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MULHERES, FAVELAS E DIREITO Á CIDADE:

ESPACIALIDADES, SUBJETIVIDADES E R-EXISTÊNCIAS NA


CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Gabriela Angelo Pinto


biaangeloffp@yahoo.com.br
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia-UFF (Universidade
Federal Fluminense)
RESUMO

O debate do direito à cidade na perspectiva de gênero tem possibilitado a


identificação de uma nova gramática política das lutas sociais urbanas no
Brasil. Partindo deste pressuposto estamos desenvolvendo uma pesquisa de
tese ainda em andamento que tem se configurado na tentativa de realização de
uma crítica a inscrição e organização espacial do patriarcado na cidade do Rio
do Janeiro e na análise das lutas políticas pelo direito à cidade na perspectiva
das mulheres moradoras de favelas. Um dos objetivos da pesquisa é analisar e
compreender as experiências, insurgências e lutas das mulheres do conjunto
de favelas da Maré pelo direito à cidade e as violências vivenciadas por elas no
espaço público. Nossa hipótese de pesquisa é que outros horizontes de
sentidos têm sido inaugurados através de suas formas de organização e
insurgências ampliando o sentido de justiça territorial nas cidades.
Assim, compreendemos que a luta pela implementação do direito à cidade
envolve um sistema complexo de combate a hierarquias que se
retroalimentam, são heterarquias na reprodução do urbano. A violência sofrida
pelas mulheres no espaço urbano é uma marca que transcende a realidade
brasileira. Diante disso elas precisam ser compreendidas enquanto um padrão
de dominação, exploração e opressão inscritas na construção do sistema-
mundo moderno/colonial/patriarcal/racista/capitalista. Porém, é necessário não
apenas avaliar as especificidades de cada lugar, mas também identificar a
pluralidade das identidades das mulheres, pois o patriarcado (que impõe um
papel subalterno as mulheres) se articula com o racismo, com o sexismo e com
outras formas de opressão, dominação e exploração. Nestes processos em
curso precisamos reconhecer as disputas, as semelhanças, as diferenças,
particularidades e singularidades das mulheres na construção e implementação
de uma plataforma política de direito à cidade que pode criar um campo de
possibilidades de reinvenção de novas utopias urbanas do devir urbano
(BARBOSA, 2003). Esta pesquisa de tese pretende focar como objeto de
investigação as mulheres moradoras do conjunto de favelas da Maré,
organizadas no âmbito do projeto “Casa das Mulheres da Maré”, tendo como
questão central suas r-existências e experiências de lutas no âmbito do direito
à cidade a partir de suas percepções e vivências de violência no espaço
público diante da inscrição espacial do patriarcado. Buscaremos identificar as
suas respectivas formas de lutas, organização e insurgências. Assim sendo,
nossa metodologia teórica buscará investigar a questão dos sujeitos na
geografia em suas múltiplas dimensões – em particular as relações de gênero,

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raça, classe e origem geográfica. O universo da pesquisa se limitará à análise
da realidade da favela da Maré, identificando a partir das ações na Casa das
Mulheres da Maré as suas experiências de luta, vivências de enfrentamento a
violência no espaço público, seus processos de organização e seus ativismos
políticos na favela da Maré, localizada na cidade do Rio de Janeiro.

I- INTRODUÇÃO
Este artigo buscará também levantar e reforçar uma discussão já iniciada
na ciência geográfica desde o início da década de 1990 (CALIÓ,1991;
MASSEY,1994; Macdowell,1999; ORNAT, 2005; PRATS, 2006, SILVA, 2009)
que reconhece a importância da articulação dos estudos urbanos com a
temática de gênero. Compreendemos este exercício analítico como uma
conciliação necessária para estabelecermos, no campo da produção de
conhecimento sobre o espaço geográfico, uma reflexão crítica sobre as
contradições, disputas e tensionamentos dos sujeitos que historicamente (e
geograficamente) foram invisibilizados na produção de conhecimento sobre o
espaço urbano. Assim, vêm sendo necessário, ao longo do desenvolvimento da
pesquisa da tese, caracterizar as estratégias e táticas desenvolvidas pelas
mulheres para garantia de justiça territorial nas cidades, assim como, desvelar
os processos da colonialidade do poder, da dominação e da opressão que são
reproduzidas no espaço urbano e atravessam suas realidades.

II- MULHERES E COLONIALIDADE: FEMINISMO DECOLONIAL


COMO FERRAMENTA PARA LEITURAS DA ESPACIALIDADE
DE MULHERES SUBALTERNIZADAS NO ESPAÇO URBANO

Esta pesquisa se propõe a pensar seu campo de estudo a partir das


contribuições analíticas da epistemologia feminista decolonial centrando-se na
crítica à ciência como uma prática universalista, objetiva e ontologicamente
neutra. Sendo imprescindível a desconstrução de um pensamento único e
genérico assim como as complexas relações de saber e poder. Pretendemos
apontar abaixo as singularidades do debate contemporâneo sobre os estudos
de gênero latino-americano e apresentar como o mesmo tem proposto e
realizado um deslocamento político e epistêmico na abordagem das
especificidades das mulheres latino-americanas.
Desde 1980 na região de “Abya Yala”, como o povo kuna chama até
hoje a América Latina, emergem vozes e processos de ação política que
garantiram a visibilidade da diversidade de mulheres da região que
reivindicaram e problematizaram sua condição de raça, etnia, classe e
desafiaram os discursos hegemônicos ocidentais denunciando sua lógica
racista, misógina, sexista, heterocentrada e colonial (CURRIEL, 2009; 2011).
Como aponta Bandeira e Dutra (2015), a proposta crítica de um
pensamento do sul para o sul das diversas correntes dos pensamentos
feministas de Abya Yala foram se configurando como um espaço viável para a

