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EL PAÍS. As mulheres esquecidas pela história na América [online].

08/03/2021

A história de Claudette Colvin, a afro-americana que recusou ceder seu lugar em um


ônibus para uma pessoa branca em plena época das leis de segregação racial nos
EUA nove meses antes da famosa Rosa Parks, demonstra como as questões raciais
são complexas e transpassadas por outras discriminações. Colvin não se tornou
símbolo porque seu temperamento, cor da pele e história de vida não eram vistos
como “adequados”, o que demonstra um racismo coadunado com discriminações de
gênero, pois uma mãe solteira considerada emocional demais não representava o
padrão esperado para uma mulher na época.
A biografia de María Izquierdo,a primeira mexicana a expor nos EUA, também traz
um contexto de machismo já que suas obras nunca foram reconhecidas como as
dos muralistas homens. Divorciada e pintora de mulheres audazes, fortes, sagazes e
corajosas, sua vida e sua obra não se encaixavam nos estereótipos, o que a
condenou ao esquecimento. Prudencia Ayala, uma indígena que se candidatou a
presidência do El Salvador nos anos 30 também rompeu com muitos estereótipos e
como é comum nesses casos, os seus detratores usaram a sua não-adequação aos
papéis de gênero da época para desqualificá-la e condená-la ao ostracismo e
auxiliados pela legislação que indeferiu sua candidatura.
Soledad Acosta de Samper, uma colombiana escritora e jornalista prolífica no século
XIX, também rejeitou o papel que se dava para as mulheres em seu tempo, muito
embora tenha que se passar por homem para poder escrever. A invisibilização dela
não só foi resultado do machismo como também o perpetuou ao deixar milhares de
mulheres sem referências e espelhamentos. Paulina Luisi, a uruguaia cujas lutas
foram fundamentais para que seu país se tornasse o primeiro da América Latina a
permitir que as mulheres votassem, é outro exemplo de uma mulher invisibilizada
cujos trabalhos envolviam uma revisão e crítica dos papéis de gênero ao, por
exemplo, defender a educação sexual e denunciar o fato de que a responsabilidade
pela procriação sempre cai sobre as mulheres.
O caso da Imperatriz Leopoldina é um caso também interessante por demonstrar
que mesmo uma mulher em uma posição tão alta como a de Imperatriz de um país
pode ser invisibilizada. Seu papel na independência do Brasil envolveu a sua
percepção dos anseios do povo, seu trabalho diplomático, seu apoio à ciência e sua
visão política acurada que a levou a assinar o decreto que proclamava a
independência do país, ainda assim seu marido D. Pedro I é que ficou com toda a
glória e ela ainda teve de passar anos se sujeitando a infidelidades deste presa ao
papel de esposa que a sociedade impunha.
Estes casos embora tratem de mulheres com diferentes origens em diferentes
contextos possuem certas semelhanças a serem pensadas. A primeira perpassa
questões de classe e raça, já que pudemos perceber que algumas dessas mulheres
conseguiram algum espaço por terem alguma base financeira para isso e famílias
abastadas que as educavam de forma diferente do comum para a maioria das
mulheres da época, o que mostra que as lutas femininas não são as mesmas para
todas as mulheres. A segunda se refere ao fato de como as ideias sobre gênero são
arraigadas na sociedade ao ponto de mulheres mesmo demonstrando os maiores
talentos e capacidades serem desqualificadas simplesmente por serem mulheres,
uma desqualificação que nem sempre é explícita podendo se manifestar, por
exemplo, no apagamento/esquecimento de sua existência. E, por fim, há de se
pensar a interseccionalidade das lutas de grupos minorizados e como é complexo a
dinâmica entre esses grupos: não é porque, por exemplo, que o movimento negro e
o marxismo lutam por igualdade de raça/classe que isso se estende
necessariamente a igualdade de gênero, as lutas feministas dentro desses
movimentos também podem e foram suprimidas ou colocadas de lado.

HONWANA, Luís Bernardo. As mãos dos pretos. In: Nós matámos o


Cão-Tinhoso. Lisboa: Afrontamento, 2000.

