquanto a maioria da população ficou fora dos projetos de desenvolvimento. Um dos
segmentos da sociedade que sempre ficou marginalizado foi o povo negro, porque após a
Abolição da escravidão foram deixados com as mínimas condições de sobrevivência, muitos
acabaram por continuar ofertando sua mão de obra em troca de um lugar para morar e comida.
Este fato ocasionou a marginalização deste povo, que foi parar nos cortiços e, atualmente,
habita as grandes periferias.
Esse artigo foi escrito como uma tentativa de analisar, e concomitantemente,
compreender a estrutura das políticas de educação das relações étnicorraciais ao longo da
história da educação brasileira, bem como entender o processo histórico de luta da população
negra pelo reconhecimento e difusão de sua história e do seu real papel na composição da
sociedade brasileira e toda a riqueza da sua cultura que se insere e permeia nossa formação
enquanto povo.
Os desafios estão postos; não vivemos em uma democracia racial, embora seja
inegável a grande participação da comunidade negra na construção da nossa história, é

13SANTOS, Elaine sasso dos. O Estado e a lei 10.639/05: Compensação ou reparação. Disponível em: Estudiosafricanos.cea.unc.edu,br.
2012.
23

inegável também que o preconceito existe, ainda que camuflado. Nesse sentido percebe-se
uma tentativa por parte do Estado de se redimir das injustiças ocorridas para com a população
negra. Já não bastasse mais de três séculos de escravidão, sua história ficou a parte dos
currículos, ou quando não, cheia de estereótipos e reducionismo a respeito dos povos negros
que para cá foram trazidos à força e do lugar de onde vieram. Este fato causou danos
profundos aos estudantes afro-descendentes que não se sentem representados na escola, na
literatura, no currículo. Nesse sentido “a lei 10.639/03 precisa ser cumprida porque é direito
de todas as etnias terem acesso ao conhecimento e saber sobre a história de todos os povos”
(SANTOS, 2012, p 144).
24

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