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produção de conhecimento de pensadoras e ativistas que reivindicavam a
necessidade de reconhecimento dos feminismos diversos e plurais.
Neste momento mulheres, principalmente indígenas e negras, passam a
se reconhecer como sujeitas epistêmicas e com direitos epistêmicos passando
a garantir autonomia interpretativa de suas realidades. Destacarei duas
correntes teórico-políticas que têm contribuindo para reflexão da empiria e com
a elucidação epistêmica do objeto/sujeitas de estudo desta pesquisa.
A primeira corrente nomeada de feminismo comunitário. E a segunda de
feminismo decolonial. A perspectiva do feminismo comunitário nasce de uma
consigna política, produto das múltiplas violências sofridas pelas mulheres
‘indígenas’, inclusive violência sexual dentro de suas comunidades (BANDEIRA
E DUTRA, 2015). Essa perspectiva vem sendo desenvolvida em comunidades
da Guatemala e em alguns países andinos, como por exemplo, a Bolívia.
Assim com os amplos avanços políticos e teóricos a perspectiva do feminismo
comunitário tem trazido para o debate novos conceitos como, por exemplo,
corpo-território que evidencia como ponto de partida epistêmico, situações
singulares de violência vivenciadas por mulheres latino-americanas desde os
primórdios do processo da colonização.

O corpo-território refere-se a impossibilidade de viver a


plenitude da vida enquanto sujeitas forçadas a se separar da
terra. Ou seja, a terra não no sentido da propriedade privada
dada pelo mundo ocidental, mas a terra para estar em
identificação e relação com o cosmos, o corpo e o espaço
como sendo indissociáveis. (BANDEIRA e DUTRA, 2015, p.10).

Já a segunda perspectiva trata-se do feminismo decolonial que segundo


Miñoso (2012) trata-se de um movimento em pleno crescimento que se
proclama revisionista da teoria e da proposta política do feminismo considerado
ocidental e branco. Propõe uma leitura das experiências de mulheres de Abya
Yala e recorre a produção de pensadoras, intelectuais e ativistas de origem
africana, indígenas, campesinas, migrantes, mulheres negras, periféricas e de
mulheres acadêmicas brancas comprometidas com o pensamento decolonial
da região. A autora considera cinco linhas genealógicas para pensar o
feminismo decolonial: a primeira seria que o mesmo é herdeiro direto do
feminismo negro estadunidense, com pensamento centrado na crítica a
teorização feminista clássica centrada no gênero. Ao mesmo tempo em que se
propõe recuperar o legado crítico de mulheres, feministas afrodescendentes e
‘indígenas’ que tem demostrado, desde a Abya Yala, a questão da
invisibilidade e interiorização dentro de seus movimentos e dos movimentos
feministas. A segunda linha genealógica foi constituída pelo legado feminista
pós-colonial com a ideia de violência epistêmica, pautadas em reflexões
propostas por feminista pós-coloniais como Gayatri Spivack. A terceira linha
genealógica considera que a corrente feminista autônoma de Abya Yala foi
desenvolvida na década de 90, através de sua denúncia da dependência
política e econômica que introduziram políticas desenvolvimentistas nos países

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de capitalismo dependente, assim como o processo de institucionalização e
tecnocratização dos movimentos sociais.
Essas pensadoras decoloniais vêm colocando em questão essa
universalidade da categoria mulher propagada pelo pensamento feminista
ocidental clássico. Para Lugones (2008) e Espinosa Minõso (2012) o giro
decolonial e o aprofundamento de um feminismo antirracista tem permitido um
avanço analítico e de ação política contra as sujeitas políticas mulheres
universalistas, destituídas de seus lugares de referência, de sua classe e de
sua questão étnico-racial. E propõe pensarmos epistemologias feministas a
partir dos saberes populares, comunitários e de memórias dos nossos
ancestrais (ESPINOSA MIÑOSO, 2014). O feminismo decolonial opera dentro
de um marco analítico interessado na crítica do eurocentrismo e do racismo
epistêmico
.
III- COLONIALIDADE DO PODER E DESIGUALDADES DE
GÊNERO NA CIDADE: CONFLITOS E DISPUTAS EM TORNO DA
PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

Desde os anos 90 a cidade do Rio de Janeiro tem sofrido inúmeras


transformações urbanas marcadas por ideias neoliberais, que refletem um novo
processo de mercantilização das cidades e reafirmação da colonialidade nas
políticas de Estado no planejamento do território. Neste contexto de
mercantilização da cidade, o controle repressivo e discriminatório das práticas
socioespaciais e formas de apropriação do espaço urbano que se localizam
fora da ordem normativa do planejamento urbano, revelam as correlações de
forças sociais no espaço urbano que produzem resistências (TAVARES, 2015,
p.16). A autora propõe o conceito de espaços generificados da resistência para
compreender como as práticas socioespaciais de gênero e as correlações de
forças sociais nos espaço urbano produzem resistências de mulheres
moradoras de favelas.
Assim reconhecemos que neste contexto de produção impositiva da
cidade, as múltiplas formas de resistências, dominação e opressões atingem
de forma diferenciada as mulheres moradoras de favelas, em particular as
mulheres negras. A reprodução destes padrões de dominação pode ser
percebida nos obstáculos à participação, no histórico das disputas em torno de
direitos e políticas públicas e principalmente nos padrões da violência de
Estado que atingem, sobretudo jovens negros moradores de favelas e espaços
populares. Assim é importante reconhecer e compreender que o processo de
mercantilização da cidade está articulado a um modelo de política urbana
atrelada a uma gestão racista-patriarcal-moderno colonial (OLIVEIRA, 2012)
nas cidades. Este modelo tem reforçado uma bionecropolítica que está em
curso e que tem exterminado o corpo-território-negro cotidianamente nas
favelas e periferias.
As relações de gênero na cidade estão imbricadas de relações desiguais
de poder e estas relações de poder que se constituem na cidade reproduzem
espaços de dominação, opressão e exploração masculina. Compreendemos