A emocionante história apresentada por Honwana nos traz diversas explicações que
poderíamos chamar de “mitológicas” acerca do porquê das mãos das pessoas
negras serem brancas. Mitológicas sim, pois à moda dos mitos antigos são
perspectivas populares que buscam explicar um fato do cotidiano a partir de crenças
enraizadas na sociedade e que em muitos aspectos refletem os contextos em que
foram produzidas.
Dos quatro “mitos” apresentados em dois deles podemos perceber claras alusões a
perspectivas racistas. No primeiro, se justifica as mãos brancas dizendo que os
negros porque andavam com elas apoiadas no chão o que as protegia do sol, em
um tipo de explicação que relembra as típicas visões racistas que tratavam (e ainda
tratam) os negros como seres inferiores, animalescos por seu andar e sua
incapacidade de pensar em uma proteção contra o sol, em oposição a “humanidade
plena e inata” do homem branco.
Da mesma forma, a segunda explicação ao dizer que as mãos dos negros são
brancas para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões, reflete a visão
de que os negros existem para servirem aos brancos e que a cor de sua pele está
ligada a algum tipo de contaminação.
A terceira explicação já não é tão explícita, mas guarda em si elementos racistas. Os
negros teriam sido criados após os brancos, numa espécie de secundaridade
cosmológica, por figuras cristãs e têm as mãos brancas porque se seguravam em
barras enquanto eram fumegados o que lembra torturas escravistas e foram feito às
pressas, como se faltasse esmero em sua criação tornando-os inferiores.
A quarta explicação diz que as mãos dos negros são brancas porque foram as
partes que lavaram em um lago frio antes de virem ao mundo, o que novamente
explicita uma associação da negrura da pele com a sujeira.
Por fim, a quinta explicação justifica a brancura das mãos dos negros como uma
forma de lembrar a humanidade de que suas atitudes são obras suas, obras de
mãos que são iguais independentes da cor do resto do corpo. Podemos depreender
dessa explicação uma defesa da igualdade entre brancos negros e também uma
crítica ao racismo e outras formas de discriminação, pois nos lembra que as
diferenciações sociais não são obra do divino, mas dos próprios seres humanas,
construções que perpassam a religião, a política e a cultura muitas vezes
naturalizadas ao ponto de nos cegar.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Mitos sobre Gênero em uma Matéria da Revista
Veja [online]. 19/12/2012.

Neste relevante artigo a Professora Doutora Jaqueline Gomes de Jesus tece


importantes e esclarecedoras considerações acerca das confusões comuns em
nosso dia-a-dia a respeito de sexo, gênero e orientação sexual a partir de uma
matéria na Revista Veja sobre os supostos “perigos” de uma criação sobre crianças
educadas no que a própria revista chama de sexo neutro.
Conforme a autora, é gritante o fato de que as pessoas costumam misturar o
gênero, uma construção social refletida em, por exemplo, roupas que
tradicionalmente se atribui a determinado sexo, com o sexo, uma determinação
biológica manifesta em hormônios e características corporais como as genitálias. No
caso, a revista parte do pressuposto de que atributos de gênero seriam naturais a
cada sexo e que por isso, supostamente alguém que educasse os filhos a não se
seguir papéis de gênero associados com seu sexo causaria algum tipo de desordem
pssicológica nas crianças.
Ela também destaca a confusão que a revista faz entre gênero, sexo biológico e
orientação sexual, explicando que não nenhuma norma natural que condicione, por
exemplo, um homem ou mulher a serem heterossexuais. E que ao contrário do que
a revista sugere (sem comprovar) não é a criação sem estereótipos de gênero que
prejudica psicologicamente uma pessoa, mas sim justamente imposições sociais
que impedem, por exemplo, os homossexuais de se aceitarem como tais.
Podemos perceber, portanto, que é fundamental uma maior divulgação e educação
a respeito dessa temática como uma forma, inclusive, de combate a desinformação,
uma desinformação que gera ignorância e violência, destruindo sujeitos.

DOMINGUES, Joelza Ester. 10 erros comuns sobre as culturas indígenas do


Brasil [online]. In: Ensinar História. 16/04/2019.

Neste trabalho a autora busca desmistificar certas visões acerca dos indígenas
muito comuns no Brasil e que fazem parte de um sistema de preconceitos que
colocam esse conjunto de povos como um “outro exótico”, um alguém não somos
“nós, os brasileiros comuns”.
O primeiro erro que ela coloca em xeque é a ideia de que os indígenas estão
desaparecendo, demonstrando que a população indígena aumentou e que eles
estão presentes em todos os estados. Ela traz também o dado de que uma suposta
diminuição constante da população indígena tem muito a ver com questões que
levam os indígenas a não se autodeclararem como tais.
Outro preconceito que ela trata é o fato das pessoas generalizarem os indígenas,
ignorando que no Brasil existem centenas de povos indígenas diferentes cada um
com sua própria cultura e que eles próprios nunca se viram como um grupo
homogêneo.Parecido com ele, é a ideia de que os indígenas têm que viver como
seus ancestrais para serem considerados indígenas, o que é corrigido pelo conceito
de interculturalidade que ocorre quando um povo absorve elementos de outra cultura
que considera úteis para ele.Os indígenas não são obrigados a viver congelados no
tempo para serem considerados indígenas.
Ela também descreve preconceitos relacionados aos hábitos dos indígenas: de que
eles são atrasados, de que eles são preguiçosos e de que “o índio só fez a extração
do pau-brasil”. Conforme ela argumenta, estes preconceitos nascem da ignorância
sobre o modo de vida dos indígenas que inclui trabalhar todos os dias para se
sustentar e também da ignorância de que eles contribuíram em muito com a
formação do país auxiliando os colonizadores a sobreviverem em um território
desconhecido, além de possuírem culturas organizadas com sistemas religiosos e
judiciais complexos e bem organizados.
Na parte 8, ela comenta a falsa percepção de que o indígena é sustentado pelo
governo, uma suposição que como ela demonstra não faz sentido: os serviços do
governo especiais para os indígenas são em sua maioria adaptações de serviços
disponíveis ao “homem branco” e que são adaptados para conseguirem atender às
especificidades dos povos indígenas e propiciar a continuidade das suas tradições e
modo de vida.
Como 9º erro ela discute a ideia de que “lugar de índio é no mato” argumentando
que os indígenas não deixam de ser indígenas por viver na cidade e que muitos
deles inclusive, buscam no ambiente urbano melhores condições de vida muito
embora costumem enfrentar condições muito difíceis tendo que viver na periferia,
por exemplo. Ela também destaca que esse encontro do indígena com a vida urbana
é importante para, por exemplo, lhes dar acesso às universidades e permitir que eles
ingressem em uma carreira política.
Por fim, ela demonstra como não faz sentido a visão de que os indígenas não
fizeram nada de admirável, uma vez que vários povos indígenas produziam
cerâmicas complexas, criaram formas de cultivo que respeitam a floresta, etc.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