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que a luta pela implementação do direito à cidade envolve um sistema
complexos de combate hierarquias que se retroalimentam, como diria
Grosfoguel (2010), são hetararquias1 na reprodução do urbano.
A violência sofrida pelas mulheres no urbano é uma marca que
transcende a realidade brasileira. Elas precisam ser compreendidas enquanto
um padrão de dominação inscrito na construção do sistema-mundo moderno/
colonial/ patriarcal/ capitalista (GROSFOGUEL, 2010). Porém, é necessário
não apenas avaliar as especificidades de cada lugar, mas também a
pluralidade das identidades das mulheres, pois o patriarcado (que impõe um
papel subalterno às mulheres) se articula com o racismo e com o sexismo (que
com a visão heteronormativa que busca eliminar do campo visual as mulheres
lésbicas e trans). Precisamos reconhecer as semelhanças, diferenças,
particularidades e singularidades das mulheres na construção e implementação
da plataforma política de direito à cidade para produção de uma justiça
territorial como horizonte de sentido (QUIJANO, 2000) na reinvenção de novas
utopias urbanas do devir urbano (BARBOSA, 2003).
As desigualdades vivenciadas por mulheres moradoras de favelas e
suas experiências geográficas, processos organizativos, insurgências e
práticas espaciais de lutas no âmbito do direito á cidade é a questão central da
pesquisa de tese em andamento. A pesquisa pretende evidenciar e desvelar as
suas formas de lutas, processos de enfrentamentos á violência, processos
formativos e insurgências na cidade identificando como as suas práticas
socioespaciais desvendam potências, resistências e r-existências. O
objeto/sujeito da investigação são as mulheres moradoras da Maré
organizadas nas ações desenvolvidas da Casa das Mulheres da Maré.
A urbanização capitalista no Brasil mobilizou múltiplos processos
hierárquicos na construção do urbano. Assim, as cidades não são vividas e
percebidas de forma igual por todos/as. O racismo, o patriarcado, o sexismo e
a desigualdade de classe social inscrevem-se na produção e reprodução do
espaço urbano definindo trajetos, comportamentos e normatizações para
acesso, uso, circulação, produção e apropriação.
Em um contexto de implementação de um modo de produção capitalista
da cidade, as mulheres vivenciam esse processo de dominação de múltiplas
formas (TAVARES, 2015, p.14), em que coexistem várias geometrias de
opressão, determinadas por relações de poder heteronormativas sobre seus

1
Grosfoguel (2010, p. 400) propõe em seus estudos examinar a noção metateórica de “heterarquias” que
foi desenvolvida pelo teórico social, sociólogo e filósofo grego Kyriakos Kontopoulos (1993). O
pensamento “heterárquico” é uma tentativa de conceptualizar as estruturas sociais através de uma nova
linguagem que rompa com paradigma liberal da ciência social do séc.XIX. Segundo o autor a velha
linguagem das estruturas sociais é uma linguagem de sistemas fechados, ou seja, de uma lógica única e
abrangente que determina uma hierarquia única. Assim “heterarquia” é uma “enredada articulação de
múltiplas hierarquias, na qual a subjetividade e o imaginário social não decorrem das estruturas do
sistema-mundo, mas são constituintes desse sistema. Sendo a “matriz de poder colonial” um princípio
organizador que envolve o exercício da exploração e da dominação em múltiplas dimensões da vida
social desde a econômica ou das relações de gênero, até as organizações políticas e estruturas de
conhecimentos (...)”. Desde o início da formação do sistema mundo capitalista, a acumulação do capital
esteve enredada com ideologias e práticas racistas, homofóbicas e sexistas, com a formação de estruturas
heterárquicas de desigualdade de gênero, classe e raça. (GROSFOGUEL,2010,p.403).

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corpos, práticas, subjetividades e identidades. Compreender essas tramas e
tessituras permite dar dimensão espacial a outros horizontes de sentido
(QUIJANO, 2000).

IV- TRAMAS E TESSITURAS DAS MULHERES DA MARÉ:


TRAJETÓRIAS GEOGRÁFICAS, PRÁTICAS SÓCIOESPACIAIS E
PERCEPÇÕES DE CIDADE

Era início do outono na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente


em março de 2018, quando meu retorno a Casa das Mulheres da Maré, situado
na favela do Parque União, (uma das dezesseis favelas que compõe o
complexo de favelas da Maré) se constituiu para realizar o que considerei como
um dos primeiros momentos da pesquisa etnográfica e de observação
participante de campo da construção da tese. É importante considerar que
anteriormente a pesquisa de campo diretamente na Casa das Mulheres da
Maré, foi se constituindo através da observação de pesquisa, na participação
em seminários locais, na participação em atos2 realizadas na Maré e na
participação em fóruns comunitários (mais especificamente o “Fórum Basta de
Violência! Outra Maré é possível”) o mapeamento das ações e discussões
levantadas que considerassem as desigualdades de gênero e violências
vivenciadas pelas mulheres na Maré. Neste percurso de pesquisa também foi
se constituindo a identificação da Casa das Mulheres da Maré como um lugar
impulsionador de uma potente rede política de incidências, articulação,
formação e fortalecimento da luta pelos direitos das mulheres na favela da
Maré. Estas observações de pesquisa em campo tem permitido mapear as
estratégias e ações de diversos agentes, atores, organizações internas e
externas, instituições locais (como postos de saúde, escolas, organizações da
sociedade civil) para reivindicação de direitos e construção de estratégias,
documentos e ação política, principalmente no âmbito da segurança pública
(considerando também o enfoque de gênero), direito á cidade e o enfretamento
a violência e a militarização dos territórios e da vida.
Segundo dados do Censo Maré 2010, o bairro Maré conta com 140.00
mil habitantes, deste total 51% são mulheres. Com isso, a Maré se apresenta

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No dia 25 de maio de 2017 cinco mil pessoas marcharam pelo fim da violência na Maré, com uma forte
liderança de mulheres a frente da mobilização, a marcha contou com lideranças comunitárias, artistas,
comerciantes locais, estudantes e professores das escolas públicas, moradores da Maré e de outros bairros
da cidade, mães de vitimas da violência Estatal etc. Segundo dados apresentados pelo Boletim “Direito á
Segurança Pública da Maré” em 2017, o alto grau de violência do primeiro semestre de 2017 impulsionou
algumas respostas da sociedade civil atuante na Maré. Esta articulação, por meio da Defensoria Pública
do Estado, tem possibilitado discutir a criação de mecanismos de controle da atuação das polícias. Tal
medida resultou em uma “Ação Civil Pública da Maré”, em andamento, demandando à Secretaria de
Estado de Segurança Pública a elaboração de um Plano de Redução de Danos e Riscos referente às
incursões policiais na Maré. Ainda de acordo com os dados divulgados no Boletim de 2017, os casos de
violação de direitos atendidos pela Redes da Maré, organização local, quase dobraram em relação a 2016,
passando de 28 para 52 pessoas. Na mesma proporção, o número de relatos de violência trazidos pelas
pessoas atendidas passou de 32, em 2016, para 67, em 2017. O crime de invasão de domicílio, com 28%
das ocorrências, foi o preponderante, assim como em 2016. Em seguida, foram registradas as violações de
direito à vida (15%), feridos por ama de fogo (12%) e violência verbal, psicológica e/ou ameaça (12%).

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como o 9º bairro mais populoso e, também, o maior conjunto de favelas da
cidade do Rio de Janeiro. Na Maré, ainda segundo o censo Maré, o papel de
responsável pelo domicílio é exercido por 44% das mulheres. Em 77% desses
domicílios, a renda mensal per capita chega, no máximo, a um salário mínimo.
Porém, em 38%, não ultrapassa meio salário mínimo. Em pesquisa recente 3
realizada pela Redes da Maré em parceria com a Universidade Queen Mary,
de Londres e UFRJ ainda em fase de conclusão, apresentou que 48% das
mulheres se autodeclaram negras e 19% pardas e 3% indígenas e 80% tem
filhos/as. No âmbito da espacialização da violência sofrida pelas mulheres da
Maré 46% declararam que já sofreram violência doméstica e 17,3% declararam
que sofreram violência em locais públicos, sendo estes os dois locais mais
recorrentes e 72% consideram que para elas a violência tem aumentado. Estes
dados apresentam, dentre outras questões, os sentidos da constituição de um
espaço de referência voltado para mulheres moradoras de favelas. A Casa das
Mulheres da Maré foi um espaço idealizado ao longo dos últimos anos com o
objetivo de ampliar as possibilidades existenciais das mulheres da Maré,
através da formação e qualificação profissional e geração de renda, de
atendimento sócio-jurídico e psicológico e de produção de conhecimento e
enfrentamento às violências contra as mulheres. A materialização deste lugar
entre outros espaços da Maré, assim como, os processos organizativos e de
movimentações de mulheres e jovens representam a potência das mulheres da
Maré e a possibilidade de se constituir uma insurgência territorial de mulheres
moradoras de favelas da Maré.
Desde 1980 mulheres da Maré vêm desempenhando processos de
incidências, formação política, fortalecimento de suas memórias e
ancestralidades possibilitando uma re-escrita de suas histórias, geografias e
travando lutas urbanas na cidade do Rio de Janeiro para garantia da vida e de
seus territórios.
Neste percurso de pesquisa de campo em direção a Casa das Mulheres
perpassei por algumas ruas e vielas do Parque União, uma das dezesseis
favelas da Maré. O objetivo era acompanhar o processo de formação de um
grupo de mulheres moradoras da Maré que pela primeira vez participavam de
um projeto voltado para formação profissional, política e acompanhamento
sócio jurídico e psicológico.
Numa das principais ruas da favela do Parque União onde durante a
semana há uma feira com uma multiplicidade de frutas, verduras, legumes,
produtos de beleza, tapiocas, temperos, feijões e farinhas dos mais variados
tipos, avistei algumas mulheres percorrendo as ruas, a maioria eram idosas.
3
Pesquisa "Cidades Saudáveis, Seguras e com Igualdade de Gênero: Perspectivas Transnacionais Sobre a
Violência Urbana Contra Mulheres e Meninas (VCMM) no Rio de Janeiro e em Londres", pesquisa
desenvolvida pela Universidade Queen Mary, de Londres, People's Palace Project do Reino Unido, a
Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Redes da Maré ainda em fase de conclusão. Estes dados
parciais foram publicamente divulgados no seminário interno realizado em 22 de novembro de 2017 para
apresentação dos dados parciais quantitativos e qualitativos da pesquisa. Estas informações foram
anotadas pela pesquisadora através da participação no seminário. Pesquisa ainda encontra-se no prelo.
Foram aplicados 891 questionários em 15 favelas da Maré.

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Elas percorriam as barracas das feiras e se direcionavam aos alimentos que
remetiam a culinária nordestina. De alguma maneira estes alimentos
fortaleciam e resgatavam em seus cotidianos as memórias atreladas aos seus
saberes e sabores visto que grande parte das mulheres da Maré são
nordestinas ou descendentes de nordestinas.
Ao chegar á Casa das Mulheres da Maré algumas já se encontravam
reunidas para a reunião de formação, mas os diálogos já aconteciam de forma
espontânea ainda na entrada da Casa. Logo aos poucos as mulheres
chegavam, com sorrisos nos rostos, se cumprimentavam e logo falavam sobre
seus cotidianos. Eram em torno de quinze mulheres (de uma turma constituída
por vinte mulheres) que se organizavam em uma roda de conversa, sendo a
maioria mulheres negras. Algumas delas eram jovens, em torno de seus vinte e
cinco anos e outras mais senhoras em torno de cinquenta anos. Este grupo de
mulheres já estava se reunindo há um mês e algumas desistiram de continuar
a formação e outras duas chegaram naquele dia. Uma delas recém-chegada
de seu país de origem Gana, localizado no continente Africano, morava há
pouco tempo na Maré estava na lista de espera, aguardando uma desistência
para iniciar a formação e assim aconteceu. Seus olhos brilhavam, suas mãos
gesticulavam e durante toda a aula ela sorria e falava de suas experiências em
Gana, assim também eram os gestos das mulheres da Maré, o diálogo era
descontraído, alegre e reflexivo. Assim elas se organizaram em uma roda de
conversa que se propunha a dialogar sobre o tema “gênero” e os papéis sociais
impostos e definidos (em uma sociedade moderno-colonial-patriarcal) para
“homens” e “mulheres”. O diálogo foi intenso, o tema em discussão gerou
muitas reflexões no âmbito de suas experiências enquanto mulheres da e na
Maré e a maioria refletia que não se padronizava nos papéis estabelecidos de
forma binária. Mas o que me chamou atenção foi que logo no início da
formação ao abrir o diálogo sobre o que lhes vinha à mente ao pronunciarmos
a palavra “homem” e logo em seguida a palavra mulher. Algumas das palavras
pronunciadas pelo grupo de mulheres a partir da emissão da palavra homem
foram: “machista”, “forte”, “irresponsável”, “poder” e “trabalhador”. No âmbito
das mulheres algumas das palavras foram: “lutadora”, “guerreira”, “cuidadora”,
“amorosa”, “mãe”, “gestação” e “macabra”.
Nas oficinas realizadas em abril de 2018, o tema da violência passa a
ser estruturador das discussões. A primeira pergunta lançada para o grupo de
mulheres é: o que é violência para você e como ela impacta sua vida como
mulher na Maré? Logo no início das discussões outra questão é levantada por
uma das mulheres do grupo, “violência é agressão, não é”? Uma companheira
que estava ao seu lado responde, “sim é, violência é agressão física,
psicológica, agressão na rua, tudo isso”. Logo ela é interrompida com um
acréscimo, “violência é quando eu também não sou compreendida, quando não
tem valor a minha voz.” Neste momento uma mulher que estava atenta às
discussões sobre os tipos de violência, levanta e entoa em alto e bom som,
“racismo também é violência”.
Os relatos cotidianos sobre suas percepções de violência na cidade vão
tomando conta das discussões, “somos submetidas a um monte de processos
de violências. E ainda se formos violentadas pelos maridos não podemos