Neste artigo Joan Scott procura demonstrar como a emergência do conceito de


gênero entre os historiadores traz importantes novas perspectivas para o trabalho
destes a partir do momento que se compreende que uma história do gênero não é
só sobre as mulheres, mas também sobre os homens e nem só sobre o particular/o
familiar, mas também sobre o público e o governamental, porque o gênero é usado
desde sempre para se legitimar as relações de poder fazendo deste conceito parte
fundamental da construção da História.
A autora inicia o artigo tratando de um tema muito relevante que é o de como a
linguagem varia ao longo dos tempos e contextos fazendo com que a busca por uma
cristalização do sentido das palavras é inútil. A partir daí ela brilhantemente faz um
jogo de aproximação de duas noções de gênero - o gênero como categoria
classificatória geral e o gênero ligado às noções de masculino e feminino
reivindicado pelas feministas americanas: ambos são formas de se pensar a
classificação da realidade por distinções dos grupos produzidas por comparações, o
que no segundo caso significa pensar que as feministas usaram a palavra para
reafirmar que a ideia de mulher é uma construção é uma construção que produz não
só o feminino como também o masculino. A partir disso, ela coloca sua questão
principal de que, considerando que com essa nova noção de gênero buscou-se
repensar a feitura da história a partir da participação feminina, como o gênero afeta
a produção da história, especialmente de uma história que não trate a participação
da mulher como uma mera “curiosidade”.
Na parte I, ela inclusive traz a questão de que como gênero se tornou sinônimo de
mulheres, usado em trabalhos acadêmicos com o objetivo de dar um tome menos
político/feminista e mais “neutro” aos trabalhos relacionados às mulheres na
História.Mas que, por outro lado, ele evidencia o caráter cultural dos papeis de
homens e mulheres, inclusive enquanto conceitos codependentes um do outro,
ainda que persistam ideias de que a História das Mulheres/do Gênero pertença a
uma outra esfera que não a da “História Normal”.
Caberá às historiadoras, especialmente as feministas ir para além disso, o que
acontece, por exemplo, em trabalhos que buscam explicar as origens do patriarcado
seguindo por temas como a sujeição da mulher como uma maneira do homem
controlar sua capacidade de reprodução e/ou sua sexualidade. Para a autora, no
entanto, esse tipo de abordagem incorre no erro de supervalorizar o corpo como
definidor das diferenças sociais que as enrijece impedindo de se pensar as
variações e mudanças históricas. Ela também destaca as abordagens marxistas,
que em sua opinião embora tentam ir para além da questão corporal, pensando as
diferenças de gênero a partir de suas relações com as questões econômicas (como
as baseadas em Engels) e psicológicas/sociais (voltadas para Foucault e Lacan)
acabam por ratificar concepções imutáveis das relações/papéis de gênero ao, por
exemplo, tomar o antagonismo homem x mulher como um tipo de dado psicológico
natural inexorável e universal.
Na parte II, ela traz sua visão do que seja gênero relacionando-o com as percepções
sociais sobre as diferenças sexuais e com o significado que se dá às relações de
poder, ressaltando que tais relações estão sempre em conflito, não havendo uma
completa unificação social. Ela também destaca também os aspectos do gênero: os
símbolos ou representações de visões sociais sobre cada gênero; as afirmações
normativas a respeito de cada gênero que são postas como dominantes, mas
podem sempre ser questionadas; a constituição do gênero que ultrapassa o aspecto
familiar, se manifestando em áreas como a política e o mercado de trabalho; e a
identidade subjetiva do gênero, que para a autora não pode ser pensada em termos
psicanalíticos universais porque as pessoas nem sempre se submetem às
prescrições sociais.
Assim, para a autora é fundamental que os historiadores pensem o tratamento que a
sociedade dá ao gênero como um dos meios de se legitimar o poder e conduzí-lo,
como mostram diversos exemplos históricos citados por ela, por exemplo, os
diversos casos em que governos associam o domínio do poder sobre a sociedade
com características masculinas e a sujeição ao poder com características femininas.
Conclui-se, portanto, sua perspectiva de que a categoria de gênero é fundamental
para se pensar os processos históricos porque está imbricada nas mais diferentes
esferas da sociedade.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, história e educação: construção e


desconstrução. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, 1995, p. 101-132.