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chamar a polícia. Muitas de fora das favelas têm direito de fazer queixa e nós
não. Somos julgadas por um “tribunal” daqui”.
Outro relato sobre violência e os impactos em sua vida cotidiana
apontou sobre as marcas e consequências que a violência deixa por toda uma
vida. “Meu pai me batia muito por tudo quando eu era criança, minha tia
também pegou meu tio várias vezes no flagra- para abusar de mim-. Por isso
tive traumas por toda uma vida. Se eu estiver andando na rua e um homem
olhar estranho para mim eu me escondo. Hoje sou medrosa com tudo. Só
comecei a falar sobre a violência que vivia depois que eu tive filho. Meu marido
diz que isso é coisa da minha cabeça. Quero procurar uma psicóloga pois
preciso desabafar. Eu fiquei por um tempo isolada, só dentro de casa. Não
gosto de sair e conversar com pessoas na rua.”
Para Arendt (2006) poder e violências possuem distinções. Duarte
(2004: 36) analisando a ideia de poder e violência em Arendt afirma que
“enquanto o poder é gerado espontaneamente por meio da ação conjunta e
dialógica de uma pluralidade de cidadãos, a violência se exerce de maneira a
dispersar e isolar os indivíduos [...]”. A violência para Arendt (2006) distingue-
se da força, do poder e do vigor pelo uso de instrumentos. Assim, ela abriga
um elemento adicional, a arbitrariedade. Para Arendt (Idem) a violência é
regida pela categoria meio/objetivo não só emergindo nos ‘acontecimentos
fortuitos’, mas desempenhando um papel decisivo nas atividades humanas e
não só no campo de batalha. Em nossa investigação a violência patriarcal é
vista como estruturante e estruturadora. Assim, taxar os acontecimentos
imprevistos, inesperados e imprevisíveis como ‘acontecimentos fortuitos’
(Ibidem) é desprezar as marcas do padrão de poder patriarcal, racista, sexista.
A violência engendra eventos que “[...] interrompem processos e
procedimentos de rotina” (Ibidem: 05).
Arendt (2006) afirma que a “força e a violência parecem ser técnicas
bem-sucedidas de controle social e persuasão se tiverem amplo apoio
popular”. Entendemos que a dimensão simbólica é também um elemento
marcante na violência contra mulheres no espaço público.
A violência simbólica da dominação masculina busca transformar aquilo
que é arbitrário em natural e legítimo dissimulando as relações de força
(BOURDIEU & PASSERON, 2001) através da contenção do corpo das
mulheres (BOURDIEU, 2010). Logo, constrói-se a naturalização da dominação
masculina na estruturação do espaço e organização do tempo (Idem). A
dominação masculina busca incutir consciente e/ou inconscientemente
mecanismo de orientação subordinada as mulheres no espaço público, pois
são postas como seres particulares. A história patriarcal/ capitalista/ colonial/
moderno criou e consolidou o homem (sexo masculino) como ser um universal
“que tiene el monopolio, de hecho y de derecho, de lo humano (es decir, de lo
universal), que se halla socialmente facultado para sentirse portador de la
forma completa de la condición humana4” (BOURDIEU, 2010: 04).
4
Es lo que dice la lengua cuando, por hombre, entiende no sólo al ser humano varón sino al ser humano
en general, y emplea el género masculino para hablar de la humanidad. La fuerza de la evidencia dóxica
se observa en que esta monopolización gramatical de lo universal, hoy en día reconocida, no aparece en
su verdad sino después de la crítica feminina.

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Estas múltiplas hierarquias expressam violências que buscam confinar,
adestrar comportamentos e fazer morrer ou deixar viver de forma submissa,
isto é, tanto uma disciplina quanto um biopoder sobre os corpos e trajetos das
mulheres (FOUCAULT, 2000, 2005). As violências tem se mostrado ainda mais
intensas nas mulheres negras, trans, lésbicas que tem atentado contra suas
existências. Nos espaços de pobreza e os com baixa infraestrutura marcada
por regimes de exceção (domínio de narcotraficantes e/ou milicianos) medo e a
insegurança tem reduzido a experiência de espaço-tempo das mulheres nos
deslocamentos e reproduzido mecanismos sutis e poderosos que criam grande
dificuldade das mulheres criarem pertencimento com os trajetos que usam.
O direito à cidade é um direito inalienável à vida de todos e todas que
coloca a construção de um novo humanismo pensando a cidade como obra (e
não somente produto) (LEFEBVRE, 2001). A reprodução do patriarcado
instauram regulações e normatizações nos espaços de vida e nos trajetos
sócio-espaciais das mulheres vítimas diretas ou indiretas do machismo, pois
mesmo não vivendo a experiência espacial da violência machista, o patriarcado
produz instrumentos para uma percepção espacial de espaços interditos,
mesmo que não tenham sido vivenciados (Idem). Os espaços interditos (SILVA
et. all, 2013) são criados através de mecanismo de poder/dominação que
engendram trajetórias reguladas revelando imaginações espaciais estruturadas
pelo patriarcado (ROSE, 1993). A interdição é aqui entendida como um
mecanismo de poder que impede, restringe, constrange, disciplina e controla
corpos, desejos e afetos das mulheres na forma de uso e apropriação do
espaço (FOUCAULT, 1996).
Ao permear por essas tramas, redes e “marés” nos propomos a
estabelecer alguns diálogos com autoras e autores do pensamento decolonial e
epistemologias do sul que permitam abrir horizontes de sentidos (QUIJANO,
2000) e caminhos para compreensão das subjetividades e trajetórias sócio-
espaciais deste grupo de mulheres moradoras da Maré. A metodologia e o
diálogo vêm se estabelecendo e sendo construído a partir da participação em
formações e ações de grupos de mulheres da Maré que se organizam e
reúnem na Casa em torno de projetos voltados para qualificação profissional.
Diante disso, a partir do que estamos chamando de geovivências e
corpografias buscamos identificar as formas de percepção, apropriação e uso
do espaço pelas mulheres moradoras de favelas da Maré. Assim tem se
constituído uma busca e se possível a construção de conceitos, categorias,
métodos e referenciais teórico-epistemológicos que permitam compreender e
analisar as especificidades e complexidades das espacialidades e
territorialidades das mulheres no espaço urbano. A pesquisa de campo tem
possibilitado estabelecer encontros e o reconhecimento da importância de
constituir diálogos com escritoras negras e decoloniais que vêm estabelecendo
em suas análises as relações desiguais de poder do sistema mundo moderno
colonial e as memórias e práticas das mulheres que tiveram suas
ancestralidades marcadas pelas relações coloniais, que instaurou processos de
dominação que buscavam transformar suas tradicionais formas de conhecer o
mundo e a si mesmas (CASTRO-GÓMES, 2005, p.58b), assim como, as suas
formas de se ver, sentir e se perceber no mundo.

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O tecer desta pesquisa com seus encontros e desencontros elucida
também a necessidade de repensar métodos e as formas como construímos
nossas pesquisas, e expressamos nossas escritas e fazemos nossas
geografias. Este texto se propõe a dar início a reescritas experiências urbanas
a partir da dimensão das mulheres, identificando histórias e geografias escritas
na primeira pessoa, por isso a necessidade de trazer mulheres a este diálogo
Vários desafios têm sido colocados para tecer a pesquisa proposta para
construção da tese abordando a temática sobre mulheres e cidades. Desafios
que perpassaram sobre os próprios dilemas e tramas sobre construir-se mulher
na cidade em todo tempo-espaço. Assim como, se estabeleceram desafios no
âmbito dos próprios debates públicos sobre o tema que foram se apresentando
ao longo do último ano de desenvolvimento desta pesquisa.
A abordagem sobre as desigualdades de gênero nas cidades, a inserção
do debate sobre gênero nos planos municipais de educação tem recebido
diversos ataques por parte de grupos fundamentalistas religiosos
conservadores que vêm ameaçando direitos conquistados ao longo dos últimos
anos por diversos movimentos de mulheres e feministas.
Mesmo diante de vários desafios, escrever sobre mulheres, cidades e o
“torna-se mulher” e reconhecer-se periférica e favelada traz consigo a
necessidade e a emergência de expressar vivências e percepções de mundo e
de cidade sob o ponto de vista das mulheres subalternizadas onde dores,
experiências, alegrias, feridas e cicatrizes marcam os nossos corpos e
territórios. Neste sentido, analisar espaços de construção de sujeitas políticas e
a dimensão espacial dos processos desiguais das relações de gênero e poder
que são instituídas nas cidades e os processos de dominação estruturados no
espaço urbano torna-se uma contribuição necessária para avançarmos nos
estudos e pesquisas sobre outras leituras de produção do urbano, assim como
identificar as tensões e contradições deste processo de estruturação e
organização espacial da cidade do Rio de Janeiro.
Como já apresentado o processo de investigação geográfica tem
enfocado uma abordagem e perspectiva feminista tendo a subjetividade e a
parcialidade como alguns dos elementos estruturadores do processo de
pesquisa que se tornam ao longo do seu desenvolvimento constitutivos das
metodologias aplicadas no processo de construção e produção do
conhecimento. Onde continuamente a percepção das pessoas investigadas
moldam a estrutura e a interpretação das “narrativas” produzidas através do
trabalho de campo (ORNAT, 2008, 2005).
Pensar a cidade e nossos territórios pressupõe refletir sobre nossas
experiências geográficas, nossas condições existenciais de sobrevivência nas
cidades, sobre nossa mobilidade, sobre nossa experiência urbana, sobre
nossos corpos-territórios.
A reflexão sobre o método e metodologias de pesquisa “subversivas”
tem se tornado uma das questões centrais no desenvolvimento desta pesquisa.
Diante do tema tenho identificado à necessidade de um fazer “científico-
geográfico” que desestabilize em todo tempo-espaço a posição da
pesquisadora, assim como, as perguntas orientadoras da pesquisa, permitindo
que novas questões e que percursos inesperados sejam percebidos e

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considerados na pesquisa. Pensar sobre o método pressupõe uma postura
ética e política, considerando as percepções, tramas e saberes dos sujeitos da
pesquisa como principais tecedores dos fios condutores desta tese. Este
exercício pressupõe estar atenta ao “falar com” e não “falar sobre”. Esta
postura metodológica se compromete a refletir sobre os modos hegemônicos
de fazer ciências e de produção de conhecimento.
Assim como apresentado por Matos e Xavier (2018), como
pesquisadoras ativistas, desvelar coletivamente as práticas (espaciais)
produzidas pelos sujeitos e como os mesmos produzem conhecimento e
saberes cotidianos em movimentos sociais, grupos comunitários e/ou em
outros espaços coletivos é um exercício de pesquisa potente.
A escrita da pesquisa-militante também neste contexto torna-se um
desafio, onde a produção de conhecimento e científica requer compromisso
político, social, teórico-metodológico e prático para que a produção de
conhecimento acadêmica esteja atrelada a uma contribuição analítica para uma
leitura de mundo (e consequentemente uma leitura do espaço geográfico),
comprometida com reflexões que possam subsidiar ações tendo vista a justiça
territorial nas cidades e que sirva como ferramenta prática para ações e leituras
coletivas de processos e dinâmicas instauradas nos territórios pesquisados.
A escolha metodológica, assim como a identificação dos conceitos e
categorias da pesquisa tem se constituído no próprio território, em processo de
pesquisa, onde “o caminho se faz ao caminhar”. Tem sido a experiência da
pesquisa de campo que tem possibilitado a construção e identificação das
metodologias e referências que mais dialogam com os processos sócio-
espacias percebidos. A metodologia das escrevivências de Conceição Evaristo,
na qual me deparei com uma importante ferramenta para percepção de
leituras, territorialidades, geograficidades e olhares de mulheres da Maré sobre
a cidade e seus dilemas e conflitos em torna-se mulher no espaço urbano.
A escrita torna-se uma ferramenta para pensar sobre nossas
subjetividades, expressar percepções e estruturar ações a partir da nossa
realidade vivida. Por isso tecer esta pesquisa de tese é perceber como nós
mulheres também somos portadoras de uma espécie de urgências de vida e
morte correndo sobre a corda bamba e opressora do tempo e do espaço.
Assim escrever também pode ser uma maneira de “sangrar” (Evaristo, 2016).
É tecer para re-afirmação da condição de mulher. Mulher que tem suas origens
e leituras de mundo a partir das percepções dos becos e das vielas. Das dores,
dramas e tramas constituídas no percorrer das ruas da cidade. Mulher mãe que
dorme até que seu filho adentre as portas.
A escritora Conceição Evaristo apresenta em suas narrativas de Espelho
D´água algumas vivências que encruzilharam-se a meu ver com vivências de
mulheres da Maré. Essas vivências nos movimentam a duas imagens para se
pensar sobre mulheres e cidades, o olho e a água, a primeira nos invoca a
pensar o que vemos e a segunda a como movimentamos o que vemos. Assim
como nos contos de Evaristo (onde os e as personagens são em sua maioria
mulheres negras) as mulheres da Maré por mais que dor e sofrimento
pontuados nas histórias, há também em todas elas uma força, potência, de
uma lucidez, do aprendizado dos extremos da vida e da morte.