No presente trabalho, Guacira Lopes Louro analisa a perspectiva de Joan Scott


sobre o gênero como categoria de análise histórica a partir de aproximações do
pensamento desta autora com o pós-estruturalismo, com destaque para sua
complementariedade de pensamento com as noções de différance de Jacques
Derrida. Juntando isso às ideias de Foucault sobre poder, Louro busca elucidar o
que significaria exatamente utilizar gênero com categoria e sua relação com a noção
de desconstrução do pensamento binarista que permeia a produção de
conhecimento e de poder na sociedade.
Na introdução Louro faz um breve histórico de como o conceito de gênero foi se
estabelecendo dentro dos estudos históricos, desde seu surgimento como objeto de
interesse das feministas em sua busca por pensar a história da opressão femininas
que o tornou um tipo de curiosidade acadêmica restrita às pesquisas das minorias
até trabalhos mais recentes em que o estudo de gênero e da própria história das
mulheres passa a ser pensado como um dos meios de se analisar os processos
históricos já que as mais diversas esferas sociais são generificadas, isto é,
perpassadas por noções de gênero.
Já na seção Gênero como "categoria útil de análise histórica", ela busca fazer uma
análise/resumo do artigo homônimo de Joan Scott e aponta como a categoria
gênero pode ser aplicada à História da Educação que ela compreende ser permeada
por uma generalização que causa um apagamento dos gêneros dos personagens
com os quais lida.
O artigo segue para a seção “o encontro com o pós-estruturalismo” na qual a autora
estabelece paralelos entre o feminismo e a corrente pós-estruturalista como: a
colocação das grandes teorias em xeque; a busca em demonstrar como o poder (e a
luta contra ele) se manifesta em diferentes esferas sociais não tendo uma origem
única; a preocupação em desconstruir certos modelos de produção de conhecimento
(o feminismo através da proposta de novas metodologias como a história oral e do
estudo de novos elementos como a vida íntima e os sentimentos e o
pós-estruturalismo com sua novas abordagens sobre a linguagem e a pretensão de
acabar com as binaridades tradicionais).Da mesma forma ela alerta que nem
sempre esses dois movimentos são próximos, principalmente porque alguns
pensadores feministas rejeitam o pós-estruturalismo, ainda que no caso da autora
que ela analisa essa aproximação acontece, sendo justificado por Louro pela própria
condição de “rebeldia” e "inovação" das investigações históricas feministas que se
colocam em oposição àquilo que poderíamos chamar de um”cânone” das ciências
sociais.
Passando para a seção “A desconstrução da oposição de gênero”, a autora busca
discutir uma noção muito presente no artigo de Scott que é a de desconstrução,
procurando elucidar o que seria isso na prática. Para tanto, ela lança mão do
conceito de différance do pós-estruturalista Jacques Derrida que ao analisar o
pensamento ocidental a partir de uma tendência a estabelecer e hierarquizar
binômios usa esse termo para descrever uma prática de se suspender
temporalmente a consumação do outro. Citando Terry Eagleton ela aplica essa ideia
a dicotomia homem/mulher argumentando que no pensamento tradicional a mulher é
percebida como um não-homem, como algo que carece de masculinidade e se
desvia dela seguindo uma ótima de se estabelecer identidades para si, para um
grupo modelo a partir do que o outro não é.
Em termos da desconstrução, para a autora utilizar-se dessa ideia significa abdicar
da ideia de que estudar a história feminina significa estudar um “outro desviante” e,
como alertado pelo feminismo negro, abdicar também da concepção de uma
identidade universalizante para o ser mulher.O desconstruir, portanto, para ela seria
repensar as dicotomias que dominam o pensamento ocidental entendendo que elas
são construções. Louro ainda destaca um tipo de (falsa) dicotomia muito abordado
por Scott dentro dos movimentos feministas que é o da igualdade x diferença,
explicando que para a autora essa falsa dicotomia esconde um paradoxo inerente às
lutas das mulheres: por um lado elas precisam pensar suas singularidades como
mulheres e por outros reivindicar a igualdade de direitos, uma igualdade que só
pode se estabelecer quando há diferenças. Além, de repensar as dicotomias,
desconstruir também seria considerar as diferenças em cada grupo que são
invisibilizada por tais visões binárias hierarquizantes do mundo e pensar que embora
existam as diferenças, elas não podem ser tomadas como oposições naturais e
inflexíveis.
Em seguida na seção “As relações de poder entre homens e mulheres”, ela discute
as relações entre as noções de gênero e as concepções de poder. Citando Michelle
Perro ela discute como por muito tempo a historiografia tratou as mulheres como
portadoras de poderes específicos contrapostos ao poder político-estatal dos
homens e que seguindo a lógica de Scott a partir da noção de capilaridade do poder
trazida por Foucault, essa linearidade de poderes femininos e masculinos precisa
ser abandonada em prol de uma visão que considere as múltiplas facetas do poder
que permeiam a sociedade. Voltando a Foucault, a autora enfatiza sua noção de
poder como algo que se produz através da relações entre os mais diferentes grupos
nas mais variadas situações e que, portanto, uma desconstrução das relações de
poder frente ao gênero implicaria o abandono da centralidade tanto da luta de
classes marxista quanto da luta dos gêneros das teóricas do patriarcado, já que
socialmente o poder se estabelece por diversos caminhos que muitas vezes se
entrecruzam.
Também partir da noção de Foucault de que poder e liberdade são complementares
porque só há poder quando há a possibilidade de liberdade desse poder resistindo a
ele, Louro propõe uma história que foque nas resistências, mais especificamente
nas relações dos grupos que resistem com os outros.Ela considera também a se
pensar os estudos históricos a partir da noção foucaultiana de poder produtivo, isto
é, de que o poder não está só na repressão e sujeição, mas também na produção de
coisas, indivíduos e saberes, algo que se manifesta na característica “adestradora”
da escola que exerce um poder para produzir indivíduos com certas características
convenientes aos grupos hegemônicos.
Por fim, em “Algumas implicações políticas e pedagógicas”, a autora se propõe a
pensar a validade de trabalhar a história da educação a partir do gênero e como isso
é uma escolha política que se une a uma perspectiva de romper com paradigmas
científicos.Ela aponta como o pensamento de Scott vai de encontro aquilo que ela
considera como a grande virada teórica nos estudos feministas que foi o de deixar
de restringir o objeto de estudo às mulheres e passar a considerar a situação
feminina a partir das relações de gênero, reforçando a perspectiva de que os
gêneros são historicamente construídos e implicam nas definições de um lado pelo
outro, daí a necessidade do historiador de desnaturalizá-los e promover uma
reflexão e que dirá uma destruição dessas binaridades. Ela alerta ainda que as
perspectivas pós-estruturalista e de Joan Scott são um convite para se repensar
também as próprias práticas feministas para que não se incorra no problema de ao
se desconstruir uma binariedade acabar reconstruindo-a com outras formas.É
preciso pensar as relações de gênero em suas construções e para além delas, do
masculino e do feminino.