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O processo de pesquisa vêm me fazendo perceber a importância da
compreensão das ancestralidades, subjetividades e histórias orais para
percepção dos seus dilemas, vivências, tramas, práticas espaciais e sua
condição de mulher na cidade. As referências ancestrais, de suas mães e avós
que permeiam suas falas e suas práticas cotidianas. As reflexões e percepções
sobre desigualdades de gênero, feminismos, violações de direitos eram
percebidas a partir de suas relações e tendo como referência suas ancestrais.
Este artigo trata-se de uma reflexão sobre as percepções do torna-se
mulher na cidade, compreendendo as subjetividades, perspectivas, tramas e
práticas espaciais de um grupo de mulheres da Maré. Como metodologia de
pesquisa parto das escrevivências (EVARISTO, 2007), identificando as
encruzilhadas geográficas (PEREIRA, 2014) e os cruzamentos das trajetórias
socioespaciais (CIRQUEIRA, 2010) entre pesquisadora, pesquisadas e
autoras. Identifico autoras negras que a partir de reflexões sobre suas
escrevivências e “geovivências” dialogam com histórias e geografias de
mulheres da Maré.
Assim é através da produção social do espaço e das inserções em redes
e processos de formação política e educacional que este grupo de mulheres
tem buscado possíveis alargamento de fronteiras simbólicas, ampliação de
horizontes de vida, de sentido, de liberdades e autonomia. Estes espaços
formativos permitem através dos diálogos a construção e reconstrução de
mentalidades sobre suas existências e reconhecimentos de seus lugares de
autoafirmação enquanto sujeito-mulher-negra-favelada.
Como resultado da pesquisa identificamos que um dos principais
dilemas e buscas estão em torno da garantia da liberdade, mobilidade e
autonomia de suas vidas e corpos na cidade. É necessário reconhecer que em
uma sociedade capitalista, patriarcal e colonial (SOUZA SANTOS, 2018) como
a nossa, o processo de colonização significou a colonização do imaginário do
colonizado/a materializada numa repressão sobre os modos de conhecer e
produzir conhecimentos; em suma uma colonização nos padrões de produzir
conhecimentos e significação do mundo (CRUZ, 2017, p. 16). Assim:

Trata-se de uma verdadeira violência epistêmica, ou seja, uma


forma de exercício do poder que produz a invisibilidade do
outro, expropriando-o de sua possibilidade de representação e
de sua auto representação; isto é, trata-se do apagamento, do
anulamento e da supressão dos sistemas simbólicos, de
subjetivações e representação que o outro tem de si mesmo,
bem como de suas formas concretas de representações e
registro de suas memórias e experiências. (Cruz, 2017, p.17).

Outro resultado da pesquisa é que temos observado é que no caso


específico de mulheres moradoras de favelas e espaços populares a
colonialidade do poder, ser e saber tem se reproduzido através de processos
de apagamento de suas memórias, práticas espaciais, de suas simbologias, de
silenciamentos de suas vozes, de processo de dominação, mercantilização e
objetificação de seus corpos, da militarização de suas vidas, de regulações e
normatizações espaciais entre outros processos.
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V- CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Este texto procurou trazer uma reflexão sobre as percepções do torna-se


mulher na cidade, compreendendo as subjetividades, perspectivas, tramas e
práticas espaciais de um grupo de mulheres da Maré, assim como, a
colonialidade de poder que se reproduz no espaço urbano. O tecer desta
pesquisa de tese em andamento tem evidenciado a necessidade de repensar
métodos, metodologias e as formas como construímos nossas pesquisas, e
expressamos nossas escritas e fazemos nossas geografias. A cidade tem sido
concebida e organizada pela lógica masculina e branca, portanto, sexista e
racista. A organização espacial e a gestão racista do espaço urbano atinge
duplamente as mulheres que vivem em favelas e periferias, em sua maioria
mulheres negras (Garcia, 2015). A inclusão da questão de gênero e étnico-
racial nas politicas urbanas deve ser um passo estratégico para
desenvolvimento de ações territoriais que incluam o fazer a cidade as mulheres
na perceptiva de raça e das classes populares. Portanto, enfrentar uma re-
organização da gestão do espaço, tendo o planejamento e a execução das
políticas públicas papéis fundamentais na implementação do direito á cidade.
Este texto procurou também elucidar as reescritas de experiências
urbanas a partir da dimensão das mulheres moradoras de favelas, identificando
suas percepções e práticas sociespaciais de lutas, insurgências e r-existências
na cidade. O resgate da memória e das práticas espaciais frente aos processos
de dominação e militarização dos seus territórios poderá nos permitir
compreender as ações e estratégias desenvolvidas pelas mulheres na cidade e
seus processos de combate ao apagamento sistemático de suas histórias e
geografias. A busca das mulheres pelo direito á vida em seus territórios passa
por localizá-las no debate, na ação política e na identificação de suas disputas
que constroem pontes possíveis para enfrentamento da lógica da opressão
violenta e militarização da vida que o capital impõe as cidades.

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