GOMES, Camilla de Magalhães. Gênero como categoria de análise decolonial.


Civitas, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 65-82, jan.-abr. 2018.

Neste importante artigo, a Doutora em Direito, Estado e Constituição pela


Universidade de Brasília através do diálogo com diversos autores da área aborda
como o conceito de gênero é fundamental para se trabalhar com a decolonialidade,
argumentando que o pensamento colonial utilizou e se utiliza desse conceito para
produzir o “outro” (o colonizado) como alguém inferior em seu modelo dicotomizado
da realidade.
Na primeira parte do artigo intitulada “Introdução: para revisitar o gênero como
categoria de análise”, a autora discute como o trabalho com a categoria gênero a
partir da influência da teoria queer, do transfeminismo e dos movimentos feministas
negros produziu consequências ambivalentes: se por um lado ele fez com que o(s)
feminismo(s) avançasse no sentido de ampliar o seu “sujeito” ao problematizar o ser
mulher tomando o gênero como uma construção social, por outro acabou
desaguando numa cristalização conceitual que o prioriza como mutável,enquanto
toma o sexo como uma categoria dada/natural.
Em seguida, na seção “Gênero e raça: a necessidade de articulação das
categorias”, ela procura definir o que significa usar gênero como categoria de análise
decolonial a partir da noção de que isso se dá por tal categoria ter a capacidade de
desestabilizar o que é ser homem/mulher. Sem se aprofundar em tal argumentação,
a autora passa a abordar como a categoria raça se torna totalizante e inviabiliza a
categoria gênero ao se pensar o sistema-mundo da colonialidade, trazendo,
inclusive a discussão de se a própria ideia de gênero não é parte da colonialidade
quando se pensa que os povos colonizados não possuíam(em) uma estrutura
hierarquizada de gênero, ao menos não nos moldes binários do ocidente.
Ela ainda explica que não usa a noção de estereótipo de gênero, pois pensa o
gênero não como algo cristalizado, mas sim a partir do viés de performatividade,
uma performatividade que muitas vezes justamente permite ao indivíduo fugir de
uma estereotipização imposta pela sociedade. E apresenta sua visão acerca de
como gênero e colonização se relacionam: o sistema colonial divide as pessoas em
dois grupos,humanos (os colonizadores ocidentais) e não-humanos (os
colonizados). Sendo que os humanos são subdivididos em dois grupos definidos
pelos seus gêneros - aos colonizadores atribuem-se feminilidade ou masculinidade -
enquanto os “não-humanos” são definidos apenas pelo seu sexo, tomados como
seres dominados por desejos e paixões em uma hiperssexualização, em outras
palavras, a desumanização do outro, do colonizado é produzida a partir da negação
de gênero a ele.
Por fim, em “Considerações conclusivas: a proposta do gênero como categoria de
análise decolonial”, Gomes conclui seu artigo reafirmando que pensar o gênero
como uma categoria de análise decolonial significa fazer desse conceito uma forma
de fazer perguntas, perguntas do tipo “será que todos os povos fazem gênero?” e
“como gênero e raça se articulam no sistema colonial como uma forma de
desumanizar o colonizado?”. E com isso, nos alerta para o perigo que é a noção de
um homem e de uma mulher universais, que nada mais são do que signos
produzidos por uma colonialidade que pretende ver o mundo como um sistema
dicotomizado no qual cada grupo tem um lugar imposto artificialmente a ele a partir
de uma visão racista e preconceituosa dos indivíduos.

HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de


uma palavra. Cadernos Pagu, n. 22, jun. 2004, pp. 201-246.

Em um denso e reflexivo artigo, Donna Haraway apresenta o longo caminho que o


conceito de gênero tem percorrido desde o século XIV até a atualidade em meio a
diferentes apropriações linguísticas, políticas, culturais e filosóficas especialmente
dentro do contexto das lutas feministas. Abordando estas diferentes ressignificações
da palavra ela demonstra como ainda impera uma noção de gênero como conceito
classificatório e discriminatório que estabelece diferenças ao mesmo tempo que
serve de ferramenta para o feminismo pensar o feminino como uma construção
social a partir do masculino que muitas vezes ignora a diversidade de facetas do ser
mulher e, por consequência, ser homem.
A autora inicia seu artigo descrevendo o desafio que foi escrever um verbete sobre
gênero para um dicionário marxista elaborado por um coletivo feminista. Destaca
que por um lado era uma ótima oportunidade de participar de um momento de
apropriação da linguagem por um movimento feminista, e por outro representava a
difícil tarefa de ter que lidar com outras línguas já que o verbete deveria envolver
além do inglês o espanhol, russo e chinês, além do problema de relacionar a ideia
de gênero à teoria marxista quando esta não lhe deu importância. Desse modo ela
ressalta o quanto a língua é um determinante ideológico, pois ela reflete as visões
de mundo de uma sociedade e em um certo sentido limita e condiciona nosso
pensamento.
Em seguida a autora apresenta o seu escrito para o dicionário. Na primeira parte
intitulada palavra-chave ela descreve as origens da palavra gênero e como esta
palavra é usada em diferentes línguas que ela sempre esteve relacionada a
construção de sistemas classificatórios de diferença, embora não necessariamente
sexuais. Na segunda parte - História / Articulação do problema nos escritos de Marx
e Engels - a autora destaca que gênero é um conceito desenvolvido para contestar
a naturalização da diferença sexual e que Marx e Engels não se voltaram para o
tema preferindo analisar a diferenciação e hierarquização dos sexos por uma ótica
econômica e tomando a heterossexualidade como algo natural assim como as
relações entre homens e mulheres, como se não fosse possível historicizá-las.
Seguindo para a seção “Problemas atuais/O paradigma da identidade de gênero”, a
autora faz um amplo histórico de como o debate sobre a idéia de identidade de foi se
desenvolvendo a partir dos anos 50 no sentido de produzir uma dicotomia entre
gênero/cultura x sexo/natureza e como isso se relaciona com o esforço das
feministas na luta contra um determinismo biológico que historicamente tendia a
justificar uma suposta inferioridade das mulheres e em prol de uma defesa da
prevalência da cultura sobre a natureza a despeito das suas generalizações.
A seção “O sistema sexo-gênero” é iniciada com um debate sobre a associação
entre feminismo, marxismo e psicologia representada principalmente pelo trabalho
de Gayle Rubin que reclamava uma análise marxista dos sistemas de sexo/gênero
como produtos da atividade humana que podem ser transformados através da luta
política e que abordava a heteressexualidade como um sistema projetado para
promover a dominação do homem sobre a mulher com ênfase na área do desejo e
que toma as lésbicas como um tipo de não-mulher.Essa teoria desaguaria nas
críticas ao casamento heterossexual como um tipo de prisão para as mulheres e na
perspectiva de que a mulher se constituiria como sujeito quando escapasse a essas
determinações masculinas e se reconhecessem em suas diferenciações.A autora
ressalta, entanto, que cabe um debate para além disso, já que no contexto da
escravidão, por exemplo, a situação de dominação das mulheres negras que
também comporta um elemento de gênero, ultrapassa a questão do casamento.
Em conclusão, para a autora a questão do gênero é portadora de uma grande
complexidade que precisa ser pensada para muito além das binaridades
homem/mulher, natureza/cultura porque tais binaridades ocultam toda uma gama de
pluralidades de situações: há muitos masculinos e muitos femininos e muitas
intersecções.

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa


Buarque de (Org.), Tendências e impasses: o feminismo como crítica da
cultura (pp. 206-241). Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Neste surpreendente trabalho, Teresa Lauretis traz à tona uma perspectiva muito
importante para se pensar o gênero, que é a dos meios pelos quais ele é construído
ou a tecnologia de gênero. Utilizando-se de autores como Foucault e Althusser ela
analisa como a construção de gênero se dá através de representações que
perpassam coisas tão triviais quanto o cinema criando a mulher a partir do homem,
representações que são internalizadas pelas pessoas e tomadas como verdades
inexoráveis quando na verdade são uma das várias formas de exercer poder sobre
os indivíduos.
A autora inicia seu artigo discutindo como a partir dos anos 60 e 70 o conceito de
gênero como diferença sexual passou a ser utilizado pelas feministas como uma
ferramenta para pensar o mundo em seus mais diferentes âmbitos, mas acabou por
se tornar uma limitação ao sempre se pensar a mulher a partir de sua oposição e
especificidade frente ao homem.Essa limitação avança com a invisibilização das
diferenças, inclusive entre as próprias mulheres, que não sejam sexuais produzindo
uma limitação discursiva que desconsidera a constituição dos sujeitos no gênero, na
raça, na classe e nas mais diversas relações.
Partindo da ideia foucaultiana de tecnologia sexual, Lauretis nos chama atenção
para a necessidade para pensar o gênero como algo que surge das diferenças
sexuais, mas que vai para muito além disso, ganhando contornos imaginários de
representação e autorrepresentação surgidas a partir do cinema, da política, do
cotidiano, etc. como uma construção social.
Ela inicia a parte 1 fazendo uma análise da palavra gênero nos dicionários na qual
verifica que ela está associada principalmente à ideia de classificação, o que em sua
visão já alude à ideia de relação e pertencimento: determinar a qual gênero algo
pertence é construir uma relação de igualdade e diferença deste algo em relação a
outros. A generificação de algo, inclusive a sexual, produz então representações
socioculturais do que esse algo é e do que ele não é, e no caso do sistema
sexo-gênero, também determina o status do indivíduo dentro de um sistema que
produ igualdades e desigualdades.
Na parte 2, a partir das ideias de Althusser sobre a relação entre ideologia e
realidade, a autora constrói a argumentação de que a ideologia constrói homens e
mulheres transformando-se em ideologia de gênero. Mas esta construção que se
manifesta na vida cotidiana, desaparece dos discursos político-filosóficos daí, por
exemplo, que o marxismo limite o pensar sobre o gênero ao âmbito da mulher e do
particular.Da mesma forma, citando Parveen Adams ela traz a questão de que
determinadas diferenças sexuais não são dados naturais, mas sim construções
históricas daí a falha de se pensar o patriarcado como uma constante na História
como faz as feministas marxistas e a possibilidade de se eliminar o antagonismo
entre os sexos por este não ser algo natural, mas uma elaboração através de
sistemas de representação.Ela também ressalta que a construção da ideologia de
gênero é algo tanto particular quanto público, porque estas esferas não estão
separadas e que as mulheres feministas se situam tanto dentro do gênero quanto
fora dele em sua discussão acerca da construção de representações promovidas
pela ideologia de gênero.
Na parte 3, a autora introduz o conceito de tecnologia sexual de Foucault, a partir da
qual reflete o fato de que mesmo a sexualidade é uma construção social, na medida
em que o detentores do poder buscam determinar o que é aceitável ou não e
mesmo as interdições sexuais produzem sexualidades. Ela traz ainda uma reflexão
acerca de como a sexualidade feminina tem sido construída no ocidente como
responsiva à sexualidade masculina, complementar e oposta a ela. Como os
indivíduos estão imersos na ideologia, homens e mulheres internalizam e absorvem
as representações de gênero e as visões sobre sexualidade tomando-as como
aquilo que eles são e isso determina como eles recepcionarão as representações
criadas por outras tecnologias como o cinema, em um verdadeiro ciclo vicioso.
Na parte 4, a autora discute as relações entre subjetividade e gênero, apontando
para a problemática de que a subjetividade feminina muitas vezes é tomada como
algo típico das mulheres e restrito a elas.Ao mesmo tempo em que muitos homens
consideram que a igualdade de gênero se faria a partir do momento em que as
mulheres negassem a si mesmas e, para a autora, é no enfrentamento desse tipo de
contradição que o feminismo deve trabalhar hoje.
DEBONA, Jackson James; RIBEIRO, Renilson Rosa. Relações de gênero e livro
didático de história: uma abordagem possível?. Educação e Fronteiras, v. 4, n.
11, pp. 126-143, set. 2015.

O artigo de Jackson James Debona representa a introdução de uma importante e e


necessária reflexão acerca da presença do tema gênero nos livros didáticos, uma
vez que essa temática perpassa as mais diferentes esferas sociais e encontra no
espaço escolar um dos ambientes mais propícios para seu debate. Como ele
demonstra ao longo de seu trabalho, essa presença se manifesta também como
uma ausência, ausência porque os livros didáticos como parte de uma estrutura
social produzida pelo masculino (e reprodutora de seus valores) mal tocam no tema
ou o reduz a um tipo de “concessão” de um pequeno espaço à História das
Mulheres. Daí a importância de mais análises como essas para nos levar a uma
reflexão do quanto normalizamos o mundo pensado única e exclusivamente a partir
do masculino, ao ponto de nem mesmo na área da educação haver maiores críticas
a essa perspectiva.
Na primeira seção - Uma questão sempre sensível - o autor faz uma introdução ao
tema do gênero afirmando o quão fundamental é o trabalho com o mesmo para se
pensar a sociedade, mas que esse trabalho em sala de aula esbarra em problemas
como a falta de estrutura e formação. Ele ainda destaca que embora seu foco seja o
trabalho com o livro didático, reconhece que este é apenas uma ferramenta dentre
várias outras possíveis como textos, imagens, vídeos, etc. E utilizando-se dos
trabalhos de Joan Scott e Rago propõe uma análise que pense o histórico de uso do
gênero como um elemento classificador e universalista que toma o
homem-branco-heterossexual-europeu como modelo e os outros grupos que não se
encaixem nessa descrição como desvios e que seu objetivo será refletir sobre até
que ponto esse tipo de concepção pode ser observada nos livros didáticos.
A seção “Abordagem de relações de gênero no livro didático de História” é iniciada
com uma reflexão acerca do que podemos pensar como as quatros principais
funções do livro didático elencadas pelo autor: ser um repositório dos conteúdos
selecionados como essenciais para se ensinar; ser um instrumento pedagógico ao
expor formas do professor ensinar, como o uso de exercícios; ser um veículo para
certos sistemas de valores; e ser uma fonte de consolidação da memória já que
apresenta um determinado tipo de informações a serem preservadas e transmitidas
pelas gerações. Em seguida ele faz uma análise da seção “imagem como fonte” de
cada capítulo do livro construindo um quadro no qual descreve se há ou não
enfoque em questões de gênero nessas imagens, e no caso positivo qual é esse
enfoque, mesma abordagem que utiliza com a seção “texto como fonte”, concluindo
que proporcionalmente são muito baixos os exemplos em que há esse enfoque
especialmente considerando que a idade dos alunos de 6º ano é o momento em que
os alunos passam a se atentar para as questões ligadas ao gênero.
Citando Guacira Louro, ele conclui que no livro analisado quase não há efetivo
tratamento às questões de gênero, pelo fato de que a História e a Educação assim
como tantas áreas da sociedade são transpassadas por discursos masculinos, em
que a masculinidade é hegemônica ditando crenças, ideias e comportamentos.
Nesse contexto, a questão de gênero é praticamente ignorada inclusive no próprio
currículo que se limita a prever o trabalho sobre a mulher na Grécia Antiga no 3º
Bimestre. O problema, portanto, vai para além do livro didático em si, pois se trata
de uma questão cultural e social.

RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO,


Joana Maria; GROSSI, Miriam (Orgs.), Masculino, feminino, plural (pp. 1-17).
Florianópolis: Mulheres, 1998.

Neste trabalho Margareth Rago faz a importante reflexão se é possível uma


epistemologia feminista e quais seriam as contribuições de tal epistemologia para a
História. Tendo como enfoque as inovações trazidas pelo feminismo a respeito de
como a produção de conhecimento está circunscrita pelo gênero, a autora
demonstra não só como as mulheres trazem sua própria maneira de produzir
conhecimento como também comprova que isso é fundamental para a elaboração e
normalização de novas formas de se pensar o mundo e a própria ciência.
A autora inicia o trabalho referenciando os historiadores Michelle Perrot e Roger
Chartier para refletir acerca da questão de até que ponto as diferenças entre os
sexos é capaz de influenciar produções epistemológicas ressaltando que de início é
possível tanto argumentar que as mulheres possuem um ponto de vista único,
quanto que há o perigo de se universalizar suas especificidades, limitando-as a isso,
além de ser óbvio o fato de que as mulheres não vivem em ilhas, fazem parte de um
mundo no qual se compartilham experiências com homens.
Na primeira seção - “Epistemologia feminista: ensaiando alternativas” - a autora
busca argumentar a favor da existência de uma epistemologia feminina refletindo,
por exemplo, que as mulheres possuem uma experiência histórica e cultural
diferenciada daquela dos homens e que trabalhos feministas tendem a se construir
como contradiscursos o que perpassa a elaboração de novos conceitos e linguagens
que se contrapõem a uma epistemologia dominante ocidental marcada pela recusa a
pensar o outro, um outro que inclui as mulheres.
Na segunda parte intitulada “1 - a crítica feminista”, a autora enfatiza o fato de que o
feminismo faz uma crítica a epistemologia tradicional no sentindo de que ela não
possui a neutralidade que propagandeia, porque é excludente e identitarista partindo
da valorização do homem branco ocidental heterossexual. Essa valorização acaba
por ignorar que os sujeitos também são construções, um efeito das determinações
culturais.E citando Joan Scott, defende a importância de se compreender as divisões
sexuais mesmo em elementos como o trabalho, não como realidades dadas, mas
sim como resultado de um discurso masculino.
Já em “2 - o projeto de ciência feminista ou um modo feminista de pensar?”, ela
analisa como o pensamento feminista se relaciona com a produção de
conhecimento, especialmente no que se refere as dificuldades de se afirmar como
uma forma de epistemologia. Ela traz o fato de que tal pensamento muitas vezes
teve de ser integrado a campos da produção do conhecimento científico como um
acessório, não tendo sua autonomia e que isso leva ao questionamento até natural
de se uma epistemologia feminista nada mais é do que mais uma forma de controlar
o pensamento. Para a autora não há mal nisso, afinal é um processo normal que
grupos minorizados busquem estabelecer suas próprias epistemologias e que,
inclusive, uma das coisas que a epistemologia feminista faz é justamente desmontar
a ideia da produção de conhecimento como algo completamente neutro e racional,
apontando que o conhecimento se constrói a partir das interações dos sujeitos, dos
seus pontos de vista, fazendo parte de um grupo de outras correntes como o
marxismo, que buscam desconstruir o sistema espistemológico hegemômico.
Por fim, em “Feminismo e História”, Rago busca refletir sobre quais seriam as
contribuições do pensamento feminista para os estudos históricos e demonstra que
elas estão relacionadas, sobretudo, a apresentação de novos campos de estudo
como a história das bruxas e prostitutas, dos sentimentos e da vida particular, etc. e
de novas percepções acerca de como a História se constrói para além dos lugares
comuns estabelecidos pelo olhar masculino.Esses lugares acabaram, por exemplo,
por secundarizar demais o campo da subjetividade e da dimensão simbólica, um
campo que as feministas trouxeram a tona relembrando o quão importante é o
imaginário social para se compreender a sociedade e aproximando os estudos
feministas da História Cultural.

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